Direito, Socialismo e Ideologia
Nildo Viana
Resenha: MENDONÇA, José Carlos. A Ideologia do Socialismo Jurídico. Rio de Janeiro, Corifeu, 2007.
O livro A Ideologia do Socialismo Jurídico, de José Carlos Mendonça, é, no mínimo, “oportuno”, tal como coloca Elisa de Souza Lima no prefácio a esta obra. Sem dúvida, Mendonça discute uma temática interessantíssima e atual, embora também antiga. Esse jogo de antiguidade-atualidade é bastante interessante. A questão jurídica, já abordada por Engels, Kautsky, Korsch, ganharia novo impulso com a contra-revolução burocrática na Rússia ao instaurar um capitalismo estatal e produzir a necessidade de uma nova ideologia jurídica. Porém, a agonia do capitalismo estatal russo não aboliu o “socialismo jurídico”, que, como comprova Mendonça, ainda está bem vivo nas pretensas esquerdas brasileiras. Logo, é uma discussão antiga que permanece atual. Um dos maiores méritos do livro de Mendonça é justamente recuperar esta discussão antiga, em seus termos do passado, e relacioná-la com a problemática política do presente e do futuro.
O livro de Mendonça discute a influência do socialismo jurídico nas propostas do PC do B e PSTU, que, segundo ele, apresentam uma visão jurídica de socialismo. A primeira parte da obra apresenta uma interessante discussão teórica sobre modo de produção e direito. Neste capítulo, Mendonça discute o capitalismo, o socialismo, o capitalismo de Estado, o comunismo e o socialismo jurídico, bem como o direito, partindo, neste último caso, das discussões de Pachukanis, Althusser, Vichisnky, Naves, entre outros. No segundo capítulo, realiza um histórico do socialismo jurídico, desde o século 19 até chegar ao capitalismo de Estado. No terceiro e último capítulo, discute o “legado do socialismo jurídico” na “dita” esquerda brasileira, especialmente no caso do PC do B e PSTU, através da análise de documentos destes dois partidos.
Assim, o livro de Mendonça apresenta temáticas atuais e interessantes e coloca problemas políticos fundamentais, embora não se possa concordar com todas as suas respostas. A questão fundamental colocada por Mendonça é o socialismo jurídico, seu caráter ideológico e sua influência na pretensa esquerda brasileira. Ao lado de idéias e críticas importantes, Mendonça, no entanto, acaba realizando uma certa contradição no processo de crítica do capitalismo estatal e do socialismo jurídico. A sua discussão sobre modo de produção capitalista é sintomático deste processo, já que ele une Marx, Lênin e João Bernardo, o que demonstra um certo ecletismo, o que é o principal problema da obra. Neste sentido, seria possível criticar amplamente várias de suas afirmações. Podemos citar, por exemplo, os limites da definição leninista de classes sociais que o autor utiliza e a idéia dos modos de produção existentes no passado, marcados por um certo evolucionismo e desconsideração pela existência de outros modos de produção, tal como o asiático, escravismo colonial, etc.
Diversos outros elementos poderiam ser colocados como problemáticos ou contraditórios. Este é o caso da discussão sobre o “socialismo”, entendido não como sinônimo de comunismo, mas como “relações de produção transitórias”. Este é um ponto extremamente problemático. Não existe a expressão “socialismo” em Marx como transição para o comunismo. Esta é uma criação do bolchevismo, que produz a ideologia da transição e da tomada do poder estatal e cria uma cristalização e fetichização de tal transição. A diferenciação apresentada entre capitalismo de Estado e socialismo também revela problemática semelhante: “A expressão jurídica, ou seja, as relações de propriedade no socialismo são as mesmas que no capitalismo de Estado. A diferença é que no capitalismo de Estado a propriedade estatal, de fato, é dominada pela burguesia de Estado, enquanto no socialismo a propriedade estatal é, concretamente, propriedade coletiva” (p. 28). Existe um problema aqui: a propriedade se é estatal, pressupõe o estado (assim, é necessário definir estado, e todo estado possui um aparato burocrático), logo, a propriedade não é coletiva. Só seria coletiva com a abolição do Estado. Neste caso, o socialismo tal como definido seria idêntico ao capitalismo estatal.
