OS DILEMAS DA FORMAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE
Nildo Viana
Resumo:
O
presente artigo discute a questão da formação na sociedade contemporânea,
colocando em evidência os seus dilemas e impasses. O primeiro ponto de
discussão é o dilema do alto grau de desenvolvimento tecnológico convivendo com
um descompasso com a formação intelectual. Derivado disso, vários impasses são
constituídos na contemporaneidade. Após uma expor o contexto geral da sociedade
contemporânea e os seus dilemas e impasses, o artigo discute a possível solução
para o atual estado de coisas. A autoformação individual e coletiva e a
transformação social radical e total são as formas de superar os entraves para
a formação e reprodução da humanidade no atual momento histórico.
Palavras-chave: Formação, Autoformação, Sociedade
Contemporânea, Dilemas, Tecnologia, Capitalismo.
A sociedade contemporânea vive
um dilema que perpassa o conjunto das relações sociais e coloca em risco a
própria sobrevivência da humanidade: o processo de formação não acompanha o
grau de desenvolvimento tecnológico e a superação que alguns apontam seria o
uso da tecnologia e aprofundamento da situação problemática enquanto que outros
simplesmente querem voltar no tempo e recuperar a educação tradicional. Em
ambos os casos, não temos uma real solução. A superação desse dilema só é
possível se superarmos o presentismo e o passadismo (BERGER, 2015). Essa
superação, no entanto, requer uma reflexão sobre o problema da formação na
contemporaneidade e contribuir com esse processo reflexivo é o objetivo do
presente texto.
A relação entre indivíduo e
sociedade é complexa e tem como elemento fundamental o processo de formação
social do indivíduo. Esse processo é marcado pela socialização e pela
individuação. A socialização é o processo pelo qual o indivíduo se torna um ser
social e isso se realiza sob forma específica em cada sociedade específica, bem
como é preparado para viver sob determinadas relações sociais, ou seja, tem um
elemento universal e outro histórico-particular (VIANA, 2011). O aspecto
universal é benéfico para a humanidade, pois é um processo de humanização, no
qual o indivíduo se torna um ser humano. O aspecto histórico-particular é
problemático no sentido de que é uma formação no interior de uma sociedade de
classes. E, junto com isso, temos uma formação genérica e outra diferencial (por
classe, sexo, etc.).
Esse processo de socialização é
também um processo de individuação, ou seja, de formação da individualidade. O
indivíduo é constituído socialmente, mas isso ocorre no conjunto complexo de
relações sociais que são distintas. Essa distinção é derivada da inserção
específica e única de cada indivíduo no interior da sociedade. O processo
histórico de vida de um indivíduo é singular. E isso proporciona para tal
indivíduo sua singularidade psíquica (VIANA, 2011), ou, em outras palavras, sua
individualidade ou personalidade. O processo de formação social do indivíduo na
sociedade moderna é marcado pela socialização (infância), ressocialização
(juventude) e desenvolvimento (maturidade)[1].
Assim, o processo de formação é
algo amplo e complexo, que remete para o processo de formação social do
indivíduo e formação intelectual (mental), que são coisas inseparáveis. A
formação social é totalizante: intelectual, ética/moral, sentimental,
relacional (coletiva: civil, cívica, profissional). Esse processo complexo
assume formas distintas em sociedades distintas e por isso é necessário
entender que ela tem um duplo caráter: universal e histórico-particular.
Para entender o processo de
formação na sociedade moderna, o que, por sua vez, é fundamental para compreender
os dilemas da educação na contemporaneidade, é necessário compreender tal
sociedade. Não poderemos, obviamente, desenvolver aqui uma análise da sociedade
capitalista. A essência da sociedade capitalista, que é o modo de produção
capitalista, já foi abordada por Marx (1988), bem como diversos pensadores
ajudaram a compreender algumas de suas características. A sociedade capitalista
tem como determinação fundamental o modo de produção capitalista, que
caracterizada pela produção e apropriação de mais-valor, o que constitui as
duas classes sociais fundamentais dessa sociedade, o proletariado e a
burguesia. O proletariado produz mais-valor e a burguesia extrai mais-valor e
assim acumula capital e acaba controlando o processo geral de produção e reprodução
das riquezas. Ao lado dessas duas classes sociais fundamentais emergem diversas
outras subsidiárias (burocracia, intelectualidade, subalternos, camponeses,
etc.). A produção de mais-valor ocorre através da produção de mercadorias[2] e
isso gera um processo de mercantilização das relações sociais (VIANA, 2016).
