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quinta-feira, 30 de março de 2017

Marcuse e a Crítica ao Neofreudismo


Marcuse e a Crítica ao Neofreudismo

 Nildo Viana

Herbert Marcuse, em uma de suas mais famosas obras, Eros e Civilização, realiza, após analisar a dinâmica histórica dos instintos e a oposição entre “princípio de prazer” e “princípio de realidade”, uma crítica ao que ele denomina neofreudismo. Apesar desta obra poder ser criticada em muitos aspectos, nos limitaremos, neste artigo, a fazer uma crítica da sua crítica ao neofreudismo. Acontece que, para realizarmos isto, devemos, anteriormente, abordar o fundamento marcuseano da crítica ao neofreudismo, o que nos remete à sua obra como um todo. Isto, entretanto, não nos obriga a analisar detalhadamente toda a obra de Marcuse, mas tão-somente seu equívoco fundamental.
Qual é o equívoco fundamental que perpassa todo o livro de Marcuse (1986)? Muitos já observaram qual foi (MaCintyre, 1978; Fromm, 1992). O próprio Marcuse o revela (mas não o assumindo como equívoco) no subtítulo e no prefácio de Eros e Civilização: o que ele pretende fazer é uma interpretação filosófica do pensamento de Freud ou esboçar uma filosofia da psicanálise.
É aí que cabe a pergunta: qual é o sentido de uma “filosofia da psicanálise”? E isto nos remete a uma questão, mais ampla, que é a seguinte: qual é o sentido da filosofia na sociedade contemporânea? Podemos dizer que, no mundo atual, a consciência burguesa sistematizada possui dois sentidos: um que é comandado pela lógica do empiricismo e outro que é dirigido pela lógica da especulação pura e das abstrações metafísicas, expresso, por exemplo, pela filosofia. As “novas tarefas do pensamento” não salvam a filosofia do seu fim e de nada adianta as lamentações heiddegerianas. A filosofia é coisa do passado. Ela não passa de uma sobrevivência anacrônica na sociedade capitalista[1].
É aí que se revela toda a esterilidade do projeto marcuseano de uma “filosofia da psicanálise”. Isto, entretanto, não quer dizer que não haja nenhuma contribuição de Marcuse à psicanálise, mas apenas que tal contribuição é muito restrita e é acompanhada por inúmeros equívocos. É devido as suas abstrações metafísicas que Marcuse pode postular e defender teses freudianas que não possuem nenhuma validade teórica, tais como o “complexo de Édipo” e o “instinto de morte”. Se Marcuse tivesse aprofundado sua análise no sentido de entender as raízes sociais das concepções psicanalíticas, teria contribuído bem mais e percebido alguns equívocos da psicanálise, tal como a tese do “instinto de morte”, produto derivado da visão dos psicanalistas a partir das guerras mundiais (Viana, 2002).
A obra de Marcuse é, sem dúvida, perpassada por uma intenção de se elaborar uma teoria revolucionária. Acontece que a intencionalidade não é suficiente para se elaborar uma teoria revolucionária. Aliás, ela pode, no caso de certos indivíduos (devido às características de sua personalidade, suas condições de vida, etc.) se desenvolver de tal forma que se torna até mesmo prejudicial em alguns aspectos. Marcuse busca dar uma fundamentação “biológica” à revolução e opõe o “biológico” ao “social”, tomando partido do primeiro, e assim pode postular que tudo que é “biológico” é bom e tudo que é “social” é mau. O bem é personificado no “biológico” e o mal é personificado no “social”. Ora, mas é o próprio Marcuse que coloca que no “biológico” existe uma dinâmica histórica e, no entanto, não reconhece tal dinâmica no “social” e é por isto que somente através da “libertação do biológico” (o que inclui o sadismo e a coprofilia) contra o social que se realizará a emancipação humana.
Marcuse vê, no “biológico”, uma contradição entre Eros (instintos sexuais) e Tanathos (instinto de morte) e no “social” não vê contradição alguma. Por conseguinte, o “biológico” é dinâmico e o social é estático. Prosseguindo o raciocínio, pode-se dizer que o “social” só se transformará através de fatores exógenos, já que lhe falta uma dinâmica interna, uma contradição interior. Para Marcuse, esse “fator exógeno” só pode ser os instintos reprimidos pela civilização, ou seja, o “biológico”, já que o “social” não só é estático como também é repressor. A luta entre repressor (civilização) e reprimido (instintos) expressa a dinâmica da história. É por isso que Marcuse pode recusar a análise da historia real das sociedades e se refugiar na ficção freudiana da “horda primordial”, pois, caso contrário, teria que reconhecer que as transformações sociais são produtos da dinâmica das lutas sociais e que oposição entre “Eros” e “civilização” (ou entre “biológico” e o “social”) só existe porque na própria civilização existe uma contradição e é justamente esta que produz aquela[2].
Por conseguinte, não é a dinâmica do biológico, e, conseqüentemente, de Eros contra a civilização que expressa a dinâmica da historia e sim o conjunto das relações sociais marcadas pela contradição (luta) de classes. Esta, por sua vez, cria a dinâmica no “biológico” e expressa o movimento histórico da humanidade. Uma dinâmica contraditória imanente no biológico é inexistente, embora não o seja em determinadas sociedades e isto significa que onde havia contradição e mudança (na sociedade) Marcuse viu apenas a permanência e para postular a revolução teve que “inventar” um lugar onde houvesse a manifestação da contradição. Tal lugar escolhido por Marcuse é o mundo biológico do corpo humano.
Ao deslocar a possibilidade de mudança histórica para o mundo biológico, Marcuse se vê obrigado a defender como revolucionário todas as manifestações “biológicas”. Ao retirar a historicidade da sociedade e da relação entre sociedade e necessidades humanas (“instintos”), Marcuse deve “naturalizar” e “justificar” tudo que aparenta ser manifestação biológica. Ao criticar e negar a sociedade e não ver nela mesma a possibilidade de mudança, Marcuse deve afirmar e defender tudo que seja combatido por esta mesma sociedade. É partindo dessas premissas que Marcuse pode postular a existência do “complexo de Édipo”, do “instinto de morte”, a “liberação das perversões sexuais”, etc. Como, de um ponto de vista histórico-concreto, isto não é defensável, então Marcuse deve apelar para a “filosofia da psicanálise” e “fundamentar” suas teses em um conjunto de abstrações metafísicas.
É com base neste equívoco fundamental que Marcuse irá criticar o que ele chama de neofreudismo. Este é representado por nomes como os de Erich Fromm, Karen Horney, Clara Thompson, H. Sullivam, P. Mulahi e outros. Marcuse começa sua crítica ao neofreudismo dizendo que “a psicanálise alterou a sua função na cultura de nosso tempo, de acordo com as mudanças sociais fundamentais que ocorreram com a primeira metade do século” (Marcuse, 1986, p. 205). Ela
“Era uma teoria radicalmente crítica. Mais tarde, quando a Europa central e oriental se encontrava em convulsão revolucionária, tornou-se claro até que ponto a psicanálise ainda estava vinculada à sociedade cujos segredos revelou. A concepção psicanalítica do homem, com sua crença na imutabilidade básica da natureza humana, impôs-se como ‘reacionária’; a teoria freudiana parecia implicar que os ideais humanitários do socialismo eram humanamente inatingíveis. Então, as revisões da psicanálise começaram a ganhar impulso” (Marcuse, 1986, p. 205).
 A psicanálise mudou de função: era crítica e passa a ser conservadora. Esta formulação não deixa de ser estranha, pois sua justificativa está no fato da concepção de uma natureza humana imutável refutar os ideais socialistas e foi isto que provocou as revisões e depois se diz que estas revisões foram conservadoras. É claro que a intenção pode ter sido traída pela forma como o objetivo foi perseguido, mas mesmo assim esta formulação simples de Marcuse não deixa de ser contraditória. Mas deixando isto de lado, podemos dizer que é neste contexto, segundo Marcuse, que surge o “revisionismo” (de direita: Jung; de centro: Fromm, Horney, etc.; de esquerda: Reich).
Marcuse começa a fazer uma contextualização histórica mas acaba se perdendo no meio do caminho. Segundo ele, a psicanálise era crítica passa a ser conservadora. Isto ocorre quando ela demonstra sua vinculação com a sociedade e este fato acontece em uma época de convulsão social.  É  por isto que surgem os revisionistas. Acontece que Marcuse toma a sociedade como uma abstração metafísica. Se ele observasse que “a sociedade” é dividida em classes sociais antagônicas, então veria que os “revisionistas” expressam uma concepção individual que é, ao mesmo tempo, uma concepção de classe. C. G. Jung, por exemplo, colocou que a religião poderia proteger a civilização do perigo do comunismo e do fascismo (Jung, 1988).
Assim, se Marcuse tivesse percebido que o período de “convulsão revolucionária” atinge os indivíduos e intelectuais sob formas diferentes, teria visto que um período de acirramento das lutas de classes leva a uma exasperação do posicionamento político e intelectual dos representantes literários, teóricos ou ideológicos das classes sociais. Aliás, este período histórico, é marcado por este tipo de posicionamento político de Jung e isto ocorre não só na psicanálise como também na antropologia[3] e outras ciências humanas. Este momento histórico marca um “endurecimento” do direitismo de Jung e simultaneamente a aproximação de Wilhelm Reich com o KAPD – Partido Comunista Operário da Alemanha, que reunia as tendências esquerdistas da Alemanha, onde se destacavam os comunistas conselhistas – e o surgimento da sex-poll (Reich, 1976). Superando essa reificação do conceito de sociedade, pode-se ver que não se pode falar de um bloco monolítico chamado de “neofreudismo”.
A principal crítica que Marcuse realiza aos revisionistas é a de que eles obliteraram a
“discrepância entre teoria e terapia assimilando a primeira à segunda. Essa assimilação teve lugar de duas maneiras. Primeiro, os conceitos mais especulativos e ‘metafísicos’ não sujeitos a qualquer verificação clínica (tais como o instinto de morte, a hipótese da horda primordial, a morte do pai primordial e suas conseqüências) foram minimizados ou francamente rejeitados. Além disso, nesse processo alguns dos mais decisivos conceitos de Freud (a relação entre id e ego, a função do inconsciente, o âmbito e o significado da sexualidade) foram redefinidos de modo tal que suas conotações explosivas foram quase eliminadas por completo” (Marcuse, 1986, p. 212).
Os “revisionistas”, segundo Marcuse, buscam, ao contrário de Freud,  “acentuar o positivo” e valorizar a influência ambiental (cultural). Por isto, eles criam uma falsa imagem da civilização. Marcuse diz que o abandono de certos conceitos de Freud se deu devido à assimilação da teoria à terapia. Acontece que o questionamento dos conceitos citados por Marcuse não precisa ser feito do ponto de vista da terapia, pois do ponto de vista da teoria isto não só é possível como necessário. E, desde que essa teoria não seja, na verdade, uma ideologia, o abandono de diversos “conceitos” freudianos se faz necessário sem referência à terapia ou à verificação clínica. E se há uma redefinição em alguns pressupostos básicos, isso, evidentemente, acarretará redefinições em outros. Se são “explosivos” e deixam de ser, isto só tem importância se deixaram de corresponder à realidade ou não, pois teses pretensamente revolucionárias, se não forem verdadeiras, em nada colaboram com o processo revolucionário. Aliás, pode até ser mais um obstáculo ao desenvolvimento de uma práxis revolucionária.
Marcuse passa da crítica de Fromm para Sullivam e outros, como se houvessem apenas “semelhanças”. Aliás, Marcuse afirma duas coisas sugestivas na sua “metodologia” de crítica que lhe retira o aspecto teórico em favor do ideológico: “a discussão subseqüente diz unicamente respeito aos últimos estágios da psicologia neofreudiana, em que as características regressivas do movimento parecem predominantes”; “a discussão seguinte negligenciará as diferenças entre os vários grupos revisionistas e concentrar-se-á na atitude teórica comum a todos eles” (Marcuse, 1986, p. 210-212). 
Vê-se que Marcuse realiza um “corte teórico” e um “corte histórico”, ao estilo Foucault. Tal procedimento, entretanto, é ideológico. Em primeiro lugar, não é possível abordar a obra de um autor ou de um conjunto de autores realizando “cortes históricos”, ou seja, sem levar em consideração o seu processo de formação, sua continuidade e mudança, seu caráter intrínseco, as questões colocadas, as respostas dadas, definitivas ou provisórias (que mais tarde buscar-se-á fundamentá-las), bem como as mudanças sociais que produzem ressonâncias nas suas concepções. Em segundo lugar, um “corte teórico” não possui validade teórica se: a) não houvesse realmente uma concordância entre todos os autores no aspecto analisado; b) se este aspecto não se referisse ao essencial do pensamento de cada autor; c) se os pontos de vista não possuíssem a mesma fundamentação e o mesmo objetivo. Contudo, Marcuse não comprova nada disto. Ele passa de Mullahi a Fromm ou de Sullivam a Horney com a maior facilidade e sem nenhum rigor teórico.
Marcuse também diz que os neofreudianos utilizam a “filosofia moralista do progresso”. Ora, o que Marcuse faz com Fromm é o mesmo que ele acusa dos “neofreudianos” fazerem com Freud: torna-os passivos representantes conservadores da sociedade contemporânea, enfatizando apenas os aspectos considerados por ele como “conservadores” e abolindo os aspectos críticos. As diferenças fundamentais entre Fromm, Horney, Sullivam, Thompson, etc., são “esquecidas”, tal como na afirmação de Marcuse de que os “neofreudianos” recusam a idéia de existência de um “instinto de morte”, sendo que Fromm o aceita, enquanto “potencialidade secundária” (Fromm, 1976). Marcuse afirma que os “revisionistas” opõem o “bem” e o “mal” e, na verdade, também faz isto em seu livro que opõe “Eros e civilização” e “Freud e os revisionistas”.
Vejamos outro exemplo de desconsideração pelas diferenças nos neofreudianos. Marcuse, baseando-se numa citação de Sullivam, diz:
“a profunda conformidade mantém seu predomínio nessa psicologia, que a todos os que ‘se desprendem de suas antigas amarras’ e se tornam ‘radicais’ considera suspeitas de neurose (a descrição ajusta-se a todos eles, de Jesus a Lênin, de Sócrates a Giordano Bruno)” (Marcuse, 1986, p. 219).
Acontece que isto não é “consenso” entre os “neofreudianos”. Basta ler Fromm para ver que, para ele, Jesus, Lênin, Sócrates e outros são “profetas” e “revolucionários” e não “neuróticos”[4]. Ou, então, basta ler as considerações sobre a neurose, o normal e o anormal em K. Horney[5] e no próprio Fromm (1976) para ver que muitos “revisionistas” discordam totalmente de Sullivam.
Isto, entretanto, não quer dizer que todas as críticas de Marcuse sejam equivocadas. Ele realiza algumas críticas corretas a Erich Fromm. Este afirma que se deve realizar o “desenvolvimento das potencialidades humanas” e considera que isto é uma responsabilidade individual e não uma luta política que só possibilitará tal desenvolvimento com a transformação social. O “desenvolvimento das potencialidades humanas” numa “sociedade repressiva” (tal como é reconhecida por Fromm) é uma incoerência, mas apenas da forma como Fromm o coloca, já que tal desenvolvimento, mesmo sendo parcial, é possível (para alguns indivíduos, sob o capitalismo, e para a coletividade somente no “pós-capitalismo”, na sociedade autogerida), mas somente através de uma práxis revolucionária. Outra crítica correta é o “estilo” de “sermão” que realmente está presente em alguns dos neofreudianos.
Marcuse comete um equívoco ao tratar da idéia burguesa de produtividade comparando-a com a dos “neofreudianos”, pois, pelo menos no caso de Fromm, a idéia de produtividade – como o próprio Marcuse reconhece nos “revisionistas” – está ligada à “livre realização do homem”, ou seja, possui um sentido diferente (Fromm, 1961). Marcuse diz que a ambigüidade do termo é utilizada pelos “revisionistas” para aparecerem como “críticos”, quando, na verdade, são conservadores. Tal crítica só teria validade se Marcuse comprovasse que os “neofreudianos” possuíssem tal ambigüidade ou esta palavra no sentido burguês, o que ele não faz.
Marcuse também critica o “moralismo” de Fromm. Este, segundo Marcuse, demonstrou o caráter repressivo do processo de internalização como poucos analistas fizeram e depois retoma “a ideologia da internalização”. As pessoas “normais” e “ajustadas” são condenadas porque traíram o “eu superior”, os “valores humanos”. Em melhor situação interior estão aqueles que conquistaram uma solidez moral interior. Marcuse continua:
“O estilo sugere o Poder do Pensamento Positivo a que a crítica revisionista sucumbe. Espúrios não são os valores, mas o contexto em que eles estão definidos e proclamados: ‘força interior’ tem a conotação daquela liberdade incondicional que pode ser praticada mesmo sob grilhões e que o próprio Fromm certa vez denunciou na sua análise da reforma” (Marcuse, 1986, p. 222).
Assim, as questões sociais tornam-se espirituais e sua solução torna-se uma tarefa moral. Entretanto, esta crítica só seria correta se os “valores humanos” defendidos por Fromm fossem os mesmos que são predominantes na sociedade burguesa. Marcuse não comprova isto e dificilmente poderia alguém sustentar que Fromm defende os valores dominantes de nossa sociedade.
Tal crítica seria bem endereçada se colocasse em evidência o caráter individualista da solução apresentada por Fromm. É o indivíduo que deve transformar-se e transformar a sociedade. É claro que o indivíduo, a moral, os valores, etc. possuem um papel no processo de transformação social, mas para que esta se realize ou se torne uma possibilidade real, é necessária a ação das classes sociais. Fromm coloca a questão das classes sociais de forma superficial e isto ocorre, principalmente, quando ele trata do pensamento de Marx. Acontece que o silêncio de Fromm sobre as classes sociais não é criticado por Marcuse. Isto por um motivo muito simples: na obra de Marcuse, Eros e Civilização, há também um completo silêncio sobre as classes sociais. Ele trabalha com as abstrações metafísicas de “indivíduo” e “sociedade”, opondo uma à outra, e é por isto que ele pode considerar Freud um “revolucionário”. Prosseguindo com a construção de sua “filosofia da psicanálise”, Marcuse postula, contra os “neofreudianos”, a existência do “complexo de Édipo” e do “instinto de morte”, dizendo que eles minimizam o grau em que os impulsos são modificáveis segundo a teoria freudiana. Na verdade, o que os “revisionistas” fazem é rejeitar parte da teoria freudiana e não “minimizar” seus fundamentos.
Marcuse passa a criticar Clara Thompson, que afirma que a finalidade da “escola cultural em psicanálise” excede a preparação do homem para submeter-se às restrições sociais e procura, na medida do possível, libertá-lo das exigências “irracionais” da sociedade e torná-lo capaz de desenvolver suas potencialidades, assim como para assumir a “liderança” da construção de uma “sociedade mais construtiva”. Marcuse comenta:
“A tensão entre saúde e conhecimento, normalidade e liberdade, que animou toda a obra de Freud, desaparece aqui, um condicional ‘na medida do possível’ é o único vestígio que resta de explosiva contradição na finalidade. A ‘liderança na edificação de uma sociedade mais construtiva’ terá de combinar-se com o funcionamento normal na sociedade estabelecida” (Marcuse, 1986, p. 222).
Segundo este trecho, vê-se que esta autora reconhece a existência de “exigências irracionais da sociedade” e que é necessário superá-las e para isso é preciso, na medida do possível, no interior da atual sociedade, que, obviamente impõe limitações a um pleno desenvolvimento das potencialidades humanas, tornar as pessoas capazes de se libertarem dessas exigências irracionais e prepará-las para lutar pela construção de uma nova sociedade. É claro que Thompson poderia assumir uma posição mais radical, mas a contradição subsiste e de forma mais visível e consciente do que em Freud e por isso a argumentação de Marcuse sobre o maior conservadorismo dos “neofreudianos” é, neste trecho, destituída de fundamentação.
Marcuse encerra sua crítica afirmando:
“A mutilação da teoria do instinto completa a reversão da teoria freudiana. A direção interior da última era (em evidente contraste com o ‘programa terapêutico’ do id para o ego) da consciência para o inconsciente, da personalidade para a infância, do indivíduo para os processos genéricos. A teoria movia-se da superfície para a profundidade, da pessoa ‘acabada’ e condicionada para as suas origens e recursos” (Marcuse, 1986, p. 31).
Marcuse acrescenta que este “movimento era essencial para a crítica freudiana da civilização”. Do ponto de vista analítico, Freud realmente vai do “ego” para o “id” e volta do “id” para explicar o “ego”. Acontece que, do ponto de vista da posição pessoal de Freud na luta entre “id” e “ego”, ele fica do lado do “ego”. Esta é a posição de alguns “neofreudianos” e não a de todos. Aliás, alguns se colocam do lado do “id” (não no sentido freudiano) e contra o “ego”. Por conseguinte, esta crítica também não observa o real caráter das posições de Freud e as diferenças existentes nos diversos representantes do que Marcuse chama de “neofreudismo”.
Neste sentido, o que Erich Fromm chamou de “o pretenso radicalismo de Herbert Marcuse” não deixa de ser verdadeiro no que se refere a esta obra, embora não se possam retirar os méritos que persistem e a contribuição apresentada por Marcuse. Em síntese, podemos dizer que as limitações existentes nas concepções de Marcuse, ou seja, a limitação da “filosofia da psicanálise”, faz com que ele elabore diversas críticas equivocadas ao “neofreudismo”, considerando-se alguns de seus representantes, em especial, Fromm, Horney e Thompson.
Desta forma, podemos dizer que a crítica de Marcuse ao neofreudismo apresenta mais equívocos que acertos e isto tem sua origem em sua insistência em apelar para uma filosofia da psicanálise, provocada, por sua vez, pelo seu desencanto com a teoria marxista da revolução, segunda a qual o proletariado seria o sujeito revolucionário que poria fim ao atual estado de coisas[6]. Se o proletariado perde seu caráter de classe revolucionária da nossa época, então só resta aos críticos da sociedade existente buscar outro fundamento para postular a derrocada do capitalismo e a construção de uma nova sociedade. É isto que se vê em Marcuse, que encontra nos instintos reprimidos o fundamento da revolução de nossa época em substituição ao proletariado, que, segundo muitos, estaria integrado na sociedade capitalista. É daí que surge a filosofia da psicanálise de Marcuse e, conseqüentemente, sua crítica aos neofreudianos. E é aí que se encontra o seu equívoco fundamental.   


