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quinta-feira, 26 de maio de 2011

A REEMERGÊNCIA DA UTOPIA AUTOGESTIONÁRIA


A REEMERGÊNCIA DA UTOPIA AUTOGESTIONÁRIA
(Prefácio ao livro "Comunismo de Conselhos e Autogestão Social", de Lucas Maia).

A obra que o leitor tem em mãos agora, de Lucas Maia dos Santos, é apenas mais um livro entre tantos outros. Aliás, o mercado editorial produz cada vez mais quantidade e cada vez menos qualidade, uma refutação da dialética metafísica de Hegel e Engels, portadora da lei da “transformação da quantidade em qualidade”. Porém, a este livro não se aplica leis metafísicas e sim processos históricos concretos que mostram tendências. Neste contexto, ao contrário da tendência dominante, este livro é mais um entre tantos outros mas difere por sua qualidade expressa em seu conteúdo. O seu conteúdo manifesta a reemergência da utopia autogestionária e a perspectiva do proletariado, o que gera sua alta qualidade.
Uma obra de qualidade e fundamental para nosso tempo, tão acostumado aos modismos e ideologias que obliteram a percepção da realidade concreta e cai num reprodutivismo que obstaculiza a percepção das possibilidades e tendências. A qualidade da presente obra se manifesta no uso do método dialético – a dialética materialista, marxista e não suas deformações positivistas – e isto mostra como o autor reconstitui a gênese do comunismo de conselhos e aponta para a possibilidade e tendência da autogestão social. Aqui, categorias como “possibilidades” e “tendências” são resgatadas, junto com a utopia. A ideia de uma dialética materialista, produzida por Marx e desenvolvida por Korsch e mais alguns, aponta para a percepção da historicidade das relações sociais e do modo de produção no decorrer da história. A dialética materialista não trabalha com “coisas”, com seres metafísicos existentes apenas na imaginação fértil de filósofos e nem com o empírico, o imediato sensível, outra construção metafísica, dos cientistas.
Uma concepção de realidade não fetichista é pressuposto do método dialético. Ao invés de analisar “coisas” ou o “empírico”, a dialética materialista é um método que contribui como recurso heurístico para reconstituir o concreto, algo histórico, social, constituído por múltiplas determinações. O concreto é, assim, algo histórico, foi produzido e não pode ser entendido como “dado” e é também uma totalidade, envolvida por outra totalidade mais ampla e é, portanto, social, marcado por relações, reveladas em suas determinações e em sua existência não isolada. O empírico é o isolado, o não-refletido, o imediato sensível. Uma predisposição mental positivista toma o empírico como o real, sendo que é mera aparência. Para ir além da aparência, chegar à essência e sua manifestação concreta na existência, é preciso pensar o concreto.
O concreto é histórico, social. É uma totalidade. O concreto é histórico não apenas porque teve história e sim por ter historicidade, foi constituído, existe e pode se transformar. A categoria da possibilidade é justamente a que mostra que no que existe há algo mais. O que existe pode ser negado, pode mudar. A possibilidade da mudança é uma conquista da dialética. Porém, não apenas possibilidades, mas também potencialidades e tendências se tornam perceptíveis a partir do uso do método dialético quanto se trata de analisar a sociedade capitalista. O possível só é possível por ser manifestação de potencialidades, tendências. As tendências que são perceptíveis em determinadas relações são portas para a transformação social. No entanto, não se trata de determinismo, pressuposto do positivismo e não da dialética. “O socialismo é inevitável”, quantas vezes não se ouviu isso? Tal afirmação tem o mesmo sentido que dizer que o capitalismo é eterno ou que o pós-comunismo virá depois do comunismo. Concepções metafísicas, leis gerais e universais que nada revelam do mundo real. Existe uma tendência concreta, real, para a transformação social, para a superação do capitalismo e a compreensão disto é mais fácil a partir do método dialético. Onde está esta tendência? Onde se vê possibilidade e tendência de autogestão social ou comunismo? Para os empiricistas, em lugar nenhum, pois, se não enxergam além dos limites de seus narizes pontiagudos, jamais enxergarão algo além do horizonte, seja o físico ou o mental, que fica nos limites da mentalidade burguesa.
Neste sentido, o método dialético possui uma teoria da realidade e esta é fundamental. Mas como ter acesso à realidade, basta conhecer e usar o método dialético? Ledo engano. Mesmo porque, uma vez criado, o método dialético foi deformado. O uso é variado. Por isso é preciso de um outro elemento do método dialético além da teoria da realidade: a teoria da consciência. O saber não é produto próprio e imanente. O saber não deriva do saber. Sem dúvida, o saber se utiliza do saber anterior para se desenvolver, mas este saber, este uso e esta possibilidade possui determinações, pois é algo concreto, por isso possui historicidade e é uma totalidade. O saber só se torna possível a partir de determinadas necessidades e processos, que envolve valores, sentimentos, predisposições mentais, sendo tudo isso constituído social e historicamente e que possui potencialidades e tendências, também sendo histórico e envolvido na totalidade.
Daí a necessidade da perspectiva do proletariado, enfatizada por Lucas Maia dos Santos na presente obra. O saber não é neutro, como pensam os positivistas, nem “objetivo”, embora possa ser verdadeiro. Para ser verdadeiro, não pode ser neutro e “objetivo”. É preciso necessitar e querer a verdade. A verdade pressupõe o interesse. Há aqueles que possuem o interesse em ocultar a verdade e há aqueles que possuem o interesse em revelar a verdade. Isto vai depender da relação de cada classe social e indivíduo com a verdade: ela é útil ou prejudicial? Serve para meus interesses ou é contrária a eles? A classe dominante atual, a burguesia, bem como suas antecessoras, jamais teve interesse na verdade, a não ser naquela bem parcial que serve aos seus propósitos. Nas ciências naturais, por exemplo, a verdade é menos perigosa e mais necessária para o desenvolvimento tecnológico, por exemplo, mas mesmo assim é envolta num mundo de inverdades. Nas ciências humanas, a verdade é mais perigosa, pois pode revelar o irrevelável da perspectiva burguesa e por isso é mais suscetível de pouco contato com a verdade.
O acesso à verdade não depende apenas da razão. É preciso algo mais. A razão é impotente contra a paixão, como já diziam Freud e Spinoza. Os valores, os sentimentos, são poderosos, bem como a complexidade psíquica do indivíduo, com seus traumas, inconsciente, problemas psíquicos. A razão pode ser instrumental, bem elaborada, fundamentada, matematizada, complexa e ao mesmo tempo falsa. A razão pode também ser emancipadora, articulada, bem elaborada e fundamentada, e verdadeira. Porém, a razão instrumental tem como fonte a mentalidade burguesa e tudo que deriva daí enquanto que a razão emancipadora possui como fundamento a mentalidade revolucionária e tudo que nasce daí. A mentalidade, por sua vez, é derivada da sociabilidade e do modo de produção, mas, uma vez existindo, é mobilizadora, ativa, é um obstáculo a ser superado se for conservadora. Assim, para se utilizar corretamente o método dialético, para ter uma percepção adequada da dialética materialista, é necessário partir da perspectiva do proletariado. E como bem coloca Santos, não o proletariado empírico – ou seja, segundo a concepção limitada de alguns – e sim o que manifesta sua potencialidade revolucionária. Não o proletariado potencialmente revolucionário e sim o efetivamente revolucionário, o que passou da potencia ao ato. Não o ato presente, mas o ato histórico emancipador.
A presente obra de Lucas Maia dos Santos tem essa qualidade inquestionável: expressa a perspectiva do proletariado. É por isso que aborda o concreto e não o empírico, é por isso que observa as tendências e resgata a utopia autogestionária e a história daqueles que lutaram por isso. A vinculação com a perspectiva do proletariado promove outras vinculações, tal como a teoria de Marx, dos comunistas de conselhos, da autogestão social. É por isso que há o resgate da contribuição de autores como Marx, Korsch, Pannekoek, Makhaisky, Bloch, entre outros. É uma excelente contribuição para a história das expressões teóricas do movimento revolucionário do proletariado, focalizando o comunismo de conselhos, e por isso obra fundamental para vermos o aprofundamento da tendência da emancipação humana.
