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sexta-feira, 15 de março de 2013

O Fogo Utópico ou a Recusa da Mediocridade


O Fogo Utópico 
ou a Recusa da Mediocridade

Nildo Viana



O fogo simboliza diversas coisas e uma delas é a vida e outra é a inspiração. Falar em “fogo utópico” é colocar que a inspiração é utópica. Recusar a mediocridade significa romper com o comodismo e conformismo e ter ideais, utopias. Segundo Ingenieros:

Considerado individualmente, a mediocridade poderá ser definida como uma ausência de características pessoais que permitam distinguir o indivíduo em sua sociedade. Esta oferece a todos o mesmo fardo de rotinas, preconceitos e domesticidade; basta reunir cem homens para coincidirem na impersonalidade; ‘reúnam mil gênios num Concílio e terão a alma de um medíocre’. Essas palavras denunciam o que em cada homem não pertence a ele mesmo e que, ao se somar muitos, revela-se pelo baixo nível das opiniões coletivas (Ingenieros, p. 39).

Segundo Ingenieros, os medíocres “atravessam o mundo às escondidas, temerosos de que alguém possa recriminar a ousadia de existir em vão, como contrabandistas da vida” (Ingenieros, p. 39). Segundo Ingenieros, a moral social justifica que tudo existe por necessidade, inclusive a mediocridade, “O eterno contraste das forças que competem nas sociedades humanas traduz-se pela luta entre duas grandes atitudes, que agitam a mentalidade coletiva: o espírito conservador ou rotineiro e o espírito original ou de rebeldia” (Ingenieros, p. 49). Para não ser medíocre, inclusive intelectualmente, é necessário possuir ideais, utopias.

Sartre (1989), em uma de suas obras, pergunta por qual motivo escrever. A resposta é o engajamento, o projeto. Não se trata de escrever por escrever ou para ganhar dinheiro, fama, ascensão social ou subir na carreira, tal como é predominante hoje na esfera científica. Como já dizia Marx (Marx e Engels, 1986), é preciso, no capitalismo, "ganhar dinheiro para poder viver e escrever, mas não se deve viver e escrever para ganhar dinheiro". Ingenieros também toca nesse ponto:


O poder que se manipula, os favores que se mendigam, o dinheiro que se acumula, as honrarias que se conseguem, têm certo valor efêmero que pode satisfazer os apetites daquele que não leva dentro de si, em suas virtudes intrínsecas, as forças morais que embelezam e qualificam a vida; a afirmação da própria personalidade e a quantidade de humanismo posto na dignificação do ‘eu’. Viver é aprender, para ignorar menos; é amar, para se vincular à humanidade; é admirar, para compartilhar as excelências da natureza e dos homens; é um esforço para se melhorar, um incessante afã de elevação em direção a ideais definidos (Ingenieros, p. 40).

A busca da utopia, de ideais, de realização do projeto como sentido da vida é bloqueado na sociedade capitalista (nome que deve causar horror aos neoconformistas que querem censurar palavras e verdades), na qual a burocratização, mercantilização e competição social realiza um processo de ampliação da mediocridade e conformismo em grande escala. As condições de vida, as necessidades (autênticas e/ou impostas), o dinheiro, o poder, serve para um processo de corrupção geral da consciência humana. O capital comunicacional, as ideologias e valores dominantes, os modismos, as hierarquias e controle burocráticos, tudo isso vem para impedir a utopia. E sem utopia, sendo apenas integrante da engrenagem capitalista, burocrática, mercantil, os seres humanos são coisificados e transformados em seres medíocres. Na esfera científica, na produção intelectual, os compromissos não são com a utopia, com a verdade, mas com ganhar a competição, se tornar dominante, tal como demonstra Bourdieu (1984) em seu estudo sobre o que ele denomina “campo científico”. Na esfera artística, a mesma lógica competitiva diminui, embora não no mesmo grau, o engajamento (Viana, 2009; 2007).

Questionar o sentido da vida é algo inusitado e a resposta não será a busca da felicidade, da utopia, da transformação social, na maioria dos casos será apenas o trabalho, a carreira, o sucesso, o poder. Alguns querem se convencer que são felizes com o modo de vida fútil a que estão submetidos. Somente o fogo utópico pode desbloquear a reflexão sobre o sentido da vida e promover a superação da coisificação.

O fogo utópico, no entanto, não se apaga. Ele persiste. É mais forte em casos individuais, pequenos grupos, momentos históricos, no inconsciente coletivo ou individual. E ele queima quem quer apagá-lo, e continuará queimando. A utopia está na literatura, no cinema, nos quadrinhos, na arte em geral. Ernst Bloch, o teórico da utopia, conseguiu mostrar suas formas de manifestação e apontar para o caráter utópico do ser humano (Bicca, 1987). Ele tende a aumentar e incendiar a mediocridade e contribuir com a constituição de uma nova sociedade e novas relações sociais nas quais as necessidades e potencialidades humanas possam ser sastifeitas.

Referências

BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.

BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato (org.). Bourdieu. São Paulo: Ática, 1984.

INGENIEROS, José. O Homem Medíocre. Curitiba: Chain.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Sobre Literatura e Arte. 4ª edição, São Paulo, Global, 1986.

SARTRE, Jean-Paul. Que é a Literatura? São Paulo, Ática, 1989.

VIANA, Nildo. A Esfera Artística. Marx, Weber, Bourdieu e a Sociologia da Arte. Porto Alegre: Zouk, 2007.

VIANA, Nildo. Arte, Especialização e Engajamento. Revista Espaço Livre. Vol. 4, num. 07, jan.jun./2009.

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