Referências Bibliográficas

Fromm, Erich. A Descoberta do Inconsciente Social. Rio de Janeiro, Manole, 1992.
Fromm, Erich. Análise do Homem. 2a Edição, Rio De Janeiro, Zahar, 1961.
Fromm, Erich. O Caráter Revolucionário. In: O Dogma de Cristo. 5a Edição, Rio De Janeiro, Zahar, 1986.
Fromm, Erich. O Coração do Homem. Rio De Janeiro, Zahar, 1976.
Horney, Karen. A Personalidade Neurótica de Nosso Tempo. 10a Edição, São Paulo, Difel, 1984.
Jung, C. G. Presente e Futuro. Petrópolis, Vozes, 1988.
Korsch, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.
Macintyre, D. As Idéias de Marcuse. São Paulo, Cultrix, 1978.
Marcuse, Herbert. Eros e Civilização. Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. 8a Edição, Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
Marcuse, Herbert. Razão e Revolução. 4a Edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
Marcuse, Herbert. Sobre o Conceito de Negação na Dialética. In: Idéias Sobre Uma Teoria Crítica da Sociedade. 2a Edição, Rio De Janeiro, Zahar, 1981.
Mead, Margaret. Sexo e Temperamento. 3a Edição, São Paulo, Perspectiva, 1988.
Reich, Wilhelm. O Que é Consciência De Classe? Lisboa, Textos Exemplares, 1976.
Viana, Nildo. A Filosofia e Sua Sombra. Goiânia, Edições Germinal, 2000.
Viana, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002.





[1] O interessante é que o próprio Marcuse havia reconhecido isto e colocado em evidência que a teoria marxista da sociedade teria significado uma negação da filosofia e, neste contexto, sua superação histórica pela “teoria social” (veja: Marcuse, 1988). Karl Korsch já havia, bem antes, retomado a tese de Marx sobre o fim da filosofia (Korsch, 1977). Também dedicamos um trabalho para retomar esta tese (Viana, 2000).
[2] O processo de exploração e dominação, a luta de classes, que estão na base da sociedade capitalista cria um conjunto de relações sociais fundadas na repressão e é isto que gera os problemas psíquicos e o confronto entre necessidades/potencialidades humanas e sociedade e a abolição da repressão é condição de possibilidade para o fim destes conflitos. Veja sobre isso o ensaio Universo Psíquico e Reprodução do Capital.
[3] Este é o caso, entre outros, da antropóloga Margaret Mead, que em 1931 fez uma série de pesquisas em sociedades indígenas sobre a relação entre sexo e temperamento e concluiu que não se pode falar em uma “natureza humana imutável” e que por isso não se pode defender o igualitarismo entre os sexos (comunismo) e nem a mulher reduzida à esfera doméstica (fascismo), deixando implícito sua defesa da democracia capitalista liberal (cf. Mead, 1988).
[4] “O caráter revolucionário (...) não é necessariamente aquele que se manifesta apenas na política. Ele existe, na verdade, na política, mas também na religião, arte e filosofia. Buda, Os Profetas, Jesus, Giordano Bruno, Meister Eckhart, Galileu, Marx e Engels, Einstein, Schweitzer, Russel são caracteres revolucionários. Encontramos esse caráter também no homem que não está em nenhum desses setores, num homem cujo ‘sim’ é ‘sim’ e cujo ‘não’ é ‘não’, que é capaz de ver a realidade, tal como o menino na história de Andersen A Roupa do Imperador. Viu que o imperador estava nu, e o que disse correspondia ao que via” (Fromm, 1986, p. 126). Como se vê neste e em outros trechos de Fromm, ele está muito distante da tese de que os revolucionários sejam neuróticos.
[5] “O conceito do que é normal varia não só com a cultura, mas, também, dentro da mesma cultura, com o passar do tempo. (...). O conceito de normalidade muda, igualmente, nas diferentes classes da sociedade. Os membros da classe feudal acham normal que um homem permaneça indolente todo o tempo, mostrando-se ativo apenas na caça ou na guerra, ao passo que uma pessoa da pequena burguesia que revelasse a mesma atitude seria olhada como anormal. Essa variação também ocorre segundo as diferenças de sexo, quando elas existem na sociedade, como é o caso da cultura ocidental em que se imagina que homens e mulheres tenham temperamentos distintos. É normal para uma mulher ficar obcecada com receio de envelhecer ao aproximar-se dos quarenta, enquanto um homem que se afobe por causa da idade nesse período da vida será considerado neurótico” (Horney, 1984, p. 13).
[6] Isto é mais visível em seu texto sobre a categoria de negação na dialética, onde ele defende a idéia de que a negação do capitalismo não poderá ocorrer a partir do interior da totalidade da sociedade capitalista: “na medida em que a sociedade antagônica se transforma em uma totalidade repressiva terrível, por assim dizer se desloca o lugar social da negação. O poder do negativo surge fora dessa totalidade repressiva, a partir de forças e movimentos que ainda não estão manietados pela produtividade agressiva e repressiva da chamada ‘sociedade de abundância’, ou que já se libertaram desse desenvolvimento e, portanto, têm a possibilidade histórica de percorrer um caminho de industrialização e modernização realmente distinto, um caminho humano para o progresso. E a essa oportunidade corresponde a força da negação no interior da ‘sociedade de abundância’, força essa que se revela contra esse sistema como um todo. A força da negação, como sabemos, não está hoje concentrada em classe alguma” (Marcuse, 1981, p. 165). 

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Publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.

segunda-feira, 27 de março de 2017

I Encontro de Teoria Política: Marxismo e Estado



O I Encontro de Teoria Política: Marxismo e Estado é uma realização do NUPAC (Núcleo de Pesquisa e Ação Cultural), com apoio do GPDS/UFG (Grupo de Pesquisa Dialética e Sociedade), NEMOS (Núcleo de Estudos e Pesquisa em Movimentos Sociais), NPM/UEG (Núcleo de Pesquisa Marxista), NEPALM/UFMS (Núcleo de Estudos e Pesquisa América Latina em Movimento).

O objetivo do curso é levantar uma discussão teórica e reflexões a respeito da concepção marxista do estado. A posição de Marx diante do Estado era claramente crítica e sua proposta política era a da abolição do estado em geral. Nesse sentido, Marx se distinguia de todas as concepções ideológicas e legitimadoras do aparato estatal. No entanto, após sua morte, os pseudomarxistas realizam uma deformação do seu pensamento e assumiram a forma de concepções estatistas que pregavam a tomada do poder estatal e não sua abolição. Assim se criou a ilusão de que Marx era um estatista. Depois de Marx, alguns poucos marxistas autênticos retomaram a concepção crítica e revolucionária deste pensador e reafirmaram a necessidade de abolição do poder estatal, tal como os comunistas conselhistas e o marxismo autogestionário. A reflexão sobre marxismo e estado é fundamental, pois assim é possível resgatar o pensamento de Marx a respeito dessa instituição e analisar, numa perspectiva marxista, as interpretações da formação estatal e explicar sua relação com a acumulação capitalista e suas mutações, constituindo a atual forma estatal, a neoliberal.

Essa reflexão será realizada através de uma mesa redonda, uma palestra e um grupo de debate (comunicações acompanhadas de debate). Os participantes podem efetivar inscrição com apresentação de comunicação e todos os inscritos poderão debater durante as três partes do encontro (Mesa redonda, palestra, grupo de debate).

Outro objetivo do curso é incentivar a produção escrita dos participantes, gerando, dessa forma, resumos antes do evento e, posteriormente, caso seja interesse dos participantes, a elaboração de um artigo sobre a temática do encontro - em suas várias possibilidades (análise crítica de ideologias legitimadoras do estado, do concepção pseudomarxista da questão do poder estatal, a concepção marxista - Marx e outros, ou influenciada pelo marxismo), a respeito do Estado, análise histórica-concreta do Estado e suas diversas relações com a sociedade em geral, com os regimes de acumulação, etc.

O I Encontro de Teoria Política: Marxismo e Estado será realizado num único encontro presencial, no dia 01 de abril de 2017, no Ruptura - Espaço Cultural.


As inscrições para o I Encontro de Teoria Política: Marxismo e Estado, deve ser realizado através do preenchimento da ficha de inscrição  (clique aqui) e, caso seja com apresentação de comunicação, preencher o item do resumo nesta ficha. Após o preenchimento, a ficha deve ser enviada para o email gpdsufg@gmail.com

Há número limitado de vagas. Não haverá seleção e por isso o preenchimento das vagas será por ordem de inscrição.

