Gênero e
Ideologia
Nildo Viana
Publicado originalmente em: VIANA, Nildo (org.). A Questão da Mulher. Trabalho, Opressão e
Violência. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006.
O objetivo do presente texto é discutir a questão da ideologia do gênero.
Não iremos aqui fazer uma arqueologia do termo gênero, tal como alguns fizeram
(Stolke, 2004) e nem buscar suas raízes etimológicas, nem seus usos passados,
mas tão-somente seu uso recente e seu caráter ideológico. A crítica da
ideologia do gênero é hoje uma necessidade, bem como apresentar suas raízes
sociais e sua vinculação com um determinado período histórico.
Antes de começarmos, vamos esclarecer o que entendemos por ideologia, já
que este é um termo polissêmico. Utilizamos aqui a concepção marxista de ideologia,
segundo a qual ela é uma sistematização da falsa consciência. A ideologia é uma
forma sistemática de falsa consciência produzida pelos ideólogos (e/ou
ideólogas). O que denominamos ideologia do gênero é a concepção que coloca o
construto
gênero com o termo fundamental da análise da questão da mulher e até mesmo da
sociedade como um todo.
Não iremos aqui apresentar as mais diversas obras que abordam e utilizam
o construto gênero. Iremos eleger uma das obras mais citadas e influentes sobre
esta questão para análise, embora outras referências serão apresentadas no
decorrer deste texto. Trata-se do texto de Joan Scott, Gênero: Uma Categoria Útil de Análise Histórica. A historiadora
Joan Scott (1995) realiza em seu texto um apanhado geral de diversas concepções
acerca do pensamento feminista e do uso do construto (que ela denomina
categoria) gênero. As diversas concepções são apresentadas de forma descritiva,
com observações superficiais, e o ponto de vista da autora é apresentado
perifericamente, apresentando uma contribuição mínima para a discussão em torno
da questão que se propõe tratar. Aliás, este defeito de fazer longas descrições
de concepções feministas, consistindo na totalidade ou quase totalidade do
texto, é bastante comum e se repete no artigo de Scott. Ela afirma que o termo
gênero em sua utilização mais recente ocorreu entre as feministas
norte-americanas, “que queriam enfatizar o caráter fundamentalmente social das
distinções baseadas no sexo”. Este uso teria o objetivo de rejeitar o determinismo
biológico que estaria implícito no uso dos termos “sexo” e “diferença sexual”.
O termo gênero apresentaria uma visão relacional e apresentava homens e
mulheres em termos recíprocos, impedindo o estudo em separado de ambos. Mas a
autora ressalta que mais importante que isso é que gênero “era um termo
proposto por aquelas que sustentavam que a pesquisa sobre as mulheres
transformaria fundamentalmente os paradigmas disciplinares” (Scott, 1995, p.
73). Uma nova metodologia ou epistemologia estaria junto com o termo gênero e
lhe dando sentido. No entanto, esta posição não surgiu de imediato:
“Na sua maioria, as tentativas dos/as historiadors/as
para teorizar o gênero permaneceram presas aos quadros de referência
tradicionais das ciências sociais, utilizando formulações há muito
estabelecidas e baseadas em explicações causais universais. Estas teorias
tiveram, no melhor dos casos, um caráter limitado, porque elas têm tendência a
incluir generalizações redutivas ou demasiadamente simples, que se opõem não apenas
à compreensão que a história como disciplina tem sobre a complexidade do
processo de causação social, mas também aos compromissos feministas com
análises que levem à mudança” (Scott, 1995, p. 74).
Após isto a autora realiza críticas aos usos descritivos daquelas que
usam o termo gênero, bem como analisa as concepções feministas que partem da
perspectiva da origem do patriarcado, do marxismo, até chegar ao
pós-estruturalismo e abordagem norte-americana e inglesa de “relação do
objeto”. Ela realiza algumas críticas pertinentes a algumas destas concepções,
mas fica um tanto superficial e não relaciona mais efetivamente com sua própria
concepção. No entanto, o que nos interessa aqui é justamente a posição de
Scott. Neste contexto, é fundamental sua definição de gênero:
“Minha definição de gênero tem duas partes e diversos
subconjuntos, que estão interrelacionados, mas devem ser analiticamente
diferenciados. O núcleo da definição repousa numa conexão integral entre duas
proposições: (1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma
primária de dar significado às relações de poder. As mudanças na organização
das relações sociais correspondem sempre a mudanças nas representações de
poder, mas a mudança não é unidirecional” (Scott, 1995, p. 86).
