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quarta-feira, 23 de março de 2011

Conto: A Raposa e a Ortodoxia


A Raposa e a Ortodoxia

Nildo Viana

Ela se chamava Maria Raposa. Não sabemos como ela era, se alta, baixa, gorda, magra, etc. Não sabemos nenhum detalhe físico para ser narrado enfadonhamente.
Mas sabemos alguma coisa da Raposa, como era carinhosamente chamada. Ela também preferia ser chamada assim, pois “Maria” é muito vulgar. A vulgaridade do nome tinha que ser compensado pelo sobrenome inusitado. É uma aplicação do que ela chamava “lei da compensação”. É preciso compensar a falta de algo com o excesso de outro algo, pois, assim, ao invés de notar a falta, se nota o excesso. Ela dava um exemplo bem feminista: todas as mulheres usam a lei da compensação. Aquelas que têm “falta de inteligência”, compensam como “excesso de beleza”, e as que têm “falta de beleza”, compensam com “excesso de inteligência”. Isto não é, segundo a Raposa, condenável, pois a lei da compensação faz parte de uma lei maior, que é a lei da sobrevivência, como já dizia um descendente do macaco.
Isto, no entanto, dizia a Raposa, se torna problemático quando a falta é grande e o excesso é pequeno. Ela, por exemplo, com sua modéstia e humildade, admitia que tinha “falta de beleza”, mas isto era compensado de alguma forma. O excesso de inteligência não era tão excessivo assim, então ela compensava com uma tradição da família Raposa, que familiarmente era chamada “raposidade” ou, vulgarmente, esperteza, astúcia.
Foi assim que ela entrou para universidade, usando sua “raposidade”. Ela conseguiu relativo sucesso usando esta tradição familiar. Ela sempre concordava com os professores, que, por sua vez, sempre discordavam entre si. Se chegava um e dizia: isto é agua! Ela dizia: é mesmo!! Depois, chegando outro que dizia: isto é terra! Ela dizia: é mesmo!! Assim, o isto se tornou fogo, pedra, ar, isso, inconsciente, ego, superego e muitas outras coisas.
A Raposa concordava com tudo mas sabia que deveria concordar mais com algumas coisas do que com outras. Isto era justificado por outra lei da Raposa. A Raposa era um tanto darwinista e buscava derivar suas concepções da lei da sobrevivência. Só os mais aptos sobrevivem, segundo tal lei. A Raposa apenas acrescentou um item: apenas os mais aptos e os mais adaptados sobrevivem. Então ela criou a Lei da Adaptação. Se são os mais aptos que sobrevivem, é preciso saber quem são os mais aptos e se adaptar a eles. Os mais aptos são os mais fortes, e daí surge mais uma lei, a lei do mais forte. Aqueles que não são mais fortes, o que quer dizer “mais aptos”, devem ser, se forem Raposas, mais adaptados ao mais aptos. É, segundo a Raposa, a lei da natureza. Existem os mais fortes e os mais fracos, bem como existem os que ficam do lado dos fortes e os que ficam do lado dos fracos. A vantagem, para quem não é mais forte, é ficar do lado de quem é. Ela exemplificava admiravelmente itso citando o desenho animado Tom e Jerry em um episódio em que Jerry sempre que era perseguido por Tom corria para o lado de um cachorro. Assim, os que não são mais fortes devem ser um Jerry procurando o seu cachorro. Claro que isso vale mais para um Jerry de verdade, isto é, um rato comum e existente de fato, do que para o rato fictício do desenho, que era tão forte quanto o Tom, o gato fictício. Mas a Raposa não tinha excesso de inteligência para perceber isto.
A lei do mais forte era uma religião para a Raposa. Ela até comprou um livro do Nietzsche para tentar ter um argumento filosófico para reforçar sua tese. O problema é que ela não gostava de ler muito e o livro era muito complicado. Segundo a Raposa, a complicação só pode ser encarada pelos mais aptos, os mais adaptados devem buscar a simplificação mas sem parecer ser um fraco, pois, embora o adaptado seja um fraco, não é qualquer fraco! É um fraco do lado de um forte!! Esta é mais uma das leis da Raposa, a lei da simplificação. Os mais adaptados devem ser pragmáticos. O pragmatismo dos mais adaptados tinha que seguir as duas leis complementares da Raposa: a lei da aparência e a lei da poupança. A lei da aparência significa que o adaptado deve