Rádio Germinal

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quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Os Intelectuais e o Voto Nulo




OS INTELECTUAIS E O VOTO NULO


Nildo Viana


Não deixa de ser curioso como uma grande parcela da intelectualidade resolve abrir mão de sua mesquinha “neutralidade de valores” em época de eleições. Mais curioso ainda são as afirmações e posicionamentos contra o voto nulo. Afinal de contas, qual é o problema de certos intelectuais que não só se posicionam a favor de determinados candidatos como ainda criticam outros candidatos e até voto nulo?

A intelectualidade é uma classe social que tem várias subdivisões e expressa diversas concepções políticas no seu interior. Uma forte tendência é ela ser “progressista”, embora isso não signifique muita coisa. Alguém progressista é que apóia mudanças, vota nos partidos ditos de esquerda, etc. Essa parcela, no caso brasileiro, apóia Dilma Roussef no segundo turno. Sem dúvida, muitos apóiam a candidata petista por interesse próprio ou por ser governista, ao invés de ser realmente progressista. O interesse próprio pode ser a política do governo para as universidades, incluindo o Reuni, que aumenta verbas para a universidade e, ao mesmo tempo, diminui a qualidade e precariza o trabalho docente (concurso para aulistas de 20 horas, por exemplo). É uma versão neopopulista do neoliberalismo. Talvez seja “menos ruim”, o que significa que é ruim e ao invés de escolher o menos ruim, a população e os intelectuais necessitam se organizar e arrancar pela sua própria força as mudanças e não depositar um voto numa urna para um governo que vai seguir os ditames do grande capital, de forma mais ou menos autoritária.

O PT há muito tempo é uma versão do neoliberalismo. É a sua versão mais populista e que faz algumas políticas sociais paliativas e apresenta pseudo-soluções para questões sociais como a fome, etc., sem nada, no fundo, resolver. Inclusive faz o jogo das estatísticas, que iludem os ingênuos, com um suposto progresso que na realidade concreta não aparece. Os intelectuais possuem interesses próprios, além dos pessoais, o interesse de classe. E esse interesse é conservador e por isso a intelectualidade, mesmo a progressista, é conservadora, no sentido de que não rompem com as relações sociais que lhe constitui como classe e reproduzem a sociedade capitalista, aliás, é para isto que ela existe: produzir ideologias, legitimar o capitalismo, justificar a sociedade existente, além de produzir técnicas, tecnologias, etc., para reproduzir o que existe. Sem dúvida, nem todos os intelectuais fazem isso, mas é a classe que realiza isso e as exceções são justamente daqueles que não se identificam com sua classe e seus interesses, ou seja, não são aqueles que supervalorizam a ciência e o saber, base de legitimação da intelectualidade. Assim como também existem aqueles que realmente votam e defendem determinadas posições político-partidárias com boa intenção e por opção política, mas é uma parte minoritária da classe. Trata-se de uma parte iludida da intelectualidade, cuja desilusão poderá significar adesão à nova ilusão (um “novo partido”), ou recusa do sistema partidário e eleitoral, a ruptura com as ilusões.

