JUVENTUDE,
TRABALHO E PROJETO DE VIDA
A
relação entre juventude e trabalho é bastante complexa. O destino dos jovens,
na sociedade moderna, é o trabalho. Essa, portanto, é uma das preocupações
fundamentais dos jovens, bem como da psicologia e outras ciências. A questão da
“escolha vocacional” é uma das mais constantes nas análises psicológicas da
juventude. A relação dos jovens com o trabalho se manifesta nos dilemas
existenciais, na vida psíquica e nas representações e concepções destes. A
ideia de “projeto de vida” remete a uma questão fundamental que está
intimamente relacionada com o trabalho e a escolha vocacional. Várias pesquisas
apontam para a recusa do trabalho por parte dos jovens, desde as análises de
Rousselet (1974) sobre a “alergia ao trabalho” até as análises mais recentes da
posição da juventude diante da atividade laboral remunerada. Assim, para
entender a posição da juventude diante do trabalho é necessário entender a
dinâmica do trabalho na sociedade capitalista, a inserção da juventude nessa
sociedade, objetivando entender a recusa do trabalho e os projetos de vida
relacionados a ele ou que marcam a sua recusa.
O
tema do trabalho alienado e das mutações nas relações de trabalho assume
importância fundamental para compreender a posição da juventude diante da
questão do projeto de vida e da atividade laboral remunerada. Os jovens ainda
não inseridos no mercado de trabalho não tendem a sentir atrativo pelo mesmo
devido seu caráter alienante e por isso a busca de evitar ou atrasar a entrada
nas atividades laborais remuneradas. Por outro lado, a exigência social de
trabalho e rendimentos força os jovens a buscar a inserção no mercado de
trabalho. Para os jovens das classes exploradas, especialmente proletários e
lumpemproletários, a experiência do trabalho precoce cria um diferencial em
relação aos indivíduos jovens das demais classes sociais. Nesse sentido, torna-se fundamental discutir
a questão do projeto de vida para compreender melhor a relação entre juventude
e trabalho, o que remete, também, ao processo de análise da juventude e do
trabalho na sociedade contemporânea.
Projeto
de Vida: Determinação e Liberdade
A
discussão sobre juventude e projeto de vida é realizada por diversas abordagens
na academia brasileira (MANDELLI, SOARES e LISBOA: 2011; DIB e CASTRO, 2010; LEÃO,
DAYRREL e REIS, 2011; DIB, 2007; MAIA e MANCEBO, 2010). Contudo, a precisão
conceitual em torno do que seja “projeto de vida” não se manifesta sob a forma
adequada. Começaremos, portanto, com a discussão em torno do conceito de
projeto de vida.
O
termo projeto é, como quase todos, polissêmico. Antes de definirmos o conceito
de projeto de vida, discutiremos o sentido da palavra projeto em geral. A sua
origem remonta a formação da sociedade moderna e o seu uso é o mais variado
possível, não somente no nível das representações cotidianas como das diversas
áreas do saber especializado (arquitetura, pedagogia, filosofia, etc.) com
sentidos e objetivos distintos. Há também variações dependendo do idioma em que
se manifesta[1].
A sua origem remonta ao projectus,
termo em latim, que significa algo que é lançado como um jato para frente, tal
como no caso do projétil, em português. Um pesquisador francês assim define
projeto:
[...]
conceito dotado de propriedades lógicas a serem explicitadas em suas conexões com
a ação a ser conduzida. Mas, ao mesmo tempo, o projeto aparece como figura que
remete a um paradigma, simbolizando uma realidade que parece preexistir e
escapar-nos: aquela de uma capacidade a ser criada, de uma mudança a ser
operada. O projeto seria, então, o avatar individual e coletivo de um desejo
primitivo de apropriação (Boutinet, 2002, p. 27).
Essa
concepção possui alguns elementos que coincidem com outras definições, mas é
demasiadamente descolada da realidade e por isso ao mesmo tempo não traz concreticidade
e nem um caráter abstrato mais amplo para uso em diversos contextos. Como aqui
não nos interessa as concepções de projetos de determinadas áreas
especializadas do saber (arquitetura, pedagogia, etc.), então realizaremos uma
discussão no âmbito da filosofia para depois avançarmos na definição de projeto
de vida. Partiremos de dois pensadores para repensar o conceito de projeto:
Sartre e Marx.
A
concepção sartreana de projeto remete à sua concepção de liberdade. Obviamente
que devemos distinguir o Sartre de antes da Segunda Guerra Mundial com o
posterior (VIANA, 2008a), pois no primeiro caso a ideia de liberdade humana era
sem limites e no segundo, com sua aproximação com o marxismo, passou a levar em
consideração a questão da situação, dos grupos, etc., e ganhou não apenas mais
concreticidade no nível analítico da realidade, mas também no sentido político
e social. Nesse sentido, a concepção em O
Ser e o Nada (SARTRE, 1998) difere da concepção em obras posteriores,
principalmente em Crítica da Razão
Dialética (SARTRE, 2002). Para Sartre, a liberdade significa “autonomia de
escolha” (1998), posição que carregará com ele mesmo com as mudanças no seu
pensamento[2].
Essa ideia de liberdade é que revela o significado do conceito de projeto em
Sartre:
“[...] queremos dizer
que o homem, antes de mais nada, existe, ou seja, o homem é, antes de mais
nada, aquilo que se projeta num futuro, e que tem consciência de estar se
projetando no futuro. De início, o homem é um projeto que se vive a si mesmo
subjetivamente ao invés do musgo, podridão ou couve-flor; nada existe antes
desse projeto; não há nenhuma inteligibilidade no céu, e o homem será apenas o
que ele projetou ser” (SARTRE, 1987, p. 9).