ser excessivamente adaptado ao mais forte, pois, segundo a lei anterior da compensação, o excesso de fraqueza deve ser compensado pelo excesso de adaptação, de tal forma que aparentemente não existe distinção entre apto e adaptado. A lei da aparência também ensina que o parecer é mais importante do que o ser, no caso dos adaptados. A lei da poupança diz que é preciso economizar recursos. Quem tem muitos recursos, como os mais fortes, podem esbanjar, mas quem não tem muito, é precisou poupar, para ter uma reserva quando precisar ou então quando tiver que usar a lei da aparência, e assim utiliza todos os recursos poupados para parecer um apto, um forte. Assim, a lei da poupança é complementar à lei da aparência.
Mas a Raposa não se contentava em citar suas leis. Fazia questão de dar exemplos práticos. Na universidade, todo estudante, tem que aplicar as leis da adaptação. A lei da simplificação, da aparência e da poupança são melhores praticados quando se possui uma bibliografia básica, tal como o Manual do Blefador; Como Vencer um Debate sem ter Razão; Manual do Debatedor. Quando a Raposa entra em um debate, que é algo difícil de se evitar sempre – embora seja bom evitar, segundo a lei de poupança – é bom usar simultaneamente as três leis e uma das formas de fazer isso é utilizar apenas uma palavra (ou, no máximo umas três, de acordo com a lei da poupança) para derrubar o argumento alheio. Por exemplo, em um debate alguém citou um autor que rebatia sua posição e ela retrucou: é ortodoxo! Com esta poupança de recursos e simplificação, que não quer dizer nada, mas dá a aparência de profundidade que desarticula o discurso alheio, ela acabou ficando com ares de inteligente, ou seja, uma adaptada que parecia apta.
O problema da Raposa começou quando ela passou a aplicar sua lei da adaptação de forma muito mecânica, repetitiva. Ela começou a aplicar indistintivamente e em todos os debates o rótulo de ortodoxia. Certa vez ela ficou doente e passou duas semanas sem ir à universidade. O seu retorno coincidia com a realização de um Simpósio e por ter chegado atrasada, só viu um expositor apresentar idéias que eram criticadas pelos mais aptos e pelos mais adaptados. Terminando, abriu-se as inscrições para o público se manifestar. A Raposa ansiosa para mostrar sua volta e sua adaptação incondicional, o que seria feito diante de uma autoridade externa, se inscreveu e foi a primeira a falar: “Prezado Doutor João Lobo, admiro muito o seu trabalho e sua exposição foi excelente. Porém, devo alertá-lo que sua postura é muito ortodoxa”. Um silêncio geral tomou conta do auditório. O Lobo olhou para a Raposa, pegou o microfone e disse: “eu, ortodoxo? Você estava dormindo ou ouvindo a minha palestra?” O silêncio geral foi substituído pelo riso geral. A Raposa ficou sem entender o Lobo e todos os outros. Os mais aptos fizeram de conta que nem a conheciam, os menos aptos, sorriam e os adaptados se adaptaram aos aptos e a desprezaram. Depois de duas semanas, a Raposa descobriu que o Lobo tinha chegado dos Estados Unidos a poucos meses e trouxe as novidades e tendências (não pega bem falar “moda”) inclusive as edições em língua portuguesa dos novos mestres norte-americanos. O problema é que os novos mestres retomavam e recuperavam os mestres de três décadas atrás, e, apesar da linguagem ser parcialmente diferente, o conteúdo era o mesmo. Depois disso, os aptos decidiram que ela estava desadaptada. O seu sucesso relativo se transformou num fracasso absoluto.
Depois do fracasso de sua carreira acadêmica, a Raposa resolveu ir para uma Igreja. Lá ela também tentou utilizar sua lei da compensação para conseguir o sucesso. No entanto, ela também fracassou, em parte por carregar consigo os cacoetes da vida acadêmica. Em uma conversa com um grupo de religiosos e um Bispo ela, mostrando sua discordância, disse: “isto é muito ortodoxo!” ao que o Bispo respondeu: “minha filha, o que você esperava na Igreja Ortodoxa”...

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Publicador originalmente em:
VIANA, Nildo. O Doutor e Outros Contos Incorretos. Rio de Janeiro, Booklink, 2004.

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