Os manifestos de apoio à Dilma Roussef e os atos mostram apenas a debilidade de grande parte da intelectualidade brasileira. O PT foi formado com participação de diversos intelectuais, um de seus setores mais fortes, embora muitos tenha se tornado políticos profissionais ou burocratas. As saídas e rachas do PT foram apenas expressão do caminho crescentemente conservador desse partido. Porém, isso se deu mais com agrupamentos políticos e jovens do que com os intelectuais, a não ser alguns que foram para outros partidos supostamente de esquerda. O problema fundamental se encontra nos compromissos de setores da intelectualidade que provocam a perda da razão na defesa dos seus candidatos. O exemplo clássico aqui é Marilena Chauí, uma das mais renomadas intelectuais do Brasil, e que produziu obras que, por mais que consideremos problemáticas e com equívocos, tem (teve, para ser mais exato) determinado valor e repercussão. Porém, a Marilena Chauí que foi das origens do PT, que escrevia na revista dos “autonomistas” do partido, a Revista Desvios, e que escreveu obras sobre cultura e ideologia, foi sendo substituída por outra Marilena Chauí. Em seu lugar apareceu a Secretária de Cultura do Município de São Paulo, durante a prefeitura de Luiza Erundina (1990-1993), passando a querer ser respeitada pelos colegas e temida pelos inimigos, como disse certa vez em entrevista. A filósofa saiu e em seu lugar apareceu a secretária, política, governante, propagandista. Porém, depois disso, as temáticas e livros da filósofa assumiram outro tom e agora aparece a apologista do governo petista e da candidatura Dilma Roussef. A decadência se manifesta no vídeo onde afirma que Serra seria uma ameaça à democracia. A filósofa usa toda sua capacidade retórica para repetir o discurso do horário eleitoral, emprestando seu nome e fama para a propaganda política. Os exageros e alarmismos aparecem para manipular os eleitores. A conquista de eleitores é o grande objetivo, e aí os “públicos-alvo” da filósofa são os ambientalistas, as mulheres e outros segmentos (cada argumento é para um público-alvo específico). A “Marina tem o PT no coração”... Isso quer dizer que os ambientalistas e eleitores de Marina devem votar no PT, apesar da própria Marina não ter dito isso em lugar algum e optado por não apoiar nenhum dos candidatos. Mais um jogo retórico que convence os incautos.

A filósofa crítica passa a ceder para as pesquisas de opinião pública que mostram uma boa avaliação do governo Lula e cita um jornal conservador que não respeita tal opinião. Ao mesmo tempo, havia defendido a liberdade de opinião e expressão. O referido jornal não teria tal liberdade, pois estaria contra a opinião pública. Liberdade de opinião! Por isso quem é contra Serra (Maria Rita Kehl), não poderia ser demitida! E o jornal ousa ter “liberdade de opinião”. Conclusão: liberdade de opinião sim, mas apenas para quem concorda com a minha...

Também diz que o Serra venceu nas regiões “ruralistas”, de “desmatamento”, etc. e desqualifica os votos desta região, caindo novamente em contradição com sua defesa da liberdade de opinião e respeito pela opinião pública. Essa é a máxima petista: defendemos a liberdade de opinião, dos que concordam conosco! Defendemos o respeito pela opinião pública, quando ela está a nosso favor! A filósofa que em seus escritos antes de seu partido chegar ao poder, denunciava a ideologia, mostrava que pretensos discursos contra a sociedade burguesa no fundo não apontavam para uma crítica de seus fundamentos, agora reproduz o que criticava. Chauí exemplificava essa questão, em seus textos antigos, com a discussão sobre feminismo e crítica do poder burguês, já que relaciona opressão da mulher e capitalismo. Daí o exemplo de ideias defendidas por determinados concepções feministas:

“1) a de que as mulheres não devem se sujeitar à ideologia da inferioridade nem à ideologia dos papéis sociais, mas devem lutar por igual direito ao trabalho;
2) a de que as mulheres não devem continuar se submetendo ao poderio masculino e devem defender a liberdade do uso do corpo, porque este é propriedade delas e não dos homens (maridos, filhos, chefes, etc.).
Aparentemente, tais movimentos parecem estar lutando contra o poder burguês, pelo menos no seu aspecto discriminatório. Porém, se analisarmos as duas ideias defendidas, o que veremos? Defender a igualdade no mercado de trabalho não é criticar a exploração capitalista do trabalho, mas é mantê-la, fazendo com que as mulheres tenham igual direito de serem exploradas e de realizarem trabalhos alienados. Seria preciso que as mulheres, como movimento social, pudessem levar a cabo a crítica do próprio trabalho no modo de produção capitalista, em vez de desejarem virar força de trabalho. Por outro lado, defender a liberdade de usar o corpo porque este é propriedade privada da própria mulher e afirmar que tal direito define a mulher como pessoa autônoma, é esquecer de que um dos pilares da ideologia burguesa, na sua forma liberal, é justamente a definição dos seres humanos por algo chamado de “direito natural” e que seria o direito à posse e ao uso do próprio corpo, posse que nos torna livres, liberdade que é necessária para formular a ideia burguesa de contrato (...). Ora, vimos como Marx descreve o surgimento do trabalhador “livre” necessário ao capital: o homem que tendo apenas a posse de seu corpo, que estando despojado (“liberado”) dos meios e instrumentos do trabalho, tem o “livre” direito ao uso de seu corpo, vendendo-o no mercado da compra e venda da força de trabalho. E vimos, com Hegel, como a definição burguesa de pessoa é sinônima ou a versão jurídica do proprietário privado. Assim, a luta feminista pode realizar-se sem por em questão a hegemonia burguesa (Chauí, 1984, p. 112).