Segundo Scott, esta definição implica em quatro elementos
correlacionados: 1) os símbolos culturalmente disponíveis evocam representações
simbólicas; 2) existem conceitos normativos que apresentam interpretações
referentes aos significados dos símbolos, buscando limitar e conter suas
possibilidades metafóricas; 3) a tarefa da nova concepção é superar a noção de
fixidez e intemporalidade da representação binária de gênero, revelando sua ligação
com a política, com as instituições e com a organização social; 4) a identidade
subjetiva ou as “identidades generificadas” são construídas e é preciso
relacioná-la com “uma série de atividades, de organizações e representações
sociais historicamente específicas” (Scott, 1995, p. 88). Ela revela a chave de
sua concepção:
“A primeira parte da minha definição de gênero, então,
é composta desses quatro elementos e nenhum deles pode operar sem os outros. No
entanto, eles não operam simultaneamente, como se fosse um simples reflexo do
outro. De fato, é uma questão para a
pesquisa histórica saber quais são as relações entre esses quatro aspectos. O
esboço que eu propus do processo de construção das relações de gênero poderia
ser utilizado para examinar a classe, a raça, a etnicidade ou qualquer processo
social. Meu propósito foi clarificar e especificar como se deve pensar o efeito
do gênero nas relações sociais e institucionais, porque essa reflexão nem
sempre tem sido feita de maneira sistemática e precisa. A teorização do gênero,
entretanto, é desenvolvida em minha segunda proposição: o gênero é uma forma
primária de dar significado às relações de poder. Seria melhor dizer: o gênero
é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado.
O gênero não é o único campo, mas ele parece ter sido uma forma persistente e
recorrente de possibilitar a significação do poder no ocidente, nas tradições
judaico-cristãs e islâmicas” (Scott, 1995, p. 88).
Assim, temos aqui uma determinada ideologia do gênero que será amplamente
utilizada por pesquisadoras de várias ciências humanas e se tornar uma grande
referência tanto do pensamento acadêmico desta área quanto do pensamento
feminista. Assim, esta ideologia parte da recusa do determinismo biológico, do
essencialismo, e acaba propondo transformação paradigmática e apresenta o
gênero como uma construção cultural e que está no campo fundador das relações
de poder. Esta concepção é ideológica, isto é, falsa, embora, como toda
ideologia, tenha momentos de verdade. A recusa do biologismo é importante e
necessária, porém, ao extrapolar isto e apresentar uma recusa do “biológico”
(diríamos, da corporeidade e de sua importância), embora isto não tenha sido
afirmado explicitamente, mas foi praticado no restante do discurso, temos uma
produção ideológica. A situação social da mulher na sociedade moderna não é
derivada exclusivamente de sua constituição física/orgânica e isto é
verdadeiro, mas é falso partir daí para recusar sua existência ou relação com
este processo. Obviamente que isto será o ponto de partida para outras
ideologias ainda mais equivocadas e que beiram ao absurdo
.
A crítica ao biologismo, no que se refere à questão da mulher, além disso, não
é nenhuma novidade, pois nasceu com Simone de Beauvoir (1978) na década de 40
do século 20 e as referências contemporâneas nada acrescentam e nem ultrapassam
o patamar apresentado por ela, a não ser num sentido retrógrado.