Um dos elementos mais importantes da presente obra esta no resgate da contribuição do comunismo de conselhos. No ensaio “Origens e princípios do comunismo de conselhos”, temos uma reconstituição histórica da formação do comunismo de conselhos em suas bases sociais, ou seja, na própria história do movimento revolucionário do proletariado que constituiu os conselhos operários. Embora se possa discordar de detalhes pontuais, é uma contribuição fundamental para a reconstituição das origens do comunismo de conselhos. Neste mesmo ensaio, uma excelente e sintética exposição dos princípios do comunismo de conselhos é apresentada, mostrando que alguns dos princípios básicos apresentados por Marx são mantidos e desenvolvidos (auto-emancipação do proletariado, autogestão social) e novas teses, produtos das novas experiências revolucionárias do proletariado, são acrescentadas (ação direta, conselhos operários, crítica da burocracia).
No ensaio A Perspectiva Conselhista temos um excelente confronto das teses do comunismo de conselhos com a social-democracia, o bolchevismo, o anarquismo e o bordiguismo. Lucas Maia dos Santos mostra a relação e crítica conselhista ao pseudomarxismo expresso na social-democracia e bolchevismo e revela sua base social: a burocracia, classe auxiliar da burguesia. Também mostra o debate entre conselhistas e anarco-sindicalistas, mostrando os limites da crítica anarco-sindicalista ao não ultrapassar a perspectiva dos sindicatos, organização burocrática da sociedade burguesa, e assim cair no burocratismo, o que lhe vale a comparação com o vanguardismo leninista. Nesse caso, se substitui a burocracia partidária pela burocracia sindical. Mais interessante, contudo, é o debate com o bordiguismo, pois a crítica bordiguista ao conselhismo é a mais recente e bem fundamentada. Santos mostra os limites do bordiguismo e sua incompreensão do conselhismo, fechando este ensaio com uma contribuição para o esclarecimento das relações e divergências entre as duas tendências.
O ensaio seguinte resgata a contribuição de Anton Pannekoek e sua grande obra, Os Conselhos Operários, a partir da ideia blochiana de utopia concreta. Momento importante da obra, no qual não só resgata o valor teórico da utopia e da abordagem blochiana, como também analisa e discute a grande obra de Pannekoek. Neste contexto, contribui para uma reflexão sobre a utopia de Pannekoek, a autogestão social fundada nos conselhos operários. Cabe destaque ao final do ensaio no qual discute o método dialético aplicado por Pannekoek e o resgate da concepção de realidade que é pressuposto do método dialético, já aludido aqui, o concreto e suas características.
No ensaio “Autogestão, Desejo e Possibilidade” é um dos pontos altos do presente livro. Retomando a contribuição de Bloch e a discussão sobre a questão dos valores, Santos avança no sentido de mostrar que a autogestão é uma utopia concreta e que a discussão não deve enfatizar se é possível e sim se a desejamos. Desejar a autogestão já expressa sua possibilidade. A autogestão não é apenas possível, mas é desejável. Desejável, por isso possível, realizável. A autogestão social é uma potencialidade que já se manifesta no desejo, mas também nas lutas e aspirações proletárias, nas teorias e projetos políticos, nas lições da história, na recusa da alienação. A autogestão social é algo presente e ainda ausente, presente como projeto e por isso ausente como realidade efetiva. Também é algo ausente e presente, pois é ausente da realidade concreta da totalidade da sociedade e presente como negação da sociedade existente.
No último ensaio, Santos discute os espaços públicos e coletivos, que vão do “encontro à esperança”, novamente a utopia concreta se manifesta e junto com ela a oposição entre o público e o coletivo. No espaço estatal ou público, temos um lado da moeda, o do poder e sua instituição dos espaços. No espaço coletivo, temos a autoconstituição e autogestão do espaço. O espaço-propriedade, o espaço-mercadoria, o espaço-poder, são manifestações espaciais da sociedade presente e serão superados, pelo processo de destruição-criação que fala Santos, pela sociedade futura e o espaço coletivo.
Por fim, uma obra fundamental que retoma, amplia, desenvolve elementos para se pensar uma crítica da sociedade presente e um projeto de sociedade futura, seguindo as tendências inauguradas por Marx, Comunismo de Conselhos, Bloch e outros, expressões teóricas do proletariado. Resta uma questão: o que tornou possível esta obra? O que permite este resgate e desenvolvimento da utopia autogestionária por Lucas Maia dos Santos?
Obviamente que seria necessário resgatar o processo histórico de vida do autor para reconstituir de forma mais concreta este fenômeno. Porém, como ele não é o único que atualmente faz este percurso, já que inúmeros indivíduos e grupos hoje avançam no mesmo caminho, com suas diferenças, idiossincrasias e com avanços e recuos, com maior ou menor profundidade ou rapidez, entre outros aspectos diferenciadores, é possível pensar as determinações mais amplas que possibilitam essa manifestação individual do projeto autogestionário.
As mudanças históricas ocorridas abriram brechas que tornaram possível um desenvolvimento da consciência humana, permitindo a retomada da perspectiva do proletariado. As lutas operárias desde o surgimento do proletariado, em sua radicalidade revolucionária, são uma base histórica mais longa que, no desenvolvimento posterior, foi obliterada pela emergência do capitalismo oligopolista transnacional durante o regime de acumulação intensivo-extensivo, que marca a emergência do estado integracionista, do fordismo e imperialismo fundado no capital transnacional. Um período com relativa estabilidade do capitalismo que possibilitou uma estagnação teórica e prática do marxismo, o que não foi absoluto, mas cuja alternativa foi marginal. As lutas sociais do final dos anos 1960 e as produções intelectuais daquela época, abriram uma brecha, que, no entanto, só foi desembocar numa nova produção intelectual que parte da perspectiva do proletariado mais recentemente. A emergência do regime de acumulação integral, a crise do capitalismo de Estado da URSS e satélites, mostravam, simultaneamente, a necessidade de superação do capitalismo e a falsidade da solução bolchevista. Isto abriu caminho para se resgatar alguns autores marginais, tais como Korsch e Bloch, e, com o surgimento das primeiras rachaduras do edifício neoliberal no final dos anos 1990, aliado com o desenvolvimento da internet e acesso a material antes raro e de pouco acesso, a ascensão do zapatismo, renascimento do anarquismo, movimentos antiglobalização, lutas sociais radicalizadas no México e Argentina, o que promove um contexto cultural e social propício para a retomada do marxismo autêntico, a crítica ao pseudomarxismo, o resgate da tradição revolucionária do comunismo de conselhos e o avanço da teoria da autogestão social.
É neste amplo contexto que surgem muitos indivíduos, grupos, obras, que retomam a tradição do comunismo de conselhos, entre outras próximas e semelhantes. Porém, Lucas Maia dos Santos não se limita, como alguns fazem, a repetir e cristalizar em novo dogma os escritos dos pensadores que constituíram a teoria dos conselhos (Pannekoek, Korsch, Rühle, Gorter, Wagner, Mattick, etc.). Embora o comunismo de conselhos tenha sido expressão do proletariado revolucionário do início do século 20 e, portanto, uma das formas mais avançadas de marxismo, é preciso reconhecer que suas obras não eram infalíveis e que várias questões, principalmente as geradas pelo desenvolvimento capitalista, não foram, e algumas não podiam ser, abordadas por eles. Além disso, o comunismo de conselhos, excetuando-se Paul Mattick, principalmente tendo em vista que parte de sua produção se deu no bojo da luta radical proletária e voltada para analisar esta luta, pouco analisou o movimento do capital, o processo de desenvolvimento capitalista, sua dinâmica, limites e contradições. Nesse aspecto, o bordiguismo ofereceu uma contribuição que é necessário resgatar, inclusive pela exigência metodológica de abordar a totalidade que está na base do método dialético.
Santos oferece uma excelente análise do comunismo de conselhos e avança quando acrescenta a necessidade da utopia concreta e discute o projeto autogestionário, não se limitando a repetir os escritos dos autores conselhistas, mas indo além e trabalhando outras teses e autores que se ligam ao movimento revolucionário do proletariado e assim entendendo o caráter crítico-revolucionário da dialética apontado por Karl Korsch. Esse caráter crítico-revolucionário da dialética materialista lhe permite superar todos os dogmas, pois a ligação do marxismo é com o proletariado revolucionário e não com idéias cristalizadas, autores, autoridades, organizações, etc.
Desta forma, a presente obra de Lucas Maia dos Santos se insere na perspectiva do proletariado e é expressão da radicalidade teórica do marxismo autêntico. Assim, faz parte de toda uma tendência de reemergência da utopia autogestionária e sob a forma mais avançada no atual momento histórico. É manifestação desta tendência e ao se manifestar a reforça e se constitui, portanto, como intervenção radical nas lutas sociais e por isso é obra fundamental e que coloca questões fundamentais.