Essa era a Marilena Chauí. O que ela virou hoje? Virou uma ideóloga, tal como ela usa o conceito em seu livrinho, a serviço do poder e reproduzindo ideologias conservadoras. Ela termina sua exposição, no vídeo do youtube (abaixo) dizendo que teremos uma “mulher na presidência”. Ela viu um negro na presidência dos EUA (Obama), um operário na presidência do Brasil (Lula) e agora uma mulher, Dilma. A ideologia é tão explícita que nem necessitaria comentário. Lula chegou à presidência, mas ser operário é pertencimento de classe que ele não tinha mais, já havia se tornado um burocrata de partido a décadas e nunca um operário será presidente, pois sendo presidente deixará de ser operário. Um negro na presidência ou uma mulher, o que quer dizer? Apenas manipulação retórica para conseguir votos dos negros e das mulheres. Porém, nada vai mudar para os negros e as mulheres. Dilma é uma mulher e, caso seja eleita, isso nada significará ou apenas revela que ela será governante, servindo para reproduzir as relações de produção capitalistas e as bases que geram a opressão da mulher. Chauí faz a operação ideológica de transformar Dilma em representante das mulheres por ser mulher, abstraindo, ideologicamente, que ela expressa determinadas concepções políticas, interesses, que não são os da emancipação da mulher e da transformação social e que o cargo de presidente tem o papel de reproduzir as relações de produção capitalistas, ou seja, conservar. Um lugar no mercado de trabalho para as mulheres é um equívoco – afirmação correta da filósofa em sua obra dos anos 1980 – e uma mulher na presidência da república deveria ser entendido como um equívoco muito maior. Até para alguém que é conservador e não quer a superação do capitalismo, a grande questão não é o sexo da candidata e sim o que ela propõe efetivamente para colaborar com uma mudança na situação das mulheres na sociedade capitalista. Da mesma forma, Obama é negro e presidente, e nada mudou na vida dos negros norte-americanos. A base social do racismo, da exploração, etc., continua e um negro na presidência não é nada mais do que um indivíduo que exercerá o poder e este existe para reproduzir o capitalismo, a base social do racismo, da opressão da mulher, etc., e, logo, nada adiantará. Claro que para os petistas adiantará muito, afinal, quantos cargos para homens, mulheres, negros, brancos, etc., não estarão disponíveis, claro, para os petistas e seus aliados.






(A continuação pode ser vista em três outros vídeos disponíveis no Youtube, clique aqui)


A filósofa chega a denunciar que dia 29 no comício do Serra ocorrerá um ato de violência feita pelos partidários deste com camisas do PT para incriminá-lo. A fonte de tal informação teria sido uma “conversa no bar” de duas pessoas... Isso é a decadência de qualquer raciocínio mesmo não filosófico. Condena-se Serra por um ato que não aconteceu e que seria grave e a única fonte é uma conversa de bar de duas pessoas não identificadas. Mas se não ocorrer, para quem acreditar nisso, Serra já está condenado (inclusive se pode dizer depois: nós denunciamos e eles voltaram atrás...) e o reino da boataria vai se tornar mais importante do que os atos reais dos indivíduos.