Assim,
Sartre, um grande pensador da liberdade, utilizando o conceito de projeto, se
aproxima do marxismo, através do reconhecimento da situação (infância, classe
social) e de que a escolha que manifesta a liberdade humana é uma escolha
situada. O homem continua sendo livre, mas suas escolhas ocorrem em determinadas
situações e havendo uma “hierarquia de mediações” se percebe este duplo
processo de determinismo e liberdade (SARTRE, 2002; VIANA, 2008a).
Marx,
por sua vez, é considerado por muitos, equivocadamente, como um pensador
determinista. O ser humano, nessa interpretação equivocada, seria apenas um
joguete das forças sociais coletivas (seja as forças produtivas, o “sistema” –
termo que Marx nem sequer utilizava –, a economia, etc.). Para Marx, “a
natureza humana é a liberdade” (MARX, 1980), afirmação pouco conhecida dos mal
e não leitores deste autor. Mas o que significa dizer que a natureza humana é a
liberdade? Afinal, a posição de Marx seria a mesma que a de Sartre? Na verdade,
são concepções próximas, mas distintas.
Claro
que Sartre era um tanto quanto contraditório ao colocar que “o homem está
condenado a ser livre” e, ao mesmo tempo, dizer que não existe “natureza
humana” (SARTRE, 1987). Marx concebia uma natureza humana e esta era
caracterizada pela liberdade. Contudo, outra diferença reside na concepção de
liberdade. A concepção sartreana coincide com a concepção liberal, o que
permite o foco na questão da escolha. Marx concebia a liberdade como práxis, ação teleológica consciente (MARX,
1988). A construção da concepção marxista da natureza humana expressa a
inseparabilidade entre ser humano e natureza. O próprio ser humano é parte da
natureza. Por isso, ele está submetido às necessidades de seu organismo, tal
como a de beber, comer, reproduzir, etc. Contudo, o ser humano é mais do que um
animal e apesar de compartilhar tais necessidades com os demais seres vivos,
ele possui sua especificidade, que é justamente os elementos fundamentais de
sua natureza, sua essência.
Ele,
para satisfazer tais necessidades básicas, cria novas necessidades,
especificamente humanas, derivadas da forma como busca concretizar tal
satisfação (MARX e ENGELS, 1991; VIANA, 2007). O trabalho e a cooperação
constituem os elementos constitutivos da natureza humana e que, por sua vez,
geram novas necessidades e nesse sentido o ser humano é um ser em constante
desenvolvimento. Porém, há uma confusão nas interpretações dessa concepção. A
natureza humana revela necessidades-potencialidades, mas que podem, e
efetivamente são, negadas em determinadas relações sociais. É nesse sentido que
Marx analisou a questão do trabalho alienado, que constitui uma negação da
natureza humana. Isso se deve ao fato de que o trabalho que Marx concebe com
sendo expressão da natureza humana é o teleológico consciente. Segundo Marx:
Pressupomos o trabalho
numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa
operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto
humano com a construção de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o
pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes
de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado
que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto
idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria
natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe
que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade orientada a um
fim, que se manifesta como atenção durante todo o tempo de trabalho, e isso
tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo próprio conteúdo e pela espécie e
modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos ele o
aproveita, como jogo de suas forças físicas e espirituais (MARX, 1988, p.
142-143).
O
trabalho alienado anula a possibilidade da intencionalidade, da finalidade e
plano atribuído ao trabalho. Ao fazer isso, nega a natureza humana e, não só
isso, mas também degrada as relações sociais, pois o trabalho alienado é uma
relação social na qual alguns indivíduos dirigem as atividades de outros
indivíduos e ao fazê-lo passa a dirigir o produto do seu trabalho e constituir
a degradação das relações sociais, pois a cooperação é substituída pelas
relações de dominação, exploração e, por conseguinte, pela luta. Esse é o
processo que ocorre nas sociedades de classes. Assim, a liberdade (a essência
humana) do ser humano se autoproduzir na história é negada. Ela se vê reduzida
à luta pela liberdade, o único momento de liberdade que resta ao ser humano. Assim
se compreende a aparente contradição de Marx ao postular uma natureza humana e
ao mesmo tempo colocar o ser humano como um ser histórico e social que muda com
as transformações sociais. Segundo Marx:
O modo pelo qual os homens produzem
seus meio de vida depende, antes de tudo, da natureza dos meios de vida já
encontrados e que têm que reproduzir. Não se deve considerar tal modo de
produção de um único ponto de vista, a saber: a reprodução da existência física
dos indivíduos. Trata-se, muito mais, de uma determinada forma de atividade dos
indivíduos, determinada forma de manifestar sua vida, determinado modo de vida dos mesmos. Tal como os
indivíduos manifestam sua vida, assim
são eles. O que eles são coincide, portanto, com sua produção, tanto com o que produzem,
como com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das
condições materiais de sua produção” (MARX e ENGELS, 1991, p. 28).
Os
seres humanos são o que fazem e como fazem, mas isso não abole o que eles
necessitam (o que está expresso na mesma obra, a respeito do trabalho e da
cooperação). Ou seja, há a existência humana, que mostra o que os seres humanos
são concretamente, mas há também sua essência, aquilo que revela suas
necessidades (satisfeitas ou não satisfeitas) e potencialidades. A satisfação
de suas necessidades, a realização de suas múltiplas potencialidades, o
desenvolvimento de suas forças físicas e mentais, é a liberdade, que está
limitada por relações sociais limitadas, constituídas a partir da alienação, da
exploração de classes, e tudo que deriva daí.
