CÂNDIDO, DE VOLTAIRE: A AUTO-IMAGEM DO ILUMINISMO
Nildo Viana*
“Assim como não se julga um indivíduo pela idéia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si; é preciso, pelo contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de produção”.
Karl Marx
Resumo: Cândido ou o Otimismo, obra literária de Voltaire, para ser compreendida deve ser analisada no contexto social e histórico no qual ela surgiu. A percepção deste contexto demonstra que tal obra reflete a auto-imagem do iluminismo, sendo que este busca se contrapor ao mundo feudal e isto explica a contraposição entre luzes e trevas, entre a ideologia da classe burguesa ascendente e a ideologia da classe senhorial feudal decadente.
Palavras-chave: iluminismo, auto-imagem, ideologia
Cândido ou O Otimismo é uma obra literária do filósofo Voltaire. Não é, portanto, uma obra filosófica, ou seja, não possui os procedimentos próprios a um escrito filosófico. Nesta obra de Voltaire, a argumentação racional é substituída pela narrativa. Isto significa que para se compreender esta obra é necessário entender, inicialmente, a linguagem literária. Portanto, torna-se necessário apresentar alguns apontamentos que facilitem a compreensão da linguagem literária, sem, obviamente, pretender apresentar, neste curto espaço, uma teoria da literatura.
Partiremos dos pressupostos da teoria marxista da literatura. Tal teoria tem como pressuposto básico a indissolubilidade da relação entre literatura e sociedade. A inteligibilidade da obra literária é impossível de ser conquistada sem a conquista anterior da inteligibilidade da sociedade onde ela é produzida. Neste sentido, o estudo de uma obra literária deve ser precedida pelo estudo da sociedade que a produz. A sociedade, entretanto, não é um todo homogêneo e orgânico, tal como coloca a ideologia funcionalista. Ela é uma totalidade concreta que se caracteriza pelo movimento contraditório de suas partes. A contradição social se revela, fundamentalmente, como contradição de classes. Pode-se dizer, a partir destas colocações, que uma obra literária é expressão de valores, interesses e cultura de uma ou outra classe social específica.
Neste momento, pode-se denunciar o “marxismo dogmático” e defender a “autonomia das idéias”, aliás, tal como muitos fizeram (Fortes, 1985; Falcon, 1986). A refutação da análise marxista se dá, além da rotulação de “dogmatismo”, através da defesa da “autonomia das idéias” (Fortes, 1985) ou da demonstração do “absurdo” que é qualificar os pensadores do iluminismo como “advogados conscientes” da burguesia. Há, nestas colocações, um desconhecimento da teoria marxista ou então sua redução ao chamado “marxismo vulgar”.
A tese da “autonomia das idéias” só pode ser aceita como sendo uma “autonomia relativa”, pois, há muito tempo, Marx (1983) e Freud (1978), um se referindo a determinação social e o outro a determinação individual do pensamento, demoliram o castelo positivista da neutralidade e da objetividade. Quanto a afirmação de que é absurdo pensar que os filósofos do iluminismo seriam “advogados conscientes” da burguesia, ela só pode ser feita desconhecendo-se a teoria marxista da ideologia. Um pensador pode ser ideólogo de uma classe social intencionalmente ou inintencionalmente (ou para utilizar terminologia equivocada de Falcon, “conscientemente” ou “inconscientemente”).
O que define se alguém é ideólogo de uma classe social específica não é a sua intencionalidade e sim a coincidência de suas idéias com os valores e interesses desta classe. Estas críticas ao marxismo desconhecem não só a relação entre ideólogo/classe como também a relação entre indivíduo/classe. Um indivíduo tende a representar os interesses e valores de sua própria classe, mas isto não ocorre necessariamente em todos os casos (aliás, é aí que se revela a autonomia relativa das idéias, expressa nos indivíduos que as produzem). É justamente por isto que o filósofo D’ Holbach (que, segundo Fortes é um nobre e segundo Falcon é um burguês...) pode ser um ideólogo da burguesia independentemente de pertencer ou não a burguesia. As razões disto só podem ser reveladas através da análise do processo histórico de vida de tal indivíduo (Marx, 1986; Viana, 1995).