A questão fundamental é que o discurso a favor da democracia (e que afirma que Serra é uma ameaça a ela) é feito de forma não-democrática. O ataque constante ao voto nulo e aos seus defensores, mostra o seu caráter autoritário e antidemocrático (mesmo no sentido restrito e burguês do termo). A opinião pública só vale para os que pensam igual. Isso ocorre justamente porque o problema da democracia é seu caráter burguês e que ocorre no conjunto das relações sociais da sociedade burguesa. Os anarquistas, autogestionários e outros não podem existir, pois votam nulo e a democracia constrange os indivíduos a aceitá-la tal como existe, e a autogestão social, o fim da falsa democracia onde a população é manipulada pela pseudoesquerda e pela direita, é algo impensável e inaceitável. É possível disputar o poder, mas não negar o poder. A única opção eleitoral válida hoje é o voto nulo, pois a pseudoesquerda representada pelo PT nada constitui de benéfico para a população e para os explorados e oprimidos. As razões do voto nulo já foram bastante discutidas em uma publicação voltada para isso (clique aqui para acessá-la).

Antes de terminar, é necessário, para agradar aos petistas e antecipar críticas desonestas que alguns fazem, que não se trata de defesa de José Serra, que é, realmente, um representante da classe dominante em sua ala mais conservadora neste segundo turno. Porém, Dilma também é representante da classe dominante. As diferenças são poucas. Por exemplo, quem ficará com os cargos, o PSDB e seus aliados, ou o PT e seus aliados? Claro que outras diferenças nas ações políticas, questões pontuais, etc., também existem, mas é superestimada. Não existem, nem da perspectiva burguesa e conservadora, projetos políticos distintos, o que existe são algumas propostas pontuais diferenciadas. José Serra é tão pouco democrático quanto Dilma, e o confronto com estudantes que pregavam voto nulo em local que este faria entrevista coletiva (clique aqui para acessar esta notícia) demonstra isso. A questão é que quem tem o poder o exerce e quem luta pelo poder tem que silenciar o outro. Tanto Serra quanto Dilma querem silenciar o voto nulo, e por isso alguns filósofos e intelectuais na USP enfatizaram isso. Sim, é preciso silenciar toda oposição que questiona as bases da sociedade capitalista. Os petistas são mais ofensivos nesse caso por uma mera questão eleitoral, pois avançou o número de pessoas intelectualizadas que apóiam o voto nulo, que é um lugar onde os votos são majoritariamente da pseudoesquerda, inclusive composta por intelectuais.

Assim, podemos encerrar voltando ao caso dos intelectuais. Figuras que supervalorizam sua própria prática e profissão, os intelectuais são, no fundo, grandes conservadores, que vão desde os extremos autoritários/meritocráticos aos pseudodemocratas da pseudoesquerda. Obviamente, e felizmente, existem exceções e estas aumentam em determinados contextos e situações. A “traição dos intelectuais”, denunciada por Julien Benda (2007), é uma ideologia dos intelectuais, que querem dizer que são neutros. Essa traição seria aqueles intelectuais que defende nação, raça, classe ou partido. É um discurso conservador e que apenas reproduz interesses de classe da intelectualidade. Porém, se fosse possível falar em “traição dos intelectuais”, poderíamos dizer que tal traição é quando se agride e subestima a inteligência alheia.

Este é o exemplo do vídeo de Marilena Chauí, e que demonstra que, apesar do seu passado e seus méritos (o que não significa passar por cima dos seus equívocos), o que a corrupção política não faz com os indivíduos: faz ele fazer tudo que criticava, faz usar sua capacidade intelectual não para esclarecer, que seria o ideal da ação do intelectual, e sim para obscurecer. O intelectual pode usar, assim, o “discurso competente”, termo usado pela própria Marilena Chauí (1989), para causas muito pouco nobres. E esse é o caso dos intelectuais uspianos preocupados com o voto nulo através de discursos simplistas fazendo de conta que não conhecem ou sabem as razões e fundamentação de quem defende o voto nulo (para ver notícia sobre isso, clique aqui). Os intelectuais são traidores não de sua classe, mas de sua humanidade quando substituem o compromisso com a verdade pelo compromisso com o poder ou com benefícios pessoais ou de classe, com tudo que é derivado disso. Assim, os vendilhões do templo da academia vendem sua alma ao diabo, seja da direita ou da pseudoesquerda. Parece um leilão, onde “quem dá mais” acaba vencendo a competição, e depois de “dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três”, resta a palavra: “vendido!

