MEMÓRIA E SOCIEDADE
Uma Breve Discussão Teórica sobre Memória Social
O presente artigo visa repensar o problema da memória em sua relação com
a sociedade. Esta questão, no campo sociológico, foi abordada a partir do
estudo clássico de Maurice Halbwachs (1990) e foi desenvolvida por alguns
outros autores. A psicologia, por sua vez, desenvolveu vários estudos sobre
memória, mas em poucos casos enfatizando suas relações com a sociedade. Alguns
filósofos, onde se destaca Bergson (apud. Bosi, 1995), também abordaram o
problema da memória. Não pretendemos, aqui, fazer uma apresentação das várias
concepções de memória mas tão-somente apresentar nossa visão deste fenômeno, o
que nos levará, inevitavelmente, a discutir aspectos, utilizar elementos ou
criticar outras abordagens.
A motivação deste trabalho reside na necessidade de rever a questão da
memória a partir de uma perspectiva dialética, pois grande parte da produção
teórica se fundamenta em postulados teórico-metodológicos positivistas. A
necessidade de repensar a relação entre memória social e classes sociais também
se faz presente, principalmente quando se busca produzir pesquisas que
trabalham com a memória social e não se encontra uma referencial teórico que
desenvolva, num sentido dialético, esta questão. A pesquisa sobre a realidade
concreta necessita da teoria e esta, por sua vez, se enriquece com aquela. No
presente artigo estaremos enfatizando um esclarecimento conceitual e uma
discussão teórica sobre a memória social, o que contribui com o desenvolvimento
de futuras pesquisas sobre casos concretos.
O Que é a Memória?
O primeiro problema na discussão da temática da memória é sua definição.
O conceito de memória ainda não adquiriu uma sistematicidade, nem mesmo na
esfera da psicologia, a ciência que mais se dedica a esta temática. Em primeiro
lugar, caberia delimitar o campo fenomenal que consiste o que chamamos memória.
A contribuição já clássica de Henri Bergson, ao descartar a memória-hábito do
conceito é o primeiro elemento que devemos utilizar para realizar tal
delimitação (Bosi, 1995; Halbwachs, 1990;
Filloux; 1966). A memória-hábito é uma não memória, pois quando alguém
aprende a andar de bicicleta, dirigir carro, digitar no computador, ele está
realizando uma repetição mecânica que não o faz apelar para as lembranças e
para a mente, nem para a reflexão. Filloux coloca que o hábito é todo
comportamento adquirido por aprendizado, sendo movimentos que não requerem a
participação da atenção (Filloux, 1966). No entanto, consideramos uma
imprecisão de Bergson a expressão memória-hábito, pois trata-se, no caso, de
tão-somente hábito. Também o psicólogo Vigotski distingue esta forma de
memória, que ele chama de “natural”, da memória que ele denomina “mediada” ou
“indireta” (Vigotski, 1994), caindo na mesma imprecisão que Bergson, com a
desvantagem de não questionar a atribuição de caráter de memória ao hábito. Filloux
reconhece uma certa “colaboração” entre hábito e memória, que é a que ocorre
quando se decora texto, a linguagem, etc., o que ele denomina “memória
mecânica” (Filloux, 1966).
A idéia de que a memória é um “sistema vivo”, um sistema funcional geral
que comanda o conjunto de atividades perceptivas, motoras e intelectuais do
indivíduo”, tal como coloca Piaget, segundo Ehrlich (1979, p. 233), também é
questionável. Esta concepção apresenta uma visão fetichista da memória, com um
“sistema vivo” e “regulador”, o que significa transformar as lembranças e o seu
processo de evocação em algo auto-suficiente, dando vida ao que pode ser
considerado uma categoria, um instrumento mental, muito mais do que uma
realidade concreta. No entanto, até aqui colocamos o que não é memória. Mas
qual é o campo fenomenal do que chamamos memória? Segundo Filloux,
“Nosso primeiro trabalho consistirá, pois, em indicar
os limites do domínio próprio da memória, que definiremos caracteristicamente
por sua propriedade de unir em si o atual e o inatual e, por conseguinte, de
realizar um modo ‘intemporal’ de consciência (ellenberger), uma experiência ‘em
contratempo’ (Gusdorf). Poder que possui a consciência de se abstrair do
presente para voltar-se para o passado, de fazer-se consciência do passado num
movimento que transcende o tempo. Procuraremos tipos de lembrança que nos
parecem verdadeiramente relacionados com a memória” (Filloux, 1966, p. 14).