Nildo Viana
Goiânia, 21 de outubro de 2009.

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VIANA, Nildo. A Reemergência da Utopia Autogestionária. In: MAIA, Lucas. Comunismo de Conselhos e Autogestão Social. Pará de Minas, Virtualbooks, 2010.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Minicurso: Materialismo Histórico e Teoria da Cultura



Minicurso sobre Materialismo Histórico e Teoria da Cultura durante SBPC

A 63ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que ocorrerá de 10 a 15 de julho de 2011, na Universidade Federal de Goiás (UFG), em Goiânia (GO), terá como tema central “Cerrado: água, alimento e energia”. Trata-se de um dos maiores eventos científicos do País.
A programação científica é composta por conferências, simpósios, mesas-redondas, encontros, sessões especiais, minicursos e sessões de pôsteres para apresentação de trabalhos científicos. Também são realizados diversos eventos paralelos, a exemplo da SBPC Jovem (programação voltada para estudantes do ensino básico), da ExpoT&C  (mostra de ciência e tecnologia) e da SBPC Cultural (atividades artísticas regionais).


Minicurso: Materialismo Histórico e Teoria da Cultura

MC-34: MATERIALISMO HISTÓRICO E TEORIA DA CULTURA
Responsável: Nildo Viana (UFG)
Ementa: A análise dos fenômenos culturais sob a perspectiva do materialismo histórico. Cultura, ideologia e arte. Dominância cultural e consciência individual. O fenômeno ideológico e a crítica das ideologias. Marxismo e teoria. Arte e sociedade.
Data: 14 a 15/07/2011
Horário: 08h00 às 10h00
Carga horária: 4 horas
Público alvo: Geral
Valor: R$ 10,00


Quem pode fazer a inscrição

Apenas poderá fazer a inscrição em minicurso quem já estiver com a inscrição efetivada na 63ª Reunião Anual ou na Jornada Nacional de Iniciação Científica.
Quem não estiver inscrito no evento e desejar frequentar minicurso, precisa antes inscrever-se na Reunião Anual, pagar a taxa de inscrição no evento e aguardar a efetivação da inscrição em até 3 dias, para depois fazer a inscrição em minicurso e pagar a taxa do minicurso.

Prazo de inscrição

Online até 28/06/11. As vagas remanescentes serão oferecidas para inscrição durante o evento, nos dias 10 e 11/7.

Para mais informações e inscrições, clique aqui.

terça-feira, 24 de maio de 2011

Escritos Revolucionários Sobre a Comuna de Paris



Trecho da Introdução

A presente coletânea tem este objetivo [...]. Tornar acessíveis alguns escritos revolucionários[1] sobre a Comuna de Paris e, ao mesmo tempo, resgatar seu caráter revolucionário em contraposição às deformações que domesticam e lhe retiram sua essência. Logo, faz parte da luta de classes e expressa o projeto revolucionário. É por isso que temos, por um lado, escritos revolucionários sobre a Comuna e, por outro, comentários e explicações que após a leitura dos textos, ajudam a esclarecer o contexto e a obra, facilitando assim a interpretação correta dos mesmos.
O texto de Karl Marx sobre a Comuna de Paris é relativamente bem conhecido, embora pouco e mal lido. Esse não é o texto mais divulgado de Marx. Ele é geralmente lido e interpretado a partir da concepção leninista, o que lhe retira o caráter autogestionário e revolucionário. A leitura do texto do Marx deve ser feita não procurando encontrar em seu texto ideias pré-concebidas e sim entender o processo genético de sua constituição e significado. O que Marx realiza é uma leitura da primeira revolução proletária inacabada e seu caráter autogestionário, a “forma finalmente encontrada” de autoemancipação proletária.
O texto de Mikhail Bakunin já é menos conhecido e as traduções para a língua portuguesa são mais recentes. O seu escrito possui o mesmo espírito libertário e revolucionário que o de Marx e também mostra a primeira experiência revolucionária do proletariado analisando sua importância e resultado. É importante resgatar essa obra por ser uma das mais importantes interpretações da Comuna de Paris e que requer uma atenção especial. Bakunin escreve o texto no calor da luta, devido sua passagem pela França e irrupção revolucionária em Paris. Bakunin analisa a Comuna de Paris expondo o momento da destruição do Estado e apontando para sua prática revolucionária, inconclusa, tal como se observa nas afirmações de Marx e outros.
Após estes dois textos, apresentamos um artigo, de Nildo Viana, que compara o pensamento de Marx e Bakunin tendo por base a análise que realizaram da Comuna de Paris, mostrando algumas semelhanças importantes no que se refere a este evento histórico e, ao mesmo tempo, colocando que, apesar das divergências e rivalidade entre ambos, o objetivo e concepções são extremamente semelhantes. Depois apresentamos um texto, também de Nildo Viana, que realiza uma análise rigorosa e mais pormenorizada do artigo de Marx e outro, de Rafael Saddi, que executa o mesmo processo sobre a obra de Bakunin e ambos fornecem materiais interpretativos que contribuem com a compreensão do pensamento destes autores e sua análise da Comuna de Paris.
O texto seguinte é o de Piotr Kropotkin, anarquista russo, escrito dez anos depois da existência da Comuna de Paris. A sua obra possui o mesmo caráter libertário e revolucionário que os textos anteriores, apesar de algumas diferenças interpretativas oriundas de sua concepção de “comunismo anarquista” e de sua avaliação de alguns aspectos da Comuna. Kropotkin reconhece o caráter revolucionário da Comuna e a toma como exemplo de revolução proletária que deveria ter avançado e o faria, se não fosse a “vingança mesquinha” da burguesia, no sentido de promover uma livre federação de comunas que significaria a abolição do Estado e da propriedade privada. Apesar de algumas considerações críticas, Kropotkin reconhece a luta heróica dos comunardos e compartilha sua preocupação no sentido de avançar as lutas proletárias, superando os erros do passado.
Após o texto de Kropotkin, temos um breve comentário de Nildo Viana, no qual busca reconstituir o caminho analítico executado por ele e apresentar brevemente alguns elementos de sua base analítica visando proporcionar uma leitura mais ampla e compreensão de suas colocações e objeções sobre a Comuna.
A seguir apresentamos dois textos de Karl Korsch sobre a “comuna revolucionária”. Os dois artigos de Korsch são de caráter mais teórico e busca reavaliar a significação da Comuna de Paris à luz das mudanças históricas (implantação do capitalismo de Estado na Rússia, crises capitalistas, ascensão das lutas sindicais na Espanha) e de sua busca de compreender esse processo e o papel do marxismo no seu interior, reavaliando as interpretações de Marx, Engels e Lênin. É uma obra pouco conhecida e que sofre interpretações equivocadas, inclusive por desconhecimento da evolução intelectual e preocupação fundamental do autor, que foi marginalizado, como muitos outros, a partir do resultado da contra-revolução burocrática na Rússia e bolchevização dos partidos comunistas, provocando a imposição do leninismo como ideologia dominante dos partidos e intelectuais autoproclamados “marxistas”, mas na verdade pseudomarxistas.
Em seguida, há um artigo, de Nildo Viana, que analisa os dois artigos de Karl Korsch objetivando restituir, a partir da análise de sua evolução intelectual e do contexto histórico no qual escrevia, além da leitura rigorosa do próprio texto, o conteúdo de seus dois textos. Se tais artigos parecem enigmáticos, isso se deve a várias dificuldades interpretativas, que o texto busca diminuir através dos procedimentos acima aludidos.
Por fim, dois pequenos textos sobre a Comuna de Paris mais recentes. Se os textos de Marx e Bakunin foram escritos no ano de sua realização, o de Kropotkin e de Korsch, 10 anos e cerca de 60 anos após, respectivamente, os demais são escritos com aproximadamente 90 anos de distância do acontecimento. Alguns anos antes do Maio de 1968, Guy Debord e amigos integrantes da Internacional Situacionista e Henri Lefebvre, sociólogo francês, redigem pequenos textos sobre a Comuna de Paris, sendo que o texto deste último integrará um livro sobre a mesma, A Proclamação da Comuna. Os tempos são outros, trata-se do capitalismo oligopolista transnacional que segundo sua auto-imagem ideológica é uma “sociedade de consumo” e do “bem estar social” e a superexploração do capitalismo subordinado aliado ao fordismo e Estado integracionista, compondo o regime de acumulação intensivo-extensivo, mantinha certa estabilidade social, que só seria rompida com a rebelião estudantil de alguns anos depois, abrindo a crise deste regime de acumulação. Nesse contexto, marcadas pela ideologia da “integração da classe operária” e do fim da revolução, temos Debord e situacionistas na contracorrente tanto das ideologias e cultura dominantes quanto do pseudomarxismo e assim abre uma análise inovadora, embora com pontos problemáticos devido ao próprio contexto, e apresentam algumas teses sobre a Comuna. Este escrito também é pouco conhecido e vale a pena resgatá-lo. Da mesma forma, o texto de Henri Lefebvre, se insere no mesmo contexto e plano e devido às proximidades de posição e influência recíproca, o seu curto texto tem muita semelhança com o texto dos situacionistas, daí eles terem acusado-o de plágio.
O último texto da coletânea, de Marcus Vinicius Conceição, discute justamente esse processo de acusação de plágio e busca fornecer uma explicação e análise dos dois textos, mostrando as semelhanças e diferenças entre ambos. Um dos destaques está em apresentar o vínculo da concepção de Henri Lefebvre com o leninismo, o que mostra um ponto de diferenciação entre este e os situacionistas.