Portanto, a definição de Voltaire como ideólogo da burguesia não pode ser feita a priori, pois é necessário anteriormente ver a relação de coincidência ou não entre suas idéias e os valores, interesses e cultura da burguesia. A simples constatação de coincidência, por sua vez, não possui valor explicativo. Para entender as idéias de Voltaire é necessário não só ver qual classe social ele representa, mas também ver quais são as tarefas políticas e sociais do pensamento de tal classe no momento histórico em que ele é produzido e assim buscar compreender o pensador e suas idéias. Logo, torna-se necessário compreender o “mundo de Voltaire” para entender suas idéias e assim poder analisar melhor sua obra literária e desta forma ter acesso ao “mundo de Cândido”.
O MUNDO DE VOLTAIRE
A sociedade francesa do século XVIII se caracteriza pela transformação social que marca a transição do feudalismo para o capitalismo. A ascensão de novas classes sociais ocorre com a simultânea decadência das “três ordens”, dos feudos, da produção de valores de uso, da ruralidade que se desestrutura e em seu lugar emerge uma sociedade cada vez mais urbana, comercial, industrial.
Segundo palavras de um historiador, “o renascimento do comércio e o desenvolvimento da produção artesanal, tinham, não obstante, criado, desde os séculos X e XI, uma nova forma de riqueza, a riqueza mobiliária e, através dela, dado nascimento a uma nova classe, a burguesia, cuja admissão aos Estados Gerais, desde o século XIV, lhe consagrara a importância. No quadro da sociedade feudal, ela dera prosseguimento ao seu impulso ao próprio ritmo do desenvolvimento do capitalismo, estimulado pelos grandes descobrimentos do século XV e XVI e pela exploração dos mundos coloniais, bem como pelas operações financeiras de uma monarquia sempre carente de dinheiro. No século XVIII, a burguesia estava à testa das finanças, do comércio, da indústria; fornecia à monarquia não só os quadros administrativos como também os recursos necessários à marcha do Estado. A aristocracia, cujo papel não tinha cessado de diminuir, permanecia ainda na primeira escala da hierarquia social: porém se esclerosava em casta, no momento mesmo em que a burguesia aumentava em número, em pode econômico, também em cultura e consciência. O progresso das luzes solapava os fundamentos ideológicos da ordem estabelecida, ao mesmo tempo que se afirmava a consciência de classe da burguesia. Sua boa consciência: classe em ascensão, acreditando no progresso, tinha a convicção de representar o interesse geral e de assumir o encargo da nação; classe progressiva, exercia uma triunfante atração sobre as massas populares como sobre os setores dissidentes da aristocracia. Contudo, a ambição burguesa, apoiada pela realidade social e econômica, se chocava com o espirito aristocrático das leis e das instituições” (Soubol, 1986, p. 9-10).
A transformação social traz consigo a mudança cultural, moral e intelectual. Instaura-se o “século das luzes” e com ele o anti-clericalismo, a crença na razão humana e no progresso. Este é o século das luzes, do iluminismo, da ilustração. Quais os motivos que geraram esta terminologia? O iluminismo utiliza a metáfora das luzes porque se contrapõe à idade das trevas. Luzes versus trevas significa capitalismo versus feudalismo. O iluminismo se define como a negação positiva do passado. O século das luzes e da ascensão da burguesia vem para substituir a idade das trevas e da nobreza. Segundo Foucault: “seria sem dúvida um dos eixos interessantes para o estudo do século XVIII em geral, e mais particularmente da aufklarung [ilustração], questionar o seguinte fato: a aufklarung chamou a ela mesma aufklarung; ela é um processo cultural sem dúvida muito singular que tomou consciência dele próprio, denominando-se, situando-se com relação ao seu passado e a seu futuro, e designando as operações que ele deve efetuar no interior de seu próprio presente” (Foucault, 1984, p. 105-106).
