A PEC 241/55 E AS POLÍTICAS DE AUSTERIDADE
Nildo Viana
Vivemos numa época obscura e curiosa. A proliferação de
discursos e discussões, em parte devido a conjuntura da sociedade brasileira,
em parte devido às redes sociais e novos meios de comunicação, convive com o
reino da superficialidade. Muitas informações e muitas opiniões convivendo com
poucas reflexões e pouca criticidade. A sociedade brasileira está vivendo um
caos que teve seu início com dois processos simultâneos: crise
político-institucional e crise pecuniária (“econômica”). A origem desses
processos remonta ao primeiro Governo Dilma, que é quando ocorreram os
primeiros sinais de desestabilização do regime de acumulação integral no Brasil
e se iniciou a crise político-institucional (esta a partir das manifestações de
2013) e ambas foram se intensificando nos anos posteriores. Hoje, estamos
diante de um Governo que veio com a promessa de resolver essas duas crises, mas
ainda não conseguiu resolver a crise principal e não superou totalmente a crise
política-institucional, tanto pela crise de legitimidade da democracia
representativa, quanto pela crise de governabilidade que ainda não se resolveu
e ainda ameaça agravar-se pela lentidão, incompetência e propostas impopulares
do atual governo.
O DISCURSO TÉCNICO DO BLOCO DOMINANTE
A proposta da PEC
241/55, realizada pelo Governo Temer, visa estabelecer um teto para os gastos
públicos durante 20 anos (com possibilidade de revisão em 10 anos). Durante
esse período, os gastos públicos não poderiam ser maiores do que a inflação.
Isso incluiria a educação e a saúde, que só poderiam ter mais gastos se os
recursos fossem oriundos de outras áreas. Ao contrário do que alguns dizem, não
se trata de “congelamento” e sim de um “teto” (máximo) para gastos, que seriam
os atuais e com acréscimos calculados com base na inflação. A justificativa
para tal proposta é realizada a partir de um discurso técnico. Existe a
necessidade de equilíbrio orçamentário por parte do Estado, e nos últimos anos
ocorreu um aumento dos gastos estatais acima da receita. Se o Estado gasta mais
do que arrecada, então promove a dívida pública. O quadro abaixo explicita esse
processo (clique na imagem para ver em tamanho maior):
A partir dessas informações, fica claro a necessidade de
resolução do problema, pois o aumento da dívida pública (interna e/ou externa)
traz um acréscimo nas despesas estatais (juros, etc.) e tende a piorar ainda
mais a situação. Nesse sentido, o discurso técnico apela para o cálculo
mercantil e assim se justifica: o Estado não pode gastar mais do que arrecada.
A solução encontrada pelo governo Temer é a PEC 241/55 (aliadas a outras
políticas de austeridade, como a reforma da previdência). Se não fizer isso, o
país, que já passa por dificuldade, tende a entrar numa crise grave, pois a
dívida pública aumentaria, os recursos se tornariam ainda mais escassos e o
desequilíbrio afetaria as despesas futuras. Nesse sentido, segundo o discurso
técnico, não existe outra solução e por isso as políticas de austeridade, a
começar pela PEC 241/55, é uma necessidade.
A PEC 241/55 seria, pois, um remédio amargo que durante 20
anos seria usado para recuperar o país e possibilitar o retorno do crescimento
econômico e ajuste entre receita e despesas estatais. Uma vez havendo a
recuperação, os gastos poderiam novamente subir. Em dez anos isso poderia ser
revisto, caso a recuperação ocorresse num ritmo e grau que o possibilitasse.
Esse discurso é verdadeiro? A situação é realmente essa? Tais
políticas resolvem o problema? Essas são questões fundamentais e que pretendemos
responder nos próximos artigos. No entanto, é necessário entender que existe
uma forte oposição à aprovação da PEC 241/55. Um outro discurso existe. Esse é
o discurso demagógico do bloco progressista e a sua análise é necessária antes
da crítica do discurso técnico do bloco dominante.
O DISCURSO DEMAGÓGICO DO BLOCO PROGRESSISTA
A PEC 241/55 vem sendo questionada por vários setores da
sociedade. No entanto, grande parte daqueles que questionam possuem pouca
informação a respeito e muitos apenas seguem uma corrente de opinião
oposicionista sem maiores reflexões e análises. A origem dessa corrente de
opinião é o discurso demagógico do bloco progressista, que rivaliza com o
discurso técnico do bloco dominante. O discurso demagógico do bloco
progressista, por sua vez, tem como origem e matriz principal o neopopulismo
petista e seus resquícios e viúvas após o impeachment
de Dilma Roussef.