Os intelectuais devem abandonar sua identificação com a intelectualidade como classe e suas históricas justificativas ideológicas (neutralidade, autonomia dos intelectuais, vocação pseudouniversalista, etc.) e se tornarem engajados, como propunha Sartre (1994). Não se trata do “engajamento” em partido político, algo que entra em contradição com a luta pela emancipação humana. Trata-se de um engajamento que aponta para a crítica das ideologias, a autocrítica perpétua, associação sem reservas com as classes exploradas. E isto leva a um processo de luta contra a reprodução da ideologia nas classes exploradas, tal como o culto da autoridade, usar o saber acumulado para contribuir com o desenvolvimento cultural das classes exploradas, incentivar a produção de cultura e saber por indivíduos do proletariado, recuperar a finalidade do intelectual: liberdade de pensamento, busca da universalidade do saber e da verdade, lutar contra todo tipo de poder, inclusive de partidos que dizem representar a classe operária, sendo guardião dos objetivos históricos e da unidade entre meios e fins. Isso tudo não é o que vem sendo feito pelos intelectuais que acriticamente defendem candidatos ao invés de questioná-los, que ficam do lado do poder ao invés do lado dos explorados e oprimidos. Porém, muitos deles podem desenvolver a consciência disso e mudar de rumo e assim trocariam sua causa pobre por uma causa nobre e ao invés de apoiar candidatos, apoiariam as classes exploradas e a auto-organização destas, e assim lutariam pelo voto nulo como primeiro passo para a desmistificação da pseudoliberdade eleitoral e para superar ações ilusórias por luta concreta pela emancipação humana.

Referências

Benda, Julien. A Traição dos Intelectuais. São Paulo, Peixoto Neto, 2007.
Chauí, Marilena. Cultura e Democracia. São Paulo, Cortez, 1989.
Chauí, Marilena. O Que é Ideologia. São Paulo, Brasiliense, 1984.
Sartre, Jean-Paul. Em Defesa dos Intelectuais. São Paulo, Ática, 1994.
Viana, Nildo. A Intelectualidade como Classe Social. Revista Espaço Acadêmico, Ano VI, num. 63. Agosto de 2006. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/063/63esp_viana.htm acessado em: 01/06/2010.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O Reformismo de Gramsci

O Reformismo de Gramsci
(Notas Sobre Gramsci, 06)

Nildo Viana

A obra de Gramsci possui várias interpretações e a cada uma delas temos uma determinada apropriação de sua obra, direcionando-a para as concepções de quem faz a apropriação. Assim, temos Gramsci revolucionário, leninista, social-democrata, idealista, materialista, etc. A posição política de Gramsci é, no fundo, ofuscada por este conjunto de interpretações/apropriações. Somando a isso o caráter fragmentário e contraditório de suas colocações, há uma dificuldade de identificar qual é sua verdadeira posição política. Porém, saindo do pântano das interpretações e uma leitura rigorosa de sua obra, apesar de seu caráter fragmentário, é possível reconstituir a posição política de Gramsci. É o que buscamos fazer aqui.

A questão fundamental que perpassa a obra de Gramsci é a conquista da hegemonia pelo Partido-Príncipe, o partido maquiavélico-gramsciano. A hegemonia é a direção moral e intelectual e ela pertence à classe dominante, a burguesia. A missão do partido maquiavélico-gramsciano é realizar uma reforma intelectual e moral visando conquistar a hegemonia e produzir um novo Estado. Assim, é preciso ultrapassar a fase econômico-corporativa (sindical), chegando à fase da hegemonia na sociedade civil e, finalmente, a fase estatal (Gramsci, 1987). Apesar de algumas alterações nesta abordagem geral, essa é a estratégia gramsciana.

