CLASSES SOCIAIS, CONDIÇÕES DE VIDA
E PROCESSO SAÚDE-DOENÇA
Resumo:
O presente artigo discute a questão da produção social da doença e a base
teórica e metodológica para se abordar esse problema. Partindo dos conceitos de
classes sociais e condições de vida, numa abordagem dialética, se busca
discutir a forma de processo analítico adequada para compreender as
determinações das doenças socialmente produzidas.
Palavras-Chave:
Classes Sociais, Condições de Vida, Saúde, Doença, Dialética.
Abstract: This
article discusses the social production of disease and
the theoretical and methodological basis for addressing this
problem. Based on the concepts of social classes and living
conditions, a dialectical approach, it discusses how
to understand analytical procedure suitable for the
determination of socially produced diseases.
Keywords: Social
Classes, Living Conditions, Health, Disease, Dialectic.
A análise do processo
saúde-doença aponta para a discussão sobre as determinações da saúde e da
doença. É comum reduzir o problema das doenças a uma questão biológica e
individual. No entanto, existem muitos questionamentos a este procedimento
analítico (Laurell, 1983; Barros, 2002)1,2. A ideia de que as
doenças possuem um caráter social é desenvolvida não apenas por sociólogos e
outros cientistas sociais, mas também por profissionais da medicina (Laurell,
1983)1, setores próximos, profissionais da área de saúde e também da
área das ciências biológicas. Podemos afirmar que a grande maioria das doenças
possui caráter social. O objetivo do presente texto é não apenas fundamentar
essa afirmação, o que já foi feito por vários estudos, mas, principalmente,
mostrar que as divisões sociais, especialmente a de classes sociais, e suas
manifestações concretas, atingem a situação da população e o processo
saúde-doença.
O
Processo Saúde-Doença como Processo Social
O primeiro ponto é
demonstrar, tal como coloca Laurell (1983)1, o caráter social da
doença e da saúde. O primeiro ponto é a definição de doença. Segundo Laurell, a
doença pode ser definida sob duas formas:
Se analisarmos a
literatura epidemiológica, onde se encontram as investigações relevantes para o
nosso tema, observamos que se lida essencialmente com dois conceitos que, no
fundo, não são discrepantes. O primeiro é o conceito médico-clínico, que
entende a doença como um processo biológico do indivíduo; o segundo é o
conceito ecológico, que vê a doença como resultado do desequilíbrio na
interação entre o hóspede e seu ambiente. Este conceito coincide com o
primeiro, já que, uma vez estabelecido o desequilíbrio, a doença se identifica
da mesma forma como no primeiro caso (Laurell, 1983, p. 150)1.
Sem dúvida, a
observação está relativamente correta. E também a sua sugestão de que o
fundamental é analisar as determinações da doença (Laurell, 1983) 1.
Ela destaca que o procedimento analítico não deve se centrar no indivíduo e sim
no grupo: “O primeiro elemento que deveria ser reconhecido é que o caráter
social do processo saúde-doença manifesta-se empiricamente mais claro a nível
da coletividade que do indivíduo, tal como vimos no início deste trabalho”
(Laurell, 1983, p. 150)1. Aqui encontramos um problema metodológico.
Porém, antes de abordar esta questão, vamos dar continuidade ao raciocínio da
autora:
[...] antes de
discutir-se a forma de constituir os grupos a estudar, deveria ser possível
constatar diferenças nos perfis patológicos ao longo dos tempos como resultantes
das transformações da sociedade. Mesmo assim, as sociedades que diferem em seu
grau de desenvolvimento e organização social devem apresentar uma patologia
coletiva diferente. Finalmente, dentro de uma mesma sociedade, as classes que a
compõem mostrarão condições de saúde distintas (Laurell, 1983, p. 137)1.
