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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Super-Heróis e Inconsciente Coletivo


Super-Heróis e Inconsciente Coletivo

Nildo Viana

Em um texto anterior discutimos a relação entre super-heróis e axiologia [1]. No presente texto, continuamos tratando da temática da super-aventura, mas passando da discussão sobre os aspectos axiológicos e conservadores da super-aventura para a análise da super-aventura como manifestação do inconsciente coletivo. Isto é necessário devido ao fato de que o mundo dos super-heróis é um mundo de fantasia, produzido pela imaginação, e por isso mesmo é locus de manifestação do inconsciente, tal como afirma a psicanálise. Porém, não trataremos aqui do inconsciente individual e sim do inconsciente coletivo, que definiremos mais adiante, pois não se trata de analisar obras de autores enquanto indivíduos e sim um gênero como um todo, o que leva a analisar a obra coletiva de uma infinidade de autores individuais.

Os super-heróis são seres sobre-humanos e que por isso mesmo superam as limitações humanas. Segundo Jacques Marny, “eles são personagens vivos, mágicos da ilusão e da fantasmagoria, mas também são mestres do sonho e símbolo do desejo de poder”[2] . É justamente aí que encontramos a relação entre super-heróis e inconsciente coletivo. Mas antes de tratar desta relação é preciso analisar o que é o inconsciente coletivo. Freud dizia que o universo mental (ou, segundo suas palavras, “aparelho psíquico”) do indivíduo era composto pela consciência e pelo inconsciente (inicialmente ele o dividia em dois componentes – princípio de prazer e princípio de realidade – e posteriormente em três – id, ego e superego –, embora um grande número de psicanalistas prefiram utilizar sua concepção inicial). O inconsciente era produto da repressão que a sociedade fazia aos instintos do indivíduo, o lugar onde vivem os desejos reprimidos.

Freud nunca usou a expressão “inconsciente coletivo”, considerando que não haveria nenhuma vantagem com sua utilização, embora aceitasse a idéia de um conteúdo coletivo para o inconsciente, tal como propôs Jung [3]. O primeiro a se referir a um inconsciente coletivo foi o seu colaborador e posteriormente dissidente, Carl Gustav Jung, que forneceu uma visão metafísica deste conceito, que representaria, segundo ele, arquétipos universais e imutáveis. A renovação ocorreu com Erich Fromm (embora ele fale de “inconsciente social” e não em “inconsciente coletivo”).

Erich Fromm define inconsciente social da seguinte maneira:

“A diferença entre a expressão de Jung, ‘inconsciente coletivo’, e o ‘inconsciente social’ aqui empregada é a seguinte: o ‘inconsciente coletivo’ indica diretamente a psique universal, grande parte da qual não pode nem mesmo tornar-se consciente. O conceito de inconsciente social parte da noção do caráter repressivo da sociedade e se refere àquela parte específica da experiência humana que uma determinada sociedade não permite que atinja a consciência”[4] .

Desta forma, o inconsciente coletivo é expressão de um desejo reprimido socialmente que atinge o conjunto da sociedade ou então grupos sociais no seu interior. A posição de Fromm, entretanto, é limitada, pois sua visão do inconsciente é puramente cultural, esquecendo que o processo psíquico é um processo energético. Além disso, Fromm considera que tudo o que é reprimido faz parte do inconsciente, o que é um equívoco[5] .

O inconsciente coletivo, do nosso ponto de vista, é o conjunto de necessidades/potencialidades reprimidas em todos os indivíduos que formam uma coletividade (grupo, classe etc.). É no mundo da fantasia, dos sonhos, etc., que ele se manifesta mais constantemente. Os sonhos comuns em um grupo social ou na sociedade são geralmente inacessíveis mas a fantasia não. As aventuras dos super-heróis expressam uma fantasia que é expressão do inconsciente coletivo: o desejo de poder.