O que isto significa? Significa que o iluminismo busca superar o passado expresso no feudalismo e nas suas ideologias e, ao mesmo tempo, busca dar vida ao seu presente e afirmar um novo modo de produção, o capitalismo. O passado é o reino das trevas e o presente é o reino das luzes. A burguesia ao combater o passado demonstra sua face progressista, mas afirmar o seu projeto (esboçado no presente e que se pretende concretizar no futuro) apresenta a sua face conservadora. A burguesia não poderia superar a si mesma mas, ao afirmar seu projeto, ajudou a produzir uma classe social que poderia concretizar a sua superação: o proletariado.
Voltaire estava envolvido por este mundo e o reproduzia. Assim como combatia a intolerância, o clericalismo, a propriedade feudal, também defendia algo: a razão, a tolerância, a liberdade e a propriedade burguesa. Segundo Della Volpe: “é verdade que a filosofia política e social de Voltaire é genericamente uma filosofia da liberdade e da igualdade burguesa e especificamente uma teoria dos direitos e deveres daqueles honnête homme, que é o homme éclaire ou intelectual burguês, que substitui, na função de elite, o honnete-homme-homme-de-qualité, ou seja, o aristocrata do ancien régime: donde a maior glória de Voltaire, a sua genial defesa da liberdade de pensamento e de consciência (...)” (Della Volpe, 1982, p. 103).
O MUNDO DE CÂNDIDO
A literatura se caracteriza pela utilização de uma linguagem simbólica, ou seja, o autor nunca diz o que quer dizer de forma direta, clara, objetiva. A metáfora, os exemplos, etc., são meios de se utilizar tal linguagem. Por isto, não se pode ler uma obra literária como se fosse um tratado político ou científico e não se deve tomar tudo ao pé da letra. O autor quer sempre transmitir uma mensagem e descobrir qual é a mensagem que Voltaire busca transmitir em Cândido ou o Otimismo é o nosso objetivo.
É evidente que Voltaire usa a literatura para criticar os filósofos e artistas que ele repudia. A ridicularização da ideologia do “melhor dos mundos possíveis” de Leibniz é bastante fácil de se perceber. O filósofo Pangloss é a corporificação de Leibniz. Ele “lecionava metafísico-teólogo-cosmolonigologia” e era o preceptor dos filhos do Barão e do bastardo Cândido. Pangloss “provava admiravelmente que sem causa não há efeito, e que, neste melhor dos mundos possíveis, o castelo de monsenhor o Barão era o mais belo dos castelos, e a senhora baronesa a melhor das baronesas possíveis” (Voltaire, 1984, p. 26).
Voltaire ironiza Pangloss: para este, as coisas não poderiam ser de outra maneira e tudo foi feito para um determinado fim. Os narizes foram feitos para apoio dos óculos, as pernas para o uso dos calções, os porcos para serem comidos, etc. Certo dia, a Srta. Cunegundes, filha do Barão, viu “o maior filósofo da província” (Pangloss) “entregue a uma lição de física experimental com a criada-grave de sua mãe” e “como tivesse acentuada propensão para as ciências, observou, de fôlego suspenso, as experiências reiteradas de que se fizera testemunha; percebeu muito às claras a razão suficiente do doutor, os efeitos e as causas, e afastou-se agitada, toda pensativa, toda cheia de desejo de ser sábia, calculando bem poder, também ela, ser a razão suficiente do pequeno Cândido, que poderia, por seu turno, ser a sua” (Voltaire, 1984, p. 27-28).
O resultado disso é previsível: Cunegundes “encontrou-se com Cândido, ao voltar para o castelo, e enrubesceu: Cândido enrubesceu também. Deu-lhe bom-dia com voz entrecortada; Cândido respondeu-lhe sem saber o que dizia. No dia seguinte, depois do jantar, ao saírem da mesa, Cunegundes e Cândido se encontraram atrás de um biombo; Cunegundes deixou cair o lenço, Cândido apanhou; ela, inocentemente, segurou-lhe a mão, ao passo que, inocentemente, ele beijava a sua, com uma vivacidade, uma sensibilidade, uma graça toda particular; seus lábios se encontraram, seus olhos se incendiaram, os joelhos lhes tremeram, suas mãos perderam o rumo. O senhor Barão (...) passou perto do biombo, e, ao ver aquela causa e tal efeito, expulsou Cândido do castelo a violentos pontapés no traseiro; Cunegundes desmaiou; depois de retemperada, esbofeteou-a a senhora baronesa; e tudo foi consternação no mais belo e no mais agradável dos castelos possíveis” (Voltaire, 1984, p. 28).
