Prefácio ao livro: CASTRO, Maria Aparecida de. Romário de Carro de Bois. Curitiba: Appris, 2018. |
A
FORÇA DOS SENTIMENTOS*
Nildo Viana
Existem obras que são
importantes por desbravar novos territórios ainda não pesquisados e outras por trazerem
novas informações ou interpretações de fenômenos já pesquisados. A obra de
Maria Aparecida de Castro se insere no segundo caso. As romarias e outros
fenômenos religiosos semelhantes já foram abordados por diversos pesquisadores,
mas aqui temos uma percepção distinta das experiências religiosas e
comunitárias através do caso concreto da Romaria de Trindade, cidade da região
da Grande Goiânia, no Estado de Goiás. A autora apresenta uma retomada de diversas
discussões que já foram realizadas por autores clássicos e contemporâneos como
meio de entender o caso concreto da romaria de Trindade. Essa retomada, no
entanto, permite trazer velhas discussões e oferecer novas percepções do
fenômeno religioso do que a autora denominou “catolicismo popular” ou “catolicismo
rústico”, tal como desenvolvido por outros autores.
A obra se movimentou num
vaivém que remete ao processo analítico da sociedade moderna marcada pela
antinomia tradição-modernidade, que reaparece sob diversas formas (rural/urbano;
religião/secularização, antigo/novo, passado/presente, conservador/progressista)
no mundo intelectual e acadêmico. Essa antinomia, muitas vezes vista como uma
mera transição ou passagem, outras vezes como uma ruptura drástica, aponta para
aspectos da realidade social constituída historicamente e cuja interpretação
não se distancia da posição do intérprete entre essas duas opções. Existem, no
plano valorativo, sentimental, racional, aqueles que se autodeclaram
“modernos”, “progressistas”, “urbanos” e aqueles que se autodefinem como
“tradicionais”, “conservadores”, “rurais”. Mesmo aqueles que não se manifestam,
seus valores, sentimentos e concepções tendem para uma ou outra posição. Sem
dúvida, isso pode se manifestar no plano cultural, moral, político, etc. Isso
não nos deve fazer esquecer que outros não se prendem a tais antinomias ou
posições, pensando mais em termos de transformação social e futuro do que na
escolha entre passado e presente (mesmo que este seja o da constante
renovação).
Contudo, mais importante
do que tais antinomias e posições derivadas dos intérpretes, é a experiência e
a consciência dos indivíduos envolvidos nessas relações sociais. Assim, a
riqueza da presente obra está em ir além das análises científicas e ir de
encontro com os sentimentos, valores e representações dos romeiros. E aqui
temos algo extremamente interessante e importante, inclusive para a análise
desse fenômeno religioso. A autora não realiza um trabalho de caráter
psicanalítico ou sociopsicanalítico, mas traz temas que remetem a questões
profundas dos seres humanos. Enquanto muitas pesquisas focalizam a questão do
rural e do urbano, ou então do tradicional e do moderno, pouco se trata de duas
questões fundamentais e intimamente relacionadas: os sentimentos e os valores. Nesta
obra, temos todas estas questões presentes, mas, no momento analítico, se
destaca a questão dos sentimentos e também a dos valores.
Na parte teórica da obra,
a autora apresenta uma discussão que remete aos valores e mudanças valorativas, a questão da permanência
de valores rurais numa sociedade urbanizada, as mudanças sociais e culturais e
seu impacto na religião, o significado dos laços familiares e sua relação com a
fuga da solidão, do individualismo e da mercantilização das relações sociais. A
questão da urbanização, entre outros aspectos sociais, também é abordada. No
entanto, a percepção das mutações valorativas na sociedade e do significado dos
laços familiares e sua contraposição ao mundo frio, individualista e mercantil
merece destaque, pois é retomada com força quando trata da experiência e
consciência dos romeiros. A romaria cumpre o papel de mobilização e integração
e isso se revela nos sentimentos e valores dos romeiros.
É nesse contexto que temos a percepção de que a sociedade capitalista
realiza um processo crescente de mercantilização, competição, burocratização e
racionalização que promovem a hegemonia do individualismo, secularismo, entre
outros fenômenos sociais e culturais, que entram em contradição com o que
autora denominou “valores rurais”, bem como com a família, a religião, etc. Nesse
momento podemos recordar como determinados autores trouxeram o lado negativo do
processo de modernização. Jung, por exemplo, condenou a racionalização e a
especialização, na qual os indivíduos se tornam excessivamente racionais e unilaterais,
bem como se tornam demasiadamente ligados às profissões e trabalho
especializado em detrimento dos vínculos afetivos. Marx apresentou esse
processo com maestria ao tratar do processo de ascensão da burguesia e
modernização, criando um mundo que abole as “relações idílicas” e as substituem
pelo “frio pagamento à vista”, uma sociedade fundada na alienação e não na
autorrealização.
