Edmilson Marques*
VIANA, Nildo. As Esferas Sociais: a constituição
capitalista da divisão do trabalho intelectual. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.
Em
nenhuma sociedade da história humana a divisão social do trabalho atingiu a
amplitude e intensidade como veio atingir na sociedade capitalista. Com o
desenvolvimento do capitalismo ampliou-se ao mesmo tempo a especialização do
trabalho e em seu interior foram sendo criadas subdivisões. Entre as várias
formas assumidas pelo trabalho especializado está o trabalho intelectual, que
por sua vez, foi perpassado por um processo de complexificação, fruto da
ampliação e aprofundamento da divisão social do trabalho intelectual.
Esse processo mostra a necessidade
de compreender o trabalho intelectual e sua dinâmica interna, suas
especificidades, seu papel na sociedade moderna e a determinação fundamental
que explica as características assumidas por ele no capitalismo. Uma análise desse
fenômeno foi publicada recentemente no Brasil, com o título As Esferas Sociais: a constituição
capitalista da divisão do trabalho intelectual, produto de uma pesquisa
realizada pelo sociólogo e filósofo brasileiro Nildo Viana. Trata-se de um
livro de 152 páginas dividido em oito partes. É esta obra que julgaremos no
presente texto.
Como está expresso em seu título, a obra aborda as esferas sociais,
concebidas pelo autor como um fenômeno derivado da constituição capitalista da
divisão do trabalho intelectual. Em estudos anteriores, Nildo Viana já havia
refletido sobre o processo de divisão social que gerou as esferas sociais. Os
estudos mais aprofundados sobre este processo foram realizados por Karl Marx,
Max Weber e Pierre Bourdieu. Eles são, inclusive, como aponta Nildo Viana, “as
fontes inspiradoras” de sua concepção sobre as esferas sociais. A inspiração
aqui aludida não quer dizer que os três autores foram tomados indistintamente como
pressupostos teórico-metodológicos de sua análise, o que seria uma contradição,
tendo em vista a diferença radical de perspectivas entre os três autores. Na
verdade, Nildo Viana utiliza alguns elementos das reflexões desses autores para
demonstrar o significado das esferas sociais e sua relação com a totalidade da
sociedade capitalista. É sobre esta questão que ele debruça-se no primeiro
capítulo da obra.
O autor ressalta que Marx não
desenvolveu uma teoria das esferas sociais e nem utilizou este nome ou outro
semelhante. Contudo, ao apresentar a teoria da historicidade das sociedades
humanas e sua evolução histórica assim como a teoria do capitalismo, Marx
tratou de forma rigorosa a questão da complexificação da divisão social do
trabalho. Esta sua análise é o ponto fundamental na qual se baseia Nildo Viana
para entender as esferas sociais. Para tanto, as contribuições de Marx para a
articulação da teoria das esferas sociais e pressupostos fundamentais para a discussão
de Nildo Viana são: 1) Seus pressupostos teórico-metodológicos, aqui se refere
ao método dialético e ao materialismo histórico; 2) Sua teoria do modo de
produção capitalista e 3) Suas análises diversas “sobre os agentes ou produtos
de uma ou outra esfera social” (p. 10).
Já Max Weber buscou sistematizar
suas observações sobre questões específicas das esferas sociais, utilizando
inclusive o termo “esferas”, embora também não tenha criado uma teoria das
esferas sociais. Nildo Viana retoma os estudos de Weber que tratam da formação
das esferas e sua análise sobre estas no contexto desenvolvimento do processo
de racionalização da sociedade moderna, gerando, concomitantemente, o processo
de especialização. Weber fez estudos gerais sobre as esferas e abordou algumas
esferas específicas. São estes estudos que fornecem alguns dos elementos que
são utilizados por Nildo Viana para elaborar a teoria das esferas sociais.
Já a principal contribuição de
Bourdieu está em seu estudo sobre o que denominou de “campo”. Para Viana,
Bourdieu oferece duas contribuições fundamentais: 1) “A tentativa de delimitar o
processo de funcionamento e dinâmica interna dos campos” e 2) “Um material
informativo que traz e amplia as possibilidades analíticas” (p. 11). Dos três
autores citados anteriormente, Viana considera haver limites e problemas nas concepções
de Weber e Bourdieu, apesar de não desconsiderar suas contribuições para a
explicação que fornece das esferas sociais. É a partir destas considerações
iniciais que Nildo Viana vai posteriormente construir a teoria das esferas
sociais, iniciando com uma breve introdução onde aborda a inserção das esferas
sociais na sociedade capitalista.
Mas, o que são “esferas sociais”?