O discurso demagógico é aquele que está atrelado ao populismo,
considerado uma “política de massas” (WEFFORT, Francisco. O Populismo na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1978). O populismo visa ganhar o apoio das “massas” e para isso realiza
promessas (incluindo as irrealizáveis e as que não serão cumpridas), políticas
assistencialistas, discursos com tal objetivo. No fundo, o que ocorre hoje não
é o populismo que vigorou, por exemplo, com Getúlio Vargas e sim um “neopopulismo”.
O neopopulismo atua em relação às classes desprivilegiadas (“massas”), mas
atinge outros setores (especialmente a intelectualidade) com sua demagogia. A
característica central do neopopulismo atual é realizar um discurso
social-democrata desligado de qualquer pretensão e possibilidade de sua
concretização. O neopopulismo, assim como o populismo, gera um discurso
demagógico. Esse discurso é caracterizado por querer agradar o seu
público-alvo, e, para tanto, lança mão de promessas diversas (algumas que serão
efetivadas e muitas que não serão, algumas irrealizáveis, etc.) com o objetivo
de conquistar o apoio (e o voto, dependendo do caso). Diversos recursos são
utilizados, entre os quais a manipulação de informações e sentimentos dos que
pretende conquistar o apoio.
No caso da PEC 241/55 o discurso demagógico atua
principalmente através da sua negação. Segundo o discurso demagógico contrário
às políticas de austeridade, embora possua diversas versões e variações, afirma
que a PEC 241/55 provocará cortes em educação e saúde, precarizando ainda mais
essas áreas, além de atingir o salário mínimo, o Plano Nacional da Educação,
etc. Algumas das versões sobre a PEC apelam para um certo terrorismo
intelectual, ao afirmar que haveria “congelamento de gastos”, “implosão do país”,
“desmonte do Estado”, “destruição da educação pública”, etc. O discurso
demagógico geralmente não realiza uma análise mais profunda da PEC 241/55 e das
políticas de austeridade. Mesmo quando se trata de economistas ou outros
especialistas, a superficialidade na análise está presente. O foco do discurso
demagógico do bloco progressista é nas consequências da PEC 241/55 para a
educação e saúde.
O elemento fundamental desse discurso é mostrar que a PEC
trará prejuízos para as políticas públicas, gerar mobilização contra o governo
Temer e suas políticas de austeridade. Não há nenhuma discussão aprofundada
sobre a situação do país. O máximo que fazem é apontar que a “crise” é uma
invenção do Governo e dos meios oligopolistas de comunicação. Alguns acusam o
capital financeiro de ser o principal beneficiário e razão das políticas de
austeridade. Nesse contexto, a única alternativa apresentada é a negação, ou
seja, a luta para evitar a PEC 241/55, reforma da previdência, etc. A
alternativa para resolver os problemas postos pelo discurso técnico (defasagem
entre arrecadação e gastos, crise, etc.) inexiste, pois a suposição de
inexistência de problema anula a necessidade de alternativa. Deixemos tudo como
está, ou melhor, como estava durante o governo Dilma.
Aqui é possível um conjunto de questionamentos: esse
discurso é verdadeiro? A situação é realmente essa? Basta evitar tais
políticas? Essas questões serão respondidas nos próximos artigos e são, tal
como as anteriores sobre o discurso técnico, de fundamental importância. A
crítica desse discurso é tão necessária quanto a crítica do discurso técnico.
Os dois próximos artigos serão dedicados a realizar tal crítica.
CRÍTICA AO DISCURSO DEMAGÓGICO DO BLOCO PROGRESSISTA
O discurso demagógico do bloco progressista é produzido por
um conjunto de intelectuais, reproduzido por determinados meios de comunicação
e acabam gerando uma corrente de opinião que atinge os crédulos e consegue
assim um certo apoio de setores da população. Mas, assim como o discurso
técnico do bloco dominante, que analisaremos adiante, ele é falho.