O valor da inscrição é de 20 reais. A inscrição é paga no dia do encontro.

ATENÇÃO! Apenas 35 vagas! Faça sua inscrição, enquanto ainda tem vagas.

Vá ao link da inscrição e faça download da ficha em seu computador, preencha e envie para o email especificado acima:








I Encontro de Teoria Política: Marxismo e Estado

Data: 01 de abril de 2017





PROGRAMAÇÃO
I ENCONTRO TEORIA POLÍTICA: MARXISMO E ESTADO

Dia 01 de Abril de 2017


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08:00 - 12:00

Mesa redonda:

Marxismo e Estado

a) Marx e a crítica do Estado - José Santana da Silva

b) Marxismo, Escola Derivacionista e estado capitalista - Edmilson Marques

c) Análise marxista do estado neoliberal - Lucas Maia

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12:00 - 14:00 - Intervalo

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14:00 - 15:00:

Palestra:

Estado e Acumulação de Capital - Nildo Viana

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15:00 - 18:00

Grupo de Debates: Marxismo e Estado

(Comunicações e debate).

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Valor da Inscrição: R$ 20,00

domingo, 26 de março de 2017

Freud e o Marxismo


Freud e o Marxismo
Nildo Viana

“O poder do id expressa o verdadeiro propósito do organismo do indivíduo. Isto consiste na satisfação de suas necessidades inatas”.
Sigmund Freud