Nesse
sentido, para Marx, a liberdade humana é muito mais restrita, mas tal restrição
é constituída histórica e socialmente, assim como pode ser abolida e sua
superação se dá com a constituição do comunismo ou da “livre associação dos
produtores”. Dessa forma, podemos dizer que Sartre coloca um peso maior na
liberdade (de escolha) e Marx um peso maior no processo de subjugação dos seres
humanos, mas a diferença é de grau e não de qualidade[3].
Contudo, ambos apontam para a necessidade da libertação humana, para uma
liberdade mais ampla ou plena.
Essas
duas concepções nos permitem pensar o conceito de projeto de vida. O projeto,
palavra que Marx não utilizou, embora tenha utilizado outras palavras com
sentido semelhante, ao afirmar o caráter teleológico consciente do ser humano,
é intencionalidade, finalidade, produzida na mente para depois se transformar
em ação. Para Sartre, o projeto é fundamentalmente o querer. Assim, apesar uma
certa nuance, assumem significados próximos.
Desta
forma, podemos definir o conceito de projeto (que vai além da palavra de uso
comum em seus diversos sentidos) como o que os indivíduos querem realizar, seus
planos para desenvolver suas atividades. O projeto é o querer e a
intencionalidade dos indivíduos na realização de suas atividades e ações em
geral. O projeto de vida, por conseguinte, é aquilo que os indivíduos querem e
intencionam fazer com suas vidas. Aqui o significado é mais profundo, pois tem
a ver como uma opção de vida, uma intencionalidade não para realizar uma tarefa
determinada por pressões sociais ou por necessidades impostas do exterior.
Trata-se de uma determinada forma de pensar sua existência num sentido ideal
(uma intencionalidade ou querer que revela uma reflexão e consciência sobre o
que quer realizar e como fazê-lo) que se busca concretizar, no sentido mais
amplo em relação à sua vida como um todo. Isto se assemelha à ideia do primeiro
Sartre de “escolha original” ou “projeto original”, que é o fundamento de todas
as escolhas e que no segundo Sartre será uma “escolha situada”. Essa concepção
também expressa o que em Marx pode ser chamado de práxis, o trabalho como objetivação, manifestação ou
autorrealização do ser humano, processo pelo qual ele se autorreproduz, ou
seja, se reproduz de forma teleológica e consciente.
Contudo,
se projeto de vida é práxis, projeto
inaugural, é preciso reconhecer os seus limites na “situação”, que, precisa ser
melhor compreendida e isso foi abordado de forma muito mais profunda e complexa
por Marx. Nesse sentido, temos que distinguir entre existência e essência
humana. A existência humana pode e efetivamente nega a essência humana,
inclusive a elaboração de um projeto de vida. Na sociedade capitalista, mais
especificamente, os indivíduos estão submetidos ao processo de alienação,
exploração, dominação, opressão que perpassa todas as suas relações sociais, a
começar pelo trabalho alienado que manifesta dominação e exploração simultânea,
bem como sua ressonância no conjunto das demais relações sociais e o processo
de dominação geral (desde a formação estatal até as diversas organizações
burocráticas que o indivíduo tem que se submeter). Tudo isto se fundamenta no
trabalho alienado que ocorre em todas as formas de trabalho existentes na
sociedade, mas cuja origem e papel fundamental deriva de sua existência no
trabalho produtivo, que é onde se constitui as duas classes sociais
fundamentais do capitalismo, o proletariado e a burguesia. Logo, esse processo
é acompanhado pela resistência e luta e envolve todos os outros setores da
sociedade. Entretanto, não poderemos aqui desenvolver mais essa questão, pois
demandaria muito espaço e já foi amplamente discutido em diversas obras (MARX,
1988; MARX e ENGELS, 1991; MARX, 1987; VIANA, 2009; VIANA, 2007; VIANA, 2008b; PANNEKOEK,
2011).
Nesse
contexto, a elaboração de um projeto de vida é, para milhares de seres humanos,
uma impossibilidade. Isso se deve ao fato de que estão preocupados com a
sobrevivência, em primeiro lugar, e não resta tempo, possibilidade ou mesmo
expectativa para ir além disso. Esse é o caso dos indivíduos pertencentes ao
lumpemproletariado ou, em grande parte, ao proletariado[4].
Logo, as condições sociais impedem a elaboração de um projeto de vida. Além
disso, essas condições desfavoráveis também permite a elaboração de projetos de
vida sob o signo da alienação, o que significa o uso da liberdade para a
não-liberdade. Se somos o que fazemos (Marx), então o que queremos (Sartre)
pode ser derivado disso. O projeto de vida pode ser produzido a partir da
essência humana e, portanto, negação do que somos e do que vivemos, ou pode ser
produzido a partir da existência humana, e aí significa reafirmação do que
somos e vivemos ou apenas escolha entre as formas existentes de ser e viver[5].
Isso
significa que o projeto de vida pode ser uma janela para a liberdade, se for
constituído a partir da essência humana, ou seja, das necessidades radicais do
ser humano que entra em flagrante contradição com a sociedade capitalista, ou
pode ser apenas uma reprodução da alienação, na qual a “servidão voluntária”,
para usar expressão de La Boétie (1980), significa que o indivíduo aceita o que
vive e apenas o reproduz e busca fazê-lo sob condições um pouco melhores.
Assim, podemos falar em projeto de vida alienado e projeto de vida libertário.