Sumário


Revolução e Escritos Revolucionários, Uma Breve Introdução
Nildo Viana
A Comuna de Paris
Karl Marx
A Comuna de Paris e a Noção de Estado
Mikhail Bakunin
A Comuna de Paris segundo Marx e Bakunin
Nildo Viana
Karl Marx e a Essência Autogestionária da Comuna de Paris
Nildo Viana
Bakunin e a Comuna
Rafael Saddi
A Comuna de Paris
Piotr Kropotkin
Kropotkin: A Comuna de Paris e o Comunismo Anarquista
Nildo Viana
A Comuna Revolucionária I
Karl Korsch
A Comuna Revolucionária II
Karl Korsch
Karl Korsch e a Comuna Revolucionária
Nildo Viana
Teses Sobre a Comuna de Paris
Attila Kotányi, Guy Debord, Raoul Vaneigen
A Importância e Significado da Comuna
Henri Lefebvre
Plágio, cotidiano e revolução nas análises sobre a Comuna na França de 1960
Marcus Vinicius Conceição

[1] Seria possível acrescentar outros escritos, mas por questão de espaço não seria possível anexar e, consequentemente, analisar mais textos.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

A Reprodução do Poder


A REPRODUÇÃO DO PODER

Nildo Viana

“A primeira razão porque os homens servem de bom grado é que nascem servos e são criados como tais”.
Etiene La Boétie