A concepção de esferas sociais desenvolvida por Nildo Viana não pode ser
confundida com as “esferas”, segundo a concepção de Weber, e nem com a
concepção de “campo”, de Bourdieu. Partindo desta crítica é que Viana observa
que as esferas sociais são um fenômeno típico da sociedade capitalista e só
existem nesta, sendo expressão da complexificação da divisão social do trabalho
e sendo explicadas pelo modo de produção capitalista e seu desenvolvimento.
É sobre esta tese que o autor vai
se debruçar na primeira parte de sua obra, apontando a dinâmica do modo de
produção capitalista e sua relação com as esferas sociais, sua compreensão sobre
o que são as esferas sociais e suas características, a relação das esferas
sociais com a intelectualidade, o processo de especialização da ciência e a
ampliação da divisão social do trabalho intelectual etc. O papel fundamental
das esferas sociais para Nildo Viana é “a reprodução das relações de produção
capitalistas” (p. 23). Isso quer dizer que não são autônomas e nem estão livres
da dinâmica do modo de produção capitalista, pelo contrário, as esferas sociais
atuam sobre sua dinâmica, assim como são determinadas pelo mesmo. A conclusão à
qual o autor chega é que as esferas sociais são partes das formas sociais (“superestrutura”)
que integram a sociedade capitalista, mas que possuem especificidades.
É sobre estas especificidades que
será dedicada a segunda parte do livro. As especificidades de cada esfera
social, segundo ele, “manifestam-se através do produto de suas atividades, do
seu modus operandi, do seu ethos, seu corpus mentalis (mentalidade), da sua função na sociedade e dos
seus espólios[1]”
(p. 26). Apesar de distintas e no seu interior haver contradições (incluindo
concepções distintas que buscam superar elas próprias), as esferas sociais
possuem em comum o objetivo de produção e reprodução cultural voltada para a
manutenção do modo de produção capitalista. O papel de produção cultural no
interior das esferas sociais deve-se especificamente à classe social que está
em suas bases, tratando-se da intelectualidade.
Como colocamos anteriormente, as
esferas sociais não são autônomas. Elas integram as relações sociais, o que
quer dizer que em sua dinâmica interna reproduz a dinâmica do modo de produção
capitalista, manifestando características básicas como a mercantilização, a
burocratização e a competição social. A luta de classes também se manifesta em
seu interior. Isso coloca a necessidade de compreender o processo que faz emergir
a competição em suas relações internas, é o que o autor busca fazer na terceira
parte do livro, focando as relações sociais que se estabelece nas esferas
sociais.
A competição existente nas
esferas sociais é fruto da forma como se organizam, ou seja, internamente se
estabelece uma hierarquia entre seus agentes. Esta forma de organização leva alguns
indivíduos a possuírem mais privilégios, recursos, espaços institucionais, reconhecimento
do que outros. Viana ressalta que essa hierarquia é dos seus segmentos, uma vez
que em casos individuais pode ser diferente. É a partir desta discussão que
Nildo Viana apresenta uma representação piramidal dos segmentos que compõem as
esferas sociais, com intuito de esclarecer os aspectos das relações
hierárquicas em seu interior, que tem no topo os hegemônicos e logo abaixo
deles os dissidentes. Em seguida há os venais seguidos pelos ambíguos. E em sua
base estão os engajados e os amadores.
Os hegemônicos são aqueles que
dominam determinada esfera social. Os dissidentes, que estão logo abaixo dos
hegemônicos, defendem os mesmos interesses que aqueles. A diferença entre ambos
é que estes últimos manifestam uma posição mais crítica à hegemonia estabelecida.
Já os venais, que estão logo abaixo destes dois anteriores, têm como principal
objetivo buscar dinheiro e poder, o que é feito a partir de sua busca
extraesférica, o que quer dizer que seu foco é o círculo externo à esfera
social que integra, tal como empresas e meios de comunicação. Outro segmento
das esferas sociais é o composto pelos ambíguos, que se caracterizam por ficar
entre a esfera que integra profissionalmente e outros espaços (um cientista,
por exemplo, que se relaciona com um determinado partido político). E na base
da hierarquia piramidal das esferas sociais estão os amadores e os engajados.
Estes dois também estão mais distantes da competição interna de uma determinada
esfera social. Os amadores, por exemplo, “estão ligados a outras atividades no
nível da sobrevivência ou então vivem sob formas precárias como amador, mas seu
público é mais restrito” (p. 51). Já os engajados podem ou não ser integrantes
das esferas sociais. Na verdade, eles são antiesféricos em sua posição diante
da esfera. A questão é que, apesar de participarem de uma determinada esfera
social, estão na base da hierarquia, estando marginalizados. Eles não
compartilham dos interesses esféricos e assumem uma postura crítica de negação
da própria esfera social. Isso ocorre por partirem da perspectiva do
proletariado enquanto que os outros partem de uma posição de defesa e
reprodução das esferas sociais.