Este processo contém diversos outros elementos e gera diversas consequências, o
que não será possível abordar aqui, mas que é um pressuposto de toda análise
que virá a seguir.
Um elemento da sociedade
moderna, no entanto, é importante para analisar o processo de formação na
contemporaneidade. Trata-se do conceito de sociedade civil. Esse termo já foi
abordado por toda uma tradição filosófica, desde os contratualistas (HOBBES,
1983; LOCKE, 1978; ROUSSEAU, 1987) até Hegel (1990), e por outros pensadores,
como Marx (1983) e Gramsci (1988). Por questão de espaço, não poderemos retomar
tal discussão, mas tão-somente apresentar a nossa concepção de sociedade civil.
Entendemos que uma sociedade é formada pelo modo de produção dominante e modos
de produção subordinados (no caso do capitalismo, o modo de produção
capitalista como dominante e alguns outros como subordinados, como o modo de
produção camponês, artesão, cooperativo, latifundiário, etc.) e formas sociais,
o que Marx denominou “formas jurídicas, políticas, ideológicas" e ficou
popularizado como “superestrutura”. Essas formas sociais podem ser privadas ou
estatais (VIANA, 2007). Denominamos “sociedade civil” as formas sociais
privadas, ou seja, aquilo que engloba a família, as igrejas, os partidos, as
formas de consciência dos indivíduos fora das relações de trabalho e aparato
estatal, etc.
O indivíduo é formado no
conjunto das relações sociais. Logo, o processo de formação individual se dá no
conjunto da sociedade. Porém, a formação que ocorre no âmbito do trabalho, na
nossa sociedade, é um processo geralmente secundário. A formação do indivíduo
ocorre inicialmente na sociedade civil (família, por exemplo). A formação que
ocorre no âmbito político também é posterior. Geralmente, o indivíduo passa
pela socialização (família, escola, comunidade, etc.) e pela ressocialização
(ensino técnico e superior, etc.), para depois adentrar ao mundo laboral e
político.
Assim, a formação individual e
mental ocorre no âmbito familiar e escolar (e vai se deslocando paulatinamente
do familiar para o escolar, o que se percebe com a entrada cada vez mais cedo
das crianças nas escolas). A família, como um espaço de educação inicial,
cumpre uma função fundamental no sentido da humanização, através da educação
sentimental e formação do ser social. A escola é outra instância fundamental e
sua colaboração com a formação se dá através do saber básico, especializado,
profissional, repassando os valores dominantes, a moral dominante. O seu
significado é outro, pois a escola é voltada para a reprodução social, tal como
vários autores apontaram (Bourdieu e outros), e como reproduz uma sociedade
fundada na divisão de classes, então reproduz suas contradições e lutas.
No âmbito da sociedade civil há
um elemento fundamental que ajuda a explicar o processo de formação: a sociabilidade
capitalista. Essa é marcada pelo processo de mercantilização, burocratização e
competição social (VIANA, 2008) e isso é um dos elementos básico da formação
social dos indivíduos no capitalismo. É na sociedade civil que se reproduz a hegemonia
(valores, ideias, etc.) e exigências sociais (trabalho e obrigações sociais).
Portanto, a sociedade civil e a sociabilidade capitalista são fundamentais para
explicar o processo de formação na sociedade moderna.
