BEM-VINDO
À FALSIDADE
SUPERFICIALIDADE
E MEDIOCRIDADE NO CONTO MACHADIANO “TEORIA DO MEDALHÃO”
Maria Angélica
Peixoto
Nildo Viana
O conto de Machado de
Assis, Teoria do Medalhão, apresenta uma crítica sob a forma de ironia do
chamado “medalhão”. Que figura é essa? A resposta a essa questão ajuda a
entender o referido conto e a compreender que se trata de uma espécie de
indivíduo muito comum em nossa sociedade, o que remete para a questão das
relações sociais na modernidade.
O conto gira em torno
de um diálogo entre um pai e seu filho, chamado Janjão, a respeito do futuro
deste. Janjão chega à maioridade e seu pai senta com o filho para aconselhá-lo.
O pai expõe ao filho as diversas possibilidades de profissões, mas destaca a
necessidade de, em qualquer uma delas, optar pela condição de medalhão. O
conselho é: “te faças grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes
acima da obscuridade comum” (MACHADO DE ASSIS, 1994). Os conselhos do pai
detalham o que o filho deve fazer para ser um medalhão “lançar mão de um regime
debilitante, ler compêndios de retórica, ouvir certos discursos”... e, continua
“melhor do que tudo isso, porém, são as frases feitas, as locuções
convencionais, as fórmulas consagradas pelos anos, incrustadas na memória
individual e pública” (MACHADO DE ASSIS, 1994).
Com a adoção dessa
postura, o protagonista do conto não coloca em risco o filho, ao garantir que,
seguindo a sugestão paterna, ele poupava os outros da obrigação de “esforços
inúteis” e garantia, assim, a afeição e a admiração do público. E ele radicaliza
a cada parágrafo do conto as recomendações ao seu rebento. Na lista de
sugestões estava também o pedido para que o filho não transcendesse jamais “os
limites de uma invejável vulgaridade” (MACHADO DE ASSIS, 1994). O cuidado com a
imagem social somava-se à lista e apontava caminhos para se evitar malogros e,
para concretizar isso, dentre os prováveis caminhos, estava a necessidade de
garantir a divulgação dos feitos não devendo nunca recusar à mesa a presença de
repórteres. Essa seria a fórmula do sucesso para um verdadeiro medalhão.
Esse conto traz
diversos temas sociológicos e questões que ajudam a pensar sobre a sociedade
moderna. O discurso do pai de Janjão para o seu filho permite refletir sobre as
questões sociais: a entrada no mundo adulto, o objetivo do indivíduo e os meios
para consegui-lo. Um elemento implícito no conto, que certamente não era da
intenção de Machado de Assis trabalhar, é a entrada no mundo adulto. Janjão
completava 22 anos à meia noite e se tornaria “adulto”. Obviamente que é
preciso contextualizar a obra, publicada em 1881, na qual a menoridade se
encerrava com 21 anos. Essa entrada, na verdade, não ocorria imediatamente. No
fundo, a questão da menoridade e maioridade expressa dois momentos da vida
individual, e sair de um momento e ir para outro significa passar da infância
e/ou juventude para a vida adulta, o que ocorre de forma diferenciada em
sociedades distintas. No fundo, o que o pai de Janjão faz é iniciar o processo
de ressocialização do filho, o que, obviamente, será complementado em outros
lugares, tal como a escola. A juventude é justamente o momento de
ressocialização, que ocorre após a socialização primária, e significa a
preparação para a vida adulta, o trabalho e as responsabilidades sociais e
familiares, etc. (VIANA, 2015).
