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terça-feira, 1 de janeiro de 2019

A FORÇA DOS SENTIMENTOS


Prefácio ao livro: CASTRO, Maria Aparecida de. Romário de Carro de Bois. Curitiba: Appris, 2018.


A FORÇA DOS SENTIMENTOS*


Nildo Viana




Existem obras que são importantes por desbravar novos territórios ainda não pesquisados e outras por trazerem novas informações ou interpretações de fenômenos já pesquisados. A obra de Maria Aparecida de Castro se insere no segundo caso. As romarias e outros fenômenos religiosos semelhantes já foram abordados por diversos pesquisadores, mas aqui temos uma percepção distinta das experiências religiosas e comunitárias através do caso concreto da Romaria de Trindade, cidade da região da Grande Goiânia, no Estado de Goiás. A autora apresenta uma retomada de diversas discussões que já foram realizadas por autores clássicos e contemporâneos como meio de entender o caso concreto da romaria de Trindade. Essa retomada, no entanto, permite trazer velhas discussões e oferecer novas percepções do fenômeno religioso do que a autora denominou “catolicismo popular” ou “catolicismo rústico”, tal como desenvolvido por outros autores.
A obra se movimentou num vaivém que remete ao processo analítico da sociedade moderna marcada pela antinomia tradição-modernidade, que reaparece sob diversas formas (rural/urbano; religião/secularização, antigo/novo, passado/presente, conservador/progressista) no mundo intelectual e acadêmico. Essa antinomia, muitas vezes vista como uma mera transição ou passagem, outras vezes como uma ruptura drástica, aponta para aspectos da realidade social constituída historicamente e cuja interpretação não se distancia da posição do intérprete entre essas duas opções. Existem, no plano valorativo, sentimental, racional, aqueles que se autodeclaram “modernos”, “progressistas”, “urbanos” e aqueles que se autodefinem como “tradicionais”, “conservadores”, “rurais”. Mesmo aqueles que não se manifestam, seus valores, sentimentos e concepções tendem para uma ou outra posição. Sem dúvida, isso pode se manifestar no plano cultural, moral, político, etc. Isso não nos deve fazer esquecer que outros não se prendem a tais antinomias ou posições, pensando mais em termos de transformação social e futuro do que na escolha entre passado e presente (mesmo que este seja o da constante renovação).
Contudo, mais importante do que tais antinomias e posições derivadas dos intérpretes, é a experiência e a consciência dos indivíduos envolvidos nessas relações sociais. Assim, a riqueza da presente obra está em ir além das análises científicas e ir de encontro com os sentimentos, valores e representações dos romeiros. E aqui temos algo extremamente interessante e importante, inclusive para a análise desse fenômeno religioso. A autora não realiza um trabalho de caráter psicanalítico ou sociopsicanalítico, mas traz temas que remetem a questões profundas dos seres humanos. Enquanto muitas pesquisas focalizam a questão do rural e do urbano, ou então do tradicional e do moderno, pouco se trata de duas questões fundamentais e intimamente relacionadas: os sentimentos e os valores. Nesta obra, temos todas estas questões presentes, mas, no momento analítico, se destaca a questão dos sentimentos e também a dos valores.
Na parte teórica da obra, a autora apresenta uma discussão que remete aos valores e mudanças valorativas, a questão da permanência de valores rurais numa sociedade urbanizada, as mudanças sociais e culturais e seu impacto na religião, o significado dos laços familiares e sua relação com a fuga da solidão, do individualismo e da mercantilização das relações sociais. A questão da urbanização, entre outros aspectos sociais, também é abordada. No entanto, a percepção das mutações valorativas na sociedade e do significado dos laços familiares e sua contraposição ao mundo frio, individualista e mercantil merece destaque, pois é retomada com força quando trata da experiência e consciência dos romeiros. A romaria cumpre o papel de mobilização e integração e isso se revela nos sentimentos e valores dos romeiros.
É nesse contexto que temos a percepção de que a sociedade capitalista realiza um processo crescente de mercantilização, competição, burocratização e racionalização que promovem a hegemonia do individualismo, secularismo, entre outros fenômenos sociais e culturais, que entram em contradição com o que autora denominou “valores rurais”, bem como com a família, a religião, etc. Nesse momento podemos recordar como determinados autores trouxeram o lado negativo do processo de modernização. Jung, por exemplo, condenou a racionalização e a especialização, na qual os indivíduos se tornam excessivamente racionais e unilaterais, bem como se tornam demasiadamente ligados às profissões e trabalho especializado em detrimento dos vínculos afetivos. Marx apresentou esse processo com maestria ao tratar do processo de ascensão da burguesia e modernização, criando um mundo que abole as “relações idílicas” e as substituem pelo “frio pagamento à vista”, uma sociedade fundada na alienação e não na autorrealização.