O Estado é outro elemento
fundamental para explicar a formação na sociedade e moderna. Ele tem todo um
aparato cultural, bem como aparato educacional, que interfere diretamente na
formação dos indivíduos. Ele interfere indiretamente na sociedade civil através
da legislação e outros processos. Assim, o Estado tem as instituições estatais
de educação, o controle burocrático via ministérios da educação efetivada nas escolas
particulares, tem uma política cultural determinada e que atinge a população,
entre diversos outros elementos que o tornam um dos pilares da formação social
dos indivíduos no capitalismo.
Assim, todo este processo de socialização,
ressocialização e desenvolvimento na sociedade capitalista são marcados por um
conjunto diversificado de instituições, relações, etc., que não pode ser
separado de determinada hegemonia que se estabelece em determinado momento,
impondo determinados valores, concepções, etc., que atinge distintamente as gerações.
Contudo, há também um processo de conflito dentro da sociedade moderna. As duas
classes sociais fundamentais geram dois campos antagônicos que vivem em luta e
em certos momentos históricos revelam o antagonismo e nesse processo é outra
fonte de formação social do indivíduo. Devido à questão de espaço não
desenvolveremos isso aqui, mas é preciso alertar que, especialmente para o
proletariado, a luta de classes é elemento fundamental para seu processo de
formação.
Por fim, é importante destacar
que a formação social do indivíduo tem uma forma e uma finalidade. A forma, no
caso da sociedade moderna, é burocrática e ocorre em diversos lugares, tais
como as escolas (instituições burocráticas), sociabilidade capitalista, etc. O
controle é fundamental. E ele é fundamental por causa da finalidade dessa
formação: a reprodução da sociedade capitalista. Para o indivíduo, isso aparece
sob a forma de interesses pessoais (definidos por essa sociedade e que
significa integração nessa sociedade, tal como mercado de trabalho, ganhar
competição social, etc.) e que significa um processo de reforço da reprodução
do capitalismo.
Uma coisa é o que é a formação
no capitalismo, outra coisa é o que ela deveria ser. O que deveria ser depende
dos valores e interesses de quem indica o dever-ser. Ela deveria ser uma autoformação
individual e coletiva. Sem dúvida, isso aponta para a crítica da sociedade
existente e o projeto de uma nova sociedade, pois esse processo é impossível no
interior do capitalismo. Então a forma assumida pela formação deveria ser a autoformação.
E sua finalidade deveria ser a emancipação (no capitalismo) e o desenvolvimento
onilateral (na sociedade autogerida). Ou seja, a finalidade da formação no
capitalismo deve apontar para a emancipação, sendo que esta luta já anuncia o
desenvolvimento onilateral, mas parcialmente, e a finalidade da formação na
futura sociedade pós-capitalista (autogestão social) é o desenvolvimento
onilateral, ou seja, do conjunto das potencialidades humanas.
Após esta discussão mais geral
para contextualizar a perspectiva da qual partimos, passamos agora a tratar da
formação na contemporaneidade. Os elementos gerais apontados anteriormente continuam
válidos e explicando o processo de formação na sociedade capitalista. Contudo,
a sociedade capitalista não é estática, ele mantém sua essência, mas muda sua
forma. Esse processo, numa perspectiva crítica, é explicado através da sucessão
de regimes de acumulação (VIANA, 2009; VIANA, 2015; ORIO, 2014; BRAGA, 2013).
Cada fase da sociedade capitalismo corresponde a um regime de acumulação[3] e
este gera um processo de mutação cultural[4].
A sociedade contemporânea é
caracterizada justamente por ter instaurado um novo regime de acumulação. O
regime de acumulação integral (VIANA, 2009; VIANA, 2015; ORIO, 2014; BRAGA,
2013) é instaurado nos anos 1980 no capitalismo imperialista, mas alguns de
seus elementos constitutivos começam a se esboçar antes. Esse processo teve na
rebelião estudantil de maio de 1968 um ponto de partida, pois a derrota da luta
de estudantes e trabalhadores franceses fez emergir uma contrarrevolução
cultural preventiva (VIANA, 2009)[5]. Essa
contrarrevolução cultural preventiva gerava ideologias que produziam uma
despolitização das críticas realizadas no período anterior. Assim, a crítica do
cotidiano capitalista e da razão instrumental, por exemplo, se tornaram a
crítica do cotidiano e da razão fora da totalidade da sociedade capitalista, marcado
pela recusa da totalidade. Essa recusa da totalidade significava, no fundo, uma
reusa do marxismo que emerge nesse momento, que retoma a radicalidade do
pensamento de Marx e outros. Ela assume a forma de “história em migalhas”,
recusa das “metanarrativas” (LYOTARD, 1993) ou da teoria (FOUCAULT, 1989), etc.