O fundamental do conto,
no entanto, é o objetivo apresentado pelo pai de Janjão e os meios para se
atingir tais objetivos. O objetivo é ter sucesso numa profissão, fazer
carreira. Essa é a parte da ressocialização voltada para a preparação para o
trabalho. O objetivo é escolher uma profissão, qualquer que seja, e ter sucesso
na mesma. Aqui se revela que a ressocialização é para a sociedade capitalista,
marcada por uma ampla divisão social do trabalho, na qual cada indivíduo deve
se especializar no trabalho, aderindo a uma profissão. A lista apresentada é
grande: parlamento, magistratura, imprensa, lavoura, indústria, comércio,
letras e artes. Aqui se revela a questão da sociabilidade capitalista: os seres
humanos são preparados, e a juventude é o momento chave nesse processo, para a
competição social e para vencer acima de tudo. Afinal, é preciso “vencer na
vida”. Assim, os jovens são preparados para a competição social, um dos
elementos fundamentais da sociabilidade capitalista, com o objetivo de vencer a
competição, o que significa realizar o objetivo imposto pela sociedade moderna:
sucesso, fama, status, riqueza, poder[1].
O pai de Janjão é claro
ao colocar a competição e o objetivo da mesma: “a vida, Janjão, é uma enorme
loteria: os prêmios são poucos, os malogrados inúmeros, e com os suspiros de
uma geração é que se amassam as esperanças de outra” (MACHADO DE ASSIS, 1994). Esse
processo é naturalizado: “isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas
aceitar as coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e
desdouros, e ir por diante” (MACHADO DE ASSIS, 1994). Aqui, o pai de Janjão
naturaliza a competição social e a existência de vencedores e derrotados.
O foco do conto, no
entanto, é no meio para conseguir vencer a competição social. E o meio
apresentado é ser “medalhão”. O que é um medalhão? A palavra significava,
originalmente, um retrato posto em moldura redonda ou oval. O significado
original da palavra continua existindo, mas ela ganhou um novo significado, de
caráter social. Os indivíduos que possuem seu retrato em molduras em locais
públicos ou empresas são tidos como indivíduos importantes. É o caso de donos
de empresas ou políticos importantes, bem como fundadores de instituições. Daí
o novo significado da palavra: pessoa importante, “figurão”.
O conto de Machado de
Assis critica justamente a figura do “medalhão”. O conselho do pai para o filho
é que, independente de qualquer profissão, o importante é vencer a competição e
se fazer “grande e ilustre”. O conselho do pai é que, caso o filho fracasse na
carreira que escolher, tenha uma alternativa e esta seria a de medalhão. No
conto, ser medalhão aparece como “ofício” e “profissão”, mas é apenas uma
ironia de Machado de Assis. Os medalhões que existem na sociedade real são tão
apegados em buscar aparecer e ter sucesso e fama, que isso parece ser uma
profissão, um ofício, exigindo a mesma dedicação que qualquer outra carreira.
A crítica aparece sob a
forma de ironia: a inópia mental é “conveniente ao uso deste nobre ofício” e
para ter sucesso em tal “profissão” é preciso ler “compêndios de retórica”[2],
bem como ouvir certos discursos, jogar voltarete[3],
dominó, whist[4]
e bilhar[5]. A
ironia continua com os demais conselhos: “falar do boato do dia, da anedota da
semana, de um contrabando, de uma calúnia, de um cometa”, bem como as crônicas
de Mazade[6], a
repetição de “frases feitas, as locuções convencionais, as fórmulas
consagradas”, entre outras. O pai também aconselha a “nenhuma imaginação” e
ainda proíbe que “chegues a outras conclusões que não sejam as já achadas por
outros”; “foge a tudo que possa cheirar a reflexão, originalidade, etc., etc.”.
O uso do adjetivo (“a alma do idioma”) em detrimento do substantivo (“a
realidade nua e crua”; “é o naturalismo do vocabulário”) é outra forma de
buscar popularidade. Por fim, a superficialidade remete para a não ter
posicionamentos, nem mesmo em política. Segundo o pai de Janjão, ele pode ser
de qualquer partido (liberal, conservador, republicano, ultramontano), mas
seguindo a “cláusula única de não ligar nenhuma ideia especial a esses
vocábulos” (MACHADO DE ASSIS, 1994). Em outras palavras, tanto faz qual é o
partido, pois ele não deve ter vínculo com nenhuma concepção. O conselho é mais
ou menos este: seja do partido liberal, mas não defenda ideias liberais (ou
qualquer outro partido e ideia vinculada). O partido é apenas um rótulo.