Os perfis patológicos
remetem, por sua vez, à epidemiologia social. A epidemiologia social tem
diversas tendências no seu interior, mas aqui nos interessa a mais avançada
delas, que se inspira no materialismo histórico, tal como representada pela
própria Asa Laurell e a sua crítica e superação da ideia de monocausalidade e
também de multicausalidade através de sua substituição pela ideia de
determinação:
A determinação
social é o processo pelo qual os determinantes (fatores essenciais) põem
limites ou exercem pressão sobre outras dimensões da realidade, sem serem
necessariamente determinísticos. O processo de produção se completa com a
mediação que os componentes das dimensões subsumidas exercem sobre esses
determinantes, daí resultando a conformação de distintos perfis epidemiológicos
(Barata, 2005, p. 14)3.
O problema metodológico
dessa abordagem pode ser subdividido em duas questões: a) a questão do empírico
e; b) a questão da determinação. A questão do empírico aparece ao aceitar as
duas definições de doença, considerando-as complementar, e a partir disso se
preocupar com um “objeto construído”, que seriam os grupos ou a coletividade,
através da ideia de perfis epidemiológicos. A questão da determinação
aparentemente supera as concepções positivistas da causalidade, mas, no fundo,
acaba pensando e reproduzindo concepções metodológicas de origem positivista
(fatores, elementos determinísticos e não determinísticos, etc.).
Isso, obviamente, não
significa desconhecer a contribuição e os avanços em relação a outras
abordagens realizados por Laurell (1983)1, não só nesse texto como
em diversas outras publicações. Porém, não é possível não destacar que a
compreensão do método dialético por esta (entre outras/os autoras/es) possui
limites evidentes e mostra como que as abordagens marxistas na esfera acadêmica
tendem a se tornar vítimas dos procedimentos e concepções hegemônicas no seu
interior. O método dialético aborda não o “empírico” e sim o concreto. A
diferença entre ambos é que o empírico é algo isolado e sem historicidade. Não
se observa o seu processo de produção e seu envolvimento numa totalidade (e se
é reunido é apenas posteriormente e arbitrariamente pelo pesquisador). O
concreto é algo existente e que tem uma constituição histórica e inserção numa
totalidade, nunca esquecida pelo pesquisador, nem depois e nem antes da
pesquisa. Por isso, não se trata de buscar algo empírico para comprovar o
caráter social da doença e sim analisar este fenômeno como algo concreto. E
isso seria suficiente para não aceitar o construto de doença produzido pela
concepção médico-clínica nem o produzido pela concepção ecológica, pois eles
não fenômenos concretos nessa definição, mas tão-somente coisas empíricas, e,
por isso, são isolados e a-históricos.
Derivado desse
problema, o avanço metodológico que consiste em superar a causalidade e
substituí-la pela determinação acaba assumindo também um caráter não-dialético
e mostra um recuo teórico. O recuo teórico reside na separação entre
determinação e conceito. O conceito de doença não pode ser entendido, numa
concepção dialética, de forma separada de sua determinação fundamental (Viana,
2007)4. A questão da causalidade nas abordagens não-dialética ou
pseudodialéticas (Viana, 2001)5 não dão conta de explicar a gênese
dos fenômenos e a produção positivista de construtos são mais classificações
arbitrárias e coisas empíricas destituídas de realidade que revelam apenas uma
“pseudoconcreticidade” (Kosik, 1986)6.
Assim, uma perspectiva
dialética do processo saúde-doença exige uma nova conceituação de saúde e de
doença que vá além das concepções positivistas, seja médico-clínica, ecológico
ou qualquer outra. A questão é que partindo do empírico não se percebe a
determinação fundamental do fenômeno como sua própria essência e suas
manifestações concretas, ou seja, as múltiplas determinações enquanto realidade
concreta. Por conseguinte, é fundamental ir além dessas concepções de doença
para, em primeiro lugar, constituir um conceito amplo que agrupe formas de
doença e, no interior destas formas, conceber as doenças que são produzidas
socialmente e as que não são produzidas socialmente, possuindo, portanto,
distintas determinações fundamentais. No caso do presente artigo, não
pretendemos realizar tal definição, que está por ser feita, e sim uma obra
posterior. Por enquanto basta colocar que é necessário, numa perspectiva
dialética, constituir um novo conceito de doença e entender que existem
distintas formas de doença.