É nesse contexto que vai emergir
um novo paradigma hegemônico: o subjetivismo. Se durante o regime de acumulação
conjugado o paradigma hegemônico era o reprodutivista, com seu caráter holista,
objetivista, formalista, etc., expresso em ideologias como o estruturalismo,
funcionalismo, “teoria” dos sistemas, etc., o novo paradigma enfatiza o
subjetivismo, recusa a totalidade, etc. Emergem novas ideologias que reproduzem
tal paradigma, como o pós-estruturalismo, multiculturalismo, estudos culturais,
ideologia do gênero, etc.
É nesse contexto que emerge uma
nova política cultural do Estado capitalista após 1980. A política cultural do
Estado capitalista é um dos pilares para a constituição do novo paradigma, tal
como se observa nos Estados Unidos e outros países. No entanto, organismos
internacionais, como especial destaque para a UNESCO. Fundações (internacionais
e nacionais), CIA (Central de Inteligência Americana), entre diversas outras,
são fortes fontes de produção e reprodução dessa política cultural e renovação
hegemônica. Assim, as políticas governamentais e, mais especialmente, o capital
comunicacional inicia esse processo de reproduzir e popularizar o novo
paradigma hegemônico.
Um elemento que ocorre junto com
esse processo é o desenvolvimento tecnológico. O processo de desenvolvimento
tecnológico gera uma mercantilização crescente da tecnologia, que se inicia com
vídeos-games e outros aparelhos e ganha um salto com os computadores e celulares,
com todos os acessórios. Nesse contexto, a internet é uma novidade que parece
ser benéfica ao permitir o desenvolvimento da comunicação. No entanto, a
internet oferece uma falsa democratização. A falsa democratização da internet
se revela em diversos aspectos. O primeiro deles é que ela permite um acesso à
informação como nunca antes visto na história da humanidade. Contudo, nem todos
tem acesso à internet. Os mais pobres estão excluídos do acesso à internet ou
possui um acesso precário (em alguns lugares públicos, no trabalho, etc.). Da
mesma forma, nem todos tem a mesma qualidade de acesso à internet (pois ela é
mercantilizada e depende de planos de conexão pagos que varia de acordo com o
poder aquisitivo dos indivíduos, bem como com máquinas distintas – celulares/computadores
mais potentes ou com mais recursos são mais caros e a população com menos
recursos utilizará aparelhos mais velhos, usados, ou com menos potência e
recursos).
Esses problemas remetem para a
questão das classes sociais e suas formas diferentes de acesso à internet. No
entanto, há um outro problema relativo à internet. É que o conjunto de
informações disponíveis na internet não é acessado da mesma forma pelos
indivíduos de diferentes classes sociais, entre outras divisões sociais. Há um
acesso seletivo. E o processo de acesso relativo possui múltiplas
determinações, tais como o poder aquisitivo. Mas mais do que o poder aquisitivo
há outro grave problema: a falta de formação. A sociedade contemporânea é rica
em distribuir informação, mas é pobre em fornecer formação. Num mundo de
milhões de informações disponíveis, é necessária formação intelectual para
escolher o que procurar, onde, como, com quais critérios. Os sites mais
acessados são aqueles vinculados com o capital comunicacional (“indústria
cultural”, tais como as redes de TV, grande jornais e revistas, etc.), grandes
empresas, celebridades, etc. O grau de formação é tão precário na
contemporaneidade que é possível ver professores doutores reproduzirem sites de
notícias falsas (são sites de humor que noticiam coisas falsas, mas como se
fosse algo sério e verdadeiro), demonstrando que a quantidade enorme de
informação e a rapidez das “trocas informativas” são acompanhadas por formação
precária, acriticidade, etc. Em outras palavras, de nada adianta ter em seu
computador todo acervo da produção cultural da humanidade, se não tem formação
para realizar as escolhas, separar o falso do verdadeiro, o que é de alta
qualidade do que é de baixa qualidade, do que é justo ou injusto, do que é
original e do que é cópia, etc.
