A REEMERGÊNCIA DA UTOPIA AUTOGESTIONÁRIA
(Prefácio ao livro "Comunismo de Conselhos e Autogestão Social", de Lucas Maia).
A obra que o leitor tem em mãos agora, de Lucas Maia dos Santos, é apenas mais um livro entre tantos outros. Aliás, o mercado editorial produz cada vez mais quantidade e cada vez menos qualidade, uma refutação da dialética metafísica de Hegel e Engels, portadora da lei da “transformação da quantidade em qualidade”. Porém, a este livro não se aplica leis metafísicas e sim processos históricos concretos que mostram tendências. Neste contexto, ao contrário da tendência dominante, este livro é mais um entre tantos outros mas difere por sua qualidade expressa em seu conteúdo. O seu conteúdo manifesta a reemergência da utopia autogestionária e a perspectiva do proletariado, o que gera sua alta qualidade.
Uma obra de qualidade e fundamental para nosso tempo, tão acostumado aos modismos e ideologias que obliteram a percepção da realidade concreta e cai num reprodutivismo que obstaculiza a percepção das possibilidades e tendências. A qualidade da presente obra se manifesta no uso do método dialético – a dialética materialista, marxista e não suas deformações positivistas – e isto mostra como o autor reconstitui a gênese do comunismo de conselhos e aponta para a possibilidade e tendência da autogestão social. Aqui, categorias como “possibilidades” e “tendências” são resgatadas, junto com a utopia. A ideia de uma dialética materialista, produzida por Marx e desenvolvida por Korsch e mais alguns, aponta para a percepção da historicidade das relações sociais e do modo de produção no decorrer da história. A dialética materialista não trabalha com “coisas”, com seres metafísicos existentes apenas na imaginação fértil de filósofos e nem com o empírico, o imediato sensível, outra construção metafísica, dos cientistas.
Uma concepção de realidade não fetichista é pressuposto do método dialético. Ao invés de analisar “coisas” ou o “empírico”, a dialética materialista é um método que contribui como recurso heurístico para reconstituir o concreto, algo histórico, social, constituído por múltiplas determinações. O concreto é, assim, algo histórico, foi produzido e não pode ser entendido como “dado” e é também uma totalidade, envolvida por outra totalidade mais ampla e é, portanto, social, marcado por relações, reveladas em suas determinações e em sua existência não isolada. O empírico é o isolado, o não-refletido, o imediato sensível. Uma predisposição mental positivista toma o empírico como o real, sendo que é mera aparência. Para ir além da aparência, chegar à essência e sua manifestação concreta na existência, é preciso pensar o concreto.
O concreto é histórico, social. É uma totalidade. O concreto é histórico não apenas porque teve história e sim por ter historicidade, foi constituído, existe e pode se transformar. A categoria da possibilidade é justamente a que mostra que no que existe há algo mais. O que existe pode ser negado, pode mudar. A possibilidade da mudança é uma conquista da dialética. Porém, não apenas possibilidades, mas também potencialidades e tendências se tornam perceptíveis a partir do uso do método dialético quanto se trata de analisar a sociedade capitalista. O possível só é possível por ser manifestação de potencialidades, tendências. As tendências que são perceptíveis em determinadas relações são portas para a transformação social. No entanto, não se trata de determinismo, pressuposto do positivismo e não da dialética. “O socialismo é inevitável”, quantas vezes não se ouviu isso? Tal afirmação tem o mesmo sentido que dizer que o capitalismo é eterno ou que o pós-comunismo virá depois do comunismo. Concepções metafísicas, leis gerais e universais que nada revelam do mundo real. Existe uma tendência concreta, real, para a transformação social, para a superação do capitalismo e a compreensão disto é mais fácil a partir do método dialético. Onde está esta tendência? Onde se vê possibilidade e tendência de autogestão social ou comunismo? Para os empiricistas, em lugar nenhum, pois, se não enxergam além dos limites de seus narizes pontiagudos, jamais enxergarão algo além do horizonte, seja o físico ou o mental, que fica nos limites da mentalidade burguesa.