O primeiro significa uma busca de conformação do indivíduo à sociedade
capitalista, buscando apenas melhores condições no seu interior e o segundo
significa uma luta pela liberdade e autorrealização que entra em confronto com
a totalidade da vida social burguesa e que se manifesta mais na própria luta do
que na existência cotidiana, que, no entanto, também é um espaço de luta. O
segundo significa algo mais raro e manifesta uma luta pela liberdade e pela
autorrealização, que se mescla com a busca da sobrevivência, num equilíbrio que
pode pender para um lado ou outro, dependendo do indivíduo, seus valores,
representações, sentimentos, condições de vida, etc.
Juventude
e Trabalho: Afirmação e Negação
Na
sociedade capitalista, o destino dos jovens das classes exploradas e também dos
pertencentes às classes privilegiadas, remete ao problema da relação com o
trabalho e seu futuro na divisão social do trabalho, e por isso os projetos de
vida instituídos pela juventude é de suma importância para analisar sua posição
diante do mesmo.
A
juventude é um grupo social caracterizado pela ressocialização (VIANA, 2004),
também chamada de “socialização secundária” (BERGER e BERGER, 1978). A
ressocialização é uma nova socialização após a que ocorre durante a infância e
visa preparar o indivíduo para o trabalho e as responsabilidades sociais, ou
seja, para o mercado de trabalho e para as demais atividades sociais
necessárias, tal como as “cívicas”, como diria Durkheim (1978), casamento
(produção e reprodução da força de trabalho), etc., incluindo um vasto campo de
atividades, algumas consideradas da vida privada (casamento), outros da vida
“social” (por exemplo: “o exercício da cidadania”). Para tanto, há o processo
de escolarização, a principal instância de ressocialização e instituição
caracterizadora da juventude (VIANA, 2004; AVANZINI, 1980).
No
entanto, existem outras instâncias de ressocialização, desde o trabalho
informal (estágios, “aprendizagem”, trabalho precoce no caso das classes
exploradas, etc.), atividades “recreativas” ou em outras instituições
(religiosas, etc.). O papel proeminente pertence à escola. Para indivíduos do
lumpemproletariado, então é a própria vida no desemprego, mendicância,
prostituição, subemprego, etc., que consiste em seu “modo de ressocialização”,
que é um processo precário e que não prepara ou o faz de forma muito limitada
(dependendo da fração do lumpemproletariado), devido ao fato os indivíduos
desta classe não se inserem (ou se inserem marginalmente) na divisão social do
trabalho, ou seja, no mercado de trabalho e também as demais responsabilidades
sociais são igualmente limitadas.
Sem
dúvida, o indivíduo pertencente a tal classe que consegue efetivar isso não é
exceção e sim uma pessoa que mudou de classe social. A pouca integração do
lumpemproletariado na sociedade capitalista e sua não criação estruturada de
uma condição juvenil se assemelha ao caso da inexistência da juventude em
sociedades pré-capitalistas. Contudo, mesmo os indivíduos do lumpemproletariado
em determinada idade, comumente considerada da “juventude” (apesar de suas
variações devido artificialidade de sua existência), são atingidos por outras
instâncias de ressocialização, tal como os meios oligopolistas de comunicação e
o Estado capitalista (legislação, por exemplo).
Isso
significa que a juventude é um grupo social que emerge na sociedade
capitalista, ou seja, é constituído pela sociedade moderna (VIANA, 2012b). O
que lhe caracteriza é o processo de ressocialização, o que é comum a toda a
juventude (e com a exceção parcial do lumpemproletariado). Desta forma, a
juventude existe para constituir a predisposição para o trabalho e as
responsabilidades sociais, para aceitar a disciplina, os valores, as
representações, típicas da sociedade capitalista e da adaptação ao trabalho e
outras responsabilidades sociais.
Nesse
sentido, é necessário recordar que o trabalho para o qual se destina o jovem é
alienado. É uma atividade dirigida, controlada por outro. Por conseguinte, o produto
da atividade é controlado por outro. E ao ter sua atividade e o produto dela
controlado por outro, então ambos se tornam alheios, pertencentes a outro[6].
Desta forma, o trabalho alienado é uma relação social de controle e por isso
gera o alheamento, que significa que tanto a atividade e o produto que são
controlados pelo outro, também se tornam alheios. É uma relação social entre o
trabalhador/produtor e o não-trabalhador/proprietário. E nessa relação na qual
a atividade e o produto da atividade são controlados por outros e a eles
pertencem, então não há o trabalho no sentido de práxis, atividade teleológica consciente. O trabalho alienado é a
negação da essência humana, ao substituir o trabalho como objetivação,
autorrealização do ser humano através de sua atividade que é humanização do
mundo, por um trabalho heterogerido, e também por degradar a relações entre os
seres humanos, sendo que alguns passam a controlar os outros ao invés de
existir uma cooperação e ação conjunta.
A
consequência desse processo é a recusa do trabalho: o trabalhador não sente bem
no trabalho, mas infeliz; não desenvolve suas energias físicas e mentais, mas
mortifica sua própria natureza. O trabalho alienado não é voluntário e sim
forçado. Não é uma necessidade (tal como o trabalho como objetivação, práxis) e sim um meio para satisfazer
outras necessidades. Assim, “tão logo não
exista coerção física ou outra qualquer, se foge do trabalho como de uma peste”
(MARX, 1989, p. 153).