No entanto, o elemento mais problemático da concepção de Scott está na
sua busca de transformação paradigmática que tem como base a idéia de que é o
gênero a forma primária de dar significado às relações de poder. A
fundamentação de tal tese não é realizada em lugar algum. As referências à Eva
e Maria (tradição cristã) ou a qualquer estereótipo da mulher fora do contexto
em que ocorre não fundamentam nada. As citações de pensadores considerados
representantes do pensamento conservador, contrário à revolução francesa, tal
como Burke, Bodin, entre outros, também não pode ser generalizado, mesmo porque
se trata de uma crítica ao iluminismo e à revolução burguesa do ponto de vista
pré-burguês. E não deixa de ser interessante como que várias autoras derivam
suas concepções nos discursos de outras autoras (ou autores, em casos mais
raros) e não na realidade concreta (Scott, 1995; Stolke, 2004; Butler; 2003).
Estas concepções partem de um a priori inquestionado
e inquestionável, isto é, de um dogma, que se revela uma abstração metafísica e
que não explica absolutamente nada. Tomando o caso específico de Scott, temos o
gênero como “campo primário” no qual ou por meio do qual “o poder é
articulado”. Além da afirmação, nenhuma fundamentação, a não ser uma breve
referência ao sociólogo Pierre Bourdieu. O gênero aqui é um a priori
inquestionado, um dogma, sem nenhuma fundamentação.
O termo gênero é uma abstração metafísica quando se busca transformá-lo
de categoria em conceito
,
e assim perde todo o seu valor. E isto é mais grave ainda quando se quer
colocar ele como a determinação das relações de poder. Obviamente que nenhuma
fundamentação convincente é apresentada para tal prioridade ao “gênero”
enquanto conceito instituinte da realidade social e das relações de poder. A
autora se contenta em apelar para Bourdieu e suas reflexões. Bourdieu condena a
des-historicização (“naturalização”, isto é, tornar natural algo que é
histórico) e ao mesmo tempo a realiza. Isto se deve ao fato de que ele nunca
realiza uma análise da realidade concreta da sociedade capitalista, mas
tão-somente apresenta suas abstrações metafísicas sobre poder simbólico
acompanhada de seu empiricismo (Bourdieu, 2003). Na abordagem de Bourdieu, a
abstração metafísica se encontra com a empiria que vem para confirmá-la,
criando uma visão dicotômica mas homóloga, onde fatos isolados da totalidade
servem como exemplos das abstrações metafísicas de violência simbólica e coisas
do gênero.
Não se pode pensar o homem (sexo masculino) e a mulher (sexo feminino)
como construções culturais arbitrárias. As representações, reais ou ilusórias,
segundo Marx, se dão a partir de relações sociais concretas. As representações
cotidianas e as ideologias acerca do sexo feminino (e do masculino) não são
produtos arbitrários da “cultura” ou do “poder”, estas duas entidades
metafísicas que dominam o discurso contemporâneo antropológico ou
pós-estruturalista, já que tanto a cultura quanto o poder nesta ideologia
aparece como algo a-histórico, indeterminado, a-social. A visão do sexo
feminino é constituída histórica e socialmente, mas é preciso discutir em que
período histórico e em que contexto social isto ocorre, bem como entender qual
é a posição de classe de quem a apresenta. Vejamos o que diz Bourdieu:
“As divisões constitutivas da ordem social e, mais
precisamente, as relações sociais de dominação e de exploração questão
instituídas entre os gêneros se inscrevem, assim, progressivamente em duas
classes de habitus diferentes, sob a forma de hexis corporais opostos e
complementares e de princípios de visão e de divisão, que levam a classificar
todas as coisas do mundo e todas as práticas segundo distinções redutíveis à
oposição entre o masculino e o feminino. Cabe aos homens, situados do lado
exterior, do oficial, do público, do direito, do seco, do alto, de descontínuo,
realizar todos os atos ao mesmo tempo breves, perigosos e espetaculares, como
matar o boi, a lavoura ou a colheita, sem falar do homicídio e da guerra, que
marcam rupturas no curso ordinário da vida. As mulheres, pelo contrário,
estando situadas do lado do úmido, do baixo, do curvo e do contínuo, vêem
ser-lhes atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e
escondidos, ou até mesmo invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das crianças
e dos animais, bem como todos os trabalhos exteriores que lhes são destinados pela
razão mítica, isto é, os que levam a lidar com a água, a erva, o verde (como
arrancar as ervas daninhas ou fazer a jardinagem), com o leite, com a madeira
e, sobretudo, os mais sujos, os mais monótonos e mais humildes” (Bourdieu,
2003, p. 41).