Neste sentido, o método dialético possui uma teoria da realidade e esta é fundamental. Mas como ter acesso à realidade, basta conhecer e usar o método dialético? Ledo engano. Mesmo porque, uma vez criado, o método dialético foi deformado. O uso é variado. Por isso é preciso de um outro elemento do método dialético além da teoria da realidade: a teoria da consciência. O saber não é produto próprio e imanente. O saber não deriva do saber. Sem dúvida, o saber se utiliza do saber anterior para se desenvolver, mas este saber, este uso e esta possibilidade possui determinações, pois é algo concreto, por isso possui historicidade e é uma totalidade. O saber só se torna possível a partir de determinadas necessidades e processos, que envolve valores, sentimentos, predisposições mentais, sendo tudo isso constituído social e historicamente e que possui potencialidades e tendências, também sendo histórico e envolvido na totalidade.
Daí a necessidade da perspectiva do proletariado, enfatizada por Lucas Maia dos Santos na presente obra. O saber não é neutro, como pensam os positivistas, nem “objetivo”, embora possa ser verdadeiro. Para ser verdadeiro, não pode ser neutro e “objetivo”. É preciso necessitar e querer a verdade. A verdade pressupõe o interesse. Há aqueles que possuem o interesse em ocultar a verdade e há aqueles que possuem o interesse em revelar a verdade. Isto vai depender da relação de cada classe social e indivíduo com a verdade: ela é útil ou prejudicial? Serve para meus interesses ou é contrária a eles? A classe dominante atual, a burguesia, bem como suas antecessoras, jamais teve interesse na verdade, a não ser naquela bem parcial que serve aos seus propósitos. Nas ciências naturais, por exemplo, a verdade é menos perigosa e mais necessária para o desenvolvimento tecnológico, por exemplo, mas mesmo assim é envolta num mundo de inverdades. Nas ciências humanas, a verdade é mais perigosa, pois pode revelar o irrevelável da perspectiva burguesa e por isso é mais suscetível de pouco contato com a verdade.
O acesso à verdade não depende apenas da razão. É preciso algo mais. A razão é impotente contra a paixão, como já diziam Freud e Spinoza. Os valores, os sentimentos, são poderosos, bem como a complexidade psíquica do indivíduo, com seus traumas, inconsciente, problemas psíquicos. A razão pode ser instrumental, bem elaborada, fundamentada, matematizada, complexa e ao mesmo tempo falsa. A razão pode também ser emancipadora, articulada, bem elaborada e fundamentada, e verdadeira. Porém, a razão instrumental tem como fonte a mentalidade burguesa e tudo que deriva daí enquanto que a razão emancipadora possui como fundamento a mentalidade revolucionária e tudo que nasce daí. A mentalidade, por sua vez, é derivada da sociabilidade e do modo de produção, mas, uma vez existindo, é mobilizadora, ativa, é um obstáculo a ser superado se for conservadora. Assim, para se utilizar corretamente o método dialético, para ter uma percepção adequada da dialética materialista, é necessário partir da perspectiva do proletariado. E como bem coloca Santos, não o proletariado empírico – ou seja, segundo a concepção limitada de alguns – e sim o que manifesta sua potencialidade revolucionária. Não o proletariado potencialmente revolucionário e sim o efetivamente revolucionário, o que passou da potencia ao ato. Não o ato presente, mas o ato histórico emancipador.
A presente obra de Lucas Maia dos Santos tem essa qualidade inquestionável: expressa a perspectiva do proletariado. É por isso que aborda o concreto e não o empírico, é por isso que observa as tendências e resgata a utopia autogestionária e a história daqueles que lutaram por isso. A vinculação com a perspectiva do proletariado promove outras vinculações, tal como a teoria de Marx, dos comunistas de conselhos, da autogestão social. É por isso que há o resgate da contribuição de autores como Marx, Korsch, Pannekoek, Makhaisky, Bloch, entre outros. É uma excelente contribuição para a história das expressões teóricas do movimento revolucionário do proletariado, focalizando o comunismo de conselhos, e por isso obra fundamental para vermos o aprofundamento da tendência da emancipação humana.
Um dos elementos mais importantes da presente obra esta no resgate da contribuição do comunismo de conselhos. No ensaio “Origens e princípios do comunismo de conselhos”, temos uma reconstituição histórica da formação do comunismo de conselhos em suas bases sociais, ou seja, na própria história do movimento revolucionário do proletariado que constituiu os conselhos operários. Embora se possa discordar de detalhes pontuais, é uma contribuição fundamental para a reconstituição das origens do comunismo de conselhos. Neste mesmo ensaio, uma excelente e sintética exposição dos princípios do comunismo de conselhos é apresentada, mostrando que alguns dos princípios básicos apresentados por Marx são mantidos e desenvolvidos (auto-emancipação do proletariado, autogestão social) e novas teses, produtos das novas experiências revolucionárias do proletariado, são acrescentadas (ação direta, conselhos operários, crítica da burocracia).