Observa-se, no entanto, que as
esferas sociais reproduzem a sociabilidade capitalista e nesse sentido
constituem uma hierarquia, uma divisão interna entre seus agentes e uma
competição social intensiva. O último aspecto analisado por Viana para
compreender a dinâmica das esferas sociais são os mecanismos de competição. O
autor ressalta que os “mecanismos de competição” não podem ser confundidos com “estratégias
de luta”. O primeiro se refere às “formas de encaminhar a competição social”,
já o segundo às “formas de garantir a perspectiva do proletariado no interior
das esferas sociais e no conjunto da sociedade” (p. 63). Essa é a questão
abordada por Nildo Viana na quarta parte do livro, onde analisa os mecanismos
gerais de competição das esferas sociais (competência real, competência formal,
competência aparente, reprodução da hegemonia, popularidade, procedimentos
institucionais, processo de ataque, originalidade, pseudo-originalidade, o
esquecimento das fontes, complementado com as táticas de defesa).
Na parte seguinte, o autor propõe
apresentar em linhas gerais “alguns dos aspectos mais determinantes para o
processo de emergência das esferas sociais” (p. 81). Sua análise recai aqui
mais especificamente sobre o processo inicial de formação das primeiras esferas
sociais, buscando apresentar suas determinações e focando a primeira das
esferas sociais, a religiosa. O autor faz uma minuciosa análise a respeito de
movimentos que ocorreram desde o século XII, que são considerados por ele como
os embriões desta esfera social, até chegar ao século XVI quando é dado o passo
seguinte na formação da esfera religiosa através da reforma protestante e do
anabatismo. É nesse período também que vão se formando outras esferas sociais,
a exemplo da esfera artística, científica, técnica e também o que ele considera
como semiesfera filosófica.
É a partir deste estudo que Nildo
Viana conclui que as esferas sociais são produtos do desenvolvimento do
capitalismo, ou seja, elas não surgem de imediato com a emergência do
capitalismo. Os elementos que são fundamentais nesse processo se referem à
expansão comercial, ao sistema colonial e ao Estado absolutista. A emergência e
formação das esferas sociais foi um processo longo, que o autor observa ser
caracterizado pela mercantilização, racionalização e burocratização, por
conseguinte pela especialização e competição. Esse processo demarca uma
sociedade distinta que tem como marco a produção capitalista de mercadorias e
como “condição de possibilidade a divisão social do trabalho” (p. 89).
Uma vez que as esferas sociais
surgem e vão se ampliando concomitantemente com o desenvolvimento do modo de
produção capitalista, torna-se fundamental abordar a relação entre capital e
esferas sociais, como coloca o autor “é com o desenvolvimento do capitalismo
que se amplia a divisão social do trabalho e emergem as esferas sociais”. Esta
discussão é realizada por Viana na sexta parte do livro que tem como título Capital e Esferas Sociais. Há aí uma
análise rigorosa das características da sociedade capitalista, a exemplo da
mercantilização e burocratização das relações sociais, do aprofundamento da
divisão social do trabalho intelectual que resulta na emergência e ampliação da
especialização.
O estado também é essencial na explicação das
esferas sociais. Segundo o próprio autor “o aparato estatal é uma das
principais determinações das esferas sociais e em alguns casos assume uma
importância primordial” (p. 107). A discussão sobre esta questão é apresentada na
sétima parte de sua obra, onde ressalta que outros autores não deram muita
importância à atuação do estado sobre as esferas sociais, a exemplo de Weber e
Bourdieu. O autor discute as várias formas de atuação do estado sobre as
esferas sociais, como as formas de controle direto e indireto, que promove um
amplo processo de burocratização. A questão é que a atuação do estado
influencia a própria dinâmica interna das esferas sociais, inclusive
fortalecendo e ampliando a competição através do controle de algumas instâncias
de formação e reprodução, financiamento, etc., processo esse pautado por
investimentos em políticas culturais.
Nildo Viana finaliza a obra com
uma última parte onde aborda as esferas sociais e sua relação com a luta de
classes. Aqui o leitor poderá finalmente perceber de forma explícita, embora em
todo o livro isso já tenha ficado claro, a diferença radical entre sua análise
das esferas sociais com a perspectiva e concepção de Bourdieu e Weber, autores
que, apesar de evidenciarem vários elementos das esferas sociais que podem ser
interpretados como integrantes da luta de classes, não concebem a luta de
classes como questão fundamental em suas análises, o que promove o seu
ocultamento, abolindo-a de suas interpretações.