A
juventude é ressocializada para a execução do trabalho alienado e, por isso, as
instâncias de ressocialização, especialmente a escola (no caso o ensino médio,
técnico-profissionalizante e superior) reproduzem o processo de alienação, pois
precisa disciplinar a futura força de trabalho e repassar os valores e
representações dominantes. A escola, assim como o local de trabalho, possui um
horário fixo e controlado, hierarquia, controle, etc. O produto do trabalho
escolar são práticas e ideias, sendo que estas últimas são mais reprodução do que
produção, ou seja, mesmo das pedagogias não-tradicionais, o conteúdo continua
sendo “transmitido”, que é a ideologia dominante, o saber técnico, as
representações cotidianas que estão de acordo com os interesses dominantes, com
variações e possibilidades de manifestações marginais de divergência. Trata-se
de uma educação burocrática (VIANA, 2008c; VIANA, 2002; SOUZA, 2012; TRAGTENBERG,
1988) cujo objetivo final é reproduzir as relações de produção capitalistas[7].
Devido
a isto existe a recusa tanto do trabalho alienado quando da escola. A recusa da
escola (GOMES, 1997; VIANA, 2010; GUIMARÃES, 1996) se deve não apenas ao fato
da alienação se reproduzir nesta instituição, mas também por outros motivos,
desde as questões sociais que atingem os estudantes das classes exploradas até
o caso da falta de perspectiva de emprego posteriormente ou pelo próprio
descrédito e condições precárias de grande parte das escolas. Contudo, o nosso
foco aqui é a recusa do trabalho alienado[8].
Sem dúvida, tal recusa independe de saber teórico sobre alienação e coisas
semelhantes (embora exista e sirva de justificativa para certos setores), pois
o próprio caráter do trabalho vivenciado cotidianamente ou visto através dos
outros, mostra o parcelamento, o empobrecimento das tarefas, etc. (ROUSSELET,
1974). Numa sociedade competitiva, com trabalho empobrecido, a “alergia ao
trabalho” é algo relativamente comum (ROUSSELET, 1974). Uma pesquisa realizada
na França por Bajoit e Franssen (1997) aponta para a recusa do trabalho
alienado e a busca de autorrealização, que, obviamente, se compreende fora dos
quadros das relações de trabalho:
Essa
recusa de um trabalho que impõe suas limitações ao conjunto da existência (“o
trabalho que absorve vida inteira”) é expressa, de maneira mais ou menos
aberta e declarada, pela maior parte dos jovens, qualquer que seja seu nível
sócio-profissional: “Não quero uma vida em que você se sacrifica pela
empresa” (Joy). O trabalho no quadro de um emprego não é considerado como o
único modo de autorrealização. Na medida em que não seja realizador, ele tende
a ser minimizado, para justificar uma autorredefinição, na esfera familiar para
alguns, ou a partir de uma atividade pessoal para outros. “Eu não me
definiria pelo trabalho, eu me definiria principalmente pelo que faço
paralelamente” (Isabelle). O trabalho então é apenas um “bico”, o
“trabalhinho”, o “contrato”, “temporário”, enquanto o verdadeiro trabalho é a
atividade autônoma (BAJOIT e FRANSSEN, 1997, p. 85).
Contudo,
ao mesmo tempo em que há uma negação do trabalho alienado, há também a sua
necessidade. Na sociedade capitalista, a produção de mercadorias acaba se
generalizando e esse processo gera a mercantilização de tudo (WALLERSTEIN,
1982; VIANA, 2008b). No capitalismo, os alimentos, roupas, habitação, etc.,
passam a ser mercadorias, portadores de valor de troca. Para sobreviver no
capitalismo é preciso possuir uma mercadoria sui generis, o dinheiro, meio de troca universal, para comprar as
demais mercadorias que são valores de uso e necessidade básica para
sobrevivência. É por isso que aqueles que não possuem a propriedade dos meios
de produção são constrangidos a vender sua força de trabalho em troca de um
salário (MARX, 1988). É nesse contexto que o trabalho é valorado, pois não
somente possui o caráter de uma necessidade, como também é cobrado e valorado
socialmente (não em si mesmo, a não ser em algumas afirmações axiológicas, tal
como a do “trabalho que dignifica o homem”) pelo que ele significa:
sobrevivência, capacidade de consumo, entrada na vida adulta[9],
“realização” profissional, etc.
Na
sociedade capitalista, na qual a produção e consumo se separam parcialmente e
se produz valores de troca, o consumo, a competição social, o status e tudo o mais é derivado do
trabalho assalariado para a maioria da população (nos extremos há o
lumpemproletariado e as classes privilegiadas, especialmente a burguesia, que
não vende sua força de trabalho). Numa sociedade marcada pela alienação e,
consequentemente, pela coisificação, então o trabalho alienado passa a
“constituir um importante valor e ter como fundamental instância para a sua
formação como sujeitos no sentido de ser um meio de realização dos sonhos e
desejos pessoais” (MAIA e MANCEBO, 2010, p. 387). Sem dúvida, tais sonhos e
desejos pessoais são os acima elencados, e se destaca a busca por ganhar a
competição social, elemento estrutural da sociabilidade capitalista (VIANA,
2008b).
O
resultado disso é uma ambiguidade diante do trabalho alienado: aceitação e
negação, desvaloração e valoração. O caráter alienado do trabalho assalariado,
bem como o seu caráter necessário no sentido da sobrevivência e da competição
pela ascensão social. A juventude se encontra nessa condição ambígua e isso se
reproduz também em relação à escola. Isso terá um forte impacto na questão da
constituição de projetos de vida, que, contudo, possuem outras determinações.
Trabalho
Alienado, Vida Alienada e Projeto de Vida
O
trabalho alienado acaba generalizando a alienação por toda sociedade moderna. O
processo de mercantilização e burocratização crescente das relações sociais
criam uma situação em que o controle se torna cada vez mais amplo. A alienação
passa a tomar conta de todas as relações de trabalho em diversas instituições,
atingindo até mesmo o lazer, ou seja, o tempo supostamente livre após a jornada
de trabalho alienado. Isso afeta diretamente a juventude e o projeto de vida
dos jovens.