E no interior das redes sociais
temos um processo no qual todos podem manifestar suas opiniões, sejam sobre as
coisas mais inúteis e corriqueiras, até as questões políticas, morais, sociais
e financeiras da qual pouco se sabe, seguindo acriticamente correntes de
opiniões vigentes ou a que é predominante. É nesse contexto que alguns autores
vão colocar a questão da reprodução das opiniões problemáticas que qualquer um
pode divulgar nas redes sociais (ECO, 2017). A internet reproduz a sociedade
capitalista. Ela reproduz também suas divisões, contradições, lutas, etc., mas
o predomínio é da hegemonia burguesa, seja sob uma ou outra forma
(conservadora, progressista, etc.).
Da mesma forma, há um processo
de manipulação nas redes sociais por parte de seus proprietários. O facebook,
por exemplo, é um manipulador e influenciador de muitos usuários, sob várias
formas. Além disso, a superficialidade, a rapidez, a pressa, são outros
processos que acompanham o uso da internet e que vem dificultando o processo de
formação. Assim, alguns críticos da internet colocam a questão da
superficialidade e dos efeitos dela sobre os indivíduos (CARR, 2017).
Esse processo é reforçado, no
entanto, por um outro fenômeno. O novo paradigma hegemônico, subjetivista, gera
uma recusa da teoria, da razão, etc., o que cria um conjunto de concepções
anti-intelectualistas, individualistas, irracionalistas, que servem de
justificativa para a não-formação, a negação da leitura, etc. Ao lado disso,
interesses e oportunismos reforçam discursos sobre “vivência” e “lugar de
fala”, para citar apenas dois exemplos, que apontam para um fortalecimento da
má formação sob a máscara da recusa da formação. O subjetivismo reinante aliado
com as redes sociais e as novas possibilidades de trocas comunicativas gera um
processo crescente de expansão de um certo “autismo intelectual”, seja
individual ou coletivo, no qual a comunicação com os que pensam diferente se
torna uma incomunicação.
É nesse contexto que temos os
impasses contemporâneos no que se refere ao problema da formação. Os principais
impasses da formação na contemporaneidade são os seguintes: a) Excesso de
informação e precariedade na formação; b) Excesso de autoconfiança e
precariedade em esforço e reflexão; c) Excesso de moralismo e precariedade de
ética; d) Excesso de politização despolitizada e precariedade de politização
real; e) Manutenção da hegemonia burguesa e lutas internas (conservadorismo
versus progressismo) em detrimento de uma colaboração real no processo de formação
e produção intelectual.
O primeiro desses impasses já
foi discutido aqui, que é o excesso de informação em contraste com a
precariedade da formação e por isso dispensa mais comentários. O excesso de
autoconfiança e precariedade em esforço e reflexão é algo incentivado pelo
paradigma subjetivista, mas também é reforçado pela educação burocrática e
desinteressante e outros processo sociais. O excesso de moralismo é um
desenvolvimento mais recente da sociedade capitalista, na qual via internet e
redes sociais, as pessoas começaram a fazer o discurso de “politizar a vida
privada” e, no fundo, o que fizeram foi a “moralizar”, pois isolam a vida
privada da história e do conjunto de relações sociais que a explica, bem como
troca a compreensão pelas “receitas” que são verdadeiras normas de conduta,
desde o “politicamente correto” ao “politicamente incorreto”, duas faces da
mesma moeda. O moralismo (e o pseudomoralismo, mais conhecido como “falso
moralismo”, que o acompanha) é artificial e imposto socialmente, expressando
determinados interesses de classe e outros derivados. A moral é distinta da
ética (VIANA, 2000), pois esta apresenta coerência entre os valores fundamentais
do indivíduo e suas ações reais, enquanto que a moral é um produto social e
histórico que nem sempre se fundamenta na coerência entre discurso e prática.