O discurso demagógico do bloco progressista é condenável
pelo simples fato de ser demagógico. Além disso, ele é assim por dois motivos:
por ser oposicionista (ao governo) e por precisar de apoio popular. Assim, ele
precisa manter uma oposição e apoio popular. Desta forma, ele concentra o mal
no Governo Temer. Obviamente que o Governo Temer merece ser criticado, mas isso
não anula o problema real e nem retira a necessidade de uma solução (que não
pode ser simplesmente não fazer nada, evitando aprovar as políticas de
austeridade). Isso também não anula o fato de que o problema se iniciou no
governo defendido pela maioria esmagadora do bloco progressista. Em 2014, se
alguns ajustes tivessem sido realizados, bem como no ano seguinte, a situação
seria um pouco melhor. Da mesma forma, se os governos petistas não tivessem
elevados os gastos estatais – principalmente de forma “irracional” de acordo
com os interesses de cooptar movimentos sociais, base eleitoral, etc. – a
situação seria menos grave e o remédio menos amargo. A razão disso se encontra
na dinâmica dos governos petistas e nos seus interesses (isso já foi bastante
abordado nesse blog e por isso basta ver esse texto:
Ascensão
e Queda do PT).
Os governos anteriores, devido ao neoliberalismo
neopopulista, conseguiram relativo sucesso no período de estabilização da
acumulação capitalista. A estabilidade financeira e política, as políticas de
cooptação, as políticas segmentares, entre outros processos, conseguiu se manter
por um período de tempo. No entanto, quando o ciclo do regime de acumulação
entra em sua fase de desestabilização (a este respeito veja:
O
Ciclo dos Regimes de Acumulação) eles demonstraram sua incompetência e
incapacidade de governar. Um governo neopopulista num período de descenso da
acumulação de capital deve corroer suas próprias bases.
O atual governo vinha com a promessa que resolveria os
problemas agravados pelos governos anteriores. No entanto, além de não ter formado
uma equipe à altura de tal tarefa, acabou se perdendo nos conchavos políticos e
outros problemas, e os seus pontos favoráveis, na perspectiva burguesa,
começaram a perder fôlego. Esse é o caso da imagem e confiança do país, que não
melhorou devido as problemas já aludidos. É nesse contexto que emerge o
discurso demagógico do bloco progressista.
Esse discurso demagógico é politicista (para lembrar termo
utilizado amplamente por José Chasin para se referir ao caso brasileiro). Ele
reduz a realidade apenas ao aspecto político. O politicismo é útil a todos que
estão na oposição ao governo, pois ao reduzir tudo ao político, permite
culpabilizar o governo, a “situação”, e assim se colocar como a salvação da
pátria. A receita demagógica é simples: “não aceitemos as propostas do governo
e pronto”. E a solução do problema que a proposta supostamente vem resolver?
“Não há problema, ou o problema é o governo, basta votar em nós nas próximas
eleições e tudo estará resolvido”. A irresponsabilidade do governo é
complementada pela irresponsabilidade da oposição. Aqui poderíamos lembrar Jô
Soares, em época de programa de humor: que país é esse?
Esse discurso demagógico é convincente, pois é simples e
fácil. Além disso, move milhares de interesses, principalmente nos meios
intelectualizados. Sem dúvida, a PEC 241/55 vai atingir a educação e a saúde.
Isso é verdade. Mas também não deixa de ser verdade que os gastos com educação
durante os governos anteriores (petistas) não foram para a melhoria da
educação. Basta ver a expansão desordenada de Institutos Federais de Educação
(sua transformação em institutos federais já sinaliza para algo). Um dos objetivos
de tal expansão era formar uma base eleitoral e fixa para os governos petistas,
que queriam ser vitalícios. A expansão desordenada se deu por incompetência,
mas fundamentalmente por interesses político-partidários (aliás, é uma réplica
do que fez o Governador de Goiás, Marconi Perillo, com a Universidade Estadual
de Goiás e a lição é clara: conservadores copiam progressistas e progressistas
copiam conservadores). Existem IFs que não se sustentam, com poucos alunos, não
atendendo demanda ou necessidade da sociedade. Isso não quer dizer que os IFs
em geral sejam problemáticos, mas sim sua expansão desordenada e os custos que
isso traz, bem como os interesses envolvidos. Isso mostra que existe um
problema com os gastos estatais. No entanto, é apenas um exemplo entre inúmeros
outros. Elevam-se os gastos e grande parte deles desnecessários. Isso, por sua
vez, mobiliza aqueles que estão nessas instituições para defender os seus
interesses, que entram em contradição com as propostas governamentais.