Freud é o fundador da psicanálise e um dos grandes nomes do pensamento ocidental. Ele desenvolveu uma teoria do aparelho psíquico e o conceito-chave da teoria psicanalítica: o conceito de inconsciente. Freud irá erguer todo um edifício teórico tomando por base sua teoria do inconsciente e a partir daí irá apresentar as bases da psicanálise que será desenvolvida por diversos outros psicanalistas de acordo com suas orientações fundamentais, embora alguns seguindo uma linha “ortodoxa” enquanto que outros irão fazer reformulações, mas sempre com referência aos postulados básicos originados na concepção freudiana. Nosso objetivo aqui é analisar as relações entre a concepção freudiana e a teoria marxista. Em primeiro lugar, iremos expor brevemente a concepção de Freud; em segundo lugar, vamos expor, também brevemente, algumas das críticas de algumas concepções pretensamente marxistas fizeram à psicanálise freudiana; em terceiro lugar, realizaremos uma análise critica de tais concepções e por fim iremos apresentar a teoria de Marx visando expor sua contribuição para o desenvolvimento da psicanálise.
Freud: A Teoria do Inconsciente
Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, realizou uma verdadeira revolução teórica ao desenvolver o conceito de inconsciente. Sem dúvida, Freud foi o primeiro a elaborar uma teoria do inconsciente. Antes de Freud o que existia era uma pré-consciência[1] do inconsciente, ou seja, existia a noção de inconsciente, que ele, posteriormente, transformou em conceito e o integrou em uma teoria. As filosofias do inconsciente, segundo denominação de J. C. Filloux (1966), foi representada por Schopenhauer, Carus, Hartmann[2], entre outros, e por representantes da medicina e da psicologia, mas sem possuir o grau de desenvolvimento e a centralidade que adquiriu após Freud. Ele mesmo reconheceu isto ao dizer:
“O conceito de inconsciente esteve durante muito tempo batendo à porta da psicologia e pedindo que o deixassem entrar. A filosofia e a literatura entretiveram-se freqüentemente com ele mas a ciência não era capaz de lhes descobrir qualquer utilidade” (Freud, apud. Wollheim, 1978, p. 162).
O inconsciente se tornou o conceito fundamental da teoria freudiana. O próprio Freud afirmou que a psicanálise é a “ciência do inconsciente”. Muitos passaram a considerar que o inconsciente é o elemento determinante de todos os atos humanos, o que encontra alguns elementos na obra de Freud que parecem confirmar tal interpretação. Vejamos um exemplo:
“Enquanto se considerou que o psiquismo principiava e terminava no campo da consciência, havia lugar para falar da arbitrariedade e da casualidade de certos fenômenos psíquicos. Mas no momento que começou-se a considerar-se o inconsciente, o terreno do arbitrário e do casual, ficou restringido até praticamente desaparecer, emergindo, em seu lugar, a realidade do determinismo psíquico” (Bosch, 1979, p. 81).
No entanto, seria uma simplificação da concepção freudiana postular um determinismo do inconsciente. Ao recordarmos o que é o inconsciente, para Freud, veremos a impossibilidade de defender a tese do determinismo do inconsciente no pensamento freudiano.
O inconsciente foi se constituindo na concepção freudiana no decorrer do seu processo de produção e sofreu alterações durante tal processo. Freud, inicialmente, explicou o inconsciente em termos neurofisiológicos e, posteriormente, em sua metapsicologia, ele passou a explicá-lo sob quatro formas diferentes, a saber: o tópico, o estrutural, o econômico e o dinâmico.
Em cada forma ele utiliza termos diferentes: no ponto de vista tópico, ele trabalha com os termos de inconsciente, pré-consciente, censura e consciência. Nesta forma, o aparelho psíquico possui quatro elementos, sendo que o inconsciente é o que é vedado à consciência pela repressão interna; o pré-consciente é o reino das tendências defensivas e o que impede a manifestação das excitações; a censura fica no meio destes dois elementos e manifesta a reação do pré-consciente em relação ao inconsciente; a consciência é o que passa pelo “filtro” do pré-consciente.
No ponto de vista estrutural, ele usa os termos id, ego e superego. Estes são os três elementos da vida psíquica humana. O id (ou inconsciente) é o servo do princípio de prazer; o ego é o mecanismo mediador do aparelho psíquico, cuja função é regularizar os conflitos, organizar a defesa, a adaptação e a censura; o superego é o responsável interno pela reprodução da repressão social.
No ponto de vista econômico, Freud trabalha com os termos princípio de prazer e princípio de realidade e, mais tarde, Eros (instintos sexuais) e Tanathos (instinto de morte). No primeiro caso, o princípio de prazer é a reserva de energia instintual que entra em contradição com o princípio de realidade, que é a internalização das normas sociais. Posteriormente, o princípio de prazer passa a ser composto não apenas pelos instintos sexuais como também pelos instintos de agressividade, também chamado de instinto de morte.
No ponto de vista dinâmico, utiliza os termos transferência, sublimação, projeção e compromisso, entre outros. Neste ponto de vista, Freud considerava que as forças mentais, marcadas por conflitos e compromissos, devem proteger o ego da ansiedade interna e adaptá-la ao mundo externo, através do retardamento ou abandono completo das energias instintuais, que, no entanto, permanecem e se manifestam através da transferência, sublimação, projeção ou compromisso.
Porém, em qualquer um destes pontos de vista, existe uma dicotomia entre o interno (os instintos, princípio de prazer), representado pelo inconsciente, e o externo (a moral, o princípio de realidade), representado pela consciência. Desta forma, podemos dizer que a concepção freudiana é fundamentalmente conflitual. Isto é visível em Freud e por isso podemos dizer que o conceito de inconsciente é inseparável do conceito de repressão:
“O conceito de inconsciente foi apresentado, pela primeira vez, em ligação com a repressão ou defesa, como um modo de caracterizar o fim dado àquelas idéias que incorrem em repressão” (Wollheim, 1978, p. 163).
Parece-nos evidente que a existência do inconsciente tem como condição de possibilidade a repressão[3], pois se esta não existisse também não existiria o inconsciente. O “Complexo de Édipo” situa o momento do nascimento da “repressão original”. O inconsciente existe porque é a sede dos desejos reprimidos.
Os desejos reprimidos povoam o inconsciente. O inconsciente, por isso, não se eleva ao nível da consciência. Mas, neste caso, como comprovar sua existência? Através do retorno do reprimido, que se manifesta através dos sonhos, dos atos falhos, da fantasia. Por conseguinte, o inconsciente não determina todos os atos humanos, mas tão-somente aqueles em que sua manifestação ocorre quando a vigília da consciência é reduzida (e não é, mesmo neste caso, superada, pois caso contrário os sonhos seriam claros e diretos e não simbólicos).
Portanto, os sonhos, os atos falhos, as fantasias, os chistes são atos humanos produzidos sob forte influência do inconsciente. Porém, os demais atos humanos são comandados pela consciência e esta introjeta a moral dominante da sociedade, ou seja, ela transforma a repressão externa da sociedade em repressão interna, em recalcamento. Ele apresenta esta tese dizendo que, a partir dos cinco anos, uma parte do mundo externo é abandonada como objeto, como algo exterior, e passa a ser incluída no mundo interno (no ego) através da identificação. Esta parte do mundo externo introjetada se torna um novo “agente psíquico”. Segundo suas próprias palavras:
“Esse novo agente psíquico continua a efetuar as funções que até então haviam sido desempenhadas pelas pessoas do mundo externo: ele observa o ego, dá-lhe ordens, julga-o e ameaça-o com punições, exatamente como os pais cujo lugar ocupou. Chamamos este agente de superego e nos damos conta dele, em suas funções judiciárias, como nossa consciência. É impressionante que o superego freqüentemente demonstre uma severidade para a qual nenhum modelo foi fornecido pelos pais reais, e, ademais, que chame o ego a prestar contas não apenas de suas ações, mas igualmente dos seus pensamentos e intenções não executadas, das quais o superego parecer ter conhecimento” (Freud, 1978a, p. 89).
Assim, observamos que ao contrário do que muitos pensam, não é o inconsciente que é determinante e sim a consciência. Mas o determinismo persiste, pois a consciência é a introjeção do princípio de realidade estabelecido pela sociedade, e, portanto, é determinada pela sociedade. Neste sentido, o indivíduo tem seu comportamento determinado pela consciência e pelo inconsciente, que vivem em permanente conflito. As forças que movem o indivíduo escapam ao seu controle e são as suas forças instintuais e as forças sociais[4].
Desta forma, podemos afirmar que o inconsciente surge devido à repressão. A internalização desta repressão cria um processo de recalcamento do indivíduo por ele mesmo e o aparelho psíquico passa a possuir, no seu interior, além do inconsciente e da consciência (o ego), o “superego”, ou um “sobre-eu” que exerce a atividade de recalque. Neste caso, o aparelho psíquico possui três partes constitutivas: o id, o ego e o superego.
O que predomina no aparelho psíquico é o superego com suas funções repressoras, o que significa o predomínio da repressão internalizada nas manifestações conscientes de um indivíduo. As ações humanas são predominantemente comandadas pelo superego e, em grau menor e mais restrito de atividades, pelo inconsciente (sonhos, lapsos, fantasia, etc.), mas este predomínio é adquirido no interior de um conflito entre ambos, não havendo, assim, predomínio absoluto de nenhum deles. Desta forma, o indivíduo é determinado em suas ações, seja pelos seus instintos, seja pela sociedade. A repressão é, na perspectiva freudiana, uma necessidade social. A civilização, segundo Freud, deve promover a repressão para garantir a reprodução da vida material, o que provoca a renúncia aos instintos. Segundo ele:
“Expressando-o de modo sucinto, existem duas características humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são espontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não têm valia alguma contra suas paixões” (Freud, 1978b, p. 89).
O ser humano, assim, é um ser determinado, movido pelo conflito entre duas forças dominantes em seu aparelho psíquico, ou seja, pelas forças inconscientes e pelas forças sociais. Essas forças sociais impõem uma conduta moral comandada pelos ditames da civilização. Freud esclarece estes ditames da seguinte forma:
“A civilização humana, expressão pela qual quero significar tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais – e desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização –, apresenta como sabemos, dois aspectos ao observador. Por um lado, inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das necessidades humanas; por outro, inclui todos os regulamentos necessários para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especialmente, a distribuição da riqueza disponível” (Freud, 1978b, p. 87-88).
Os elementos da civilização que exercem, através da moral estabelecida, esta repressão, é o que muitos chamaram de “razão instrumental”, voltada para o controle da natureza (e da sociedade). Mas estes dois princípios que regem a ação humana (o inconsciente e a moral repressiva) são produtos da civilização e criam um terceiro elemento, resultado do conflito entre ambos: o deslocamento. O deslocamento ocorre quando o desejo reprimido não pode realizar-se e transfere, assim, para outro objeto de desejo. Os desejos reprimidos, assim, transferem suas energias para outros modos de realização[5].
Mas o deslocamento é uma manifestação do inconsciente? Aqui devemos reconhecer uma das ambigüidades da concepção freudiana, pois sua concepção de inconsciente às vezes é expressa de forma tão ampla que a resposta a esta questão seria sim. Porém, se recordarmos que o inconsciente é o lugar onde se encontram os desejos reprimidos[6], então podemos concluir que a manifestação do inconsciente significa a sua emergência no aparelho psíquico, através dos sonhos, fantasia, atos falhos, etc., e isto quer dizer que sua irrupção significa a tentativa de realização do desejo reprimido, mas de forma imaginária.