Outra definição de memória é fornecida por Halbwachs: a memória é um
conhecimento atual do passado (Halbwachs, 1990; Stoetzel, 1976). Isto significa
que é, ao mesmo tempo, um saber e uma lembrança. No entanto, tanto esta quanto
as demais definições são problemáticas. A memória não pode ser vista como uma
cópia cronológica da história. Assim, a afirmação de Halbwachs, derivada de sua
concepção de memória, se revela equivocada: “o passado não se conserva; é, sim,
reconstruído a partir do presente” (apud. Filloux, 1966, p. 129). Sem dúvida, o
passado não se conserva, pois já passou. É preciso distinguir entre a realidade
passada e a consciência presente da realidade passada. Assim, não é o passado
que é reconstruído a partir do presente e sim a consciência do passado. A
memória deve ser redefinida e compreendida como consciência virtual, isto é, é
uma possibilidade suscetível de se realizar, uma potencialidade existente. A
memória, consciência virtual, é recuperada, restituída e interpretada pela
consciência ativa, real, concreta. Desta forma, podemos dizer que na mente
humana só existe o presente, só que em estado virtual ou manifesto, inativo ou
ativo. A realidade passada é uma coisa, a consciência presente da realidade
passada é outra coisa.
Logo, a concepção de Filloux também é problemática. Na memória não se une
o atual e o inatual, mas tão-somente o atual. A consciência do passado é uma
consciência atual, que recupera e trabalha a consciência virtual. O inatual
existe concretamente no processo histórico mas não na mente humana, pois a
consciência virtual é tão atual quanto a consciência concreta ativa. Assim, a
concepção de H. Bergson também é equivocada:
“O mal da psicologia clássica, racionalista, segundo
Bergson, é o de não reconhecer a existência de tudo o que está fora da
consciência presente, imediata e ativa. No entanto, o papel da consciência,
quando solicitada, é sobretudo o de colher e escolher, dentro do processo
psíquico, justamente o que não é a consciência atual, trazendo-o à sua luz.
Logo, a própria ação da consciência supõe o ‘outro’, ou seja, a existência de
fenômenos e estados infraconscientes que costumam ficar à sombra. É
precisamente nesse reino das sombras que se deposita o tesouro da memória”
(Bosi, 1995, p. 52)
Bergson confunde os fenômenos psíquicos com os fenômenos reais. O que a
consciência faz não é escolher em um depósito que seria o passado o que quer e
sim uma recuperação de algo presente na mente humana. A categoria “inatual” se
aplica ao passado da realidade concreta mas não à mente humana. Até mesmo a
categoria “atual” é problemática e seria mais adequado utilizar a expressão
“ativa” em seu lugar.
A memória sendo uma consciência virtual possui como conteúdo as
lembranças e a ativação dela significa evocação de lembranças. Na mente humana
existe um conjunto de lembranças guardadas na consciência virtual e somente
através de sua ativação é que se tornam recordações, o que significa que muitas
delas não emergem e que o processo de recordação é seletivo. Neste sentido, se
torna inteligível a idéia de que a memória é seletiva (Halbwachs, 1990;
Stoetzel, 1976) desde que se perceba que é o processo de recordação ou evocação
de lembranças é que é seletivo e não a memória em si. No entanto, quais são os
mecanismos de ativação da memória? Quais são as determinações desta seleção?
A Evocação Social das Lembranças
Os mecanismos de seleção se encontram nos valores e sentimentos dos
indivíduos, bem como na pressão social e na associação de idéias. Os valores
dos indivíduos são constituídos socialmente, e são o que eles consideram
importante, relevante, significativo (Viana, 2002). A importância do caráter
significativo foi ressaltada por Halbwachs (1990) e por Stoetzel (1976). Os
valores não são atributos das coisas e sim atribuições que fornecemos a elas.