Esse discurso não analisa a realidade e o problema. Se
esconde dele, com raríssimas exceções e com pouco realismo, quando ocorre. Não
fazer isso levaria, forçosamente, a apresentar uma solução alternativa. E isso
poderia ser retirar de um lado para não retirar de outro, ou seja, apresentar
onde os gastos estatais poderiam ser diminuídos. Ou então a proposta impopular
de aumentar a arrecadação (impostos, principalmente). Ou ambas as coisas.
Porém, isso seria se posicionar e o discurso demagógico é de oposição e não de
posição. A única posição da oposição é a própria oposição.
A conclusão disso tudo é que, então, o discurso técnico do
bloco dominante está correto? A resposta é negativa, pois ele também é um
discurso falso e que deve ser desmascarado. Esse é o nosso próximo passo.
CRÍTICA AO DISCURSO TÉCNICO DO BLOCO DOMINANTE
O discurso técnico do bloco dominante, expresso
principalmente através da burocracia governamental, aponta para a necessidade
da PEC 241/55. O discurso técnico se apresenta como “neutro” e “objetivo” e
assim mascara o seu profundo caráter axiológico e, muitas vezes, ideológico. O
governo possui a capacidade de gerar uma corrente predominante de opinião que
atrai a atenção para determinados temas e problemas e a desvia de outros, não permitindo
a emergência de um pensamento crítico ao seu respeito ou a compreensão de
outros problemas mais graves (veja: HABERMAS, J. Ciência e Técnica como Ideologia. Lisboa: Edições 70, 1988).
O discurso técnico com sua aparência neutra e objetiva serve
para legitimar e justificar as ações governamentais e, assim, aparentar
racionalidade que no fundo esconde um fatalismo. As reformas são necessárias e
não há como escapar delas. Essas reformas são, no caos em questão, as políticas
de austeridade, entre elas a PEC 241/55. O problema é apresentado, os fatores
envolvidos são elencados, a solução é apresentada. O discurso técnico, no caso
da proposta de PEC 241/55, é o político-administrativo e econômico. No fundo, o
governo mostra o cálculo mercantil, uma imposição real no interior da sociedade
capitalista e que realmente não há como fugir dele (esse é o momento de verdade
dessa ideologia): não se pode gastar mais do que se arrecada. E isso é
reforçado pela crise e pela expectativa de arrecadação e gastos futuros. O
problema é grave e necessita de uma solução. A solução, nesse formulação quase
matemática, é ou aumentar a arrecadação (mais impostos) ou diminuir os gastos.
A opção é pela última.
O cálculo mercantil é uma necessidade para o aparato
estatal, tal como diz o discurso governamental. No entanto, ele não é o mesmo
para um indivíduo ou uma família (unidade doméstica) e para o aparato estatal
(sobre isso veja: VIANA, Nildo. A Mercantilização
das Relações Sociais. Rio de Janeiro: Ar Editora, 2016). Alguns adeptos do
discurso técnico mostram bem o que é o cálculo mercantil, mas falseiam a
realidade ao comparar e transpor o exemplo familiar para o estatal. As
famílias, geralmente, possuem como renda a soma dos salários dos seus
integrantes e as despesas dos mesmos. O aparato estatal tem uma fonte de renda
muito mais variada e complexa, bem como seus gastos. Além disso, os conflitos
de interesses e disputa pela repartição da renda estatal não tem equivalente
numa unidade doméstica. Assim, o exemplo serve apenas para mostrar uma
semelhança básica em seu nível mais simples e não no nível mais concreto, onde
reina a diferença. Esse reducionismo aparece com o objetivo de convencer da
necessidade das políticas de austeridade.
O discurso técnico tem uma outra característica: ao se
fantasiar de neutro e objetivo, fica implícito que ele expressa os interesses
de todos. Ele falseia a realidade ao criar uma homogeneidade de interesses que
não existe efetivamente. As reformas são necessárias e são para o bem da
“nação”, como se essa não fosse dividida em classes e subdividida numa escala
quase infinita. É por isso que alguns reprodutores do discurso técnico
favorável às políticas de austeridade se referem ao “Brasil”, “nação”, etc.
A grande questão não é o que diz o discurso técnico para
justificar e legitimar a PEC 241/55 e sim o que ele esconde. Para saber o que
ele esconde é necessário ir além dele. Esse será nosso passo seguinte.