Porém, esta estratégia tem uma variação, que se revela na diferença entre oriente e ocidente. Para o oriente, a estratégia de conquista do poder estatal é diferente, é a guerra de movimento, tal como efetivada por Lênin. No caso do ocidente, se aplica a guerra de posição, na qual o partido maquiavélico-gramsciano vai cercando o Estado (sociedade política) através da sociedade civil e conquistando a hegemonia, para depois se apoderar do aparato estatal (Gramsci, 1988).

Aqui reside a chave para a compreensão da concepção política de Gramsci, o reformismo. Segundo Perry Anderson:

“No caso de Gramsci, as inadequações da fórmula da ‘guerra de posição’ tinham uma clara relação com as ambigüidades de sua análise do poder de classe da burguesia. Gramsci, como vimos, igualava a ‘guerra de posição’ à ‘hegemonia civil’. Assim, exatamente como a sua utilização da hegemonia tendia a implicar sobre a cultura e o consentimento, a ideia de uma guerra de posição tendia a implicar que o trabalho revolucionário de um sentido marxista era essencialmente o da conversão ideológica da classe operária – daí a sua identificação com a frente única, cujo objetivo era ganhar a maioria do proletariado ocidental para a Terceira Internacional. Nos dois casos, o papel da coerção – repressão da parte do Estado burguês e da insurreição da parte da classe operária – tendem a desaparecer. A fraqueza da estratégia de Gramsci é simétrica à de sua sociologia” (Anderson, 1986, p. 72).

Deixando de lado os equívocos costumeiros de Perry Anderson (expresso, neste caso, seu leninismo insurrecionalista), ele acerta ao colocar que, para Gramsci, a revolução não está presente em sua concepção (não se trata de insurreição, a proposta de Lênin, e sim de revolução, a proposta de Marx e Gramsci não propõe nenhuma das duas coisas).

Porém, Gramsci teve um antecessor bastante ilustre: nada mais nada menos que Karl Kautsky, o maior ideólogo da social-democracia da primeira metade do século 20. Segundo Perry Anderson, este havia proposto a “estratégia do esgotamento”, palavra retirada da doutrina militar de Delbrück, em oposição à “estratégia da derrocada”, que seriam termos equivalentes à “guerra de posição” e “guerra de movimento”. Anderson complementa colocando o contexto do debate com Rosa Luxemburgo no qual Kautsky utiliza e justifica tal concepção de guerra de esgotamento:

“Foi Kautsky quem deu o próximo passo no sentido de introduzir os conceitos militares de Delbrück – sem precisar suas fontes – em um debate político sobre as perspectivas estratégicas da luta proletária contra o capitalismo. O momento mesmo de sua intervenção foi muito importante. Pois foi no sentido de refutar a exigência de Rosa Luxemburgo para a adoção de greves militantes de massa, durante a campanha do SPD pela democratização do sistema eleitoral neofeudal prussiano, que Kautsky contrapôs a necessidade de uma ‘guerra de esgotamento’ mais prudente pelo proletariado alemão contra o seu inimigo de classe, sem incorrer nos riscos inerentes às greves de massa. A introdução da teoria das duas estratégias – de esgotamento e de derrocada – foi assim o que cristalizou as razões da cisão decisiva no seio do marxismo ortodoxo na Alemanha antes da Primeira Guerra Mundial” (Anderson, 1986, p. 89).


Anderson acrescenta que isto não é apenas semelhança formal, pois Kautsky também justifica sua posição através de uma diferença regional, equivalente a de Gramsci sobre oriente e ocidente, e pensava que, por estar na Europa ocidental, a sua estratégia seria conquistar a maioria no parlamento através de uma série de campanhas eleitorais, o que não poderia ocorrer na Rússia Czarista por não haver regime democrático. O debate chegou até a Rússia e Lênin, um kautskista, tomou partido da posição de Kautsky.