O deslocamento é, na verdade, resultado da repressão dos desejos que cria o inconsciente e busca impedir sua manifestação, sendo, portanto, produto da repressão do inconsciente. Assim, quanto mais sonhar, fantasiar, etc., a energia pulsional se manifesta  e não gera problemas psíquicos e reações doentias. Porém, a não manifestação do inconsciente (o que significa não só que os desejos instintuais são reprimidos, mas também sua manifestação esporádica no mundo onírico ou em pequenos atos cotidianos) gera o deslocamento.
Esse deslocamento pode ser percebido, por exemplo, no fanatismo religioso e em outras formas de ação humana, como os distúrbios psíquicos em geral, tais como a neurose, psicose, etc. Mas existe, segundo Freud, uma forma “positiva” de deslocamento, que é a sublimação. A sublimação seria um deslocamento para atividades socialmente úteis ou com fins elevados. Um exemplo de sublimação, neste sentido, seria a obra de arte. Uma obra artística é a sublimação positiva de um desejo reprimido. Um artista ao produzir um romance policial marcado por um extremo grau de violência apenas transfere para a ficção o seu desejo reprimido de agressão. Um roteirista de um filme de terror, por sua vez, realiza o mesmo processo de transferir sua agressividade para uma obra de ficção (Viana, 2002). Mas o deslocamento também pode ser considerado como satisfação substituta ou como sintoma. Podemos ver isto nas seguintes afirmações de Freud:
“Chegamos à convicção, pelo exame dos doentes histéricos e outros neuróticos, de que a repressão das idéias [nestes doentes – NV], a que o desejo insuportável está apenso, malogrou. Expeliram-nas da consciência e da lembrança; com isso os pacientes se livraram aparentemente de grande soma de dissabores. Mas o impulso desejoso continua a existir no inconsciente à espreita de oportunidade para se revelar, concebe a formação de um substituto do reprimido, disfarçado e irreconhecível, para lançar à consciência, substituto ao qual logo se liga a mesma sensação de desprazer que se julgava evitada pela repressão. Esta substituição da idéia reprimida – o sintoma – é protegida contras as forças defensivas do ego e em lugar do breve conflito, começa então um sofrimento interminável” (Freud, 1978a, p. 15).
Sendo assim, a ação humana é determinada pela manifestação do inconsciente e da moral internalizada e pelos efeitos deslocados do conflito entre ambos. Não há como, a partir desta concepção, pensar a liberdade humana.
A Crítica Pseudomarxista a Freud
Marx produziu sua concepção antes de Freud. Cronologicamente, Marx é um pensador do século 19 e Freud um pensador do início do século 20. No entanto, as teses de Marx são de grande influência até os dias de hoje, tal como as de Freud. A força da teoria marxista reside, em parte, em seu poder explicativo e sua análise aprofundada das bases do desenvolvimento histórico e da sociedade moderna. As teses de Marx, no entanto, foram muitas vezes deformadas, simplificadas, vulgarizadas (Viana, 2008). O próprio Marx percebeu isto e é devido a isto que fez a famosa afirmação: “tudo o que eu sei é que não sou marxista”. Assim, como Marx não fez nenhuma análise da psicanálise, por esta ser inexistente em seu tempo, os seus seguidores e epígonos posteriores o fizeram em seu nome. O que iremos destacar aqui é que tais “interpretações marxistas” da psicanálise são, na maioria das vezes, uma visão pseudomarxista. Obviamente que o pseudomarxista não nasce apenas de problemas de compreensão da obra de Marx, mas também de interesses políticos, sociais, etc. O marxismo nasce, como bem coloca Karl Korsch (1977) como “expressão teórica do movimento operário”, mas é apropriado por outras classes sociais, se tornando um pseudomarxismo.
A avaliação da psicanálise foi ofuscada por um conjunto de preconceitos oriundos das interpretações do chamado “marxismo oficial” ou “ortodoxo”, começando por Lênin, passando por Politzer, até chegar a muitos autores contemporâneos. Iremos tomar dois exemplos, um oriundo deste “marxismo” ortodoxo e outro da variante francesa que se dedicou ao problema da psicanálise, duas formas diferentes de pseudomarxismo.
Iniciaremos com a abordagem do soviético V. I. Dobrenkov. Este autor dedica um livro inteiro para refutar o “neofreudismo” de Erich Fromm, mas, como não poderia deixar de ser, inicia seu trabalho de crítica com o fundador da psicanálise. Sua análise da concepção freudiana, como é comum no pseudomarxismo, é perpassada por simplificações e equívocos que demonstram uma incompreensão do pensamento de Freud. Segundo Dobrenkov:
“No plano histórico-social, o freudismo traduz as sensações de pavor e desespero das camadas pequeno-burguesas de fins do século XIX. Estudando os distúrbios psíquicos do pequeno e médio burguês da capital austríaca e concluindo que as causas da maioria desses distúrbios são constituídas pelas excessivas restrições dos pendores sexuais do homem pela moral, Freud dá aos casos particulares o caráter de universalidade e partindo dessa base constrói uma pretensiosa teoria da natureza universal do homem” (Dobrenkov, 1978, p. 20).
Temos aqui uma aplicação do “materialismo histórico-mecanicista” típico dos soviéticos, e não só deles, onde sempre a ideologia deriva diretamente e mecanicamente da classe social a qual pertence o pensador. Sem dúvida, a abordagem marxista relaciona indivíduo-classe-ideologia, mas de forma muito mais complexa que uma mera derivação direta e mecânica.
Dobrenkov também argumenta que a concepção freudiana é estática e irracionalista. Ela é estática porque parte da tese de que os instintos são imutáveis e independentes da realidade exterior e esta última (o “sistema social”) é também “imutável”. Isto provoca uma determinada relação entre os instintos e a sociedade. Segundo Dobrenkov:
“A interação entre o interior e o exterior também se torna estática. O conflito entre a natureza e a sociedade é, segundo Freud, não uma unidade dialética e a mútua penetração dos contrários mas tão-somente um confronto de partes independentes uma da outra. Para ele, as condições sociais externas da existência humana não determina a atividade psíquica mas simplesmente dificultam a sua manifestação, coíbem a realização das inclinações instintivas. Essa interpretação sócio-psicológica da inter-relação da natureza humana e a sociedade leva Freud a um dilema que ele não encontra meio de resolver; por um lado, a restrição e a desistência dos instintos se lhe afiguram uma das condições indispensáveis de existência da sociedade, da civilização em geral, e, por outro, considera a satisfação livre e plena como condição necessária da saúde psíquica do homem” (Dobrenkov, 1978, p. 15).
A sua conclusão é que Freud toma partido da sociedade, o que é correto. Porém, subjaz na crítica de Dobrenkov uma dialética reificada, constituída por “leis imutáveis” (unidade dialética, mútua penetração dos contrários) – o que é típico do stalinismo – e não na dialética materialista com seu caráter heurístico, tal como alguns autores colocaram (Korsch, 1977; Sartre, 1967; Sartre, 1966; Viana, 2007) colocaram.
Quanto à sua interpretação de Freud, ela é correta quando afirma que os instintos são imutáveis, mas isto é apenas uma obviedade, pois toda concepção de instintos necessariamente os concebe como imutáveis. O que se deveria criticar aqui seria a existência dos instintos nos seres humanos (ou em geral).
A afirmação de que ele considera a sociedade imutável, é apenas em parte correta, pois para Freud ela sempre efetuará um certo quantum de repressão, que apenas varia historicamente. Mas isto não é uma afirmativa sobre a totalidade das formas de sociedade e por isso se revela um equívoco. Marx, por exemplo, sustenta que toda a sociedade precisa produzir os meios necessários para a sobrevivência da população e nem por isso sua concepção de sociedade é estática. Quanto ao conflito entre “mundo interior” e “exterior”, tal conflito permanece existindo mas ganha novas formas, possuindo, portanto, certo dinamismo, embora aí se encontre realmente uma concepção de imutabilidade do conflito.
Outra crítica de Dobrenkov ao freudismo se encontra na sua afirmação de que Freud é irracionalista. Segundo Dobrenkov:
“A base filosófica em que surgiu a teoria psicanalítica freudiana, especialmente a sua sociologia, são os princípios idealistas da filosofia de Platão, Kant, Hartmann, Schopenhauer, Nietszche e Bergson. Embora o próprio Freud não se considerasse adepto de nenhuma doutrina filosófica, sua atenção, contudo, voltava-se para os sistemas filosóficos, que expressavam um franco irracionalismo. Toma de empréstimo a Edward Von Hartmann e Henri Bergson a idéia do inconsciente. Nietszche e Schopenhauer o atraem pelo fato de ressaltarem constantemente a importância das emoções inconscientes e da sexualidade na determinação dos diversos aspectos da vida humana. Por várias vezes ele reconhece numa série de obras a influência das idéias daqueles filósofos em sua criação. Assim, por exemplo, em As Principais Teorias Psicológicas em Psicanálise, ele escreve: ‘podemos indicar filósofos célebres como precursores, antes de tudo o grande pensador Schopenhauer, cuja ‘vontade’ inconsciente pode ser identificada em psicanálise com as atrações espirituais’. Compreende-se porque na teoria psicanalítica de Freud não houve lugar para a razão. Na multiforme atividade psíquica atribui-se papel principal aos instintos inconscientes, biologicamente determinados. A razão atua como simples apêndice destes instintos. O idealismo e a metafísica são o fundamento filosófico em que se erige o volumoso edifício das construções psicanalíticas” (Dobrenkov, 1978, p. 19).
Tal afirmação entra em visível contraste com inúmeros outros intérpretes que o consideram um racionalista. Alguns chegam mesmo a afirmar que o seu racionalismo é tão extremado que quer fornecer uma explicação racional do irracional (inconsciente, instintos), do imaginário (os sonhos, a fantasia) e até mesmo dos pequenos fatos da vida cotidiana (atos falhos, chistes, esquecimento de nomes, etc.) (Maffesoli, 1989).
Reconhecer a existência de aspectos não-racionais na mente humana não faz de um pensador um irracionalista e nem ele fazer referências a filósofos irracionalistas. A afirmação de que para Freud não há espaço para a razão é um grande equívoco, pois ele defende o controle racional dos desejos e instintos.
A interpretação de Freud por Dobrenkov apresenta outros pontos problemáticos, mas estes, a nosso ver, são os principais. A crítica a Freud do ponto de vista do “marxismo soviético”[7] apresenta sempre os mesmos argumentos, com pequenas variações de detalhes, isto devido ao fato da deformação do marxismo, transformado em leninismo, e que teve o papel de justificar a dominação burocrática no capitalismo estatal russo.
Freud possui diversos outros críticos pseudomarxistas e seria demasiado longo elencar um grande número de intérpretes. Por isso tomaremos apenas mais um crítico pseudomarxista de Freud para encerrar esta parte de nosso trabalho. Tomaremos aqui a obra do francês Lucien Sève para analisar. Porém, como a crítica que este autor remete a Freud é muito extensa (contendo diversos itens, entre os quais alguns semelhantes aos expostos por Dobrenkov e outros derivados de Politzer), nos limitaremos a apenas um aspecto: o fato de Freud ter transposto para o social o psiquismo individual. Segundo este autor:
“Surpreendido por certas analogias entre os fenômenos neuróticos, tal como os compreendia, e diversos comportamentos sociais – por exemplo ao nível das práticas religiosas – Freud chegou à conclusão de que a psicanálise poderia, não só intervir no quadro geral das ciências sociais mas desempenhar mesmo o principal papel explicativo. Mas isto significava ter que admitir implicitamente o postulado decisivo segundo o qual o psiquismo individual pode ser tomado como forma de referencia universal, como base real de todos os fatos humanos. Daí, por uma cadeia de postulados obrigatórios, a psicologização da sociedade, a biologização do psiquismo, a naturalização do homem, que levam a esta já banal quadratura do círculo: considerar a história nos termos nitidamente não históricos de uma teoria da natureza humana” (Sève, 1990, p. 229-230).
Embora este autor apresente algumas citações de Freud que parecem confirmar esta interpretação, elas consistem numa verdadeira confusão, isto é, uma mistura desordenada que toma uma coisa pela outra.