Contudo,
antes de passar para a análise dos efeitos da generalização da alienação no que
se refere aos jovens, é preciso acrescentar a questão das mudanças
contemporâneas. A nova fase do capitalismo marcada pela emergência do regime de
acumulação integral (VIANA, 2009; VIANA, 2003) gera mudanças sociais na esfera
das relações de trabalho (reestruturação produtiva, toyotismo), na formação
estatal (neoliberalismo) e nas relações internacionais (neoimperialismo) que
tem consequências diretas para a juventude. A juventude, além de ser atingida
pelas mudanças sociais gerais (incluindo as culturais derivadas desse processo,
tal como colocaremos adiante), também sofre diretamente o impacto dessas
mutações do capitalismo no processo educacional e nas relações de trabalho.
No
que se refere ao trabalho, o processo de superexploração, precarização, etc.
torna o trabalho alienado ainda mais degradante e menos atrativo. Da mesma
forma, o processo de escolarização perde espaço não somente por sua
precarização devido à dinâmica neoliberal de redução de gastos e desvio da
renda estatal para investimentos onde o capital mais necessita[10],
como também pelo futuro profissional do setor da juventude que entraria na
profissão docente (VIANA, 2012c). Assim, cada vez mais a escola e o trabalho se
tornam atrativos, e cada vez mais o futuro profissional e escolar se torna
menos desejável. O processo de crescimento do desemprego que acompanha o regime
de acumulação integral é outro elemento que deve ser considerado (bem como a
estratégia do prolongamento da escolarização que é ao mesmo tempo despesa e
disfarce para o desemprego juvenil que atinge milhões a nível mundial).
A
vida alienada se intensifica e se torna ainda mais degradada. Assim, a
ambiguidade da juventude em relação ao trabalho alienado se torna mais intensa.
A alergia ao trabalho aumenta, da mesma forma que a necessidade do trabalho
numa sociedade de alto grau de desemprego. É neste contexto que se pode pensar
a questão do projeto de vida dos jovens na atualidade. Contudo, ainda faltam
outras determinações nesse processo. É aqui que se estabelece a questão
cultural.
Como
o regime de acumulação integral emerge uma nova geração. A geração nascida
entre os anos 1970 e 1980, em alguns países, ou entre 1980 e 1990, em outros
países, é marcada por um processo de mutações do capitalismo que trazem
especificidades na situação juvenil (VIANA, 2012d). A juventude como mercado
consumidor passou a ser um nicho em crescimento e os meios oligopolistas de
comunicação atuaram fortemente sobre ele. O consumo cultural torna-se um dos
focos principais desse nicho de mercado. E é neste contexto que vão emergir e
se tornar hegemônica novas ideologias e representações, entre as quais o
pós-estruturalismo, o neoliberalismo, entre outras. O pós-estruturalismo emerge
como uma contrarrevolução cultural preventiva depois das derrotas das lutas
estudantis e operárias do final dos anos 1960 e início dos anos 1970,
especialmente o Maio de 1968 (VIANA, 2009; VIANA, 2003). A nova vigência
cultural do pós-estruturalismo, em suas diversas formas de manifestação, marcam
processos que buscam naturalizar e essencializar processos culturais (YOUNG,
2002).
A
preocupação com a identidade e multiplicidade de “identidades” constituídas
socialmente acabam tornando o processo de ressocialização mais complexo e
indefinido, embora muito mais no reino da ideologia do que na realidade
concreta. A chamada “crise das utopias”, no fundo uma campanha ideológica
orquestrada por um conjunto de ideólogos apoiados nos meios oligopolistas de
comunicação e parte da intelectualidade conservadora e reformista, bem como um
contexto social favorável (a ideologia do fim da história de Fukuyama não
surgiu gratuitamente e sem dúvida a queda do Muro de Berlim fez com que parte
da intelectualidade e da juventude perdesse seus referenciais de resistência ou
buscasse unir os antigos ideais – alterando-os com as novas ideologias da moda
– foi uma determinação). A década do “pensamento único” (anos 1990) e a
hegemonia pós-estruturalista abriu caminho para toda uma situação de
pessimismo, relativismo, ceticismo, que somente no final dessa década começou a
perder espaço, mas continua ainda sendo a ideologia dominante.
A
falta de um projeto utópico (e este não deixou de existir e inclusive de se
fortalecer, e quanto mais há o desgaste do regime de acumulação integral, mais
forte fica, mas ainda sem a força que já possuiu no passado e abrindo novas
perspectivas hoje) promove a falta de ideais, ou que Ingenieros (2010)
denominou a emergência do “homem medíocre”, o homem sem ideais, que sempre
existiu, mas que percentualmente se elevou desde os anos 1970. Assim, junto com
a ideologia pós-estruturalista e o neoconservadorismo – bem como manifestações
análogas – emergem o “homem light” e
a “vida light”, marcado pelo
hedonismo e permissividade (ROJAS, 1996).
Diante
desse processo, a juventude é constituída e reconstituída. A “identidade” da
juventude é constituída socialmente e a falta de projeto de vida que se
manifesta em determinados setores dela, está ligada a este conjunto de
problemas existentes. Assim, a recusa do trabalho alienado persiste, bem como
sua necessidade para amplas camadas da juventude. Nesse caso, não existe homogeneidade
na juventude. Para a juventude das classes exploradas não há muita opção: é
necessário se inserir no mercado de trabalho para garantir sua sobrevivência.