A VERDADEIRA ALTERNATIVA
O discurso técnico do bloco dominante e o discurso
demagógico do bloco progressista parecem opostos. No entanto, é uma oposição e
não um antagonismo. São duas formas de encarar a desestabilização e desaceleração
do ritmo de acumulação de capital. Após apresentarmos e criticarmos estas duas
posições, passamos a apresentar a nossa concepção.
A desaceleração do ritmo de acumulação de capital começou a
dar os seus primeiros sinais em 2013 e se aprofundou com o passar do tempo,
sendo que as políticas do Governo Dilma agravaram ainda mais a questão, pois
evitou ações governamentais impopulares (e que prejudicariam os resultados eleitorais
de 2014) e no ano seguinte mostrou inoperância, em parte por incompetência e em
parte por causa do projeto de se manter no poder e manter o neopopulismo.
Assim, o “crescimento econômico” (acumulação de capital) desacelerou, ocorreu
um aprofundamento da crise de legitimidade (que se agravou a partir das
manifestações de 2013 e se ampliou após as eleições de 2014 e denúncias
posteriores de corrupção) que gerou uma crise de governabilidade. Nesse
contexto, o impeachment de Dilma
Roussef aparecia como a chance de mudar de rota e retomar o ritmo de acumulação
de capital. O governo foi, paulatinamente perdendo apoios e se isolando, bem
como não conseguia superar a crise financeira. Isto, somado a determinados interesses
político-partidários, foi suficiente para a mudança governamental.
O Governo Temer tinha a missão de realizar uma “ponte para o
futuro”, através de políticas neoliberais não mais neopopulistas e conseguir
recuperar a “economia” brasileira. Esse processo parecia tranquilo, pois o novo
governo, apesar da previsível oposição do bloco progressista, reforçado pela
volta do PT, tinha conseguido aglutinar os setores fundamentais da classe
dominante, bem como maioria parlamentar, formada no próprio processo de impeachment. Um outro ponto positivo era
que o novo governo, alinhado com os interesses da burguesia nacional e
transnacional e sem a ambiguidade eleitoreira do PT, vinha com a promessa de
maior confiança e investimento estrangeiro, elemento importante para a
recuperação do ritmo de acumulação de capital.
Porém, o Governo Temer foi, aos poucos, decepcionando e
mostrando uma inoperância tal qual o governo anterior. Os novos ministérios não
foram de experts e grandes nomes como
se esperava, a não ser em um ou outro caso. A escolha de Henrique Meirelles
para Ministro da Fazenda foi bem vista por muitos, mas revelava um problema
oculto: a falta de criatividade e originalidade do novo governo. Escolher um colaborador
do governo Lula (foi presidente do Banco do Brasil, com status de ministro, durante oito anos) mostra que a intenção seria
resolver a crise do regime de acumulação integral (e do neoliberalismo) com
mais políticas neoliberais. No entanto, as políticas neoliberais devem se
ajustar ao desenvolvimento do regime de acumulação integral e não se repetir em
qualquer situação. O neoliberalismo que emergiu nesse contexto foi inflexível e
marca a sua forma quando se depara com a desestabilização do regime de
acumulação integral. Nesse contexto, emerge um neoliberalismo discricionário
que busca ampliar o caráter neoliberal e suspender políticas de assistência
social, direitos trabalhistas, etc.
O resultado do neoliberalismo discricionário é aumento da
pobreza e da exploração. Esse é um dos objetivos e foi assim que ele se
desenvolveu em alguns países, como a Grécia (veja:
http://resistir.info/grecia/polychroniou_mar13.html,
pois, apesar de alguns equívocos, esse texto aponta para alguns elementos dessa
forma de neoliberalismo e suas consequências no caso grego). No entanto, este
objetivo não é um fim em si mesmo, pois o objetivo fundamental e final é
retomar o ritmo de acumulação de capital. O objetivo fundamental raramente se concretiza.
No caso brasileiro, a PEC 241/55 e as políticas de austeridade em geral tendem
a surtir o mesmo efeito. A razão para a insistência no neoliberalismo
discricionário não é devido aos seus resultados e sim, por um lado, ao apego às
receitas neoliberais e falta de uma alternativa real ao atual quadro do regime
de acumulação integral e, por outro, aos interesses do capital transnacional.