O excesso de politização é
expresso não somente por querer “politizar a vida privada”, retirando ela da
totalidade e, por conseguinte, despolitizando-a, mas também por trazer um
discurso político falso, frágil, sem fundamentação e desenvolvimento. Assim,
tudo virou “comunista” (segundo os conservadores) ou “fascista” (segundo os
progressistas), duas formas de despolitizar supostamente “politizando”. A
manutenção da hegemonia burguesa e do paradigma subjetivista que lhe acompanha
e suas lutas internas, especialmente entre progressistas e conservadores, tal
como se vê nos partidários e críticos da “escola sem partido” é prejudicial ao
processo de formação, pois apenas querem mudar ou manter as regras do jogo e
não acabar com o jogo[6]. A
questão é quem e como vai doutrinar ao invés de se repensar a educação escolar
de forma ampla e discutir a questão fundamental da qualidade, do seu
significado social, das contradições e desigualdades, etc. É outro processo de
politização despolitizada.
Como resolver esses impasses?
Como resolver o dilema do alto grau de desenvolvimento tecnológico e indivíduos
cada vez mais infantilizados para utilizar tal tecnologia? A superação desses
impasses e do dilema que está relacionado com eles é o abandono do passadismo e
do presentismo. Esse processo vale para todos os processos sociais e deriva de
um projeto de sociedade. Segundo Berger (2015, p. 218), “os projetos
passadistas e presentistas são variados e possuem divisões internas (além da
oposição entre eles), o que é comum na sociedade moderna”, um quer voltar ao
passado e o outro quer manter o presente. No entanto, existe outro projeto, o
futurista, pois este “rompe com as amarras do passado e do presente”. Assim, a
solução dos dilemas e impasses da formação na contemporaneidade remete a uma
formação para o futuro.
Uma formação para o futuro traz
a necessidade de ampliar o processo de formação intelectual e revalorar a
teoria, a autoformação (e não autodeformação)[7]. Uma
nova sociedade só pode emergir através de um grau elevado de desenvolvimento cultural
e a teoria é fundamental nesse processo. A razão, desde que não seja a
instrumental (ligada ao processo de reprodução do poder e do capitalismo) deve
ser revalorada, pois ela tem um significado fundamental para o desenvolvimento
da humanidade, para a superação do obscurantismo. Além disso, a superação da incomunicação
só pode ocorrer via razão. Da mesma forma, é preciso recuperar a necessidade de
arte, teoria, produção intelectual significativa e não meramente mercantil,
modismos, etc. A mercantilização da arte e sua decadência contemporânea (tal
como se vê no caso exemplar da música), o controle burocrático e
mercantilização da produção intelectual em geral, são processos que devem ser
combatidos e formas alternativas de criação intelectual (teórica, artística,
etc.) devem ser produzidas.
Esse processo todo deve ser
realizado ao lado da autoformação. Em outras palavras, a revaloração da teoria,
da arte, etc., tem que ser realizada via um processo de autoformação individual
e coletiva, o que significa que não se trata de reproduzir os modismos e
concepções hegemônicas e sim desenvolver um processo de pensamento crítico e produção
intelectual engajada no sentido da transformação total das relações sociais
existentes. Os obstáculos para essa mutação de valores e processo de
autoformação são por demais evidentes, mas faz parte da luta cultural e é
condição para redirecionar uma sociedade que caminha rumo ao barbarismo no
sentido de ir para o caminho do futuro e da libertação humana.