Apesar de muitos, nesse caso, recusarem o trabalho alienado, necessitam dele.
Esse processo de recusa-aceitação não gera um projeto de vida vinculado ao
trabalho, como muitos pensam. O que gera, no fundo, é a busca de inserção no
mercado de trabalho e ao mesmo tempo a busca de sua superação (a busca em se
tornar pequeno empresário, etc., e, em alguns casos, transformação
revolucionária da sociedade ou mesmo a transformação da política profissional
como horizonte de superação de sua situação de classe). Em muitos casos, há uma
ausência de projeto de vida, pois a vida alienada suga as energias e a
capacidade de lutar por uma nova vida ou mesmo a força das ideologias e
concepções dominantes – pragmatismo, hedonismo e permissividade, como coloca
Rojas[11],
podem ser fonte de ausência de um projeto de vida ou então de sua existência
alienada e, portanto, fria, apenas reprodutor dos valores dominantes
(competição, ascensão social, riqueza, poder, etc.) que não satisfaz os seres
humanos, mas que o fracasso em atingir sua realização promove necessidade de
fuga ou satisfação substituta. Alguns escapam pela via religiosa (SOFIATI,
2011). Outros transformam sua carreira profissional em projeto de vida (FORACCHI,
1965). Desta forma, há, para certos setores da juventude, uma ausência de
projeto de vida, e, para outros, a existência de projetos de vida alienados.
Para
um setor minoritário, há ainda a elaboração de projeto de vida que vai além da
adequação à sociedade existente. Segundo Foracchi (1965), alguns (o que remete
à questão do pertencimento de classe), fazem da carreira profissional não
apenas o projeto de vida, mas também a transformação da profissão e da
sociedade. Além disso, a recusa do trabalho alienado e da escola pode passar de
contestação para projeto de vida de transformação radical da sociedade (VIANA,
2011). Claro que isso pode ser casos de setores minoritários, que podem ser
impulsionados por uma cultura contestadora existente, movimentos sociais
radicalizados, ascensão das lutas operárias e pode ser tornar uma tendência
coletiva mais poderosa quando as lutas sociais avançam e se radicalizam, tal
como ocorreu na rebelião estudantil de maio de 1968 em Paris (VIANA, 2011).
Assim, o projeto de vida libertário se torna momentaneamente hegemônico na
juventude. Em outros casos, pode ser mais ou menos forte, dependendo de um
conjunto de determinações.
Considerações
Finais
A
partir da discussão anterior sobre projeto de vida, trabalho alienado, vida
alienada, podemos concluir que a questão muitas vezes é mal colocada. Sem
dúvida, não há consenso em torno dessa questão. O dissenso entre os
pesquisadores manifesta distintas posições diante da sociedade moderna. É por
isso que a maioria esmagadora dos estudos sobre juventude que aborda a questão
do projeto de vida o confunde com o “projeto profissional”, a inserção dos
jovens no mercado de trabalho, na carreira profissional. Sem dúvida, isso é
mais forte na área da psicologia. As posições diante da sociedade moderna, no
entanto, não são escolhas arbitrárias e indeterminadas dos indivíduos. Está
ligada a questão de pertencimento de classe, formação intelectual, valores e
representações, que formam mentalidades e posicionamentos diante da realidade.
Assim como colocamos a diversidade de posição dos jovens diante da questão, os
pesquisadores que estudam a situação e projetos destes jovens também se
distinguem e manifestam diferentes perspectivas.
Da
nossa perspectiva, que, obviamente, consideramos a correta, a discussão em
torno dos projetos de vida vinculados apenas ao processo da carreira
profissional significa em se limitar a apenas determinados setores da juventude
que possuem projetos de vida alienados, ou seja, determinados pela sociedade
(em suas diversas instâncias: família, meios oligopolistas de comunicação,
Estado, discursos científicos, etc.). Também não deixa de ser verdade que a
posição do pesquisador e o discurso científico (ou qualquer outro discurso
especializado) sobre a questão tende a reforçar aquilo que se defende. A vida
na sociedade capitalista é um palco de lutas e estas estão em todos os lugares,
momentos, relações.
A
discussão em torno da relação entre juventude e projeto de vida deve ser mais
ampla, desde contemplando a ausência de projeto de vida até a inclusão de
projetos de vida de setores minoritários e de caráter libertário, utópico. No
fundo, o grande problema não é a ausência de projeto de vida, nem a existência
de projetos de vida alienados, e sim os projetos de vida libertários serem
minoritários, pois é isso que permite a humanização, a superação da
mediocridade (INGENIEROS, 2010) ou do “vazio” (ROJAS, 1996), e o que permite
unir envolvimento e objetivo, necessidade e autorrealização. Neste sentido,
quando Reich (1976) afirma que o que se deve explicar não é o roubo derivado da
fome e sim como que pessoas que têm fome não roubam comida, ele diz mais ou
menos o que colocamos aqui: o que é preciso explicar não é porque alguns jovens
possuem um projeto de vida libertário e sim porque a maioria não possui tal
projeto.
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Revan, 2002.
[1]
Dependendo do idioma, a palavra muda de sentido ou se mistura com outras
palavras e mais de um sentido (BOUTINET, 2002). Em italiano é progetto, englobando os significados de
intenção, esquema e plano; em francês é projeto
que possui os mesmos sentidos que no caso italiano. Em alemão é projekt ou Entwurf, que distingue entre projeto como desígnio (entwurf) e projeto como programa – Project (o que em inglês é distinguido
como purpose e project). Em russo é proekt.
[2]
Existem várias passagens em seus escritos posteriores que confirmam isso: “O
homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se
quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após o impulso
para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é
esse o primeiro princípio do existencialismo” (SARTRE, 1987, p. 5-6).