Assim, nada é, intrinsecamente, feio ou belo, importante ou inútil, pois são os
valores dos indivíduos ou grupos que fornecem estas atribuições. Os valores não
são, por conseguinte, produtos naturais, já que não são propriedades das coisas
e sim atribuições que os indivíduos e grupos fornecem às coisas. Este processo
é constituído socialmente. No caso do indivíduo, é através de seu processo
histórico de vida, desde de sua socialização, que ele vai produzindo os seus
valores e colocando alguns como fundamentais em sua escala, que pode,
inclusive, ser contraditória.
Os sentimentos também são fundamentais para a ativação da memória. O
amor, o ódio, o ciúme, a inveja, a solidão, entre outros sentimentos, são
elementos que constrangem os indivíduos a realizarem recordações. Os sentimentos
são potencialidades que também possuem uma formação social. Eles não podem ser
confundidos com emoções, pois os sentimentos não são reações momentâneas, mas
sim formações mentais duradouras que caracterizam a relação afetiva do
indivíduo com outros indivíduos ou coisas. Sendo uma relação, a sua fonte só
pode ser social, pois só se pode amar ou odiar, para citar dois exemplos,
através da relação. Com aqueles que não relacionamos, ou simplesmente
desconhecemos e ignoramos ou então desprezamos. A psicanálise, embora muitas
vezes de forma inintencional, apresenta a importância dos sentimentos no
processo de constituição da ação humana (Viana, 2004a) e, podemos acrescentar,
da ativação da memória.
Mas a memória também pode ser ativada por pressão social (necessidades
profissionais, entrevistas, etc.) quando a motivação é externa ao indivíduo. Existem
alguns exemplos de pressão social que são bastante comuns. Blondel coloca, por
exemplo, a importância que as datas de acontecimentos históricos e políticos
para as datas de ordem pessoal.
“Essas datas, que dependem da história, nos servem
todas de pontos-de-referência mais ou menos seguros para situar os pormenores
de nosso passado, mas algumas dentre elas, pela profundidade da repercussão que
tiveram sobre nossas vidas, fazem um corte tão claro entre o que fomos antes e
o que passamos a ser, que, ao primeiro lance de vista, verificamos se um
acontecimento de nosso passado lhe foi ou não anterior: por exemplo, o 2 de
outubro de 1914 e o 11 de novembro de 1918. No que diz respeito aos incidentes
e acontecimentos de nossa própria vida, como sempre sabemos em que dia estamos,
datam-se eles maquinalmente à medida que são vividos, mas a maior parte perde
sua data logo em seguida ou, ao menos, muito rapidamente: guardamos raramente
por mais de uma semana a lembrança da data precisa de nosso último jantar na
cidade. Somente, ou quase, escapa a esse esquecimento a data dos acontecimentos
que significação e valor sociais (Blondel, 1960, p. 177).
Blondel também ressalta que as datas pessoais são recordadas pela sua
importância social, tal como ocorre com o aniversário, o casamento, etc. É
justamente a pressão social, manifestada seja pelas exigências profissionais,
civis, políticas, ou qualquer outra, ou pela importância socialmente atribuída
aos fatos políticos, históricos ou acontecimentos na história de vida do
indivíduo, que produz a lembrança de datas, que se tornam referências para
outras lembranças. Isto revela o mecanismo da pressão social, tal como no caso
do nascimento, lembrado por todos, mas apenas no que se refere a data e não ao
acontecimento em si. As pessoas não lembram do seu nascimento, mas lembram da
data de nascimento. A razão disso é social:
“Sabemos estas datas, nem tanto porque vivemos esses
acontecimentos ou fomos deles contemporâneos, mas porque a importância a eles
consagrada por nosso meio exigiu que as fixássemos definitivamente. Nada mais
característico a esse propósito que a data de nosso nascimento, que é talvez,
dentre todas de nossa biografia, a que conhecemos melhor, embora seja de toda
evidência que não temos de nosso nascimento, absolutamente nenhuma lembrança,
e, a encarar exatamente as coisas, bem seria essa data, antes que a de um
acontecimento pessoal, a de um acontecimento histórico. Afinal de contas, e
aqui é essencial, a maneira pela qual sabemos a data de nosso casamento, a do
armistício, a de nosso nascimento e a de Waterloo, faz com que se identifiquem
praticamente, para nós, e o que determina a escolha destas datas dentre todas,
a quaisquer acontecimentos que se refiram, é, sempre, a importância que a
coletividade lhes empresta e nos sugere ou obriga a lhes emprestar com ela” (Blondel,
1960, p. 177-178).