O principal exemplo trabalhado por este autor é a religião, que, segundo Freud, é a “neurose obsessiva coletiva da humanidade”. A neurose – um fenômeno do psiquismo individual – é transposta para a realidade social – a religião.
O equívoco desta interpretação reside no fato de que o autor esquece que a neurose não é um fato natural do psiquismo individual e sim um fato derivado da insatisfação dos desejos pelo motivo que estes são reprimidos. Ora, a repressão social (externa) se realiza nas relações sociais e a repressão interna (recalcamento) é uma introjeção da primeira. Portanto, a neurose tem uma origem social e não individual, no psiquismo individual, embora, uma vez emergindo, se torna constitutiva deste e também do psiquismo coletivo (mas tão só pelo motivo que a repressão não atinge apenas um indivíduo e sim a coletividade).
Esta interpretação seria correta se a transposição fosse dos instintos para a realidade social, o que Freud realmente faz em alguns momentos, mas que não significa a redução do social ao psíquico. A idéia de natureza humana, por sua vez, está presente em Freud e por isso essa transposição é possível. No entanto, isto, em si mesmo, só seria prejudicial ao processo de compreensão do ser humano se desconsiderasse sua inserção no espaço histórico-concreto – o que não é o caso – ou então apresentasse uma relação entre natureza humana e sociedade de forma equivocada, o que ocorre, em parte, com Freud. Sève, entretanto, exagera na sua rejeição da natureza humana e interpreta Freud de forma equivocada.
Marxismo e Psicanálise
A psicanálise, tal como muitos pensadores de influência ou de orientação marxista reconheceram, realizou uma descoberta revolucionária: o inconsciente. A partir desta descoberta desvendou muitos aspectos do funcionamento do universo psíquico dos indivíduos e forneceu uma explicação da formação dos problemas psíquicos e a partir deste trabalho com o psiquismo individual abriu caminho para a compreensão de certos fenômenos do psiquismo coletivo. A nosso ver, é extremamente difícil compreender o universo mental de um indivíduo e, por conseguinte, a sociedade, rejeitando em bloco a concepção freudiana ou mesmo desconsiderar suas descobertas.
Porém, isto não significa realizar uma análise acrítica desta concepção. Existem muitos pormenores e elementos fundamentais na obra de Freud que merecem uma apreciação crítica[8]. Vemos, no entanto, três aspectos problemáticos na obra de Freud que são relevantes: em primeiro lugar, o efeito dos seus valores sobre seu posicionamento relativo ao conflito psíquico do indivíduo (consciência versus inconsciente ou id versus ego/superego); em segundo lugar, sua identificação da consciência com a moral, o que também é derivado dos seus valores; em terceiro lugar, sua concepção de instintos, de caráter puramente “biológico”.
Aqui entramos no terreno da relação entre indivíduo e classe social, bem como na questão da inserção do indivíduo – no caso, Freud – no conjunto das relações sociais e no seu processo histórico-concreto de desenvolvimento. Esta discussão, no entanto, nos remeteria ao estudo do processo histórico de vida de Freud, sua “biografia”, como diria alguns, e também nos remeteria à análise de sua época, o que não nos propomos no presente trabalho. É necessário destacar a importância dos valores na produção intelectual e na ação humana (Viana, 2007b), o que foi deixado de lado pela psicanálise. Assim, em que pese ser fundamental uma análise dos valores de Freud, o que nos interessa aqui é tão-somente o seu posicionamento diante da sociedade, ou seja, sua posição política, sem nos envolver com o seu processo de constituição.
Tal posição é expressa principalmente em dois textos, O Futuro de uma Ilusão e O Mal Estar na Civilização, pois são neles que ele irá tratar da repressão e da disputa entre a consciência moral e o inconsciente. Nesta disputa, Freud toma partido da consciência e isto significa que considera necessária a repressão, pois somente assim a “civilização” poderá se reproduzir.
Em muitos outros textos isto também é visível, como neste trecho (incompleto, aliás):
“A destruição do caráter civilizado pelos impulsos instintivos libertados da repressão é um desfecho temido mas absolutamente impossível. É que este temor não leva em conta o que a nossa experiência nos ensinou com toda a segurança: que o poder mental e somático de um desejo, desde que se baldou a respectiva repressão, se manifesta com muito mais força quando inconsciente do que quando consciente; indo para a consciência só pode enfraquecer. O desejo inconsciente escapa a qualquer influência, é independente das tendências contrárias, ao passo que o consciente é atalhado por tudo quanto, igualmente consciente, se lhe opuser. O tratamento psicanalítico coloca-se assim como o melhor substituto da repressão fracassada, justamente em prol das aspirações mais altas e valiosas da civilização” (Freud, 1978a, p. 34-35).
Ele considera que, apesar de inevitável, a repressão deve ser moderada por uma reforma social, pois cria problemas psíquicos que são fontes de conflitos sociais e assim se pode aliviar as tensões sociais. Muitos destacaram o conservadorismo e liberalismo político de Freud, que está no fundamento desta posição, bem como o “vitorianismo” sexual de sua época. A partir de seus valores, que apontam para a necessidade da conservação da sociedade repressiva, ele só pode tomar partido da consciência contra o inconsciente. O controle da consciência sobre o inconsciente existe e deve existir. Mas este deve ser não é um resultado lógico a que chegou a análise deste fenômeno e sim um posicionamento de Freud sobre ele, o que significa que outro pesquisador pode chegar à conclusão oposta. Neste ponto reside a ambigüidade de Freud, pois ao descobrir os males causados pela repressão deveria ter apontado para a sua supressão e não para sua manutenção e daí ele tem que apresentar paliativos (reforma social para diminuir a repressão, terapia).
Outro problema da concepção freudiana se encontra na identificação da consciência com a moral. Sempre que ele aborda a repressão nos remete ao “controle da consciência” e à moral, como se significassem a mesma coisa. Desta forma, a consciência ou “a razão’ se torna equivalente à moral dominante em nossa sociedade, e é isto que irá provocar a crítica de Marcuse à racionalidade e sua defesa do inconsciente (Marcuse, 1988). Marcuse, no entanto, cai no equívoco de pensar Freud como um pensador revolucionário – no sentido social do termo, o que é um equívoco. Este procedimento não permite perceber na consciência o seu caráter ativo e seus elementos que são uma recusa da moral dominante e tudo que efetiva tal recusa passa a ser considerado uma manifestação do princípio de prazer e não da consciência. Cria-se, assim, uma visão da consciência que a considera inevitavelmente repressiva.
Assim se perde de vista que a consciência tem uma dimensão de projeto, ou seja, que pode realizar um rompimento com a moral dominante e estabelecer um novo fundamento para a ética, o que pressupõe também outros elementos. Enfim, a abordagem de Freud não permite pensar o aspecto ativo e emancipador da consciência.
Também existe um outro aspecto de discordância com Freud que se encontra no que ele denomina instintos ou pulsões, que ele limita à libido, sendo que nos seus últimos escritos ele considera que existia, além dos instintos sexuais, o instinto de morte. A sua concepção de instintos é bastante limitada e isto foi ressaltado por diversos pesquisadores, bem como a idéia de existência de um instinto de morte, que foi descartada pelos seus seguidores e intérpretes, com exceção de Marcuse e Melanie Klein[9].
A nosso ver, o inconsciente é a categoria fundamental da psicanálise e devemos considerar que nele reside os desejos reprimidos, que são tantos os desejos sexuais quanto os demais desejos que forma as necessidades humanas radicais, entre elas as potencialidades humanas reprimidas (criatividade, sociabilidade). Desta forma, observamos que o inconsciente pode ser considerado como o locus da luta pela liberdade e não apenas um serviçal dos instintos biológicos (Viana, 2002b).
O homem é livre ou é um prisioneiro dos seus desejos inconscientes? Existe uma natureza humana fixa e imutável, comandada pelos instintos e outros elementos derivados da relação deles com a sociedade, ou o homem escolhe seu destino livremente? Estas questões são extremamente importantes e receberam diversas respostas. Iremos agora partir da concepção de Marx para rediscutir as teses psicanalíticas de Freud.
Marx parte do conceito de natureza humana para desenvolver sua teoria da alienação. Trata-se de descobrir o que é a “essência humana”. O ser humano precisa, para garantir sua sobrevivência, de satisfazer algumas necessidades: comer, beber, dormir, amar, etc. Uma vez satisfeitas estas necessidades, o instrumento e a forma de satisfazê-las tornam-se, elas mesmas, necessidades (Marx e Engels, 2002).
Como o ser humano satisfaz suas necessidades? Para Marx, isto ocorre através da mediação do trabalho. É através do trabalho que o ser humano adquire os seus meios de sobrevivência e humaniza o mundo. Por trabalho entenda-se todas as atividades humanas. O trabalho, neste sentido, torna-se uma necessidade humana. O trabalho é objetivação do ser humano. Tal como Marx colocou:
“Antes de tudo o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural e numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ela e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potencialidades nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças ao seu próprio domínio. Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de trabalho. (...). Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção de suas colméias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade orientada a um fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o aproveita, como jogo de suas forças físicas e espirituais (Marx, 1988, p. 142-143)”.
O trabalho como objetivação significa, portanto, manifestação da “essência humana”. Mas como sustentar esta tese se Marx postulou o caráter negativo do trabalho compreendido como “alienação”? Isto se deve ao fato de que Marx distinguia entre trabalho enquanto objetivação, no qual ele exerce sua capacidade criadora, de trabalho enquanto alienação, no qual o ser humano se vê subjugado por forças exteriores que o impedem de desenvolver suas potencialidades. Trataremos da questão da alienação mais adiante.
Porém, os seres humanos não realizam o trabalho individualmente e sim coletivamente, através da cooperação. Essa cooperação, esta associação com outros seres humanos, torna-se também uma necessidade humana – não apenas do ponto de vista da sobrevivência, mas também do ponto de vista afetivo e psíquico. O ser humano se revela um ser social que, através do trabalho e da cooperação, se humaniza e humaniza o mundo.
O que é necessidade? É algo que deve se realizar independentemente da razão. Por conseguinte, ela é antagônica à liberdade. No entanto, tal visão é produto de uma concepção racionalista de liberdade, na qual tudo que não é definido, determinado e escolhido pela razão é expressão de não-liberdade. Por isso consideramos interessante superar a concepção racionalista de liberdade e entender por liberdade aquilo que expressa a realização das potencialidades humanas (tanto físicas quanto mentais) e isto é determinado tanto pela consciência/razão quanto pelas necessidades orgânicas. Neste sentido, não existe antagonismo entre necessidade e liberdade, e, por conseguinte, a concepção marxista não é determinista.
Para entendermos melhor isto devemos acrescentar um terceiro conceito: o de desejo. A necessidade não é oposta ao desejo. Tal como Marx colocou, comer, beber, dormir e amar são necessidades. Se o ser humano come, bebe, dorme, ama, é por que deseja estas coisas. O desejo é fruto da necessidade. Porém, não existem apenas estas necessidades (que podemos denominar necessidades primárias), pois no próprio processo de satisfação destas necessidades surgem novas necessidades, como o trabalho (enquanto objetivação) e a sociabilidade. Estas últimas necessidades (que podemos denominar necessidades secundárias) também produzem desejos, isto é, também chegam à esfera da consciência. No entanto, tal como colocou a psicanálise, há desejos que são reprimidos (e note-se que a repressão é do desejo e não da necessidade, que continua subsistindo). Por isso podemos distinguir entre desejos conscientes e desejos inconscientes, em necessidades conscientes e inconscientes.