Esta citação pode servir de exemplo para analisarmos o procedimento de
Bourdieu e seus riscos. Em primeiro lugar, temos uma generalização: de um lado
“os homens”, de outro, “as mulheres”. Os homens, segundo Bourdieu, estão do
lado oficial, do direito. Ora, todos os homens? Os proletários? Os
lumpemproletários? Os camponeses? E as mulheres estão todas do outro lado e
assim não existe mulher que detém poder, que esteja no estado, etc. As mulheres
em geral ficam com o trabalho sujo, cuidam das crianças. As mulheres da burguesia
fazem isso? Elas não contratam outras mulheres para fazerem isso por elas?
Nesta abordagem, fica parecendo que as trabalhadoras domésticas trabalham
apenas para os homens e as mulheres da burguesia cuidam das crianças, trabalham
em “serviços humildes e monótonos”. Não sabemos a que país e época se refere
Bourdieu. Ele se refere a um mundo abstrato-metafísico inexistente
concretamente. “As mulheres”, no plural e no geral, tem como atribuição os
trabalhos “escondidos, vergonhosos”, tal como o cuidado com as crianças. Ora,
somente a partir de determinados valores que o cuidado com as crianças é
“vergonhoso”, assim como os demais exemplos citados por Bourdieu, ou seja, a
humildade, vergonha, etc., não é um atributo das atividades e sim uma valoração
ou desvaloração das atividades. Mas na análise de Bourdieu questões como
classes sociais, valores, acumulação de capital, luta de classes, etc., não
existem. A dominação capitalista e o mundo mercantil, competitivo e burocrático
também inexistem em sua abordagem. A “dominação masculina” para Bourdieu tem
uma estrutura homóloga aos diversos “campos” que ele diz existir na realidade
(campo artístico, campo político, campo econômico, campo científico, etc.) e
assim possui o mesmo isolamento fantástico e lógica semelhante, já que Bourdieu
conseguiu até inventar uma “
illusio
masculina”
.
Mas não cabe aqui uma crítica geral da sociologia de Bourdieu, que faremos em
outra oportunidade, e sim destacar que seu procedimento metodológico e sua
abordagem da questão da mulher é presa ao seu edifício abstrato-metafísico.
Assim, o complemento de Scott à sua análise apelando para Bourdieu não se
sustenta. Mas não deixa de ser interessante este apelo e como uma abordagem
metafísica do gênero em Scott pode ser complementada com outra abordagem
metafísica, a de Bourdieu.
Podemos concluir esta análise do construto gênero colocando que seu
caráter abstrato-metafísico, oriundo do modismo culturalista e do
pós-estruturalismo, apenas é uma palavra que serve para usos e abusos mas que
não explica nada e não se presta à luta pela transformação social, pois ao
invés de desmascarar o poder, o esconde. O construto de gênero é uma unidade de
um discurso ideológico. Este discurso ideológico ou realiza um isolamento
fantástico das relações entre os sexos ou então toma tais relações como
fundadoras do social, ou, como dizem, do poder ou o poder concebido
metafisicamente passa a explicar tais relações. Assim, a cultura e o poder são
abstratificados, isto é, transformados em abstrações metafísicas que passam a
explicar e determinar tudo. Neste último caso, o indeterminado (a cultura, o
poder) passa a ser o determinante das relações sociais, e esta ideologia que
nada explica se torna hegemônica em certos círculos. No primeiro caso, as
relações entre os sexos (de “gênero”) é que são determinantes, embora nunca
seja fundamentada a fonte desta determinação. É por isso que a obra de Bourdieu
é bem recebida por algumas das ideólogas do gênero, pois o isolamento destas
relações é do mesmo tipo que elas fazem, por mais que falem de “cultura” ou
“poder”, sempre abstratificados.