Aqui fica claro que as políticas de austeridade são as soluções apresentadas da
perspectiva da classe capitalista e que é defendida por alguns em parte por
causa da ideologia neoliberal e sua força de convencimento junto com falta de
alternativa. Contudo, para outros, especialmente os organismos internacionais e
capital transnacional (seguindo os interesses dos países imperialistas), é uma
forma de aumentar a transferência de mais-valor, ou seja, a exploração internacional.
Os problemas sociais, instabilidade política, pobreza, etc., não atinge o
capital transnacional. O que o atinge é a diminuição do consumo e alguns outros
elementos que promove o não aumento do investimento, mas permite uma taxa de exploração
elevada e remessa de parte dela para os países de capitalismo imperialista.
As políticas de austeridade não conseguem retomar o ritmo da
acumulação de capital por suas contradições e pelo motivo que teria que ser
acompanhada de outras mudanças nas políticas estatais (política financeira,
política industrial, etc.). Essas políticas deveriam já ter sido alteradas e não
foram, o que promove o descrédito do atual governo por falta de resultados,
corroendo um dos seus pilares de sustentação: a confiança e o apoio de parte da
classe capitalista. Sem dúvida, outras soluções poderiam ser tentadas na
perspectiva da classe capitalista, como, por exemplo, o aumento da inflação e
dos juros. Essa foi uma das estratégias utilizadas nos anos 1970, quando o regime
de acumulação conjugado (anterior ao atual) tentou solucionar sua crise sem
alterar o regime de acumulação.
Por fim, as políticas de austeridade só podem surtir algum
efeito, da perspectiva do bloco dominante, se for acompanhada por outras
políticas estatais que atuem sobre o processo de produção da riqueza. A diminuição
dos gastos estatais se insere num processo que não atinge a produção de riqueza
material. No âmbito estatal e nas relações de distribuição, o que temos é valor
estacionário, ou seja, repartição do mais-valor e distribuição/redistribuição de
renda e não reprodução ampliada do capital. O PIB é um medidor inexato desse
processo, pois não calcula a produção de mais-valor. Apesar disso, o não
crescimento ou diminuição do PIB é um indício
de
que a acumulação de capital está desacelerando. A questão fundamental é o
aumento da produção de mais-valor, a reprodução ampliada do capital. As
políticas de austeridade são insuficientes para conseguir isso e ainda cria um obstáculo,
que é a diminuição da renda e consumo, sendo isto um elemento desacelerador da acumulação
de capital.
Em síntese, o que o discurso técnico do bloco dominante
esconde é que as políticas de austeridade são a solução para a classe
capitalista (especialmente para o capital transnacional) e não para o conjunto da
população e que é limitada e geradora de outros problemas mesmo para tal
classe. Ela, para ter maior eficácia, precisaria ser acompanhada de outras
políticas (financeira, industrial, agrícola, etc.), o que, no entanto, só seria
possível com alta dose de competência, criatividade e sair do receituário
neoliberal.
As políticas de austeridade, no entanto, tal como a PEC
241/55, são problemáticas pela sua estruturação, a começar pela longevidade (20
anos, no caso da PEC 55). Claro que isso visa diminuir os gastos estatais e os
problemas financeiros do aparato estatal, bem como impedir que novos governos
neopopulistas, visando se manter no poder, aumentem os gastos além do que está
na lei.
Mas não é apenas o discurso técnico do bloco dominante que
esconde o principal. O discurso demagógico do bloco progressista também realiza
o mesmo processo. O que ele esconde? Como já colocamos, ele não apresenta
nenhuma alternativa. O bloco progressista é composto, basicamente, pelas
classes auxiliares da burguesia, e por isso sua autonomia é muito restrita e
elas são incapazes de romper com o modo de produção capitalista. O seu dilema é
justamente esse: deve ser oposição, mas não tem alternativas reais para
apresentar. Por isso o discurso do bloco progressista é demagógico. Chegando ao
governo, faria as mesmas políticas que hoje questiona. Aliás, as políticas do
Governo Temer já vinham sendo implementadas (timidamente, por causa do
neopopulismo e processo eleitoral) por Dilma Roussef e se ela tivesse
continuado no governo, avançaria nesse sentido ou então deixaria a situação mais
descontrolada ainda, gerando novas contradições e transformando a desestabilização
em crise. Mesmo a ala mais extremista do bloco progressista, que é mais autônoma,
não aparece com nenhum projeto alternativo e nem sequer ergue a bandeira da revolução.