O modo de produção é, nas sociedades de classes, a fonte do poder. A classe explorada trava uma luta incessante contra a classe exploradora e esta luta se reproduz no conjunto das relações sociais. Há, desta forma, uma reprodução desta luta de classes em todas as esferas da vida social. Ocorre, porém, que essa reprodução significa também uma reprodução das duas classes sociais fundamentais e da dominação de uma sobre outra. A reprodução da luta é a reprodução da relação (de exploração e dominação) e a reprodução da relação é reprodução da luta (conflitos e possibilidade de superação).
O estado é a principal instituição erigida com o objetivo de assegurar a reprodução do modo de produção dominante. A forma como ele executa isto varia de acordo com o modo de produção, mas é na sociedade capitalista que ação estatal visando reproduzir a ordem se complexifica num nível nunca visto antes na história da humanidade.
O estado se encontra entrelaçado com diversos outros meios de reprodução das relações de produção e isto é mais intenso ainda no modo de produção capitalista. O estado, como poder coletivo da classe dominante, possui o monopólio do uso da força e isto é reconhecido e aceito pela maioria da população, e assim pode utilizar a repressão, quando isto é necessário, visando garantir a estabilidade das relações sociais existentes, ou seja, reproduzir as relações de classes existentes. Entretanto, outros meios são utilizados preferencialmente em épocas em que a luta de classes não representa uma ameaça à ordem, tal como a ideologia.
No capitalismo, o estado sofre um processo de crescimento. Este processo fornece a ilusão de que o estado e a sociedade civil formam uma unidade, sendo que as instituições da sociedade civil passam a se consideradas “estatais” (Althusser, 1985; Gramsci, 1988).
Esta confusão pode ser desfeita através da distinção entre público e privado. O que chamamos de público, numa sociedade classista, é o que pertence à esfera estatal. Ocorre, porém, que este “público” não se refere à coletividade em geral e sim a uma parte dela. Qual parte?  Esta parte é a classe dominante, pois o estado é o seu poder coletivo. O estado não é dominado por indivíduos, não é uma instituição privada, não está submetido à lógica jurídica da propriedade privada (não pode ser “herdado”, por exemplo). Mas, como ele representa os interesses da classe dominante, pode ser considerado “público”, ou seja, da coletividade (no sentido restrito, ou seja, no sentido de representar a coletividade que é a classe dominante).
O caráter “público” do estado é apenas o disfarce que ele utiliza, pois não poderia se apresentar como representante da classe dominante, já que isto significaria a sua perda de legitimidade e a repressão seria o único recurso que ele poderia utilizar para manter a ordem. Contudo, o estado, para manter esta ordem, se volta contra indivíduos ou frações da classe dominante, contra as classes auxiliares desta, etc. Isto significa que ele possui um caráter coletivo. Isto decorre do fato dele ser o poder coletivo da classe dominante e do seu objetivo de preservar a sociedade tal como ela é. Ao se apresentar como “público”, ele apenas busca garantir sua própria legitimidade.
Acontece que a distinção entre público e privado ao ser abolida e em seu lugar aparecer algo indistinto chamado “aparelhos ideológicos do estado” (Althusser: 1985) ou então “estado ampliado” (Gramsci, 1988) significa a não percepção da real diferença entre estado e sociedade civil. O estado é o poder coletivo da classe dominante e a sociedade civil é onde se manifesta as diversas classes e frações de classes existentes. Em poucas palavras, a distinção serve para se reconhecer a homogeneidade do estado e a heterogeneidade da sociedade civil. No estado, reina a classe dominante de forma absoluta; na sociedade civil há a manifestação das diversas classes e frações de classes existentes.
Desta forma superamos a visão simplificadora segundo a qual todas as instituições existentes (família, partidos, igrejas, etc.) são “aparelhos de estado”. Esta simplificação pode ofuscar a visão da luta de classes que perpassa a sociedade civil. Sem dúvida, a classe dominante devido os seus recursos financeiros possui a supremacia também na sociedade civil. Mas nesta, ao contrário do que ocorre no estado, ela não reina absoluta, pois as demais classes e frações de classes, embora com muito menos força, também se manifestam.
Portanto, a distinção entre público e privado é ideológica devido aos termos que utiliza, mas não por afirmar a existência de uma distinção, pois esta realmente existe. A distinção não é entre “público” e “privado” e sim entre o estatal (poder coletivo da classe dominante) e o “privado” (que é um conjunto heterogêneo de instituições e manifestações de classe e frações de classe). Não reconhecer esta distinção significa empobrecer a compreensão da realidade social e cair numa armadilha ideológica.
A ampliação do estado na sociedade capitalista produz uma distinção entre o chamado “aparelho de estado” e as instituições estatais. O aparelho de estado é onde se concentra, entre outras coisas, os meios de administração e os meios de repressão. As instituições estatais são criadas pelo estado visando colaborar com a reprodução do modo de produção capitalista. As principais diferenças entre o aparelho de estado e as instituições estatais são a concentração do poder nas mãos do primeiro e o maior grau de autonomia existente nestas últimas.
O aparelho de estado concentra em suas mãos o controle sobre a sociedade e mantém uma unidade de ação necessária para conseguir concretizar isto. As instituições estatais, por serem instituições de apoio do aparelho de estado, têm sua esfera de ação limitada, não atuando sobre o conjunto da sociedade. As instituições estatais, além disso, possuem uma maior autonomia em relação ao aparelho de estado, já que se distingue dele.
O estado, tanto o seu aparelho quanto suas instituições, busca reproduzir as relações de produção capitalistas sob diversas formas. Além da repressão e da ideologia, o estado intervém também na esfera da produção e distribuição (intervenção “econômica”) buscando manter a estabilidade e controlar as crises do capitalismo. O estado faz isto tanto através da intervenção direta na produção (empresas estatais) quanto através das suas políticas (monetárias, fiscais, de subsídios, etc.). O estado drena recursos financeiros (parte do mais-valor produzido pelo proletariado) através dos impostos e os aplica nos locais apropriados e necessários para haver a reprodução do capital. A política monetária busca impedir o descontrole financeiro que tende a ocorrer no caso do “livre jogo do mercado”. O estado também investe seus recursos onde os capitais individuais não podem (ou não querem) atuar, objetivando, entre outras coisas, reduzir os custos com a força de trabalho assim como sua reprodução (política habitacional, política de saúde e de transporte coletivo, etc.).
Na sociedade capitalista, uma das instituições estatais mais importantes para a reprodução das relações é a escola. Esta, em todos os seus níveis, ou seja, do jardim de infância à universidade, executa um papel de suma importância para a reprodução do capitalismo. Ela realiza este papel sob duas formas principais: a) através da inculcação dos valores e da ideologia dominantes; b) através da reprodução da força de trabalho adequada para servir ao capital.
A escola repassa aos alunos um conjunto de valores e uma ideologia que se apresenta como científica, neutra e verdadeira, mas, que é, na verdade, uma expressão de uma falsa consciência, tal como é do interesse da classe dominante. Os diversos graus de ensino representam diversos níveis de repasse da ideologia dominante que se diferenciam pelo seu grau de sistematização e complexidade. As universidades, por exemplo, são responsáveis pela formação de força de trabalho especializada e por isso precisa apresentar o saber através de um alto grau de sistematização.
A escola também prepara a força de trabalho de acordo com as necessidades do capital. Esta preparação reproduz a divisão social do trabalho existente na sociedade capitalista, ou seja, realiza uma seleção que permite aos indivíduos pertencentes às classes privilegiadas atingir o mais alto grau de ensino. Neste sentido, podemos dizer que a escola não só busca preparar a força de trabalho para o capital como o faz de tal forma que reproduz a divisão de classes existentes na sociedade capitalista.
As escolas privadas, por sua vez, têm como objetivo o lucro. As escolas privadas representam os interesses do capital individual e realizam o mesmo papel que as escolas estatais: reproduzir as relações de produção capitalistas através da inculcação da ideologia e da preparação da força de trabalho.
Outra forma que o estado encontra para reproduzir a dominação de classe e de todas as outras formas de dominação daí derivadas é a democracia representativa. O estado, através da legislação, organiza o sistema partidário e o sistema eleitoral. A democracia representativa (burguesa) legitima o estado capitalista ao oferecer o direito de votar e ser votado, que, ficticiamente, é prerrogativa de todo cidadão. Desta forma, cria-se a ilusão de que são os cidadãos livres e iguais que escolhem livremente os seus representantes e que qualquer cidadão pode se candidatar a qualquer cargo público.
Isto, entretanto, não condiz com a realidade. Um cidadão para ser candidato tem que satisfazer várias condições que vão além do seu título de eleitor. A primeira condição é estar filiado a um partido político. Este, por sua vez, para ser legalizado e concorrer às eleições precisa se submeter à legislação partidária (Viana, 2003a). Esta legislação produz diversos obstáculos e requer, para ultrapassá-los, por parte do partido, a existência de sólida estrutura financeira e burocrática. Isto beneficia duplamente a classe dominante na disputa eleitoral, pois ela e suas classes auxiliares não só possuem mais recursos financeiros e por isso ganham predominância no processo eleitoral como também burocratizam e corrompem os partidos que dizem representar as classes exploradas. Além disso, estes partidos, por terem em suas fileiras membros oriundos das classes exploradas e dizer representá-las, legitimam ainda mais a democracia burguesa.
Além da mediação do partido, o que significa se submeter às suas regras, o cidadão tem que atender a outras exigências, que varia de acordo com o país, tal como a idade, por exemplo. Além disso, sem recursos financeiros próprios ou daqueles que o financiam em “troca de algo” dificilmente um cidadão consegue se lançar candidato.