Por conseguinte, não é
encontrando algo “empírico” que se pode construir uma análise dialética da
doença e sim através do processo analítico dos fenômenos concretos que podemos
reconstituir suas determinações sociais. Esse é o caminho que deve ser seguido
e nosso objetivo agora é discutir as determinações das doenças produzidas
socialmente.
Doenças
Produzidas Socialmente, Classes Sociais e Condições de Vida
Existem doenças que são
produzidas socialmente. A doença é definida sob diversas formas (Barros, 2002)2,
assim como a saúde (Scliar, 2007)7. Não pretendemos apresentar uma
discussão sobre tais conceitos, mas tão-somente, de forma provisória, esclarecer
definições iniciais dos dois termos para que haja uma compreensão do fenômeno
que estamos abordando. Não é possível concordar com as concepções de saúde que
remetem apenas para a consciência do indivíduo ou para aquelas que ignoram tal
consciência. Existem implicações valorativas, políticas, ideológicas em ambas
as abordagens,
bem como consequências sociais e também políticas, no sentido mais estrito do
termo. Essas concepções, que alguns chamariam de “subjetivistas” e
“objetivistas”,
no fundo, são problemáticas. A primeira por se fundamentar na “consciência que
o indivíduo tem de si mesmo” (Segre e Ferraz, 1997; Canguilhem, 1978)8,9,
que entra em flagrante contradição com o principio do método dialético de
considerar a primazia da totalidade e das relações sociais concretas em relação
às formas de consciência (Viana, 2008)10. A outra concepção, por sua
vez, ao desconsiderar o indivíduo, permite a medicalização da saúde e a
arbitrariedade estatal no campo do controle social dos indivíduos.
Por isso é necessário
uma concepção de saúde e doença que supere o solipsismo (que,
entre outros problemas, se esquece que as representações dos indivíduos sobre
si mesmo são produzidas socialmente e influenciadas diretamente pelas relações
sociais, pelos meios de comunicação, pela ação estatal, etc.). É necessário
superar também a concepção de caráter medicalista, que parte de uma definição
de saúde e doença externalista, sem levar em conta o indivíduo. Claro que as
percepções dos indivíduos são mais importantes em alguns casos do que em
outros, mas em grande parte é necessário o reconhecimento dos seus sentimentos,
concepções e sua expressão do que sente em seu organismo. Em síntese, a doença
não pode ser, geralmente, definida apenas pelo indivíduo e nem apenas pelos
especialistas em medicina ou serviços de saúde. Obviamente que estes últimos
são os responsáveis pelo diagnóstico e que os indivíduos possuem autonomia para
procurar outros diagnósticos ou simplesmente desconsiderá-los, bem como
realizar autodiagnóstico (e sua formação pesa nesse caso).
Porém, aqui temos uma
questão que é derivada de outra: para que o indivíduo seja considerado como
estando saudável ou doente, é necessário entender o que é saúde e o que é doença.
Provisoriamente, para continuidade de nossa análise, podemos compreender por
saúde um desenvolvimento orgânico normal do indivíduo. Por desenvolvimento
orgânico normal se entenda o processo de nascimento, desenvolvimento,
envelhecimento e morte (o que significa que envelhecimento não é doença, nem os
processos orgânicos que lhe acompanham) e que os órgãos funcionem
adequadamente, bem como o seu conjunto. Se um órgão ou o conjunto do organismo
não funciona bem nesse contexto de desenvolvimento (ou seja, considerando a
idade e evolução do indivíduo), então temos um sintoma de uma doença (o que não
significa que seja, necessariamente, uma doença). A doença, por sua vez, é
quando há um mau funcionamento de um ou mais órgãos, ou do conjunto do
organismo ou, ainda, que está em descompasso com o processo evolutivo corporal
natural (por exemplo, uma mulher de 26 anos com corpo de 80 anos, tal como
ocorreu no Vietnam, é manifestação de uma doença, cútis laxa).