A autora apresenta os sentimentos dos romeiros no contexto da romaria
de Trindade, através dos seus depoimentos e experiências. Um desses sentimentos
é a solidão. Antes, a família era o refúgio sentimental do indivíduo – e ainda
continua sendo, embora cada vez menos, pois ela também vem sendo cada vez mais
racionalizada e mercantilizada – e lhe possibilitava realizar, mesmo que
parcialmente, uma das mais profundas necessidades humanas: a socialidade (o que
Marx denominou “cooperação”, “associação” e outros denominaram “vínculo
social”), ou seja, a integração harmônica na sociedade (ou na “comunidade”). A
autora afirma que “a romaria é uma experiência de comunidade” (p. 84). A
romaria, por conseguinte, oferece essa possibilidade de reintegração dos
indivíduos na sociedade, mesmo que de forma imperfeita e passageira, pois eles
vivem numa sociedade da desintegração. Em outra passagem, a autora afirma que “os
romeiros de carro de bois e suas famílias gostariam de viver numa sociedade
menos individualista e mais solidária em que prevalecesse o ideário
comunitário” (p. 87). A socialidade é uma necessidade psíquica dos seres
humanos, ou, como diriam outros, é uma necessidade existencial. A integração
numa sociedade desintegradora, marcada pela divisão social, exploração,
dominação, competição, luta de classes, entre diversos outros processos
desintegradores, não pode mais ocorrer, a não ser marginalmente e em lugares
restritos. Assim, a comunidade e a família são alguns destes lugares restritos
que se busca ainda realizar essa necessidade humana. A sociedade desintegradora
é uma sociedade dos desejos em contraposição a uma sociedade que pudesse
satisfazer as necessidades humanas, que seria uma sociedade de necessidades e
potencialidades. Os desejos são passageiros, coisas criadas pela força da dinâmica
social, enquanto que as necessidades são permanentes, mesmo que sob a forma de
potencialidades. A satisfação dos desejos geram indivíduos momentaneamente
contentes, enquanto que a satisfação das necessidades engendram indivíduos
felizes.
Assim, a autora mostra, em outra passagem, uma percepção de um dos
significados esquecidos da família: “a família tem um papel determinante no
desenvolvimento da sociabilidade, da afetividade e do bem estar físico dos
indivíduos, sobretudo durante a infância e adolescência” (p. 91). Esse lado
esquecido da família (que não se deve generalizar, pois existem distintas
formas históricas assumidas pelas famílias concretas, bem como no interior de
uma mesma época e sociedade, tal como a nossa, que reproduz processos sociais
que destroem tal lado) é ser uma união afetiva. Logo, é o locus da educação sentimental e formação dos seres humanos. As
famílias modernas diminuem – em alguns casos abolem – esse caráter de união
afetiva e assim contribuem para a frieza, a coisificação e outros processos
modernizadores que muitos já alertaram que podem ser geradores de novos
barbarismos, tal como no caso do nazismo.
Outro sentimento que aparece muitas vezes nesta obra é a saudade. A
romaria, e sua retomada de valores como a família, tem o sentido de buscar a
integração social, permitir que uma das características da natureza humana se
realize, a socialidade. Nesse momento, há o processo de idealizar e romantizar
o passado. A saudade é o sentimento que expressa essa idealização. É por isso
que emerge em várias passagens a discussão sobre a saudade, inclusive da
“comunidade”. Sem dúvida, a comunidade e a família eram mais fortes no espaço
rural e hoje são cada vez mais dilacerados pelo processo de desenvolvimento
capitalista. No entanto, não eram livres de problemas e outros tipos de
limites, contradições, etc. Mas é uma característica humana sempre idealizar o
passado e quando tem bases reais para isso, tende a amplificar e exagerar as
qualidades da “era de ouro”. Mas é preciso evitar a idealização do passado, bem
como a apologia do presente. O passado não era o paraíso, tinha vantagens e
desvantagens. O presente não é o paraíso, tem vantagens e desvantagens. Se
quisermos um paraíso, é no futuro que devemos procurá-lo. Ou melhor, constituí-lo.
Para tanto, temos que saber o que é necessário para os seres humanos e o que
não passa de desejos momentâneos, o que é que serve para o processo de
autorrealização e o que é apenas consumo, alegria passageira, etc. O processo
de humanização, de constituição do ser humano como ser social, foi um longo
processo histórico e que não terminou. A desumanização do tempo presente faz
muitos quererem voltar ao passado, não compreendendo que é necessário completar
esse processo e isso só pode ocorrer no futuro.
Por fim, essas reflexões são apenas parte do que podemos extrair da
presente obra, que traz diversos outros elementos, inclusive a respeito dos
valores. A autora não pretendia realizar uma sociologia dos valores, mas
apresentou vários aspectos importantes nesse sentido. Focalizamos aqui um dos
elementos mais importantes da presente obra que foi tratar da Romaria de
Trindade a partir de seus efeitos sentimentais. Assim, enriquece a discussão
sobre os fenômenos culturais e religiosos, permitindo observar algo que a
sociedade contemporânea vem constantemente querendo ocultar e sufocar: os
sentimentos. Desta forma, torna-se leitura importante para todos que trabalham
com a religião, como o fenômeno mais específico das romarias, bem como com a
cultura em geral. E se considerarmos a presente obra metaforicamente como uma
árvore, então devemos entender que ela só pode ser uma árvore frutífera e que,
assim, deverá gerar muitos frutos novos sob a forma de saberes novos.
Dr.
Nildo Viana
Professor da Faculdade
de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Goiás.
Prefácio de:
CASTRO, Maria Aparecida de. Romaria de Carro de Bois. Saudade da Terra, da Comunidade e de Laços Familiares Profundos. Curitiba: Appris, 2018.
So cool ! Read the best fantasy book
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