Marx, obviamente, não trabalhou com o conceito de inconsciente, no sentido freudiano do termo, mas fez referências significativas que apontam para uma pré-consciência do inconsciente. Segundo Erich Fromm, existe a abordagem do inconsciente em Marx e Freud. O aspecto em comum de que ambos
“Acreditam que grande parte do que o homem pensa conscientemente é determinado por forças que operam à sua revelia, ou seja, sem o conhecimento do homem; que o homem explica suas ações para si mesmo como sendo racionais ou morais, e que essas racionalizações (falsa consciência, ideologia) lhes satisfazem subjetivamente. Mas sendo impulsionado por forças que lhes são desconhecidas, o homem não está livre. Só pode atingir a liberdade (e a saúde) adquirindo consciência dessas forças motivadoras, ou seja, da realidade, ao invés de ser escravo de forças cegas. A diferença fundamental entre Marx e Freud está no respectivo conceito da natureza dessas forças que determinam o homem. Para Freud, elas são essencialmente fisiológicas (libido) ou biológicas (instinto de  morte e instinto de vida). Para Marx, são forças históricas que atravessam uma evolução no processo de desenvolvimento sócio-econômico do homem” (Fromm, 1979, p. 107).
Este autor acrescenta que Marx realizou algumas afirmações que apontam para uma visão próxima de Freud, quando, por exemplo, afirmou que a sociedade realiza uma “repressão dos desejos naturais comuns”. Fromm também reconhece as profundas diferenças entre estes dois pensadores, pois Freud está preocupado com o indivíduo e seu aparelho psíquico, levando em consideração seus impulsos vitais, enquanto que Marx analisa o indivíduo enquanto ser social e a dinâmica da sociedade, levando em consideração seus conflitos.
Mas a concepção de Marx, por ser ampla e não restrita, como muitos pensam, abre espaço para se pensar uma pré-consciência do inconsciente. O próprio Erich Fromm nos permite perceber isto, pois segundo ele:
“Os conceitos de Marx e Freud não são mutuamente exclusivos, e isso precisamente porque Marx parte dos homens, reais, vivos, e toma por base seu processo vital real, inclusive, decerto, suas condições biológicas e fisiológicas. Marx reconhecia a existência do impulso sexual como existindo em todas as circunstâncias que podem ser modificadas pelas suas condições sociais, mas apenas no que se relaciona com a forma e a direção”(Fromm, 1979, p. 108).
A ação concreta de um indivíduo é a “síntese de suas múltiplas determinações”. Se João se alista no exército e José resolve ser um romancista, isto se deve a um conjunto de determinações que se desenrolam no processo histórico de vida destes indivíduos. Quais determinações? As relações familiares, as diversas formas de relações sociais do passado, as relações sociais em determinada comunidade e grupo social, sua situação de classe, ou seja, o conjunto das relações sociais travadas por este indivíduo durante sua vida.
Então o indivíduo é produto passivo das relações sociais? Não, pois o indivíduo, desde o seu nascimento, se relaciona com o mundo de forma ativa, buscando sua auto-realização. Mas esta busca não é arbitrária, pois existem, além das relações sociais que lhe impõem determinados valores e objetivos que ele torna seus, fundamentos encontrados em suas necessidades das quais tratamos anteriormente. Quando as relações sociais reprimem a satisfação destas necessidades, o indivíduo se encontra na impossibilidade de se auto-realizar. Daí a luta pela auto-realização, que não é arbitrária e sim determinada pela sociedade repressiva. A repressão, por sua vez, está ligada aos interesses da dominação de classe e esta não produz apenas isto mas também grandes agrupamentos humanos com situações de vida diferentes e interesses antagônicos.
O indivíduo, no seu processo de desenvolvimento vai criando, nestas relações, seus valores, seus objetivos, enfim, seu “projeto de vida”. Portanto, o projeto (para utilizar expressão sartreana) que comanda esta busca não brota do vazio e sim do indivíduo histórico-concreto, que possui uma essência e esta aponta para a liberdade, que é a objetivação.
Aqui se torna importante definir o que compreendemos por liberdade. A liberdade numa concepção restrita é “liberdade de”, ou seja, significa estar livre de algo (como o prisioneiro “se livra” da prisão) e numa concepção ampla é “liberdade para”, ou seja, significa liberdade para fazer algo (agir rumo a um objetivo). Esta concepção foi apresentada por Ernst Bloch (Cf. Bicca, 1987) e retomada por Erich Fromm (1983). Assim, liberdade não significa “liberdade de escolha”, pois esta pressupõe a escolha, o domínio da razão. Ora, uma vez que a liberdade é produto da razão, tal como coloca a abordagem racionalista de Sartre (1987; 1998), então basta o uso da razão. Mas se compreendemos a liberdade enquanto possibilidade de manifestação da essência humana e percebermos que esta possibilidade é restringida ou permitida pelas relações sociais, aí temos uma visão ampliada que nos permite compreender o projeto enquanto produto social e voltado para as relações sociais e não mera escolha individual.
A nossa concepção de liberdade retoma a concepção marxista: “a liberdade, para Marx, é uma espécie de superabundância criativa acima do que é materialmente essencial, aquilo que ultrapassa a medida e se torna seu próprio padrão” (Eagleton, 1999, p. 10). A liberdade é uma manifestação livre da natureza humana, ou seja, a satisfação do conjunto das necessidades humanas, incluindo as necessidades primárias – que é seu pressuposto – e o pleno desenvolvimento de suas necessidades secundárias, a objetivação e a sociabilidade. A não-liberdade é a impossibilidade de desenvolvimento pleno destas necessidades-potencialidades. Determinadas relações sociais produzem a não-liberdade e somente a superação destas é que torna possível a liberdade. A luta pela concretização da transformação social, por sua vez, já é um esboço de manifestação da liberdade, pois na luta os seres humanos desenvolvem novas relações sociais, realizam a objetivação.
A auto-realização humana é obstaculizada pelo fenômeno da alienação. O conceito de alienação em Marx tem sido interpretado de formas diferentes e contraditórias, mas não há dúvida de que o escrito em que Marx desenvolveu este conceito foi nos Manuscritos de Paris (Marx, 1983). Neste texto, ele irá enfatizar o que denominou trabalho alienado. O trabalho alienado ocorre quando o produtor perde o controle do processo de produção e passa a ser controlado por outro, o não-produtor. Neste sentido, podemos dizer que a alienação é produto da divisão da sociedade de classes, ou seja, da divisão social do trabalho e, sendo assim, é uma relação social (Viana, 1995).
Esta é uma interpretação divergente da maioria, pois não considera a alienação como um problema da consciência e nem como simplesmente a perda do produto produzido pelo trabalhador, já que estes fenômenos são conseqüências da perda de controle do processo de produção, da instauração de uma relação de dominação, isto é, da alienação.
Se o trabalhador perde o controle do processo de trabalho, então perde o controle do produto do trabalho e passa a ver este com estranhamento. Estas são conseqüências da alienação, que é a fonte da exploração e do fetichismo (estranhamento). Por conseguinte, o elemento fundamental aqui é a direção do não-trabalhador sobre o processo de trabalho e a questão da perda do produto e seus efeitos na consciência são apenas conseqüências deste processo.
Para Marx, a perda do produto do trabalho é apenas resultado do trabalho alienado, ou seja, o ponto de partida é a atividade que se torna alienada, o trabalho se torna alienado, o que significa dizer que ele deixa de ser atividade vital consciente e se torna atividade dirigida por outros. Segundo Marx, “a atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais”; “o trabalho alienado inverte a relação, pois o homem, sendo um ser autoconsciente, faz de sua atividade vital, de seu ser, unicamente um meio para sua existência” (Marx, 1983, p. 96). Decorrente disto, surge a propriedade privada, ou seja, a apropriação do resultado do trabalho, pois o não-produtor ao dirigir o processo de trabalho também irá dirigir o destino do seu produto. Marx diz que a análise do conceito de propriedade privada “mostra que, embora a propriedade privada pareça ser a base e causa do trabalho alienado, é antes uma conseqüência dele” (Marx, 1983, p. 99). A conseqüência disso é que o produto aparecerá ao trabalhador como algo estranho a ele: “o objeto produzido pelo trabalho, o seu produto, agora se lhe opõe como um ser alienado, como uma força independente do produtor” (Marx, 1983, p. 96).
Podemos, agora, recapitular o que discutimos até aqui. Há, em Marx, uma pré-consciência do inconsciente. Há também a idéia de que o ser humano necessita da liberdade, ou seja, ele é um ser consciente que precisa desenvolver suas potencialidades, o que leva a busca da liberdade e isto só pode ocorrer através de uma ação que já é, em si, liberdade (práxis, atividade consciente e teleológica, um projeto). A liberdade, para Marx, é a essência humana:
“A liberdade é a tal ponto a essência do homem que mesmo seus opositores o reconhecem, posto que a combatem; querem apropriar-se da jóia mais cara, que eles não consideram a jóia da natureza humana. Ninguém luta contra a liberdade; no máximo, luta-se contra a liberdade dos outros. Por isso todos os tipos de liberdade existiram sempre, às vezes como uma prerrogativa particular, outras como um direito geral” (Marx,1980, p. 34).
Aqui reencontramos a idéia de projeto e de liberdade humana. Na perspectiva marxista, a liberdade é manifestação da essência humana. Quando esta essência está impossibilitada de se realizar plenamente, quando alguns – os dominantes – lutam contra a liberdade dos outros, é necessário o engajamento na luta pela libertação, no projeto libertário de emancipação humana. No entanto, a conquista da liberdade pressupõe não apenas desejo mas a transformação social, a superação da sociedade repressiva. O processo de emancipação humana é um processo no qual os seres humanos abandonam suas ilusões e superam a alienação e passam a autogerir suas concepções, suas lutas, de forma autoconsciente. Esta autoconsciência é o projeto de libertação humana e de liberdade. Este projeto quando mobiliza os seres humanos já é uma manifestação da liberdade, além de ser condição para a libertação humana plena. Assim, esta dimensão de projeto da consciência distingue a concepção de Marx da de Freud na forma de concebê-la.
Considerações Finais
Assim, partindo da concepção de Marx, temos uma base para se pensar uma nova psicanálise, principalmente acrescentando o método dialético e o materialismo histórico. É claro que se acrescentássemos a contribuição dos chamados “freudo-marxistas” (Fromm, Reich, etc.) e dos demais marxistas que trabalharam a psicanálise, ou mesmo psicanalistas que reconheceram a contribuição do marxismo, teríamos um universo muito mais amplo de convergências e um material muito mais extenso de análise. O mesmo ocorreria se também ultrapassássemos a obra de Freud para abranger a psicanálise posterior, com seus vários desdobramentos. Analisar as relações entre marxismo e psicanálise levando em conta não apenas os dois fundadores destas correntes seria uma tarefa extensa, que somente através de uma obra mais volumosa poderia ser concretizada, pois a lista de autores e temas, entre as quais a idéia de “inconsciente coletivo” (Viana, 2002b) e sentimentos (Viana, 2004) que já esboçamos, mas que precisam aprofundamentos, seria enorme. No entanto, nos limitamos a pensamento de Marx, pois através dele temos a base para pensar as relações entre marxismo e a psicanálise freudiana.
As concepções de Freud e Marx possuem divergências e convergências e uma síntese, já tentada inúmeras vezes, pressupõe focalizar as convergências. A condição de possibilidade de tal síntese está dada nas convergências existentes e foi isto que buscamos demonstrar neste breve ensaio.