O caso grego é novamente exemplar: o revezamento entre conservadores e
socialistas no governo foi superado pela emergência do Syriza, que era
esperança de rompimento com o neoliberalismo devido seu caráter supostamente
mais “radical” e mais “esquerdista”. No entanto, uma vez no poder, seguiu a
cartilha neoliberal.
O que o discurso demagógico do bloco progressista esconde
(especialmente o PT, mas também os demais partidos de esquerda) é que eles não possuem
alternativas e apenas usam as políticas de austeridade para combater o atual
governo e tentar retornar ao aparato estatal. A sua incapacidade de oferecer
uma alternativa, por sua vez, é gerada por seu vínculo com o capitalismo, pois não
propõem superá-lo e por isso deve governá-lo, quando consegue ascender ao
poder, e por isso não se difere radicalmente dos partidos e projetos do bloco
dominante.
Existe alguma alternativa às políticas de austeridade? A PEC
241/55, bem como a reforma da previdência são inevitáveis? Na verdade, não existe
nenhuma alternativa radical ao que está sendo proposto. O que poderia ser
feito, por um governo competente e que quisesse evitar o processo de redução drástica
dos gastos estatais, seria diminuir o desperdício, a corrupção, etc. e alguns
gastos estatais em setores em substituição de outros, bem como uma política de
retomada do ritmo acelerado de acumulação de capital, sendo este bem mais
difícil e com pouca possibilidade de sucesso imediato. Claro que isso deveria ser
acompanhado com outras mudanças nas políticas estatais.
Isso significaria romper parcialmente com as políticas
neoliberais, ou seja, romper com o neoliberalismo discricionário. Contudo, não basta
competência para isso. Seria necessário convencer a classe dominante de que
este caminho seria possível e obter o mínimo de apoio popular. Interesses
poderosos teriam que ser removidos, especialmente os do capital transnacional. Assim,
além de um governo extremamente competente (algo quase impossível no Brasil
atual), seria necessário articular politicamente para que uma proposta
alternativa fosse apoiada por quem detém o poder financeiro. Os resultados
disso, no entanto, seriam um impacto menor do que está previsto com as
políticas de austeridade (que, aliás, é exagerado pelo bloco progressista), mas
que estaria fadada ao fracasso se não conseguir realizar a retomada do ritmo de
acumulação.
Uma solução mais fácil e rápida seria o foco não em
políticas de austeridade (que poderiam ser reduzidas para evitar impopularidade
do governo por causa delas) e sim em arrocho salarial e aumento da taxa de exploração.
Obviamente que esse caminho é, geralmente evitado, pois corre o risco de
colocar na cena política o mais velho e perigoso inimigo: o proletariado. A
classe dominante há muito tempo evita um ataque direto aos trabalhadores em
geral e ao proletariado, mais especificamente. Isso faz parte do plano, mas sob
forma que se torne pouco perceptível, sendo realizado gradualmente,
indiretamente e setorialmente. Obviamente que isso cria uma morosidade no
processo e na retomada do ritmo de acumulação de capital.
Em síntese, este é o quadro atual da sociedade brasileira. O
bloco dominante apresenta seu discurso técnico e propõe políticas de austeridade,
enquanto que o bloco progressista lança mão do discurso demagógico e não propõe
nada. As alternativas são variações das políticas neoliberais que nem sequer estão
sendo apresentadas. Existe uma alternativa mais substancial? Existe, mas nem o
bloco dominante e nem o bloco progressista tem interesse nela. A única
alternativa possível é a partir da perspectiva do proletariado, que ao invés de
querer salvar o moribundo capitalismo aponta para sua destruição. O discurso
técnico do bloco dominante tem seus momentos de verdade e um deles é que o
aparato estatal não pode gastar mais do que arrecada, sem que isso traga consequências
nefastas, especialmente para as classes desprivilegiadas, mas também para
diversos extratos das classes auxiliares da burguesia. Outra verdade do
discurso técnico do bloco dominante é que é preciso retomar o “crescimento econômico”
(ritmo de acumulação de capital) e isso significa mais produção e/ou mais exploração.
A grande verdade do discurso técnico do bloco dominante, que não é explicitado
com as palavras corretas, é que só é possível a sociedade capitalista se
reproduzir aumentando a exploração e isso, no atual momento, tem como forma de concretização
as políticas neoliberais discricionárias, incluindo as políticas de
austeridade. E, portanto, o discurso técnico acaba levando-nos a conclusão de
que no interior do capitalismo não há solução para as classes desprivilegiadas,
apenas para a classe dominante.