Em outro momento aborda, partindo problematicamente de Lênin, que era um ideólogo da burocracia, outras questões discutíveis referentes ao Estado. O fato de tomar Lênin como referência para se pensar o “socialismo” já é uma concessão para a burocracia e a burocratização. A tese da “destruição do Estado burguês” continua sendo bolchevista. A ficção segundo a qual O Estado e a Revolução, de Lênin, é um escrito libertário (tese defendida por Daniel Guérin, Cláudio Nascimento e outros) é produto de uma incompreensão das teses expostas neste livro e das mutações do pensamento de Lênin de acordo com a conjuntura política e polêmicas instauradas neste contexto. A ideologia nesta obra de Lênin continua mantendo os seus postulados básicos e continua sendo bolchevista, isto é, ideologia da burocracia. Se ele começa criticando o Estado e falando de sua abolição, termina falando de centralismo e “Estado burguês, mas sem burguesia”, ou seja, é apenas um discurso que busca se apresentar como marxista, mas no final revela seu caráter burocrático e contra-revolucionário.
É justamente por se basear neste escrito que Mendonça se complica nesta parte da obra e vai apresentar idéias como a da “substituição de aparelho estatal”; “destruição da máquina estatal antiga”; “novo tipo de Estado”, o que significa concordar com a ideologia burocrática de Lênin de um “Estado de transição”. Isto provoca outros problemas que não iremos delimitar aqui.
A crítica ao socialismo jurídico é bem estruturada, embora se possa discordar de alguns aspectos pontuais (é o caso quando diz que Marx denominava “socialismo”, a primeira fase da sociedade comunista, o que é um equívoco, e significa uma visão leninista de Marx, na qual torna igual o que é diferente). Os demais momentos da obra também possuem relevância e discutem questões importantes para a luta operária no Brasil e no mundo. A análise crítica do PC do B e do PSTU é importante e abre caminho para os militantes destes partidos repensarem suas práticas, embora tenha faltado a base real da ideologia jurídica nestes partidos, ou seja, a burocracia partidária em ambos, bem como sua base ideológica, o bolchevismo (em diferentes variantes, seja stalinista ou trotskista). Enfim, é um livro que merece ser lido pelas polêmicas que levanta, pelos problemas que apresenta, pelas críticas que realiza.
Há algumas contradições: às vezes o texto é bolchevista, às vezes é conselhista; às vezes rompe com as categorias da sociedade burguesa para compreender a sociedade comunista (direito, fundamentalmente), às vezes utiliza outras categorias desta sociedade para analisar a futura sociedade (estado, salário, etc.), mas isto não retira o mérito da obra. Tal como História e Consciência de Classe, de Lukács, uma obra perpassada por contradições, que vai do luxemburguismo ao leninismo, do weberianismo ao marxismo, continua sendo uma obra que contribui com o desenvolvimento da consciência humana.
E esta característica da obra tem uma explicação, tal como coloca Elisa Lima no prefácio, ao afirmar que Mendonça escreveu a obra num período de ruptura incompleta, quando avançava rumo ao “marxismo heterodoxo” e explica: “por esta razão este trabalho apresenta algumas contradições, na medida em que contém ainda elementos da ortodoxia, embora já acene consistentemente na outra direção. Parte destas contradições já está atualmente superada pelo autor. No entanto, este trabalho reflete um momento de grande importância no seu pensamento, resultado de profundas reflexões que o levaram a enveredar por outro caminho, razão pela qual a opção foi a de se manter a versão original escrita em 2005”. Assim, ao contrário de Lukács, que retrocedeu intelectualmente a partir de sua autocrítica, o que significou abolir a contradição em favor do leninismo, Mendonça tende a resolver as contradições num sentido positivo.
Assim, além do escrito e suas qualidades próprias, temos o mérito do autor de ter a coragem de mostrar – e não esconder ou camuflar, como muitos fazem – a história do seu próprio pensamento, com suas contradições, percalços, recuos e avanços. O que remete a outro mérito do autor, a sinceridade e ousadia, a capacidade de refletir e ir adiante. O pensamento de Mendonça, ao contrário do fossilizado leninismo, avança, e isto é produto de determinados valores, concepções, sentimentos, que são condições de possibilidade para partir da perspectiva do proletariado.
Em síntese, A Ideologia do Socialismo Jurídico é obra que deve ser lida e ser ponto de partida para a discussão, necessária e contemporânea, sobre várias questões contemporâneas. Pode ser um bom ponto de partida para discutir o caso da questão do pseudomarxismo e sua concepção de socialismo, a questão do comunismo, o processo de luta de classes na sociedade moderna, os partidos políticos “ditos” de esquerda no Brasil, que abandonaram qualquer perspectiva revolucionária, aderindo a um reformismo brando ou recheado de fraseologia revolucionária. Mendonça consegue desvendar a contradição de determinados discursos, que se referem ao “socialismo”, mas não ultrapassam aquilo que Marx denominou “limites intransponíveis da consciência burguesa”; que se referem ao marxismo, mas não ultrapassam os marcos da “ideologia do socialismo jurídico”, e esta é uma contribuição fundamental.
_____________________ Publicado originalmente em: Revista Espaço Acadêmico, num. 84, Maio de 2008.
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