Em síntese, apesar de algumas imprecisões e contradições aparentes, Gramsci concebe uma concepção política essencialmente reformista, o que é reforçado por suas considerações sobre eleições, governo, direito, ou seja, em nenhum momento se coloca a questão da ruptura revolucionária e em todo o momento o que se vê são considerações sobre organizações, ações, práticas, voltadas para a sociedade capitalista, para a conquista da hegemonia, sem ruptura. Assim, apesar das interpretações que buscam unir o “jovem Gramsci” e o “Gramsci da maturidade” para lhe dar maior radicalidade e um caráter revolucionário (inclusive se esquecendo que o “jovem Gramsci” não era tão revolucionário assim) para sua obra, o que é uma deformação muito mais do que uma interpretação correta, o maquiavélico pensador italiano era um reformista.

Referências:

ANDERSON, Perry. As Antinomias de Gramsci. In: ANDERSON, Perry. A Estratégia Revolucionária na Atualidade. São Paulo, Joruês, 1986.

GRAMSCI, Antonio. A Concepção Dialética da História. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, A Política e o Estado Moderno. 6ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988.

sábado, 2 de outubro de 2010

O Voto Como Mercadoria - Quanto vale o seu?


O VOTO COMO MERCADORIA - QUANTO VALE O SEU?

Nildo Viana

[...]

Por fim, temos o processo de cooptação e corrupção que sempre ocorre nos processos eleitorais. Além da prática cotidiana de cooptação e corrupção realizada por governos e partidos políticos, através de cargos, favores, etc., temos também a corrupção eleitoral, tanto financeira, quanto as promessas de cargos, favores e benefícios. Os alvos principais são os indivíduos que potencialmente podem angariar mais votos, devido sua posição junto a setores da população. É isso que torna militantes estudantis, ativistas comunitários e de movimentos sociais, sindicalistas e membros de associação de bairros, entre outros, o alvo principal dos partidos e candidatos. Da mesma forma, os cooptados e corrompidos são futuros reprodutores do processo de cooptação e corrupção. O processo eleitoral é uma verdadeira escola de manipulação e corrupção e uma fábrica de políticos profissionais, quando o demônio compra sua alma com seu dinheiro sujo.


[...]

A mercantilização das relações sociais está presente nas eleições e na corrupção eleitoral. A venda do voto pode ser considerada uma “corrupção do eleitor”. A corrupção é uma relação social na qual há o corruptor e o corrompido. O corruptor é o que corrompe, suborna, oferece dinheiro em troca de algo, que, no caso, é o voto. Do lado do corruptor, há o dinheiro e o desejo de consumo da mercadoria chamada voto e do lado do corrompido, há o desejo de algo em troca, que é uma mercadoria ou a possibilidade de aquisição de mercadorias. Só existe a venda do voto por existir a oferta e a procura e, no caso, a procura precede a oferta, pois só havendo procura poderá haver oferta.



Do lado do corruptor, isso ocorre devido sua ambição e ânsia pelo poder e tudo que está relacionado a isso. Do lado do corrompido, isso ocorre por vários motivos. O eleitor corrompido entende o ato eleitoral como sem sentido, como algo que não envolve sua vida cotidiana, que não produz mudanças. A percepção disso ocorre pela experiência cotidiana do votante, pois entra ano e sai ano, entra governo e sai governo e nada em sua vida muda. Assim, o não-significado do voto é razão para sua desvaloração cultural e que deve passar a ter alguma utilidade. Tendo em vista que vivemos numa sociedade que realiza a mercantilização das relações sociais em todos os níveis e tudo é transformado em mercadoria, o eleitor vê na proposta de venda, a efetiva oportunidade de venda, a possibilidade de ter algum retorno com o voto. Ele pode ser útil e qualquer coisa que se consiga por ele é “lucro”.