Cândido foi expulso do castelo. O que significa o castelo? Ele significa o mundo feudal, a idade das trevas. O Barão “era um dos mais poderosos suseranos da Vestfália”. A relação de vassalagem está presente e a separação entre nobres e plebeus proíbe a união entre Cunegundes e Cândido. Assim, Voltaire critica, ao mesmo tempo, a injustiça que reina no castelo e a ideologia que afirma ser este o “melhor dos mundos possíveis”.
Mas a sociedade de transição que cerca o castelo também não é o melhor dos mundos possíveis. No decorrer da narrativa se desenrola uma série de catástrofes que se abate sobre os indivíduos (Cândido, Pangloss, Cunegundes, etc.) e sobre as sociedades (guerras, terremotos). Assim, torna-se questionável a filosofia de Pangloss, o otimismo.
Mas a viagem ao novo mundo significa que, através de Cândido, Voltaire muda o foco de sua crítica. O objeto da crítica passa a ser Rosseau. O “homem selvagem”, bom por natureza, é questionado. O “mito do bom selvagem” é destruído através de duas constatações: em primeiro lugar, o mundo novo já foi corrompido pelos europeus (espanhóis, portugueses, jesuítas, etc.) e não existe mais nenhum “estado de natureza” no continente americano; em segundo lugar, o homem em seu estado natural não é necessariamente bom, como demonstra os selvagens chamados “orelhões”. Eles confundem Cândido e seu companheiro Cacambo com jesuítas e querem comê-los. Cândido afirma: “vamos certamente ser assados ou cozidos. Ah! Que diria mestre Pangloss, se visse a pura natureza?” (Voltaire, 1984, p. 76). A “pura natureza” convive com o canibalismo, o principal argumento existente contra a bondade natural dos selvagens.
Porém, um filósofo das luzes não poderia sustentar que o homem no seu estado natural seja mal. O homem não é bom e nem mau por natureza. É através da razão que ele se humaniza. Por isso, emerge no interior do novo mundo um lugar onde os selvagens (os não-europeus) são bons e civilizados: o Eldorado. Neste país estranho, onde se despreza o ouro e não tem igreja e monges, vive-se na harmonia e na paz. Entretanto, Cândido e Cacambo chegam neste lugar por acaso e levados pela correnteza incontrolável de um rio. Os príncipes, no passado, ordenaram, com o consentimento da nação, que nenhum habitante pudesse sair do reino. Segundo o rei: “foi isto que nos conservou a inocência e a felicidade” (Voltaire, 1984, p. 83). Portanto, chegar em Eldorado é quase impossível e tal reino se mantém puro porque os estrangeiros não conseguem chegar até lá e os habitantes não querem sair de lá. Mesmo se quisessem, a saída é bastante difícil. Segundo o rei: “é impossível subir a correnteza que aqui vos trouxe por milagre, sob arcadas de rochedos. As montanhas que circundam meu reino têm de altura dez mil pés, e são retas como muralhas: elas ocupam, de largura, cada uma, um espaço de mais de dez léguas; não se pode descer senão por precipícios” (Voltaire, 1984, p. 86). Entretanto, o bondoso rei manda construir uma máquina engenhosa para transportar os dois estrangeiros. O Eldorado só continua existindo graças ao seu isolamento. É difícil para um estrangeiro viver em tal lugar, apesar de suas vantagens. Por isto, Cândido e Cacambo resolvem partir e isto significa que o Eldorado não é o nosso mundo e nem foi feito para nós. O “paraíso terrestre” é um lugar que nos impede de amar (Cândido) e de aventurar-se pelo mundo (Cacambo), significa, portanto, um retorno ao “paraíso celeste”, retorno impossível após se comer o fruto da árvore do conhecimento.