Em síntese, é fundamental ampliar
a autoformação individual e coletiva, no sentido de lutar pela transformação
social, que, uma vez realizada, permite uma autoformação coletiva e individual
plena numa sociedade autogerida. Esse é um meio de buscar superar os impasses e
dilemas da formação contemporânea, mas deve ser num sentido crítico, rompendo
com a hegemonia e ideias dominantes, o que significa uma luta do indivíduo
contra ele mesmo (interesses pessoais, formação anterior, etc.), o que deve ser
acompanhado pela necessidade de compreensão que isso só se mantém se o objetivo
final, a transformação radical e total das relações sociais, for o fio condutor
do processo de autoformação. Esse processo também deve ser coletivo, através da
articulação de diversos indivíduos buscando sua autoformação individual e em
colaboração com eles a autoformação coletiva. Ao lado disso, a luta pela
transformação da escola e da educação escolar, no sentido de uma pedagogia
autogestionária, de ampliação do pensamento crítico, etc., são outros elementos
dessa luta mais ampla, que é a luta cultural pela constituição de uma nova
sociedade.
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acessado em 28/12/2015.
[1]
Esse é um processo típico da sociedade moderna, pois nas sociedades
pré-capitalistas não existe o processo de ressocialização, ou seja, a juventude,
que é uma criação do capitalismo devido o processo de formação da força de
trabalho (VIANA, 2014; VIANA, 2015). Esse processo foi percebido por alguns
autores, tal como a necessidade de “entrada na vida” para se tornar um
“adulto-padrão” (LAPASSADE, 1975) ou como a escola é fundamental no processo de
formação da juventude enquanto grupo social (AVANZINI, 1980).
[2]
A produção de mercadorias existiu antes do capitalismo, mas não era produção de
mais-valor. A produção de mais-valor é a forma especificamente capitalista de
produção de mercadorias (VIANA, 2009).
[3]
Um regime de acumulação é constituído por uma determinada forma assumida pelo
processo de valorização (organização do trabalho), forma estatal e forma de
exploração internacional. Assim, se tivemos o regime de acumulação conjugado de
1945 até o final dos anos 1970, ele foi caracterizado pelo fordismo (processo
de valorização), Estado integracionista, mais conhecido como de “bem estar
social” ou “keynesiano” (forma estatal) e expansão do capital oligopolista
transnacional, mais conhecido como “multinacionais” (forma de exploração
internacional). A partir dos anos 1980 há mudança nesses elementos, gerando um
novo regime de acumulação, fundado no toyotismo (processo de valorização),
neoliberalismo (forma estatal) e hiperimperialismo (forma de exploração
internacional).
[4]
Essa mutação cultural assume a forma de “renovação hegemônica”, instituindo um
novo paradigma e novas ideologias filiadas a ele.
[5]
Essa derrota ocorreu também em diversos outros países, como Itália e Alemanha,
apesar de não ter atingido a força e a radicalidade que teve na França. A
derrota, no entanto, não foi total, pois as lutas operárias na França e Itália
continuaram com relativa força até início dos anos 1970.
[7]
Sobre autoformação e sua relação com a transformação social e a instauração de
uma nova sociedade, cf. Rodriguez (2014). O processo de formação e seu caráter
fundamental para a constituição de uma nova sociedade é destacado nesse artigo.
E isso é perceptível também quando se trata da questão da planificação na
sociedade autogerida: “É por isso que, sem cair no utopismo, é preciso realizar
reflexões hoje sobre a sociedade do futuro, pois permitirão aqueles que
estiverem envolvidos, já possuir elementos, ferramentas mentais, para poder
pensar o novo e realizá-lo com maior precisão e facilidade, além de contribuir
para dificultar uma contrarrevolução por causa da presença dessas dificuldades.
A formação intelectual é fundamental desde hoje para o sucesso da revolução
autogestionária” (WILLIANS, 2015, p. 41). Uma sociedade superior pressupõe um
desenvolvimento superior da consciência. Portanto, nada mais contraditório certas
correntes políticas, devido influência do paradigma subjetivista, desvalorar a
teoria e a formação intelectual e cair no pragmatismo e praticismo.
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