Ora, vivendo em uma sociedade dominada pela repressão, pela burocracia, etc., nada é mais natural do que buscar, na fantasia, ultrapassar este estado de coisas. Citemos dois exemplos colocados por Erich Fromm:

“Deve haver muitos comerciantes em nossas cidades grandes que tenham um cliente que precise muito, digamos, de um terno, de roupa, mas que não dispõe de dinheiro suficiente para comprar nem mesmo o mais barato. Entre comerciantes (especialmente os mais abastados), haverá uns poucos que sintam o impulso natural e humano de dar essa roupa ao cliente, pelo preço que este puder pagar. Mas quantos se permitirão adquirir consciência de tal impulso? Creio que serão poucos. A maioria o recalcará, e poderemos ver entre eles alguns que terão, na noite seguinte, um sonho que expressará o impulso reprimido, de uma forma ou de outra”.

“O moderno ‘homem de organização’ pode sentir que sua vida não tem sentido, que seu trabalho o aborrece, que tem pouca liberdade de fazer e pensar como quer, que está perseguindo uma ilusão de felicidade que jamais se torna verdade. Mas se ele tivesse consciência de tais sentimentos, seria muito prejudicado em sua atuação social. Sua consciência constituiria um perigo real para a sociedade tal como está organizada, e em conseqüência o sentimento é recalcado”[6] .

A partir destes dois exemplos, podemos observar que a falta de liberdade na sociedade contemporânea cria o desejo de liberdade, de poder (não no sentido de dominação e sim de potência). Entretanto, este desejo é reprimido e não se manifesta na consciência coletiva mas tão-somente no inconsciente individual e coletivo. O desejo reprimido de liberdade, de ser livre e superar os limites impostos pela sociedade repressiva, encontra no mundo dos super-heróis uma de suas formas de manifestação mais espetaculares. Estes rompem com os limites impostos, combatem a injustiça (embora a idéia de justiça que se passa é mais a ditada pela consciência do que pelo inconsciente), defendem os “fracos e oprimidos” – que são aqueles que continuam submetidos à opressão –, etc. Voar, por exemplo, é um símbolo de liberdade, de superação de limites, e muitos super-heróis possuem este poder. Desta forma, a super-aventura é, em parte, manifestação do inconsciente coletivo e é por isso que ela (e não só ela como também os heróis comuns) tem um público tão grande. Revela-se aí, o potencial emancipador das aventuras dos super-heróis ao manifestar o desejo reprimido de liberdade.

O processo de criação da super-aventura é um processo consciente no qual o criador envia uma mensagem na maioria das vezes axiológica. Porém, nenhuma produção cultural é somente consciente e junto com o processo consciente caminha o processo inconsciente. No caso da ficção isto é ainda mais forte. Na super-aventura a imaginação ganha autonomia na narrativa e isto permite uma manifestação mais forte do inconsciente. Porém, além do inconsciente individual derivado da repressão individual que se manifesta em cada obra individual, também se manifesta o inconsciente coletivo, derivado da repressão coletiva. Tal repressão coletiva é a do mundo burocrático e mercantil em que vivemos. Se lembrarmos que a produção da super-aventura é uma forma de manifestação da criatividade, que é uma potencialidade humana reprimida em nossa sociedade, então podemos supor que ela é, para os criadores, um momento de liberdade e de realização. Porém, devemos reconhecer que tal criatividade se manifesta mas de forma controlada. Os criadores de super-aventuras não são livres para produzirem o que quiserem e como quiserem. Eles estão submetidos às grandes empresas que controlam esta produção, seja a Marvel Comics, a DC, a Image, ou qualquer outra. Tais empresas são tão burocráticas e mercantis quanto qualquer outra. A partir disto se conclui que tal controle é um dos elementos que originam tal produção.