Depois de muitas outras catástrofes, Cândido retorna à Europa. Passam pela França, Inglaterra e chegam à Veneza. Lá encontram seis reis destronados. Cândido afirma: “eis aí, todavia, seis reis destronados com quem vimos de cear! E ainda entre eles há um a quem dei esmola. É possível existirem muitos outros príncipes ainda mais desventurados”(Voltaire, 1984, p. 124). Isto significa, ao mesmo tempo, a decadência da nobreza provocada pela artificialidade da forma como ela conquista suas riquezas e a mudança na relação entre um nobre e um plebeu, pois, hoje, é o último que dá esmola ao primeiro. Cândido acaba chegando a Constantinopla. Lá estão juntos Cândido, Pangloss, Cunegundes e outros companheiros de aventuras. O reencontro com Cunegundes é surpreendente, pois ela havia perdido sua beleza, mas, mesmo assim, Cândido manteria sua promessa de casamento. Entretanto, ele encontraria a oposição do filho do Barão e irmão de Cunegundes. Apesar de não ter o mínimo desejo de casar, Cândido estava determinado, devido a impertinência do Barão, a concluir sua promessa. Logo se desfizeram do Barão e assim puniram “o orgulho de um Barão alemão”. Aqui, novamente, se vê a oposição entre a nobreza (e o mundo feudal e das trevas que ela representa) e o mundo dos plebeus, do “terceiro estado”, da burguesia nascente.
O final da obra é um elogio a vida burguesa. Depois de se encontrarem com um velho que cultivava o seu jardim e produzia sua própria riqueza através do trabalho, Cândido e seus amigos resolvem fazer o mesmo. Segundo o velho: “o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade” (Voltaire, 1984, p. 136). Cândido diz que o velho conseguiu uma vida preferível à dos seis reis destronados, ou seja, mais uma vez se opõe nobreza e burguesia. Assim, todos se colocam a trabalhar na granja de Cândido e a “fazendola rendeu muito”. O filósofo Pangloss diz: “todos os acontecimentos se encadeiam no melhor dos mundos possíveis; porque, afinal, se não tivésseis sido expulso de um belo castelo a grandes pontapés no traseiro, por amor da senhorinha Cunegundes; se não tivésseis ido parar em mãos da inquisição; se não tivésseis percorrido a América, a pé; se não tivésseis assestado uma boa espadada no Barão; se não tivésseis perdidos vossos carneiros da boa terra de Eldorado; não estaríeis agora comendo confeitos de cidra e pistachas” (Voltaire, 1984, p. 137). Cândido respondia que é preciso trabalhar.
Vê-se, portanto, que a granja e o trabalho representam a propriedade burguesa. O trabalho é que justifica a propriedade. Voltaire, leitor e admirador de Locke, concordava com este na relação que ele via entre propriedade e trabalho. A granja é apenas um símbolo da propriedade burguesa e, portanto, não expressa nenhuma “utopia pequeno-burguesa”[1]. A concepção de Voltaire é parecida com a de Locke (1978): o “estado de natureza” não era tão ruim como Hobbes supunha, pois a instituição do “estado social” e da propriedade burguesa é realizada para vivermos “melhor”[2]. Aliás, no final da narrativa de Cândido ou o Otimismo, vemos uma inversão: é o mundo da granja, o mundo das luzes e da burguesia, que é o “melhor dos mundos possíveis”. Leibniz é o Pangloss do feudalismo e Voltaire é o Pangloss do capitalismo. O primeiro Pangloss é um ideólogo da nobreza e o segundo é o ideólogo da burguesia. A granja não significa retorno à pequena propriedade (pois ela é símbolo da propriedade burguesa) e nem é uma “utopia pequeno-burguesa”, sendo, na verdade, uma ideologia (inversão da realidade) burguesa. O mundo burguês torna-se o “melhor dos mundos possíveis”. No final da narrativa, Voltaire abandona a crítica da nobreza para fazer a apologia da burguesia.