Também a associação de idéias acaba levando o indivíduo de uma lembrança
a outra, já que a busca de reconstituição de algo acontecimento acaba gerando a
recordação de outros, assim como necessidades práticas também cumprem este
papel de evocação de lembranças. Neste sentido, podemos concordar com Bosi:
“lembrança puxa lembrança” (Bosi, 1995, p. 39).
No entanto, abordar a memória leva, naturalmente, a discutir o problema
do esquecimento. Quando a consciência ativa busca na consciência virtual algo
que não consegue encontrar (um nome, uma idéia, um acontecimento) nós temos o
esquecimento. A questão do esquecimento foi desenvolvida por Freud (1978), que
a relacionou com a repressão. O esquecimento, em sua abordagem, seria produto
da repressão. Podemos, a partir daí, pensar que o recalcamento, enquanto
processo mental, produza esquecimento, isto é, dificulte a evocação de
lembranças. O recalcamento é produto da repressão social, introjetada pelo
indivíduo. Em casos psíquicos mais extremos, tal como em um trauma, o
esquecimento pode ser um mecanismo de defesa, uma forma de evitar a lembrança
do trauma. Embora Freud tenha utilizado e depois abandonado a idéia de
mecanismo de defesa, substituindo-o por repressão, voltou a utilizá-lo e passou
a considerar a repressão (recalcamento) como um entre vários mecanismos de
defesa. A definição freudiana dos mecanismos de defesa é a luta do ego contra
afetos e idéias consideradas “dolorosas” (Freud, 1982).
Sendo assim, temos aqui uma determinada relação entre memória e
sociedade. A memória individual é constituída socialmente, pois os mecanismos
de evocação de lembranças são de origem social. A memória individual possui sua
singularidade a partir do processo histórico de vida do indivíduo que, a partir
de sua inserção nas relações sociais e sua posição social, realiza a evocação
de lembranças que estão em sua consciência virtual. Tanto as lembranças quanto
os mecanismos de evocação são de caráter social, e isto significa que a memória
individual é social. Além disso, o material que dá vida à memória também é de caráter
social, tal como os signos – o que foi ressaltado por Vigotski (Vigotski, 1994;
Braga, 2000) e com a mentalidade ou “formas sociais de padronização da
cognição”, segundo expressão de Bartlett (apud. Santos, 2003).
A Memória Social
No entanto, este é apenas um aspecto da relação entre memória e
sociedade. O outro aspecto se encontra na discussão apresentada pioneiramente
por Maurice Halbwachs a respeito da memória coletiva. O caráter social da
memória deixa entrever que a memória é coletiva. No entanto, a memória
individual é uma manifestação singular do coletivo. É preciso perceber a
singularidade da memória individual, mesmo que sua constituição tenha origem
social. A memória coletiva pode se referir tanto à memória de todos os membros
de uma determinada sociedade quanto à grupos sociais no seu interior. No
primeiro caso, temos uma abordagem que ultrapassa a visão de Halbwachs (1990),
pois ele focaliza os grupos sociais. No entanto, as lembranças coletivas,
quando são evocadas, possuem os mecanismos de seleção que são de caráter
social: valores, sentimentos, pressão social, etc. e, por conseguinte, sua
constituição é social, tal como ocorre com o indivíduo, e possuem elementos que
são constitutivos de toda uma sociedade. Assim, podemos falar de uma memória
social, compreendendo por este termo a consciência social virtual em uma
determinada sociedade. Assim, a evocação da origem do mundo nos mitos das
sociedades simples revela esta memória social.