A grande questão que
nos interessa aqui, no entanto, é que existem distintas formas de doenças e
algumas são produzidas socialmente. A cada forma de doença, correspondem
determinações distintas. Existem doenças que são constituídas a partir de
relações sociais específicas e outras que possuem outras determinações. Nesse
sentido, não existe “doença social”, mas existem doenças geradas socialmente.
Existem várias
determinações sociais para determinadas doenças. Nesse sentido, é preciso
analisar cada caso concreto, pois este é “a síntese de múltiplas determinações”
(Marx, 1983)14. Porém, ao partir de uma concepção de realidade que
remete ao empírico, se perde de vista a determinação fundamental e fica ao
nível da determinação imediata, o que é um equívoco (Viana, 2001)5.
Por conseguinte, é preciso, inicialmente, analisar a determinação fundamental
das doenças produzidas socialmente e, posteriormente, casos concretos nos quais
atuam outras determinações mais específicas. O conceito fundamental para
expressar essa determinação fundamental é o de classes sociais.
Numa perspectiva
dialética, as classes sociais são fenômenos reais, concretos. Logo, a nossa
concepção de classes sociais é radicalmente distinta da ideologia da
estratificação social, de origem norte-americana, que produz um sistema
arbitrário de classificação social (classes a, b, c, d ou alta, média, baixa,
com suas subdivisões), cujo pesquisador define os critérios e as classes
supostamente existentes. Marx entende por classe social um conjunto de
indivíduos que compartilham o mesmo modo de vida, interesses e oposição a
outras classes sociais, aspectos derivados da atividade fixada pela divisão
social do trabalho, que, por sua vez, é determinada pelas relações de produção
dominantes (Marx, 1983; Marx e Engels, 2002; Marx, 1988; Viana, 2011; Viana,
2012)14,15,16,17,18. No caso do capitalismo, as diversas classes
sociais existentes estão intimamente ligadas ao processo de divisão social do
trabalho gerado pelas relações de produção capitalistas. Tais relações de
produção instituem as duas classes sociais fundamentais, a classe capitalista e
a classe proletária, subordina outras relações de produção (camponesas,
artesãs, etc.), criam outros setores na divisão social do trabalho, tal como as
formas de regularização das relações sociais, gerando outras classes sociais (burocracia,
intelectualidade, etc.).
O que nos interessa, no
entanto, é a questão das classes sociais exploradas e suas condições de vida,
pois é aí que podemos entender o principal vínculo entre classes sociais e
doença. Desde Louis Villermé e seus estudos sobre a classe trabalhadora (Silva
e Azevedo, 2002)19, passando por diversos outros autores e
pesquisadores, até chegar aos estudos de epidemiologia social das últimas
décadas, a relação entre desigualdade, classes, grupos de risco, etc., vem
sendo analisada. Contudo, existem alguns obstáculos conceituais, metodológicos
e teóricos. O primeiro problema é a necessidade de comprovação empírica da
relação entre classe social e doença. O segundo problema, derivado do primeiro,
é a conceituação de classe social e a ideia de operacionalização do conceito de
classes.
Ao se superar a
problemática do empírico e passar para o concreto, então a questão muda de
foco. A necessidade deixa de ser a prova empírica e passa a ser a
fundamentação, que pode ou não usar informações densas sobre a realidade
concreta.
Nos casos de pesquisa social, sem dúvida, essa fundamentação embasada em
informações densas sobre a realidade concreta se torna necessária. Acontece que
os chamados “dados estatísticos” produzidos por diversas instituições e mesmo
pesquisas acadêmicas, não usam o conceito adequado ao método dialético de
classes sociais, e nem uma teoria da sociedade que lhe é complemento
necessário, tendo embasamento positivista/empiricista (em suas várias formas),
com raríssimas exceções (e algumas mesclam as duas concepções). A solução que
muitos encontram para superar essa questão no âmbito do método dialético,
contudo, ainda se dá a partir de uma concepção empiricista da realidade, ou
seja, se busca “operacionalizar” o conceito de classes sociais
(Solla, 1996)20. No entanto, o procedimento da operacionalização dos
“conceitos” é empiricista e
o que se deve fazer é analisar a realidade social e constituir diversos
procedimentos para extrair informações densas da realidade concreta. Os
procedimentos quantitativos servem como elementos auxiliares na pesquisa, mas
nunca como elemento fundamental e quando se utilizam como fonte de informações
estatísticas oficiais ou qualquer outra sem fundamentação dialética, deve ser
analisada criticamente. As entrevistas, observações, questionários de maior
profundidade, são algumas outras possibilidades.