O direito de votar, por sua vez, significa apenas uma escolha de algo exterior que pode ser útil a quem vota. É a mesma lógica de ir ao supermercado fazer compras. Aliás, não é sem motivo que se cunhou o termo “mercado político”. Neste mercado, assim como em qualquer outro, existe uma variedade de produtos (os partidos e seus candidatos) que podem ser escolhidos e que lhes são apresentados pela propaganda generalizada (de “massas”) e pelos meios oligopolistas de comunicação. Após a eleição não há nenhum controle dos eleitores sobre os eleitos. Estes últimos, chamados de “representantes” do povo, não são expressão da vontade popular, pois isto pressupõe a elaboração por parte desta de um projeto político que o candidato escolhido iria apenas representar no parlamento ou governo. Mas o que ocorre é justamente o contrário: são os representantes que elaboram os projetos (ou fingem elaborar, pois a prática se diferencia do discurso) e os apresentam à comunidade, para que esta escolha algo que lhe é alheio (tanto no sentido de não ter sido produzido por ela quanto no sentido de não representar os seus reais interesses).
Desta forma, a democracia burguesa (“representativa”) legitima o estado capitalista (Viana, 2003b). Esta legitimação, entretanto, não resiste aos momentos de crise, que o estado sempre busca contornar, apelando, principalmente, para a mudança de governo e responsabilizando o governo de determinado partido pela crise para impedir a percepção de que é o próprio estado capitalista que é o principal responsável pela manutenção da ordem capitalista e de suas crises.
Um conjunto de instituições sociais, tanto privadas quanto estatais, busca realizar a reprodução do modo de produção capitalista. O estado capitalista busca exercer um amplo controle sobre as instituições privadas existentes na sociedade. Ele faz isto principalmente através da legislação. É através das leis que é regularizado o funcionamento das instituições privadas (escolas, igrejas, associações, partidos, sindicatos, etc.). Outras formas de controle estatal sobre as instituições privadas ocorrem através de suas exigências para a dotação de recursos e realização de convênios. O estado exerce este controle com o objetivo de corromper e burocratizar estas instituições para assim exercerem o mesmo papel que ele exerce: reproduzir as relações de produção capitalistas. Através da democracia burguesa e destes métodos, cria-se a sociedade civil organizada que realiza uma mediação burocrática entre estado e sociedade civil (Viana, 2003b).
Mas além do estado, da escola, da democracia burguesa, da sociedade civil organizada, existem outros meios de reprodução do poder que são reforçados pelo estado, mas que não são produzidos diretamente por ele. Este é o caso da ideologia, da família, da mentalidade e da sociabilidade.
A sociabilidade é o conjunto das relações sociais existentes em uma determinada sociedade e que possui como determinação fundamental o modo de produção dominante. Ela está presente na família, na escola, nos partidos, nas igrejas, em todos os lugares. A sociabilidade capitalista possui três características básicas: a competição, a mercantilização e a burocratização (Viana, 2008). A competição que permeia o conjunto das relações sociais sob o capitalismo tem sua origem na própria esfera da produção e distribuição. A competição entre as empresas capitalistas por uma maior fatia do mercado consumidor e a dos trabalhadores pelo mercado de trabalho se generaliza e se espalha para as demais relações sociais. A sociedade capitalista é, por natureza, uma sociedade competitiva. A competição pela ascensão social, pelo status, etc., está presente e se reproduz em todas as relações sociais, nas escolas, nos partidos, nas igrejas, na família, no esporte, etc.
Outra característica da sociabilidade capitalista é a mercantilização das relações sociais. A produção capitalista de mercadorias tende a transformar tudo em mercadoria. Até a força de trabalho do trabalhador é transformada em mercadoria e é vendida em troca de um salário. Com o desenvolvimento capitalista há um crescente processo de mercantilização das relações sociais, transformando os meios de consumo, serviços sociais, etc., em mercadorias.
O processo de burocratização as relações sociais acompanha este processo de mercantilização. Cria-se um conjunto de instituições (privadas e estatais) caracterizadas pela direção hierárquica que produz uma pirâmide social onde se distribui as camadas sociais que detém o poder. No cume da pirâmide está a burocracia do aparelho de estado e no seu ponto mais baixo se encontra a burocracia das instituições privadas das classes sociais menos privilegiadas (partidos, sindicatos, igrejas, etc.).
A expansão da mercantilização das relações sociais cria um conjunto de agencias estatais e privadas (de turismo, publicidade, etc.) que realizam concomitantemente a ampliação da burocratização das relações sociais. A burocracia, enquanto classe social responsável pela direção das empresas e instituições privadas e estatais, cresce cada vez mais e a competição pelo poder sofre um processo de crescimento nestes locais.
A sociabilidade capitalista, ou seja, estas relações sociais marcadas pela competição, pela mercantilização e pela burocratização atingem a consciência coletiva das pessoas e fornecem a base da ideologia e da mentalidade burguesas (Viana, 2008). A ideologia é a sistematização da falsa consciência da realidade. O que é esta falsa consciência? É a consciência que toma as atuais relações sociais (sociabilidade capitalista) como algo imutável, natural, a-histórico, enfim, como se elas correspondessem à natureza humana. A ideologia sistematiza esta falsa consciência através de um discurso coerente e totalizador que lhe dá a forma de discurso científico, religioso, filosófico, técnico, etc. Assim surge um conjunto de ideologias que reproduzem a falsa consciência dos indivíduos, já que agora é (re)apresentada por autoridades científicas, técnicas, políticas, artísticas, religiosas, etc.
A mentalidade, por sua vez, expressa o fenômeno da introjeção do “princípio de realidade”, para utilizar expressão freudiana, da sociedade contemporânea. A sociedade exige dos indivíduos e grupos sociais que se comportem da forma necessária para continuar existindo. A mentalidade busca modelar as energias dos indivíduos de tal forma que o seu comportamento deixa de ser um produto de uma decisão planejada, refletida ou pensada em seguir o padrão de comportamento estabelecido e sim um desejo de agir de acordo com este padrão e, ao mesmo tempo, uma satisfação em agir desta forma. Assim, antes da decisão racional, vem o desejo produzido socialmente. Isso gera decisão racional, que reforça esse processo. Na sociedade contemporânea, a forma de mentalidade dominante é a que introjeta a sociabilidade capitalista, reproduzindo-a em suas elaborações mentais e que pode ser chamada de mentalidade burguesa (Viana, 2008). A sociabilidade não só confirma a mentalidade como exige a sua reprodução.
A família também executa um papel de grande importância na reprodução do poder. Ela é “o agente psíquico da sociedade, a instituição que tem a função de transmitir as exigências da sociedade à criança em desenvolvimento” (Fromm, 1979, p. 81). A família realizaria isto sob duas formas: a) através da transmissão da mentalidade dos pais aos filhos; e b) através da forma de educação habitual fornecida pelos pais que modelam a mentalidade das crianças numa direção socialmente desejável.
Além disso, a própria estrutura familiar se organiza de forma autoritária e isto influencia a criança no sentido de reproduzir as relações de poder: “o tipo predominante da família, a pequeno-burguesa, se estende muito além da chamada ‘pequena-burguesia’, penetrando profundamente na grande-burguesia e também na classe dos operários. A base da família pequeno-burguesa é a relação entre o pai patriarcal, a mulher e os filhos. Ele é, por assim dizer, o expoente e representante da autoridade estatal na família. Devido à contradição entre a sua posição no processo de produção (subordinado) e a sua função familiar (chefe), ele é lógica e tipicamente uma espécie de primeiro-sargento; submete-se aos que estão em acima dele, absorvendo totalmente os pontos de vista dominantes (daí sua tendência para a imitação), e domina os que estão abaixo dele; transmite os pontos de vista governamentais e sociais e os faz respeitar” (Reich, 1988, p. 106).
Isto é tão forte que pode até mesmo explicar a personalidade autoritária de muitos indivíduos. A personalidade autoritária de Hitler, por exemplo, já teve sua origem atribuída à suas relações familiares: “o chefe da classe média alemã em revolta [Hitler] é ele mesmo filho de funcionário e conta com precisão o conflito que teve que enfrentar, e que é precisamente específico da estrutura de massa pequeno-burguesa. O pai queria que ele se tornasse funcionário, mas o filho revoltou-se contra o projeto paterno, decidiu não o pôr em prática ‘sob pretexto algum’, tornou-se pintor e por isso mesmo proletarizou-se. Mas ao lado dessa revolta contra o pai subsistiu a consideração e o reconhecimento de sua autoridade” (Reich, 1974, p. 37-38).
Isto revela o que a revolta contra a autoridade é sempre acompanhada de uma ligação afetiva e de uma vontade de substituí-la. Desta forma, a revolta contra o pai pode ser interpretada como uma revolta contra a autoridade que ele representa e significa um desejo de substituir a autoridade, tal como muitos atacam a burocracia, a burguesia ou o governo para na verdade substituí-lo. Isto é típico da mentalidade rebelde, ao contrário da mentalidade revolucionária (Fromm, 1977). A família reproduz esta forma de organização autoritária que cria conflitos internos e ajuda a moldar personalidades autoritárias e burocráticas.
Desta forma, a família reproduz no seu interior a sociabilidade capitalista e a mentalidade burguesa e ambas são transmitidas às crianças. A escola, por sua vez, reforça isto, assim como o conjunto das demais relações sociais as quais as crianças serão submetidas. Assim, cada indivíduo traz dentro de si a reprodução do poder.
As diversas formas de reprodução do poder servem para fortalecer o estado e as relações de produção capitalistas. A dominação de classe se expande para todas as relações sociais e sua reprodução torna o poder quase indestrutível. Contudo, apesar do poder ser quase indestrutível, existem formas de negação do poder e a possibilidade de abolição do poder. Trataremos disto em outro texto.