Outra característica que se reproduz na ideologia do gênero é a falta de
referências a seres humanos concretos, relações sociais concretas. Os livros
das ideólogas do gênero estão recheadas de referências a outras obras, ou seja,
ficamos num mundo livresco, no qual um livro remete a diversos outros livros
(não para deles extrair relações sociais concretas, mas apenas outras teses), e
uma tese a diversas outras teses, num círculo vicioso e auto-referente do mundo
ideológico. Sem dúvida, pode haver exceções (Bourdieu não entra neste grupo,
por exemplo, embora sua abordagem da realidade concreta seja fragmentária e
invertida e ele não seja exatamente um dos representantes desta tendência), mas
esta é a regra das ideologias do gênero.
Mas qual é a fonte de Scott e das ideólogas do gênero? Ela mesma revela:
“a preocupação teórica com o gênero como uma categoria analítica só emergiu no
fim do século XX. Ela está ausente das principais abordagens de teoria social
formuladas desde o século XVIII até o começo do século XX” (Scott, 1995, p.
85). O uso da palavra ocorre num determinado contexto histórico: “O termo
‘gênero’ faz parte da tentativa empreendida pelas feministas contemporâneas
para reivindicar um certo terreno de definição, para sublinhar a incapacidade
das teorias existentes para explicar as persistentes desigualdades entre as
mulheres e os homens” (Scott, 1985, p. 85).
Esta mutação ocorre num “momento de grande efervescência epistemológica”:
“No espaço aberto por este debate, posicionadas ao
lado da crítica da ciência desenvolvida pelas humanidades e da crítica do
empirismo e do humanismo desenvolvido pelo/as pós-estruturalistas, as
feministas não somente começaram a encontrar uma voz teórica própria; elas
também encontraram aliados/as acadêmicos/as e político/as. É dentro desse
espaço que nós devemos articular o gênero como uma categoria analítica” (Scott,
1995, p. 85).
A data dos estudos predecessores é dos anos 60, época da contracultura,
do movimento hippie, do movimento feminista, de Betty Friedam e a
Mística Feminina, bem como as obras de
Kate Millet,
A Política Sexual e
Germaine Greer,
A Mulher Eunuco, que
já começariam a usar o termo gênero, mas sem a conotação posterior. É a partir
da contra-revolução cultural iniciada após a derrota da rebelião estudantil de
maio de 1968 expressa no pós-vanguardismo (arte) e no pós-estruturalismo
(ciência)
,
que se inicia a produção ideológica que será a base das ideologias do gênero,
tal como a obra de Michel Foucault, o maior ideólogo pós-estruturalista em sua
tendência “crítica”, e os demais representantes desta ideologia (Kristeva,
Guatarri, Deleuze, etc.). A ideologia do gênero se fortalece e sistematiza nos
anos 80. A mutação inicia-se nos anos 70: “Em um artigo de 1973, que documenta
a mudança terminológica do sexo ao gênero, Strathern antecipa sua concepção do
gênero como sistema simbólico” (Stolke, 2004, p. 91). Em 1988 ela lança um
livro onde aprofunda sua concepção. Mas é nos anos 80 que “se sofisticam as
análises feministas” sobre as relações de gênero. Com a emergência do
neoliberalismo, o pós-estruturalismo se torna hegemônico e dominante e a ideologia do gênero é um dos seus produtos.
As produções intelectuais a partir da década de 70 denominadas
“pós-modernas” são, na verdade, versões reformuladas e despolitizadas das
tendências críticas dos anos 60. As lutas do final dos anos 60 (que vai desde a
contracultura até as lutas estudantis na Alemanha/França, as lutas operárias na
Itália, etc.) e da produção intelectual crítica (Debord e a Internacional
Situacionista, Henri Lefebvre, Marcuse, Sartre, etc.). A mutação do capitalismo
ocorre a partir dos anos 60 e que se concretiza nos anos 80, com a emergência
do regime de acumulação integral (Viana, 2003), significa uma transformação
cultural que busca apropriar-se da cultura contestadora anterior para
desarmá-la e fazê-la perder força e efeito.