Contudo, não se trata
de quantidade e por isso estudos sobre classes sociais, grupos específicos,
determinados lugares ou regiões, até mesmo indivíduos, entre outras
possibilidades, podem substituir as grandes quantidades estatísticas. Nesse
sentido, não há necessidade de “operacionalizar” o conceito de classes sociais
e sim partir de aspectos mais concretos da vida das classes sociais exploradas
para relacionar com o processo saúde-doença. Se os estudos mostram
suficientemente o vínculo entre determinadas formas de doenças socialmente
produzidas e classes sociais, então o necessário é uma análise que dê conta de
explicar por qual motivo nem todos os indivíduos de uma classe social
específica contrai a mesma doença.
Assim, é preciso
perceber a classe social como determinação fundamental da maioria das doenças
socialmente produzidas, mas é preciso ir além e entender que não existe
homogeneidade nas classes sociais. O que existe de comum nos indivíduos que
compõem uma classe social é o que foi delimitado anteriormente no conceito de
classes sociais, mas no interior dessa semelhança básica e fundamental existem
inúmeras diferenças. E as doenças socialmente produzidas tendem a se manifestar
com mais frequência em algumas classes ou frações de classes, mas não na
totalidade dos indivíduos que compõem a classe, o que remete para analisar as
divisões no interior das classes (desde a grande subdivisão que são as frações
de classes até as diferenças culturais, ambientais, de origem histórica, moradia,
etc.). Nesse sentido, é necessário um conceito complementar
que dê conta de mostrar a relação entre as doenças socialmente produzidas e as
classes sociais exploradas e as diferenças no interior destas e, por
conseguinte, a mais intensa incidência de doenças em grupos no seu interior.
As classes sociais
desprivilegiadas (proletariado, campesinato, lumpemproletariado, etc.) possuem
condições de vida desfavoráveis e por isso a incidência de doenças socialmente
produzidas tende a ser maior. Isso ocorre graças a uma diversidade de questões,
desde as condições de trabalho (Berlinguer, 1983; Possas, 1981)22,23,
condições de moradia, condições ambientais, entre outras. Assim, é preciso
perceber que os indivíduos que compõem uma classe social possuem o mesmo modo
de vida, mas este se manifesta sob formas diferentes em épocas e lugares
diferentes. Essa diferenciação pode ser percebida como manifestando distintas
condições de vida no interior de um mesmo modo de vida. As condições de vida
dos indivíduos são as formas específicas nas quais elas reproduzem o mesmo modo
de vida de outros setores da classe. O modo de vida é o mesmo, mas as condições
nas quais ele se manifesta são distintas e isso explica como que uma doença não
atinge a todos os indivíduos de uma classe social. Sem dúvida, algumas dessas
doenças tendem a ter uma incidência muito maior do que outras, devido suas
especificidades. As condições de vida da classe proletária da Vila X são bem diferentes
daquelas existentes na Vila Y, pois na primeira há saneamento, posto de saúde,
etc., e na segunda há condições ambientais desfavoráveis, na beira do rio e
mata, sem saneamento, etc. As condições de trabalho, que faz parte das
condições de vida, de trabalhadores numa fábrica de papel higiênico são
distintas da existente numa gráfica. Obviamente que isso é uma questão de
classe social, pois essas condições de vida não existem nas classes
privilegiadas. Essas condições de vida são distintas por existir diversas
subdivisões existentes no interior de uma classe social (sexo, idade, categoria
profissional, raça, etc.) e distintas condições de trabalho, moradia, etc. Isto
não quer dizer que as classes privilegiadas não sejam atingidas por doenças
socialmente produzidas, mas sim que elas são em quantidade menor e por outro
tipo de doenças.