Referências:

Althusser. Aparelhos Ideológicos do Estado. 4a edição, Rio de Janeiro, Graal, 1985.
Fromm, E. Meu Encontro com Marx e Freud. 7a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979.
Fromm, Erich. O Dogma de Cristo. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
Gramsci. A. Concepção Dialética da Historia. 7ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988.
Reich, W. Psicologia de Massas do Fascismo. Porto, Publicações Escorpião, 1974.
Reich. W. A Revolução Sexual.  8a edição, RJ, Guanabara, 1988.
Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003b.
Viana, Nildo. O Que São Partidos Políticos? Goiânia, Edições Germinal, 2003a.
Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. São Paulo, Escuta, 2008.


Artigo publicado originalmente na Revista Possibiliades.

domingo, 15 de maio de 2011

Cândido, de Voltaire: A Auto-Imagem do Iluminismo


CÂNDIDO, DE VOLTAIRE: A AUTO-IMAGEM DO ILUMINISMO
Nildo Viana*

“Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”.
Karl Marx
 
Resumo: Cândido ou o Otimismo, obra literária de Voltaire, para ser compreendida deve ser analisada no contexto social e histórico no qual ela surgiu. A percepção deste contexto demonstra que tal obra reflete a auto-imagem do iluminismo, sendo que este busca se contrapor ao mundo feudal e isto explica a contraposição entre luzes e trevas, entre a ideologia da classe burguesa ascendente e a ideologia da classe senhorial feudal decadente.
Palavras-chave: iluminismo, auto-imagem, ideologia
Cândido ou O Otimismo é uma obra literária do filósofo Voltaire. Não é, portanto, uma obra filosófica, ou seja, não possui os procedimentos próprios a um escrito filosófico. Nesta obra de Voltaire, a argumentação racional é substituída pela narrativa. Isto significa que para se compreender esta obra é necessário entender, inicialmente, a linguagem literária. Portanto, torna-se necessário apresentar alguns apontamentos que facilitem a compreensão da linguagem literária, sem, obviamente, pretender apresentar, neste curto espaço, uma teoria da literatura.
Partiremos dos pressupostos da teoria marxista da literatura. Tal teoria tem como pressuposto básico a indissolubilidade da relação entre literatura e sociedade. A inteligibilidade da obra literária é impossível de ser conquistada sem a conquista anterior da inteligibilidade da sociedade onde ela é produzida. Neste sentido, o estudo de uma obra literária deve ser precedida pelo estudo da sociedade que a produz. A sociedade, entretanto, não é um todo homogêneo e orgânico, tal como coloca a ideologia funcionalista. Ela é uma totalidade concreta que se caracteriza pelo movimento contraditório de suas partes. A contradição social se revela, fundamentalmente, como contradição de classes. Pode-se dizer, a partir destas colocações, que uma obra literária é expressão de valores, interesses e cultura de uma ou outra classe social específica.
Neste momento, pode-se denunciar o “marxismo dogmático” e defender a “autonomia das idéias”, aliás, tal como muitos fizeram (Fortes, 1985; Falcon, 1986). A refutação da análise marxista se dá, além da rotulação de “dogmatismo”, através da defesa da “autonomia das idéias” (Fortes, 1985) ou da demonstração do “absurdo” que é qualificar os pensadores do iluminismo como “advogados conscientes” da burguesia. Há, nestas colocações, um desconhecimento da teoria marxista ou então sua redução ao chamado “marxismo vulgar”.
A tese da “autonomia das idéias” só pode ser aceita como sendo uma “autonomia relativa”, pois, há muito tempo, Marx (1983) e Freud (1978), um se referindo a determinação social e o outro a determinação individual do pensamento, demoliram o castelo positivista da neutralidade e da objetividade. Quanto a afirmação de que é absurdo pensar que os filósofos do iluminismo seriam “advogados conscientes” da burguesia, ela só pode ser feita desconhecendo-se a teoria marxista da ideologia. Um pensador pode ser ideólogo de uma classe social intencionalmente ou inintencionalmente (ou para utilizar terminologia equivocada de Falcon, “conscientemente” ou “inconscientemente”).
O que define se alguém é ideólogo de uma classe social específica não é a sua intencionalidade e sim a coincidência de suas idéias com os valores e interesses desta classe. Estas críticas ao marxismo desconhecem não só a relação entre ideólogo/classe como também a relação entre indivíduo/classe. Um indivíduo tende a representar os interesses e valores de sua própria classe, mas isto não ocorre necessariamente em todos os casos (aliás, é aí que se revela a autonomia relativa das idéias, expressa nos indivíduos que as produzem). É justamente por isto que o filósofo D’ Holbach (que, segundo Fortes é um nobre e segundo Falcon é um burguês...) pode ser um ideólogo da burguesia independentemente de pertencer ou não a burguesia. As razões disto só podem ser reveladas através da análise do processo histórico de vida de tal indivíduo (Marx, 1986; Viana, 1995).
Portanto, a definição de Voltaire como ideólogo da burguesia não pode ser feita a priori, pois é necessário anteriormente ver a relação de coincidência ou não entre suas idéias e os valores, interesses e cultura da burguesia. A simples constatação de coincidência, por sua vez, não possui valor explicativo. Para entender as idéias de Voltaire é necessário não só ver qual classe social ele representa, mas também ver quais são as tarefas políticas e sociais do pensamento de tal classe no momento histórico em que ele é produzido e assim buscar compreender o pensador e suas idéias. Logo, torna-se necessário compreender o “mundo de Voltaire” para entender suas idéias  e assim poder analisar melhor sua obra literária e desta forma ter acesso ao “mundo de Cândido”.
O MUNDO DE VOLTAIRE
A sociedade francesa do século XVIII se caracteriza pela transformação social que marca a transição do feudalismo para o capitalismo. A ascensão de novas classes sociais ocorre com a simultânea decadência das “três ordens”, dos feudos, da produção de valores de uso, da ruralidade que se desestrutura e em seu lugar emerge uma sociedade cada vez mais urbana, comercial, industrial.
Segundo palavras de um historiador, “o renascimento do comércio e o desenvolvimento da produção artesanal, tinham, não obstante, criado, desde os séculos X e XI, uma nova forma de riqueza, a riqueza mobiliária e, através dela, dado nascimento a uma nova classe, a burguesia, cuja admissão aos Estados Gerais, desde o século XIV, lhe consagrara a importância. No quadro da sociedade feudal, ela dera prosseguimento ao seu impulso ao próprio ritmo do desenvolvimento do capitalismo, estimulado pelos grandes descobrimentos do século XV e XVI e pela exploração dos mundos coloniais, bem como pelas operações financeiras de uma monarquia sempre carente de dinheiro. No século XVIII, a burguesia estava à testa das finanças, do comércio, da indústria; fornecia à monarquia não só os quadros administrativos como também os recursos necessários à marcha do Estado. A aristocracia, cujo papel não tinha cessado de diminuir, permanecia ainda na primeira escala da hierarquia social: porém se esclerosava em casta, no momento mesmo em que a burguesia aumentava em número, em pode econômico, também em cultura e consciência. O progresso das luzes solapava os fundamentos ideológicos da ordem estabelecida, ao mesmo tempo que se afirmava a consciência de classe da burguesia. Sua boa consciência: classe em ascensão, acreditando no progresso, tinha a convicção de representar o interesse geral e de assumir o encargo da nação; classe progressiva, exercia uma triunfante atração sobre as massas populares como sobre os setores dissidentes da aristocracia. Contudo, a ambição burguesa, apoiada pela realidade social e econômica, se chocava com o espirito aristocrático das leis e das instituições” (Soubol, 1986, p. 9-10).
A transformação social traz consigo a mudança cultural, moral e intelectual. Instaura-se o “século das luzes” e com ele o anti-clericalismo, a crença na razão humana e no progresso. Este é o século das luzes, do iluminismo, da ilustração. Quais os motivos que geraram esta terminologia? O iluminismo utiliza a metáfora das luzes porque se contrapõe à idade das trevas. Luzes versus trevas significa capitalismo versus feudalismo. O iluminismo se define como a negação positiva do passado. O século das luzes e da ascensão da burguesia vem para substituir a idade das trevas e da nobreza. Segundo Foucault: “seria sem dúvida um dos eixos interessantes para o estudo do século XVIII em geral, e mais particularmente da aufklarung [ilustração], questionar o seguinte fato: a aufklarung chamou a ela mesma aufklarung; ela é um processo cultural sem dúvida muito singular que tomou consciência dele próprio, denominando-se, situando-se com relação ao seu passado e a seu futuro, e designando as operações que ele deve efetuar no interior de seu próprio presente” (Foucault, 1984, p. 105-106).
O que isto significa? Significa que o iluminismo busca superar o passado expresso no feudalismo e nas suas ideologias e, ao mesmo tempo, busca dar vida ao seu presente e afirmar um novo modo de produção, o capitalismo. O passado é o reino das trevas e o presente é o reino das luzes. A burguesia ao combater  o passado demonstra sua face progressista, mas afirmar o seu projeto (esboçado no presente e que se pretende concretizar no futuro) apresenta a sua face conservadora. A burguesia não poderia superar a si mesma mas, ao afirmar seu projeto, ajudou a produzir uma classe social que poderia concretizar a sua superação: o proletariado.
Voltaire estava envolvido por este mundo e o reproduzia. Assim como combatia a intolerância, o clericalismo, a propriedade feudal, também defendia algo: a razão, a tolerância, a liberdade e a propriedade burguesa. Segundo Della Volpe: “é verdade que a filosofia política e social de Voltaire é genericamente uma filosofia da liberdade e da igualdade burguesa e especificamente uma teoria dos direitos e deveres daqueles honnête homme, que é o homme éclaire ou intelectual burguês, que substitui, na função de elite, o honnete-homme-homme-de-qualité, ou seja, o aristocrata do ancien régime: donde a maior glória de Voltaire, a sua genial defesa da liberdade de pensamento e de consciência (...)” (Della Volpe, 1982, p. 103).