O autor demonstra que a luta de
classes é inerente à história das esferas sociais. Perpassa por seu processo de
formação e desenvolvimento, se reproduz nas relações internas das esferas
sociais e se manifesta em suas produções culturais. Se há luta, há resistência
interna e momentos de desestabilização das próprias esfera sociais. A questão é
que “as esferas sociais são constituídas por frações da classe intelectual,
relacionadas com a burguesia, burocracia, etc.” (p. 120). A intelectualidade,
por sua vez, é uma classe que auxilia a burguesia no processo de manutenção e reprodução
do modo de produção capitalista e faz isso através da produção cultural.
No interior da intelectualidade,
no entanto, há indivíduos que integram o segmento que está nas bases da
hierarquia piramidal, a exemplo dos engajados. Estes, por partirem da
perspectiva do proletariado, assumem uma posição distinta do que as esferas
sociais exigem de seus integrantes. Criam estratégias de luta que são distintas
dos mecanismos de competição sendo responsáveis pela manifestação da luta de
classes no interior das esferas sociais. Sua referência é a classe operária
revolucionária e seu objetivo contribuir para a emancipação humana, que só pode
ser efetivada com a abolição do capitalismo, e concomitantemente das próprias
esferas sociais, e efetivação da autogestão social.
Bom, apresentamos algumas das
principais teses que estão presente em As
Esferas Sociais. Agora podemos apresentar um veredicto a respeito do
objetivo que o próprio autor esperava de sua obra, qual seja, “uma compreensão
mais profunda das esferas sociais e sua relação com a sociedade capitalista”.
Antes, porém, é preciso apresentar uma observação geral sobre a obra. A
primeira questão que emerge desta leitura é o rigor do autor em sua análise, na
precisão conceitual e metodológica; sua abordagem apresenta as esferas sociais
como resultado de múltiplas determinações. Além disso, há uma originalidade em
sua análise, pois ultrapassa os limites que Weber e Bourdieu apresentaram na
abordagem que realizaram das “esferas” e do “campo”, respectivamente, e inova
apresentando uma teoria das esferas sociais que se fundamenta na perspectiva do
método dialético.
Não resta dúvida de que temos, a
partir desta obra, um marco essencial para a análise e compreensão das esferas
sociais. Como o objetivo do autor não era analisar uma determinada esfera
social[2],
mas reconstituir o significado e dinâmica das esferas sociais na sociedade
capitalista, isso nos desperta para a necessidade de se ampliar a aprofundar
este estudo com a abordagem de esferas sociais específicas, a exemplo da esfera
jurídica. Os novos estudos que surgirem, no entanto, poderão encontrar aqui um
referencial necessário e indispensável para aprofundar sua análise.
Ao leitor deste breve texto,
ressaltamos que não objetivamos apresentar todos os detalhes e riqueza que a
obra oferece sobre as esferas sociais. A proposta era destacar algumas das questões
apontadas pelo autor e oferecer uma ideia geral sobre a mesma. Portanto, a
leitura que fizemos nos possibilita utilizar do malhete e considerar: a obra oferece
uma explicação das esferas sociais e sua especificidade e sobre a relação que
estabelece com o conjunto das relações sociais que constituem a sociedade capitalista.
Cabe a outros leitores percorrer suas páginas e apresentar o seu julgamento.
*
Doutor em História e pós-doutor em Sociologia. Professor da universidade
Estadual de Goiás/Câmpus Uruaçu.
[1] O modus operandi “está ligado à atividade
e bem (produto) que resulta de sua produção, bem como dos espólios almejados”
(p. 27). O ethos é o modo de ser que
os agentes da esfera manifestam e está intimamente ligado ao bem cultural
produzido e modus operandi da mesma e
seus espólios, bem como à sua função específica e ao seu conjunto de valores,
representações e interesses (p. 29). O corpus
mentalis se refere ao conjunto de valores, representações e interesses, ou
seja, a uma determinada mentalidade que compartilha elementos básicos da
mentalidade burguesa. E os espólios são aquilo que é oferecido por ela para
seus agentes e que é o objetivo da maioria (p. 29).
[2] Em
outras obras o autor analisa esferas e subesferas específicas, a exemplo de A Esfera Artística e seus estudos sobre
cinema, quadrinhos, música etc.
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Publicado originalmente em:
Revista Ciências Sociais - Unisinos, vol. 52, n. 2, 2016.