O conceito de condições
de vida expressa as condições gerais (sociais e ambientais) na qual se
desenvolve o conjunto de atividades cotidianas no processo de produção e
reprodução da vida, desde a produção (ou aquisição) dos meios de sobrevivência
até o lazer ou descanso. Essas condições, por conseguinte, são as mais variadas
e apenas através da pesquisa e informações densas se pode ter um quadro geral
de cada caso específico. O acesso a essas informações densas podem ser
conseguido através de entrevistas, observação, dados estatísticos (vistos criticamente),
etc. Um indivíduo adoecido ao realizar uma consulta médica pode descobrir qual
doença possui, depois de muitos exames e atendimento médico. Mas descobrir o
motivo de ter contraído tal doença dificilmente é descoberto dessa forma. O que
geralmente se descobre é a determinação imediata da doença. Por exemplo, as
doenças respiratórias possuem diversas determinações (infecções virais,
alérgenos, comidas, medicamentos, cosméticos, picadas de insetos, etc.). Um
indivíduo concreto ao realizar sua consulta poderá saber disso (ou não,
dependendo do médico), mas o médico não saberá de suas condições de vida, que
picada de insetos é normal e praticamente inevitável para quem mora em certos
lugares e com certas condições financeiras (mudar de bairro ou até de cidade é
privilégio de poucos, pertencentes às classes privilegiadas), ou a convivência
com alérgenos está ligado às condições ambientais ou tradição cultural (relação
com higiene) das pessoas e que são produtos sociais. Por isso, saber das
condições de vida (e no caso individual, seu processo histórico de vida, que
pode ser em certos casos compartilhado por diversos outros indivíduos) é
fundamental para saber das determinações sociais das doenças.
Também é necessário
entender que existem determinadas condições de vida que tendem a intensificar a
produção de doenças e que elas não são problemas apenas de determinados setores
de uma classe social, pois estes setores que são os mais atingidos (os setores
mais empobrecidos do proletariado e do campesinato, o lumpemproletariado, etc.)
podem aumentar ou diminuir, dependendo do processo de acumulação capitalista,
bem como podem ter condições piores ou melhores, dependendo das políticas
estatais de assistência social, entre outras determinações. Assim, é possível
pensar não apenas em termos de casos concretos, mas também de processos sociais
mais amplos, inclusive relacionando deterioração das condições de vida e
regimes de acumulação,
por exemplo. O regime de acumulação integral (Viana, 2009; Viana, 2003)25,26,
que é o atual regime de acumulação, fundado no neoliberalismo, toyotismo e
neoimperialismo, produz uma precarização crescente das condições de vida de
grande parte da população e isto aumenta os índices de doenças socialmente
produzidas, inclusive as chamadas “doenças emergentes”.
Em síntese, os
conceitos de classes sociais e condições de vida são fundamentais para
compreender as doenças socialmente produzidas (e não só estas) e, ao lado de
outros conceitos complementares, tanto os mais quanto os menos amplos, podem
fornecer um quadro geral analítico do processo de produção social da doença. A
partir desse processo de ampliação teórico-conceitual, novas estratégias
analíticas e de pesquisa devem emergir, tal como o uso de técnicas de pesquisa
mais adequadas o método dialético ou então o uso crítico das técnicas
convencionais. A formação de perfis epidemiológicos, por exemplo, é uma
possibilidade, tanto na relação com as classes sociais, no sentido mais amplo,
quanto em relações com determinadas condições de vida, em sentido mais
restrito. Esse é um processo em construção, tanto conceitual quanto técnico,
que, no entanto, já recebeu diversas contribuições e que vem avançado e, ao
fazê-lo, abre novas perspectivas para compreender o processo de produção social
da doença.
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