A autora apresenta os sentimentos dos romeiros no contexto da romaria de Trindade, através dos seus depoimentos e experiências. Um desses sentimentos é a solidão. Antes, a família era o refúgio sentimental do indivíduo – e ainda continua sendo, embora cada vez menos, pois ela também vem sendo cada vez mais racionalizada e mercantilizada – e lhe possibilitava realizar, mesmo que parcialmente, uma das mais profundas necessidades humanas: a socialidade (o que Marx denominou “cooperação”, “associação” e outros denominaram “vínculo social”), ou seja, a integração harmônica na sociedade (ou na “comunidade”). A autora afirma que “a romaria é uma experiência de comunidade” (p. 84). A romaria, por conseguinte, oferece essa possibilidade de reintegração dos indivíduos na sociedade, mesmo que de forma imperfeita e passageira, pois eles vivem numa sociedade da desintegração. Em outra passagem, a autora afirma que “os romeiros de carro de bois e suas famílias gostariam de viver numa sociedade menos individualista e mais solidária em que prevalecesse o ideário comunitário” (p. 87). A socialidade é uma necessidade psíquica dos seres humanos, ou, como diriam outros, é uma necessidade existencial. A integração numa sociedade desintegradora, marcada pela divisão social, exploração, dominação, competição, luta de classes, entre diversos outros processos desintegradores, não pode mais ocorrer, a não ser marginalmente e em lugares restritos. Assim, a comunidade e a família são alguns destes lugares restritos que se busca ainda realizar essa necessidade humana. A sociedade desintegradora é uma sociedade dos desejos em contraposição a uma sociedade que pudesse satisfazer as necessidades humanas, que seria uma sociedade de necessidades e potencialidades. Os desejos são passageiros, coisas criadas pela força da dinâmica social, enquanto que as necessidades são permanentes, mesmo que sob a forma de potencialidades. A satisfação dos desejos geram indivíduos momentaneamente contentes, enquanto que a satisfação das necessidades engendram indivíduos felizes.
Assim, a autora mostra, em outra passagem, uma percepção de um dos significados esquecidos da família: “a família tem um papel determinante no desenvolvimento da sociabilidade, da afetividade e do bem estar físico dos indivíduos, sobretudo durante a infância e adolescência” (p. 91). Esse lado esquecido da família (que não se deve generalizar, pois existem distintas formas históricas assumidas pelas famílias concretas, bem como no interior de uma mesma época e sociedade, tal como a nossa, que reproduz processos sociais que destroem tal lado) é ser uma união afetiva. Logo, é o locus da educação sentimental e formação dos seres humanos. As famílias modernas diminuem – em alguns casos abolem – esse caráter de união afetiva e assim contribuem para a frieza, a coisificação e outros processos modernizadores que muitos já alertaram que podem ser geradores de novos barbarismos, tal como no caso do nazismo.
Outro sentimento que aparece muitas vezes nesta obra é a saudade. A romaria, e sua retomada de valores como a família, tem o sentido de buscar a integração social, permitir que uma das características da natureza humana se realize, a socialidade. Nesse momento, há o processo de idealizar e romantizar o passado. A saudade é o sentimento que expressa essa idealização. É por isso que emerge em várias passagens a discussão sobre a saudade, inclusive da “comunidade”. Sem dúvida, a comunidade e a família eram mais fortes no espaço rural e hoje são cada vez mais dilacerados pelo processo de desenvolvimento capitalista. No entanto, não eram livres de problemas e outros tipos de limites, contradições, etc. Mas é uma característica humana sempre idealizar o passado e quando tem bases reais para isso, tende a amplificar e exagerar as qualidades da “era de ouro”. Mas é preciso evitar a idealização do passado, bem como a apologia do presente. O passado não era o paraíso, tinha vantagens e desvantagens. O presente não é o paraíso, tem vantagens e desvantagens. Se quisermos um paraíso, é no futuro que devemos procurá-lo. Ou melhor, constituí-lo. Para tanto, temos que saber o que é necessário para os seres humanos e o que não passa de desejos momentâneos, o que é que serve para o processo de autorrealização e o que é apenas consumo, alegria passageira, etc. O processo de humanização, de constituição do ser humano como ser social, foi um longo processo histórico e que não terminou. A desumanização do tempo presente faz muitos quererem voltar ao passado, não compreendendo que é necessário completar esse processo e isso só pode ocorrer no futuro.
Por fim, essas reflexões são apenas parte do que podemos extrair da presente obra, que traz diversos outros elementos, inclusive a respeito dos valores. A autora não pretendia realizar uma sociologia dos valores, mas apresentou vários aspectos importantes nesse sentido. Focalizamos aqui um dos elementos mais importantes da presente obra que foi tratar da Romaria de Trindade a partir de seus efeitos sentimentais. Assim, enriquece a discussão sobre os fenômenos culturais e religiosos, permitindo observar algo que a sociedade contemporânea vem constantemente querendo ocultar e sufocar: os sentimentos. Desta forma, torna-se leitura importante para todos que trabalham com a religião, como o fenômeno mais específico das romarias, bem como com a cultura em geral. E se considerarmos a presente obra metaforicamente como uma árvore, então devemos entender que ela só pode ser uma árvore frutífera e que, assim, deverá gerar muitos frutos novos sob a forma de saberes novos.

Dr. Nildo Viana
Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás.

Prefácio de:
CASTRO, Maria Aparecida de. Romaria de Carro de Bois. Saudade da Terra, da Comunidade e de Laços Familiares Profundos. Curitiba: Appris, 2018.

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