Em síntese, podemos dizer que Cândido ou o Otimismo não é uma crítica ao otimismo, mas uma crítica ao otimismo da nobreza. No seu lugar instaura o otimismo das luzes. O objetivo de Voltaire é contrapor o século das luzes à idade das trevas e demonstrar a superioridade do primeiro. E nós, herdeiros do iluminismo, continuamos otimistas e vivendo no “melhor dos mundos possíveis”.
NOTAS
[1]Esta tese é defendida por Chauí (1983).
[2]Além disso, a burguesia, em seu período de ascensão, tal como demonstrou Max Weber, se fundamentava numa “ética do trabalho”, tal como professa a religião protestante que surge neste período (cf. Weber, 1987).
BIBLIOGRAFIA
Chauí , Marilena. Da Realidade sem Mistérios ao Mistério do Mundo. 3a edição, São Paulo, Brasiliense, 1983.
Della Volpe, Galvano. Rosseau e Marx ¾ A Liberdade Igualitária. Lisboa, Edições 70, 1982.
Falcon, Francisco. O Iluminismo. São Paulo, Ática, 1986.
Fortes, Luiz Roberto Salinas. O Iluminismo e os Reis Filósofos. 2a edição, São Paulo, Brasiliense, 1985.
Foucault, Michel. O Que é o Iluminismo? In: Escobar, Carlos Henrique (Org.). Michel Foucault. Dossier. Rio de Janeiro, Taurus, 1984.
Freud, Sigmund. O Futuro de Uma Ilusão. In: Col. Os Pensadores. 3a edição, São Paulo: Abril Cultural, 1978.
Hobbes, Thomas. Leviatã. In: col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
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Marx, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 3a edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.
Marx, Karl. O Dezoito Brumário e Cartas a Kugelmann. 5a edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
Rousseau, Jean-Jacques. O Contrato Social. In: Col. Os Pensadores, 4a edição, São Paulo: Nova Cultural, 1987.
Soubol, Albert. A Revolução Francesa. 5a edição, São Paulo, Difel, 1985.
Viana, Nildo. Marxismo e Proletariado. Goiânia, UFG, 1995 (Dissertação de Mestrado).
Voltaire, Cândido ou o Otimismo. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1984.
Weber, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 5a edição, São Paulo, Pioneira, 1987.
Abstract:
In order to be comprehended, Voltaire’s work Candide must be analyzed in accordance with the historical and social context in which it emerged. The perception of this context shows that such work reveals the self-image of the enlightenment, which seeks to oppose it self to the feudal world. This explains the opposition between light and darkness as well as the opposition between the ideology of the bourgeoisie and the ideology of the declining seignorial feudal class.
Key-words: enlightenment, self-image, ideology.
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Cândido, de Voltaire: A Auto-Imagem do Iluminismo. Fragmentos de Cultura (Goiânia), Goiânia, v. 9, n. 1, p. 131-139, 1999.
muito obrigada
ResponderExcluirisso me ajudou muito
quanta coisa
ResponderExcluirBelo trabalho, bastante abrangente e objetivo. Muito bem fundamentado e analisado. Parabéns, caro, ajudou bastante a concretizar as minhas opiniões sobre a obra e a incorporar outros focos.
ResponderExcluirExcelente, me ajudou muito no entendimento do livro.
ResponderExcluirMuito bom.. realmente me ajudou nos meus estudos para o pas unb. Obrigada
ResponderExcluirÓtima analise.
ResponderExcluirÓtimo, muito bem elaborado.
ResponderExcluirÓtimas observações, muito bem elaborado e analisado.
ResponderExcluirInteressante essa interpretação, mas eu ainda continuo defendendo a ideia de que Voltaire defende um pouco o seu tempo, mas mesmo assim se demonstra nem otimista e nem pessimista, as simplesmente defendendo um "é" que não é nem bom ou ruim.
ResponderExcluirInteressante essa interpretação mas eu ainda continuo defendendo que Voltaire pretende simplesmente demonstrar um "é" que não é bom nem ruim. (Claro que todo indivíduo possui alguma influência de seu tempo.)
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