O MUNDO DE CÂNDIDO

A literatura se caracteriza pela utilização de uma linguagem simbólica, ou seja, o autor nunca diz o que quer dizer de forma direta, clara, objetiva.  A metáfora, os exemplos, etc., são meios de se utilizar tal linguagem. Por isto, não se pode ler uma obra literária como se fosse um tratado político ou científico e não se deve tomar tudo ao pé da letra. O autor quer sempre transmitir uma mensagem e descobrir qual é a mensagem que Voltaire busca transmitir em Cândido ou o Otimismo é o nosso objetivo.
É evidente que Voltaire usa a literatura para criticar os filósofos e artistas que ele repudia. A ridicularização da ideologia do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz é bastante fácil de se perceber. O filósofo Pangloss é a corporificação de Leibniz. Ele “lecionava metafísico-teólogo-cosmolonigologia” e era o preceptor dos filhos do Barão e do bastardo Cândido. Pangloss “provava admiravelmente que sem causa não há efeito, e que, neste melhor dos mundos possíveis, o castelo de monsenhor o Barão era o mais belo dos castelos, e a senhora baronesa a melhor das baronesas possíveis” (Voltaire, 1984, p. 26).
Voltaire ironiza Pangloss: para este, as coisas não poderiam ser de outra maneira e tudo foi feito para um determinado fim. Os narizes foram feitos para apoio dos óculos, as pernas para o uso dos calções, os porcos para serem comidos, etc. Certo dia, a Srta. Cunegundes, filha do Barão, viu “o maior filósofo da província” (Pangloss) “entregue a uma lição de física experimental com a criada-grave de sua mãe” e “como tivesse acentuada propensão para as ciências, observou, de fôlego suspenso, as experiências reiteradas de que se fizera testemunha; percebeu muito às claras a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e afastou-se agitada, toda pensativa, toda cheia de desejo de ser sábia, calculando bem poder, também ela, ser a razão suficiente do pequeno Cândido, que poderia, por seu turno, ser a sua” (Voltaire, 1984, p. 27-28).
O resultado disso é previsível: Cunegundes “encontrou-se com Cândido, ao voltar para o castelo, e enrubesceu: Cândido enrubesceu também. Deu-lhe bom-dia com voz entrecortada; Cândido respondeu-lhe sem saber o que dizia. No dia seguinte, depois do jantar, ao saírem da mesa, Cunegundes e Cândido se encontraram atrás de um biombo; Cunegundes deixou cair o lenço, Cândido apanhou; ela, inocentemente, segurou-lhe a mão, ao passo que, inocentemente, ele beijava a sua, com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça toda particular; seus lábios se encontraram, seus olhos se incendiaram, os joelhos lhes tremeram, suas mãos perderam o rumo. O senhor Barão (...) passou perto do biombo, e, ao ver aquela causa e tal efeito, expulsou Cândido do castelo a violentos pontapés no traseiro; Cunegundes desmaiou; depois de retemperada, esbofeteou-a a senhora baronesa; e tudo foi consternação no mais belo e no mais agradável dos castelos possíveis” (Voltaire, 1984, p. 28).
Cândido foi expulso do castelo. O que significa o castelo? Ele significa o mundo feudal, a idade das trevas. O Barão “era um dos mais poderosos suseranos da Vestfália”. A relação de vassalagem está presente e a separação entre nobres e plebeus proíbe a união entre Cunegundes e Cândido. Assim, Voltaire critica, ao mesmo tempo, a injustiça que reina no castelo e a ideologia que afirma ser este o “melhor dos mundos possíveis”.
Mas a sociedade de transição que cerca o castelo também não é o melhor dos mundos possíveis. No decorrer da narrativa se desenrola uma série de catástrofes que se abate sobre os indivíduos (Cândido, Pangloss, Cunegundes, etc.) e sobre as sociedades (guerras, terremotos). Assim, torna-se questionável a filosofia de Pangloss, o otimismo.
Mas a viagem ao novo mundo significa que, através de Cândido, Voltaire muda o foco de sua crítica. O objeto da crítica passa a ser Rosseau. O “homem selvagem”, bom por natureza, é questionado. O “mito do bom selvagem” é destruído através de duas constatações: em primeiro lugar, o mundo novo já foi corrompido pelos europeus (espanhóis, portugueses, jesuítas, etc.) e não existe mais nenhum “estado de natureza” no continente americano; em segundo lugar, o homem em seu estado natural não é necessariamente bom, como demonstra os selvagens chamados “orelhões”. Eles confundem Cândido e seu companheiro Cacambo com jesuítas e querem comê-los. Cândido afirma: “vamos certamente ser assados ou cozidos. Ah! Que diria mestre Pangloss, se visse a pura natureza?” (Voltaire, 1984, p. 76). A “pura natureza” convive com o canibalismo, o principal argumento existente contra a bondade natural dos selvagens.
Porém, um filósofo das luzes não poderia sustentar que o homem no seu estado natural seja mal. O homem não é bom e nem mau por natureza. É através da razão que ele se humaniza. Por isso, emerge no interior do novo mundo um lugar onde os selvagens (os não-europeus) são bons e civilizados: o Eldorado. Neste país estranho, onde se despreza o ouro e não tem igreja e monges, vive-se na harmonia e na paz.  Entretanto, Cândido e Cacambo chegam neste lugar por acaso e levados pela correnteza incontrolável de um rio. Os príncipes, no passado, ordenaram, com o consentimento da nação, que nenhum habitante pudesse sair do reino. Segundo o rei: “foi isto que nos conservou a inocência e a felicidade” (Voltaire, 1984, p. 83). Portanto, chegar em Eldorado é quase impossível e tal reino se mantém puro porque os estrangeiros não conseguem chegar até lá e os habitantes não querem sair de lá. Mesmo se quisessem, a saída é bastante difícil. Segundo o rei: “é impossível subir a correnteza que aqui vos trouxe por milagre, sob arcadas de rochedos. As montanhas que circundam meu reino têm de altura dez mil pés, e são retas como muralhas: elas ocupam, de largura, cada uma, um espaço de mais de dez léguas; não se pode descer senão por precipícios” (Voltaire, 1984, p. 86). Entretanto, o bondoso rei manda construir uma máquina engenhosa para transportar os dois estrangeiros. O Eldorado só continua existindo graças ao seu isolamento. É difícil para um estrangeiro viver em tal lugar, apesar de suas vantagens. Por isto, Cândido e Cacambo resolvem partir e isto significa que o Eldorado não é o nosso mundo e nem foi feito para nós. O “paraíso terrestre” é um lugar que nos impede de amar (Cândido) e de aventurar-se pelo mundo (Cacambo), significa, portanto, um retorno ao “paraíso celeste”, retorno impossível após se comer o fruto da árvore do conhecimento.
Depois de muitas outras catástrofes, Cândido retorna à Europa. Passam pela França, Inglaterra e chegam à Veneza. Lá encontram seis reis destronados. Cândido afirma: “eis aí, todavia, seis reis destronados com quem vimos de cear! E ainda entre eles há um a quem dei esmola. É possível existirem muitos outros príncipes ainda mais desventurados”(Voltaire, 1984, p. 124). Isto significa, ao mesmo tempo, a decadência da nobreza provocada pela artificialidade da forma como ela conquista suas riquezas e a mudança na relação entre um nobre e um plebeu, pois, hoje, é o último que dá esmola ao primeiro. Cândido acaba chegando a Constantinopla. Lá estão juntos Cândido, Pangloss, Cunegundes e outros companheiros de aventuras. O reencontro com Cunegundes é surpreendente, pois ela havia perdido sua beleza, mas, mesmo assim, Cândido manteria sua promessa de casamento. Entretanto, ele encontraria a oposição do filho do Barão e irmão de Cunegundes. Apesar de não ter o mínimo desejo de casar, Cândido estava determinado, devido a impertinência do Barão, a concluir sua promessa. Logo se desfizeram do Barão e assim puniram “o orgulho de um Barão alemão”. Aqui, novamente, se vê a oposição entre a nobreza (e o mundo feudal e das trevas que ela representa) e o mundo dos plebeus, do “terceiro estado”, da burguesia nascente.
O final da obra é um elogio a vida burguesa. Depois de se encontrarem com um velho que cultivava o seu jardim e produzia sua própria riqueza através do trabalho, Cândido e seus amigos resolvem fazer o mesmo. Segundo o velho: “o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade” (Voltaire, 1984, p. 136). Cândido diz que o velho conseguiu uma vida preferível à dos seis reis destronados, ou seja, mais uma vez se opõe nobreza e burguesia. Assim, todos se colocam a trabalhar na granja de Cândido e a “fazendola rendeu muito”. O filósofo Pangloss diz: “todos os acontecimentos se encadeiam no melhor dos mundos possíveis; porque, afinal, se não tivésseis sido expulso de um belo castelo a grandes pontapés no traseiro, por amor da senhorinha Cunegundes; se não tivésseis ido parar em mãos da inquisição; se não tivésseis percorrido a América, a pé; se não tivésseis assestado uma boa espadada no Barão; se não tivésseis perdidos vossos carneiros da boa terra de Eldorado; não estaríeis agora comendo confeitos de cidra e pistachas” (Voltaire, 1984, p. 137). Cândido respondia que é preciso trabalhar.
Vê-se, portanto, que a granja e o trabalho representam a propriedade burguesa. O trabalho é que justifica a propriedade. Voltaire, leitor e admirador de Locke, concordava com este na relação que ele via entre propriedade e trabalho. A granja é apenas um símbolo da propriedade burguesa e, portanto, não expressa nenhuma “utopia pequeno-burguesa”[1].  A concepção de Voltaire é parecida com a de Locke (1978): o “estado de natureza” não era tão ruim como Hobbes supunha, pois a instituição do “estado social” e da propriedade burguesa é realizada para vivermos “melhor”[2]. Aliás, no final da narrativa de Cândido ou o Otimismo, vemos uma inversão: é o mundo da granja, o mundo das luzes e da burguesia, que é o “melhor dos mundos possíveis”. Leibniz é o Pangloss do feudalismo e Voltaire é o Pangloss do capitalismo. O primeiro Pangloss é um ideólogo da nobreza e o segundo é o ideólogo da burguesia. A granja não significa retorno à pequena propriedade (pois ela é símbolo da propriedade burguesa) e nem é uma “utopia pequeno-burguesa”, sendo, na verdade, uma ideologia (inversão da realidade) burguesa. O mundo burguês torna-se o “melhor dos mundos possíveis”. No final da narrativa, Voltaire abandona a crítica da nobreza para fazer a apologia da burguesia.
Em síntese, podemos dizer que Cândido ou o Otimismo não é uma crítica ao otimismo, mas uma crítica ao otimismo da nobreza. No seu lugar instaura o otimismo das luzes. O objetivo de Voltaire é contrapor o século das luzes à idade das trevas e demonstrar a superioridade do primeiro. E nós, herdeiros do iluminismo, continuamos otimistas e vivendo no “melhor dos mundos possíveis”.

NOTAS


* Sociólogo, Mestre em Filosofia e Professor da Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal.


[1]Esta tese é defendida por Chauí (1983).
[2]Além disso, a burguesia, em seu período de ascensão, tal como demonstrou Max Weber, se fundamentava numa “ética do trabalho”, tal como professa a religião protestante que surge neste período (cf. Weber, 1987).

BIBLIOGRAFIA
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Weber, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5a edição, São Paulo, Pioneira, 1987.

Abstract:

In order to be comprehended, Voltaire’s work Candide must be analyzed in accordance with the historical and social context in which it emerged. The perception of this context shows that such work reveals the self-image of the enlightenment, which seeks to oppose it self to the feudal world. This explains the opposition between light and darkness as well as the opposition between the ideology of the bourgeoisie and the ideology of the declining seignorial feudal class.

Key-words: enlightenment, self-image, ideology.
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Cândido, de Voltaire: A Auto-Imagem do Iluminismo. Fragmentos de Cultura (Goiânia), Goiânia, v. 9, n. 1, p. 131-139, 1999.