Porém, nas sociedades divididas em classes sociais, a memória social
acaba se manifestando de forma muito mais reduzida. As classes sociais, entre
outros grupos sociais, acabam criando o seu processo seletivo derivado de sua constituição
própria de valores, sentimentos, etc. Assim, quando grupos oprimidos recordam
Spartacus, o gladiador que liberou a rebelião escrava na Idade Antiga, isto se
deve aos valores destes grupos sociais. Outros grupos sociais também acabam
manifestando lembranças coletivas, expressão de sua memória social. Os grupos
religiosos zelam pelo seu passado através de um conjunto de lembranças, e o
mesmo ocorre com os artistas e inúmeros outros grupos sociais. Segundo
Halbwachs:
“No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua
duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são
indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças
comuns e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com
mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória
individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de
vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda
segundo as relações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que, do instrumento
comum, explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de
influências que são, todas, de natureza social” (Halbwachs, 1990, p. 51).
Assim, Halbwachs desenvolve alguns pontos interessantes que nos ajudam a
pensar a memória social. A memória individual é uma memória constituída
socialmente e a memória social é a manifestação coletiva da memória de uma
sociedade ou um grupo. Mas isto não deve nos fazer perder de vista que existem
uma multiplicidade de memórias, e não apenas uma “memória oficial” e uma “memória
comunitária”, pois existem mais grupos sociais e um mesmo grupo social pode
manifestar lembranças diferenciadas. Portelli acaba se referindo a este
processo e demonstra que a memória não-oficial, no caso o da resistência ao
nazismo, pode, em outro momento, se tornar oficial (Portelli, 1998). Além
disso, é preciso evitar cair no romantismo, pensando que a memória dos grupos
oprimidos é uma memória “não-oficial”, pois ela é perpassada pelas idéias
dominantes, pela pressão social, pela contradição (Viana, 2004b)
Um dos grandes problemas da concepção de Halbwachs se encontra no peso
exagerado que ele fornece para a questão do lugar e do solo em sua análise da
memória coletiva. Segundo Stoetzel, “a demarcação das lembranças no solo é,
seguramente, elemento capital da memória coletiva” (1976, p. 137). Muito mais
importante do que o solo, são os valores, os vínculos tradicionais e
sentimentais, a pressão social.
Outro problema da abordagem de Halbwachs está em sua concepção de memória
como conhecimento e lembranças. A memória pode ser considerada uma parte,
virtual, da consciência que é constituída por lembranças, mas não da forma como
concebe Halbwachs, enquanto “o conhecimento atual do passado, isto é, enquanto
consiste ao mesmo tempo num saber e em lembrança” (Stoetzel, 1976, p. 133). A
memória é uma consciência virtual do passado, mas não pode ser compreendida
como “conhecimento”, isto é, como saber objetivo, pois ela é sempre a
consciência de um determinado indivíduo ou grupo social concreto. Neste sentido,
cabe recordar Marx, para quem a “consciência não é nada mais do que o ser
consciente” (Marx e Engels, 2002). A divisão social do trabalho produz classes
e grupos sociais distintos que possuem sua consciência derivada das relações
sociais em que são constituídos e de tudo que deriva de tais relações (valores,
sentimentos, concepções, ideais, etc.). Assim, o que é “selecionado” pela
memória é, predominantemente, o que é determinado pelos interesses da classe
dominante e suas classes auxiliares, já que ela possui a hegemonia cultural na
sociedade civil. As recordações de atos heróicos do passado são retomadas em
momentos de lutas e combates, relembrando figuras heróicas, indivíduos,
símbolos, etc. e utilizando-os a partir dos interesses atuais (Marx, 1986).