Referências Bibliográficas

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[1] A expressão pré-consciência, aqui, não tem o mesmo sentido que o pré-consciente da teoria freudiana, mas sim numa concepção histórica no qual o desenvolvimento da consciência humana passa da não-consciência para a consciência e tal passagem pode ser mediada por uma pré-consciência, uma “forma embrionária” de consciência (cf. Viana, 2007).
[2] Sobre o inconsciente em Schopenhauer, Carus e Hartmann, cf. Filloux (1966); para uma visão mais detalhada a visão de inconsciente em Schopenhauer veja o artigo de Mello e Cacciola (1991) e, em Nietzsche, o texto de Scarlett Marton (1991).
[3] A repressão também foi um termo que existia antes de Freud e foi desenvolvido por ele. Tal termo foi utilizado por Schopenhauer e pelo psicólogo Herbart, entre outros. Cf. Aricó (1984).
[4] Isto foi colocado por Erich Fromm numa linguagem diferente: “Freud viu o homem como um sistema fechado, movido por duas forças: a autopreservação e os impulsos sexuais. Estes últimos têm suas raízes em processos quimiofiosiológicos que se desenrolam segundo um padrão físico. A primeira fase aumenta a tensão e o desconforto; a segunda reduz a tensão acumulada e, ao fazê-lo, gera aquilo que é subjetivamente sentido como ‘prazer’. O homem, é, primordialmente, um ser isolado, cujo interesse primário reside na satisfação ótima do seu ego e do seu interesse libidinal. O homem de Freud é homme machine, fisiologicamente impulsionado e motivado. Mas, secundariamente, o homem também é um ser social, porque necessita de outras pessoas para a satisfação de seus impulsos libidinais, assim como para sua autopreservação” (Fromm, 1977, p. 43).
[5] “Há um deslocamento quando uma tendência substitui seu objeto próprio por outro. É o mais importante mecanismo que preside ao mecanismo do inconsciente. Ele permite aos elementos recalcados transladar sua energia para outro modo de atualização. O deslocamento efetua-se tanto com os desejos, quanto com as aversões (temores, ligados às reações de culpabilidade, etc.); ele condiciona nosso equilíbrio psíquico” (Filloux, 1966, p. 79). Um exemplo facilita a compreensão desta idéia: “as fobias dos neuróticos explicam-se pelo deslocamento: as fobias despertadas por animais, em particular, resultam da transferência, para o animal, de um medo cuja origem estava ligada a um objeto muito diferente” (Filloux, 1966, p. 80).
[6] “O id obedece ao inexorável princípio de prazer” (Freud, 1978a, p. 239).
[7] Tal como colocou Marcuse: “O marxismo soviético (isto é: o leninismo, o stalinismo e as tendências pós-estalinistas), não é apenas uma ideologia promulgada pelo Kremlin para racionalizar e justificar sua política, mas sim reflete as várias formas da cambiante realidade soviética. Se tal for o caso, então a extrema pobreza e, mesmo, a desonestidade da teoria soviética não invalidariam a importância fundamental desta última, mas forneceriam um elemento para a explicação dos fatores que deram origem às evidentes deficiências teóricas” (Marcuse, 1969, p. 13). Infelizmente, por questão de espaço, não iremos discutir as bases sociais do pseudomarxismo que surgiu na Rússia e se tornou hegemônico após a implantação do capitalismo de Estado (“socialismo real”) a partir da revolução bolchevique.
[8] O que já foi feito por vários psicanalistas, embora não se possa concordar com suas teses em sua totalidade. Este é o caso de Reich (1988), Fromm (1979; 1980; 1977), Schneider (1977), entre outros.
[9] Sobre isso cf. Viana, 2002b.

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.

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