No ensaio A Perspectiva Conselhista temos um excelente confronto das teses do comunismo de conselhos com a social-democracia, o bolchevismo, o anarquismo e o bordiguismo. Lucas Maia dos Santos mostra a relação e crítica conselhista ao pseudomarxismo expresso na social-democracia e bolchevismo e revela sua base social: a burocracia, classe auxiliar da burguesia. Também mostra o debate entre conselhistas e anarco-sindicalistas, mostrando os limites da crítica anarco-sindicalista ao não ultrapassar a perspectiva dos sindicatos, organização burocrática da sociedade burguesa, e assim cair no burocratismo, o que lhe vale a comparação com o vanguardismo leninista. Nesse caso, se substitui a burocracia partidária pela burocracia sindical. Mais interessante, contudo, é o debate com o bordiguismo, pois a crítica bordiguista ao conselhismo é a mais recente e bem fundamentada. Santos mostra os limites do bordiguismo e sua incompreensão do conselhismo, fechando este ensaio com uma contribuição para o esclarecimento das relações e divergências entre as duas tendências.
O ensaio seguinte resgata a contribuição de Anton Pannekoek e sua grande obra, Os Conselhos Operários, a partir da ideia blochiana de utopia concreta. Momento importante da obra, no qual não só resgata o valor teórico da utopia e da abordagem blochiana, como também analisa e discute a grande obra de Pannekoek. Neste contexto, contribui para uma reflexão sobre a utopia de Pannekoek, a autogestão social fundada nos conselhos operários. Cabe destaque ao final do ensaio no qual discute o método dialético aplicado por Pannekoek e o resgate da concepção de realidade que é pressuposto do método dialético, já aludido aqui, o concreto e suas características.
No ensaio “Autogestão, Desejo e Possibilidade” é um dos pontos altos do presente livro. Retomando a contribuição de Bloch e a discussão sobre a questão dos valores, Santos avança no sentido de mostrar que a autogestão é uma utopia concreta e que a discussão não deve enfatizar se é possível e sim se a desejamos. Desejar a autogestão já expressa sua possibilidade. A autogestão não é apenas possível, mas é desejável. Desejável, por isso possível, realizável. A autogestão social é uma potencialidade que já se manifesta no desejo, mas também nas lutas e aspirações proletárias, nas teorias e projetos políticos, nas lições da história, na recusa da alienação. A autogestão social é algo presente e ainda ausente, presente como projeto e por isso ausente como realidade efetiva. Também é algo ausente e presente, pois é ausente da realidade concreta da totalidade da sociedade e presente como negação da sociedade existente.
No último ensaio, Santos discute os espaços públicos e coletivos, que vão do “encontro à esperança”, novamente a utopia concreta se manifesta e junto com ela a oposição entre o público e o coletivo. No espaço estatal ou público, temos um lado da moeda, o do poder e sua instituição dos espaços. No espaço coletivo, temos a autoconstituição e autogestão do espaço. O espaço-propriedade, o espaço-mercadoria, o espaço-poder, são manifestações espaciais da sociedade presente e serão superados, pelo processo de destruição-criação que fala Santos, pela sociedade futura e o espaço coletivo.
Por fim, uma obra fundamental que retoma, amplia, desenvolve elementos para se pensar uma crítica da sociedade presente e um projeto de sociedade futura, seguindo as tendências inauguradas por Marx, Comunismo de Conselhos, Bloch e outros, expressões teóricas do proletariado. Resta uma questão: o que tornou possível esta obra? O que permite este resgate e desenvolvimento da utopia autogestionária por Lucas Maia dos Santos?
Obviamente que seria necessário resgatar o processo histórico de vida do autor para reconstituir de forma mais concreta este fenômeno. Porém, como ele não é o único que atualmente faz este percurso, já que inúmeros indivíduos e grupos hoje avançam no mesmo caminho, com suas diferenças, idiossincrasias e com avanços e recuos, com maior ou menor profundidade ou rapidez, entre outros aspectos diferenciadores, é possível pensar as determinações mais amplas que possibilitam essa manifestação individual do projeto autogestionário.