O pós-estruturalismo tem como ponto fundamental a crítica da abordagem da
totalidade, ou como diz um de seus principais ideólogos, das “metanarrativas”
(Lyotard, 1986). É exatamente este aspecto que possibilita a despolitização ou
o micro-reformismo, dependendo da abordagem. Alguns pós-estruturalistas ao
negarem a totalidade, passam a realizar
abordagens puramente descritivas (despolitização) de elementos cotidianos e
outros fazem referência ao poder mas tão-somente na escala cotidiana, isolando
as relações de poder em determinado lugar ou relação social e após este
isolamento apresenta as lutas isoladas e faz o seu elogio, recusando toda forma
de articulação e ampliação da luta. Este procedimento é o realizado por
Foucault e pelas ideólogas do gênero, que criam um conjunto de construtos
a-históricos e isolados, como a dita “relações de gênero”, e abordam alguns fenômenos sociais
criando um pequeno mundo reificado que faz referência à cultura e ao poder, mas
tomados como entidades metafísicas e tão-somente ligados a este mundo
reificado.
A ideologia do gênero surge neste contexto. E nada mais revelador do que
a peripécia das feministas que adotaram tal concepção e elegem as relações de
poder como fundamental e ao mesmo tempo ocultar ou desconhecer que elas são
produtos desta mesma realidade e, por conseguinte, relações de poder. A
“dominação masculina” revelada por Bourdieu é inofensiva contra ele, talvez
pelo motivo de ser um sociólogo, um intelectual, embora ele mesmo diga que os
intelectuais são uma “fração dominada da classe dominante”. Joan Scott, Judith
Butler e todas as outras estão acima desta realidade “masculinista”, marcada
por “relações de poder” e elas são espécimes do gênero feminino, mas não sofrem
as determinações e opressões das demais mortais. Em poucas palavras, estes
ideólogos e ideólogas pensam que são como o Barão de Münchausen e assim podem
se puxar pelo cabelo e se tornarem imunes ao que existe (a cultura, as relações
de poder, o falocentrismo, o illusio
masculino, etc.). As referências também possuem a mesma “imunidade” e por isso
Foucault, Deleuze, Kristeva, Guatarri, são os grandes inspiradores da nova
ideologia. Assim, a arqueologia do termo gênero é apenas uma descrição dos seus
usos, mas nunca de sua gênese e seu entrelaçamento com as mudanças sociais e
históricas. E, assim, mais uma vez, repete-se a visão evolucionista e unilinear
do desenvolvimento do pensamento humano, o que ocorre desde Comte e Hegel, e
chega até hoje com as “ingênuas” ideólogas do gênero. A ideologia não tem
história independente, autônoma, a não ser no próprio discurso ideológico, que
inverte a realidade e se apresenta como produto de um avanço e aperfeiçoamento
da idéia anterior ou então como uma ruptura falsa com as concepções
antecessoras, mas sempre indo no sentido da verdade absoluta.
Assim, a ideologia do gênero é tão datada historicamente e determinada
socialmente quanto qualquer outra ideologia, e suas fontes ideológicas
(pós-estruturalismo) tal como seu conteúdo, demonstram os limites de tal
abordagem, revelando-se apenas mais uma forma de falsa consciência
sistematizada.
Referências Bibliográficas
Beauvoir, S. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978.
Bourdieu, P. A Dominação Masculina. 3ª edição, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil,
2003.
Bourdieu, P. As Regras da Arte. São Paulo, Companhia das Letras, 1996.
Butler, Judith. Problemas de Gênero. Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.
Lyotard, J-F. O Pós-Moderno. Rio de Janeiro, José Olympio, 1986.
Scott, Joan. Gênero: Uma Categoria Útil de Análise Histórica. Educação e
Realidade. Vol. 2, no 20, jul./dez. 1995.
Stolke, Verena. La Mujer es Puro Cuento: La Cultura del Género. Estudos
Feministas. Vol. 12, no 02. maio/agosto, 2004.
Viana, Nildo. A Consciência da História. Ensaios
Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. Goiânia, Edições Combate, 1997.
Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
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