A vontade de liberdade inconsciente cria aventuras onde o ser humano rompe com seus limites (naturais e sociais). Essa ruptura com os limites faz dele um “super-homem”, um ser impotente diante da burocratização e da mercantilização que se torna um ser “poderoso”. Um ser que pode superar as injustiças fazendo justiça por suas próprias mãos, alguém destituído de poder e dominado no trabalho, na escola, na família, etc., que se levanta e passa por cima de tudo que lhe aprisiona e realiza os seus desejos de aventura e liberdade. O modelo exemplar, o Super-Homem, acompanhado por suas cópias, Capitão Marvel (Shazam), Homem-Aranha, Thor, Hulk, Batman, etc., são aqueles que fazem o que gostaríamos de fazer mas não fazemos: desafiar o mundo. Ser um super-herói significa ser sobre-humano, o que quer dizer ser mais do que um simples marionete da sociedade repressiva. A super-aventura significa a carta de alforria imaginária do ser humano escravizado no mundo da burocracia e da mercadoria.

O público leitor da super-aventura é composto em grande parte por crianças e jovens que ainda não estão envolvidos neste mundo institucional repressivo. Porém, estão submetidos à outras formas de repressão (familiar, escolar, entre outras) e se identificam com os atos heróicos que expressam seu desejo de liberdade. Por isso, surge um mercado consumidor bastante fiel da super-aventura. Mas, de qualquer forma, tanto os produtores quanto os consumidores da super-aventura manifestam o desejo inconsciente de liberdade em resposta ao mundo burocrático e mercantil fundamentado na repressão.

Porém, o inconsciente coletivo só se torna explosivo quando se torna consciente. O inconsciente coletivo tornar-se consciente (que só pode ser uma consciência coletiva, fruto de um processo coletivo), neste caso, significa o reconhecimento da necessidade de liberdade. Tal como Marx colocou, a consciência do que não é consciente é fundamental para o processo de libertação humana:

“É preciso tornar a opressão real mais opressiva, acrescentando-lhe a consciência da opressão; é preciso que a vergonha se torne ainda mais vergonhosa, apregoando-a. (...). É preciso mostrar e ensinar ao povo a assustar-se de si próprio, para infundir-lhe coragem”[7] .

Descobrir o inconsciente coletivo por detrás das produções axiológicas é, portanto, fundamental para o desenvolvimento desta consciência coletiva e tarefa essencial do pensamento marxista. É impossível para o marxismo contemporâneo desconhecer a importância da psicanálise para compreender as lutas sociais e, em especial, as produções axiológicas e imaginárias, tal como as histórias em quadrinhos.
 
Notas:
 
[1] Cf. VIANA, Nildo. Super-Heróis e Axiologia. Espaço Acadêmico. Nº 22, Março de 2003; VIANA, Nildo. Super-Heróis, Axiologia e Inconsciente Coletivo. In: QUINET, Antonio e outros. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002. Republicado em: VIANA, Nildo. Heróis e Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos. Rio de Janeiro, Achiamé, 2005.

[2] MARNY, Jacques. Sociologia das Histórias aos Quadradinhos. Porto, Civilização, 1970, p. 277.

[3] “Não nos é fácil transferir os conceitos da psicologia individual para a psicologia de grupo, e não acho que ganhemos alguma coisa, introduzindo o conceito de um inconsciente ‘coletivo’. O conteúdo do inconsciente, na verdade, é, seja lá como for, uma propriedade universal, coletiva, da humanidade” (FREUD, Sigmund. Moisés e o Monoteísmo. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, 1975, p. 156). Isto revela uma certa ambigüidade e a solução de Freud é “trabalhar com analogias”, o que é um procedimento menos proveitoso do que aceitar a idéia de um inconsciente coletivo.

[4] FROMM, Erich. Meu Encontro com Marx e Freud. 7a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1979, p. 109.

[5] Para uma visão mais detalhada da concepção de inconsciente coletivo em Jung e inconsciente social em Fromm, bem como uma visão crítica, acompanhada por uma proposta alternativa inspirada no marxismo, cf. VIANA, Nildo. Inconsciente Coletivo e Materialismo Histórico. Goiânia, Edições Germinal, 2002.

[6] FROMM, Erich. Ob. cit., p. 115.

[7] MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. Introdução. In: Revista Temas de Ciências Humanas. Nº 2, 1977, p. 4.

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