As mudanças históricas ocorridas abriram brechas que tornaram possível um desenvolvimento da consciência humana, permitindo a retomada da perspectiva do proletariado. As lutas operárias desde o surgimento do proletariado, em sua radicalidade revolucionária, são uma base histórica mais longa que, no desenvolvimento posterior, foi obliterada pela emergência do capitalismo oligopolista transnacional durante o regime de acumulação intensivo-extensivo, que marca a emergência do estado integracionista, do fordismo e imperialismo fundado no capital transnacional. Um período com relativa estabilidade do capitalismo que possibilitou uma estagnação teórica e prática do marxismo, o que não foi absoluto, mas cuja alternativa foi marginal. As lutas sociais do final dos anos 1960 e as produções intelectuais daquela época, abriram uma brecha, que, no entanto, só foi desembocar numa nova produção intelectual que parte da perspectiva do proletariado mais recentemente. A emergência do regime de acumulação integral, a crise do capitalismo de Estado da URSS e satélites, mostravam, simultaneamente, a necessidade de superação do capitalismo e a falsidade da solução bolchevista. Isto abriu caminho para se resgatar alguns autores marginais, tais como Korsch e Bloch, e, com o surgimento das primeiras rachaduras do edifício neoliberal no final dos anos 1990, aliado com o desenvolvimento da internet e acesso a material antes raro e de pouco acesso, a ascensão do zapatismo, renascimento do anarquismo, movimentos antiglobalização, lutas sociais radicalizadas no México e Argentina, o que promove um contexto cultural e social propício para a retomada do marxismo autêntico, a crítica ao pseudomarxismo, o resgate da tradição revolucionária do comunismo de conselhos e o avanço da teoria da autogestão social.
É neste amplo contexto que surgem muitos indivíduos, grupos, obras, que retomam a tradição do comunismo de conselhos, entre outras próximas e semelhantes. Porém, Lucas Maia dos Santos não se limita, como alguns fazem, a repetir e cristalizar em novo dogma os escritos dos pensadores que constituíram a teoria dos conselhos (Pannekoek, Korsch, Rühle, Gorter, Wagner, Mattick, etc.). Embora o comunismo de conselhos tenha sido expressão do proletariado revolucionário do início do século 20 e, portanto, uma das formas mais avançadas de marxismo, é preciso reconhecer que suas obras não eram infalíveis e que várias questões, principalmente as geradas pelo desenvolvimento capitalista, não foram, e algumas não podiam ser, abordadas por eles. Além disso, o comunismo de conselhos, excetuando-se Paul Mattick, principalmente tendo em vista que parte de sua produção se deu no bojo da luta radical proletária e voltada para analisar esta luta, pouco analisou o movimento do capital, o processo de desenvolvimento capitalista, sua dinâmica, limites e contradições. Nesse aspecto, o bordiguismo ofereceu uma contribuição que é necessário resgatar, inclusive pela exigência metodológica de abordar a totalidade que está na base do método dialético.
Santos oferece uma excelente análise do comunismo de conselhos e avança quando acrescenta a necessidade da utopia concreta e discute o projeto autogestionário, não se limitando a repetir os escritos dos autores conselhistas, mas indo além e trabalhando outras teses e autores que se ligam ao movimento revolucionário do proletariado e assim entendendo o caráter crítico-revolucionário da dialética apontado por Karl Korsch. Esse caráter crítico-revolucionário da dialética materialista lhe permite superar todos os dogmas, pois a ligação do marxismo é com o proletariado revolucionário e não com idéias cristalizadas, autores, autoridades, organizações, etc.
Desta forma, a presente obra de Lucas Maia dos Santos se insere na perspectiva do proletariado e é expressão da radicalidade teórica do marxismo autêntico. Assim, faz parte de toda uma tendência de reemergência da utopia autogestionária e sob a forma mais avançada no atual momento histórico. É manifestação desta tendência e ao se manifestar a reforça e se constitui, portanto, como intervenção radical nas lutas sociais e por isso é obra fundamental e que coloca questões fundamentais.
Nildo Viana
Goiânia, 21 de outubro de 2009.
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VIANA, Nildo. A Reemergência da Utopia Autogestionária. In: MAIA, Lucas. Comunismo de Conselhos e Autogestão Social. Pará de Minas, Virtualbooks, 2010.