Outro elemento problemático da concepção de Halbwachs se encontra na suas
“leis de regulação da memória coletiva”, o que revela suas raízes deitadas no
solo do positivismo clássico. Estas leis são, segundo a abordagem de Halbwachs,
a “lei de concentração” (na qual se localiza em um mesmo lugar acontecimentos
que não possuem relação necessária); as leis de desmembramento (processo
inverso ao anterior, fragmentação de lembranças por diversos lugares) e as leis
de dualidade (no qual apresenta duas localizações para o mesmo fato) (Stoetzel,
1976, p. 137). Esta concepção apresenta enquanto problema a idéia de lei, o que
acaba provocando uma concepção naturalizante do processo social. Mas, além
disso, as leis apresentadas por Halbwachs remetem, sempre, à questão da localização,
como se a memória social fosse necessariamente vinculada a um lugar. Esta
vinculação existe e ocorre em muitos casos, mas não em todos e existem
manifestações da memória social que não remetem a nenhuma localização, tal como
uma data de nascimento (o foco é a data e é esta que é lembrada, e não o local
onde o nascimento ocorreu, a não ser em casos especiais) e muitas vezes a
localização é apresentada mas não possui grande importância. Por conseguinte,
as leis da memória coletiva de Halbwachs são invenções científicas e não
realidades concretas.
A memória social das classes e grupos sociais é seletiva, da mesma forma
que a memória individual e os mecanismos de ativação, tal como já colocamos,
também são os mesmos. Porém, como as classes e grupos são diferentes, os seus
valores, sentimentos, etc., também são diferentes. Por conseguinte, as
lembranças são diferentes. O grau de diferenciação depende de vários aspectos,
mas ela existe, seja maior ou menor. A diferenciação mais ampla ocorre na
esfera da divisão social de classes. As classes sociais só existem em relação
uma com a outra e o antagonismo se encontra nesta relação. Por conseguinte,
esta diferença assume uma diferenciação que é perpassada por interesses e por
lutas. No entanto, nesta luta, a classe dominante, devido sua posição social e
hegemonia cultural, vence normalmente e consegue impor as lembranças coletivas
que são do seu interesse. Mas existe a resistência, que pode se manifestar de
forma individual ou esporádica e que assume grandes proporções em épocas de
acirramento de conflitos sociais. Este aspecto está ausente da análise de
Halbwachs, simplesmente por causa de sua concepção de classes sociais. Para
Halbwachs:
“As classes sociais são agrupamentos hierarquizados
por excelência, que possuem uma consciência coletiva específica, apresentam
graus distintos de participação no ideal comum da sociedade em que estão
integradas e nas atividades que lhes correspondem, são diferenciadas pelo nível
das suas necessidades, e portanto pelo gênero de vida que lhes é próprio, assim
como pela matéria em que incide o seu trabalho, a sua atividade econômica, e
bem assim pela intensidade da sua memória histórica tradicional” (Gurvitch,
1982, p. 149).
Assim, a concepção de classes sociais de Halbwachs é, ao contrário da
marxista, não-relacional e ao abolir a relação entre as classes sociais, se
apaga também a exploração, a dominação, os conflitos, os interesses
antagônicos, etc., criando em lugar do antagonismo a diferença. Sem dúvida,
outras críticas podem ser endereçadas à concepção de classes sociais em
Halbwachs, tais como as apresentadas por Gurvitch (1982), mas devido a questão
de espaço iremos nos limitar a este elemento fundamental e que esclarece a
visão de memória coletiva de Halbwachs e suas limitações.
Desta forma, para concluir nosso trabalho, devemos ressaltar que existe
uma luta pela memória e os principais agentes desta luta são as classes sociais
e os seus representantes intelectuais. Tanto na esfera das representações
cotidianas (“senso comum”) quanto na do pensamento complexo, esta luta se faz
presente. Tal como colocou certa vez Adorno, o esquecimento facilita a
reprodução (Adorno, 1982), ou seja, ele defende a recordação do holocausto enquanto
forma de evitar sua repetição. As diversas abordagens do passado (tanto das
representações cotidianas quanto do pensamento complexo, principalmente a
historiografia) estão envolvidas neste processo. Mas esta luta não termina aí e
ocorre também em torno da definição de memória e suas determinações. A luta
pela memória é, portanto, simultaneamente, teórica e prática.