A única alternativa para evitar tais políticas de
austeridade, incluindo a PEC 241/55, é a superação do capitalismo. As pequenas variações
das políticas estatais e um pouco mais ou um pouco menos de austeridade,
pobreza, violência, desemprego, etc., é o que se apresenta no horizonte. Além
do horizonte, no entanto, é possível pensar uma nova sociedade, fundada na autogestão
social. Na sociedade autogerida, esses problemas nem sequer existiriam, pois
suas bases também não existiriam. O problema dos idosos, por exemplo, não existiria,
pois a forma de organização da nova sociedade reintroduz o idoso na sociedade.
Uma sociedade autogerida não se fundamenta na busca do lucro, o que gera a valoração
apenas da força de trabalho ativa. A sociedade autogerida é voltada para as
necessidades humanas e cria relações comunais e igualitárias na qual não ocorre
o afastamento dos indivíduos por não estarem no trabalho ativo. Nesse caso, não
existe Previdência e nem aparato estatal para cuidar daquilo que seria
responsabilidade das famílias, sendo que estas teriam, na nova sociedade,
capacidade de cuidar adequadamente dos idosos.
E como chegar a esta nova sociedade? A desestabilização do
atual regime de acumulação aponta para uma maior possibilidade de se pensar a
transformação radical e total das relações sociais. Aumenta o grau de
engajamento da população, a esperança, o processo de luta que reforça essa tendência,
uma maior receptividade da cultura revolucionária. Um dos obstáculos que faz
com que esse processo fique mais lento é o bloco progressista, pois este se
apresenta como uma alternativa. O discurso da alternativa é a alternativa do
discurso incapaz de ser uma real alternativa. E é por isso que o bloco
progressista não apresenta projetos e propostas e sim nomes e partidos. Nada de
novo no horizonte político. O problema é que o bloco progressista ainda
consegue aglutinar setores da sociedade. O bloco progressista é heterogêneo, indo
daqueles que são meros oportunistas querendo o poder e usufruir dos privilégios
advindos do mesmo, até aqueles sinceros opositores sem maior percepção da
totalidade e da incapacidade de resolução dos problemas sem atacar as raízes. Apesar
de sua heterogeneidade, o bloco progressista (ou a “esquerda”) não é parte da solução
e sim do problema.
As manifestações de 2013, bem como as ocupações de escolas
(aquelas do ano passado e deste ano, desconsiderando as que eram organizadas ou
influenciadas pelos partidos e organizações progressistas), são um embrião do
que pode gerar uma luta mais ampla pela transformação radical e total das relações
sociais. Assim, a proliferação de formas de auto-organização e autoformação são
fundamentais e reforçam a tendência de transformação social. É preciso avançar
na luta cultural, pois, sem essa, dificilmente haverá sedimentação das lutas e
seu fortalecimento para as lutas futuras. A crítica do capitalismo deve ser
acompanhada pela crítica da burocracia e do progressismo. O descontentamento é
muito mais amplo e atinge vários outros setores da sociedade, especialmente nas
classes desprivilegiadas. Essas, que parcialmente se manifestam via estudantes
secundaristas, tendem a emergir na luta e quando isto ocorrer a possibilidade
de transformação se torna real.
Por conseguinte, o fundamental hoje é abrir duas frentes de ação:
a luta cultural no sentido de ampliar o bloco revolucionário e a força das
lutas anticapitalistas e o desenvolvimento da luta direta, formas de
auto-organização e autoformação, fundamentais para que haja uma ascensão e
sedimentação das lutas revolucionárias. Uma terceira frente é corroer a
influência do bloco progressista, seu aparelhamento de movimentos sociais, seu
discurso demagógico, seu moralismo, etc. A decisão final sobre isso se revela
na luta de classes e, no interior desta, torna-se importante a ação do bloco
revolucionário no sentido de fortalecer a luta das classes desprivilegiadas em
geral e a do proletariado em particular. A superação dos problemas gerados pelo
capitalismo pressupõe a superação da sociedade capitalista. A superação da
sociedade capitalista, por sua vez, pressupõe a superação da hegemonia burguesa
e burocrática e instauração de uma hegemonia proletária.