Um terceiro elemento que ajuda a explicar a venda do voto é o processo de corrupção existente na sociedade e política brasileira, desde o genérico “jeitinho brasileiro” até as diversas denúncias de corrupção tanto no poder executivo quanto no legislativo, a percepção dos políticos profissionais no Brasil é bastante negativa e muitas vezes eles são vistos como sinônimo de corruptos. Sendo a política um festival de corrupção, então vender o voto é algo dentro da normalidade política brasileira. A desilusão eleitoral é reforçada pela corrupção estatal existente.



Porém, como o voto é secreto, o que se vende, no fundo, não é o voto, mas a promessa do voto, que nem sempre se cumpre por ele ser secreto e por que alguns eleitores entendem que tal venda é um motivo para não se votar no candidato comprador de votos. Assim como o candidato corrupto promete e não cumpre, o eleitor corrompido também o faz. Porém, o elemento ativo nesse processo é o corruptor, aquele que quer comprar o voto, sem o qual a transação não ocorreria.



No entanto, o processo eleitoral não ocorre apenas através da relação entre eleitores e candidatos, ou seja, entre indivíduos, pois estes são seres humanos concretos, e por isso não é possível deixar de lado a luta de classes nesse contexto. Grande parte da população apresenta uma desilusão com as eleições e a democracia representativa, outra parte é cética, e isto é derivado, em parte, das experiências eleitorais passadas e das desilusões que lhes acompanham, e, em parte, do descontentamento oriundo de uma ampla insatisfação, inclusive de necessidades básicas, e da falta de atendimento destas necessidades, o que atinge mais o lumpemproletariado, o campesinato, o proletariado e algumas outras classes desprivilegiadas.



É por isso que o discurso eleitoral tem que produzir promessas irrealizáveis e oferecer migalhas atrativas para a parte mais descontente da população. Trata-se de uma estratégia da classe dominante ou de suas classes auxiliares para buscar atrair para seu partido a camada enorme de pessoas descontentes e desiludidas, o que é complementado com a busca de corrupção eleitoral, através de oferecimento de benefícios pessoais em troca do voto. Aqui, os elementos da sociabilidade capitalista, como a competição, mercantilização e burocratização das relações sociais (Viana, 2008), são elementos fundamentais para o sucesso da corrupção e cooptação eleitoral. A competição em torno do sucesso, status, poder, riqueza, numa sociedade mercantil, promove a facilidade no processo de corrupção e coloca o processo eleitoral como meio de ascensão social. Alguns indivíduos bem intencionados acabam, devido à predominância da mentalidade burocrática, aderindo aos partidos e muitos se corrompem nesse processo, outros realizam uma ruptura que pode desembocar no imobilismo ou no ativismo antipartidário. Outros são cooptados através do emprego como cabos eleitoras e promessas de emprego permanente após as eleições, caso seu candidato ganhe, além do sonho de alguns em se tornar candidatos.



Porém, os partidos expressam as classes sociais privilegiadas e disputam entre si os cargos e a posição de governo, querendo integrar o bloco dominante. Nesse contexto, o discurso eleitoral tem o objetivo de buscar, a qualquer custo, a vitória. E para isso é preciso atingir o maior número de pessoas e interesses. Os velhos discursos sobre saúde, educação, segurança, etc., apenas revelam essa tentativa de atingir uma grande parte da população, pois essas demandas são visíveis e acessíveis pelas pesquisas de opinião. Daí também o discurso policlassista, onde a classe ou grupos específicos com interesses específicos são substituídos pelo “povo”. Daí vem outra conseqüência, que é a necessidade de propaganda generalizada, atingindo o maior número de pessoas e sob variadas formas, desde a propaganda eleitoral gratuita nos meios oligopolistas de comunicação até a distribuição de panfletos, santinhos, bandeiras, adesivos, e diversas outras formas. Isso tudo produz um discurso despolitizado e despolitizador, que reforça a mistificação eleitoral.

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