[3]
A concepção de liberdade em Sartre é a da “liberdade de escolha” e em Marx é a
“liberdade para”, para usar terminologia de Ernst Bloch. A liberdade assume,
para este filósofo, duas formas: a “liberdade de” e “liberdade para”, sendo que
a primeira significa rompimento dos grilhões (estar livre da opressão, da
prisão, etc.) e a segunda significa ação, realização de potencialidades, ou
seja, a primeira é liberdade negativa, se livrar de algo, e a segunda,
liberdade positiva, poder fazer (BICCA, 1987).
[4]
É preciso destacar que o conceito de lumpemproletariado aqui é distinto das
concepções simplistas que atribuem a Marx apenas uma noção pejorativa dessa
classe e expressa aqueles que estão marginalizados na divisão social do
trabalho (VIANA, 2012a). Quanto ao caso do proletariado, existem setores, em
determinados lugares e épocas, que possuem um nível de renda e vida
relativamente elevado, enquanto que em outros lugares e épocas, possuem estão
numa situação extremamente desfavorável, e isso é mais complexo se pensarmos
não apenas em termos geográficos e históricos, mas também entendendo que o
proletariado é dividido por frações de classes e diversas outras subdivisões,
tendo setores em situação bastante precária.
[5]
Esse é o caso daqueles que optam pela adesão a manifestações religiosas: “A
procura principal do jovem é por seu processo de inserção na sociedade. A
questão é que essa sociedade vive um profundo problema de exclusão. Diante de
uma situação de crise, a busca do religioso se configura numa tentativa de
reconquistar o futuro como espaço de estabilidade social. como afirma Novaes,
na análise do tema da juventude e religião é fundamental que se agreguem os
elementos da insegurança e dificuldades de inserção social presentes no Brasil.
Para a autora, o futuro é olhado pelos jovens pela ótica do medo. O caminho
percorrido nesse processo se dá a partir da crise educacional, da falta de
trabalho formal, da não participação política e da falta de perspectiva de
futuro. Isso leva preponderantemente às drogas, ao alcoolismo e à prostituição.
Nessa situação a Igreja passa a ser o ambiente de reencontro com a identidade e
de resgate do projeto de vida” (SOFIATI, 2011, p. 49).
[6]
A discussão sobre alienação e trabalho alienado é longa e já foi realizada por
inúmeros pensadores. A palavra alienação tem vários sentidos, inclusive o
jurídico. O uso aqui remete a concepção de Marx (1983), tal como apresentou nos
seus Manuscritos de Paris. A grande
questão é que mesmo na interpretação da concepção de Marx existe toda uma polêmica.
Da nossa parte, julgamos que o contexto discursivo do referido texto é
fundamental para a compreensão do conceito marxista de alienação e os problemas
interpretativos e de tradução são, grande parte das vezes, gerados por valores,
interesses, representações, que revelam uma divergência de perspectiva em
relação a Marx e daí demonstra sua incompreensão. O mais comum nesse processo é
a substituição da concepção materialista e social de alienação inaugurada por
Marx por uma concepção idealista – e o objetivo de Marx era justamente superar
isso – que remete a alienação para o plano da consciência. Porém, basta notar
que Marx trata do trabalho alienado e
não da “consciência” alienada, para se notar o quão problemática é tal
interpretação. A questão da consciência diante do trabalho alienado é uma
consequência e não a própria alienação. Da mesma forma, determinadas traduções
problemáticas, que trocam o trabalho alienado por “trabalho estranhado” (MARX,
2011), reproduzem a mesma divergência de perspectiva e valores, representações
e interesses em desacordo com a proposta de Marx de emancipação humana.
[7]
O papel reprodutor da educação é reconhecido por diversas tendências
sociológicas, incluindo Durkheim (1978) e Bourdieu e Passeron (1982), bem como
tendências à esquerda (ILLICH, 1980), marxistas (TRAGTENBERG, 1988) ou
influenciados pelo marxismo (SARUP, 1980). A diferença reside apenas em
determinar o objeto da reprodução (desigualdades sociais, como em Bourdieu; ou
“estados físicos, mentais e morais” para viver em sociedade). Claro que o
caráter positivo dessa reprodução em Durkheim contrasta com a crítica da mesma,
bem como a não percepção da contradição em algumas dessas posições difere da
percepção da resistência e luta em outras.
[8]
Sem dúvida, surgem ideologias e concepções que buscam naturalizar esse
processo, transformá-lo em oposição entre “jovens” e “adultos”, o que não é
totalmente falso mas que reflete mais uma pseudoconcreticidade (KOSIK, 1986) do
que a questão essencial. Assim, pode parecer uma recusa das instituições dos
adultos (SEIDMANN, 1968) ao invés do que realmente é, uma recusa da alienação.
[9]
O que significa a integração completa na sociedade burguesa e motivo pelo qual
emergiu o que Georges Lapassade denominou “mito do adulto-padrão” (LAPASSADE,
1975).
[10]
Um elemento fundamental da educação superior no Brasil nos últimos anos, desde
a emergência do regime de acumulação integral no Brasil, é a precarização do
ensino superior estatal (VIANA, 2012c) e crescimento do ensino superior privado
(VIANA, 2012c; SGUISSARDI, 2008).
[11]
O uso de drogas, em constante crescimento, está relacionado com a falta de um
projeto de vida: “com a droga se combate o tédio e a falta de um projeto de
vida coerente e realista” (ROJAS, 1996, p. 108).
...................................
Publicado em:
Publicado em:
VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios Sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.
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