A ironia com o
“medalhão” é uma crítica àqueles indivíduos famosos, mas sem méritos, que não
ultrapassam os clichês, os lugares-comuns. A crítica é semelhante à realizada
por José Ingenieros ao “homem medíocre”:
Considerado
individualmente, a mediocridade poderá ser definida como uma ausência de
características pessoais que permitam distinguir o indivíduo em sua sociedade.
Esta oferece a todos o mesmo fardo de rotinas, preconceitos e domesticidade;
basta reunir cem homens para coincidirem na impersonalidade; ‘reúnam mil gênios
num Concílio e terão a alma de um medíocre’. Essas palavras denunciam o que em
cada homem não pertence a ele mesmo e que, ao se somar muitos, revela-se pelo
baixo nível das opiniões coletivas (INGENIEROS, p. 39).
Em síntese, o conto de
Machado de Assis efetiva uma crítica radical a uma espécie de indivíduo que
realiza a competição social e busca ganhá-la não através do mérito e sim
através da aparência e da falsidade. A superficialidade é o segredo da
popularidade, elemento fundamental para o sucesso e a fama. O medalhão é um
medíocre e a mediocridade é o meio para conseguir o sucesso. Assim, Machado de
Assis busca criticar essa espécie de indivíduo que foi chamado de “medalhão” e,
ao fazer isto, acaba revelando elementos da sociabilidade capitalista e outros
processos sociais, como a competição, a superficialidade, os chavões, etc.
Referências
INGENIEROS,
José. O Homem Medíocre. Curitiba:
Chain.
MACHADO
DE ASSIS, J. M. Teoria do Medalhão. In: Obra
Completa de Machado de Assis. vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
SCHOPENHAUER,
Arthur. Como Vencer um Debate sem
precisar ter Razão. São Paulo: Topbooks, 2003.
VIANA,
Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios
sobre a Condição Juvenil. São Paulo: Giostri, 2015.
VIANA,
Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do
Capital. Ensaios Freudo-marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
[1] Sobre sociabilidade capitalista
e seus elementos constitutivos, cf. Viana (2008).
[2] A retórica é uma forma de
discurso cujo objetivo é vencer o debate a qualquer custo e lançando mão de
estratagemas desonestos, tal como mudar de assunto, escandalizar, adjetivos
pejorativos, etc. A esse respeito, o filósofo Schopenhauer escreveu a obra
“Como vencer um debate sem precisar ter razão” (SCHOPENHAUER, 2003).
[3] Jogo de cartas.
[4] O Whist, também chamado, de forma aportuguesada, de Uíste, é um jogo
de baralho de duas duplas.
[5] São jogos que, supostamente, não
exigem grande esforço intelectual. O dominó, por exemplo, poderia ser comparado
ao xadrez, sendo este muito mais complexo e exigindo concentração e esforço
intelectual muito superior. O dominó é um jogo mais popular nas classes
desprivilegiadas e o xadrez mais popular nas classes privilegiadas.
[6] Louis Charles Jean Robert de
Mazade (1820-1893), foi um historiador, jornalista e cronista francês. Ele é
autor de “Crônica da Quinzena”, publicada na Revue du Deux Mondes.
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Publicado originalmente em:
PEIXOTO, Maria Angélica e VIANA, Nildo. Bem-Vindo à Falsidade - Superficialidade e Mediocridade no Conto Machadiano "Teoria do Medalhão". Revista Poeticus. Vol. 04, num. 08, jul./dez. de 2017.
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