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terça-feira, 18 de abril de 2023

A Sociedade da Evasão

 


A SOCIEDADE DA EVASÃO

 

Nildo Viana

Doutor em Sociologia/UnB; Professor da UFG.


RESUMO

O artigo tematiza a questão da evasão, um dos maiores problemas da sociedade contemporânea. A evasão é um problema individual e simultaneamente social e por isso é analisado, mesmo que usando diversos termos diferenciados para tratar do fenômeno, pela psicologia, psicologia social, filosofia, sociologia, entre outras áreas do saber. O nosso propósito é realizar uma análise introdutória sobre este fenômeno, colocando algumas questões sobre seu significado na sociedade contemporânea. A partir de uma definição do conceito de evasão e de reflexões sobre suas formas de manifestação, apontamos as formas de manifestação, algumas das relações e consequências desse fenômeno.

PALAVRAS-CHAVE: Alienação. Evasão. Tédio.  

 

O fenômeno da evasão é algo que perpassa a vida cotidiana, mas é pouco percebido e pouco analisado. Ele é um fenômeno sociopsíquico, pois é um produto da sociedade capitalista e que se efetiva no universo psíquico dos indivíduos. A evasão foi confundida, em alguns casos, com “alienação”, através de mau uso desse termo[1]. O que é a evasão? Quais são suas formas de manifestação? Como ela se torna, no capitalismo contemporâneo, um dos mais graves problemas sociais? São questões que poderemos responder de forma breve e introdutória, merecendo análises mais profundas e desdobramentos posteriores.

ALIENAÇÃO OU EVASÃO?

A confusão entre “alienação” e evasão tem que ser desfeita antes de iniciarmos a reflexão sobre o último fenômeno. O termo “alienação” é utilizado em vários sentidos. O mais conhecido e divulgado é supostamente a concepção marxista de alienação. Na década de 1960 e, principalmente, na década de 1970, foram publicados diversos livros sobre a questão da alienação, seja comentando ou refletindo sobre a alienação a partir da contribuição de Marx. Muitos pensavam que estavam usando o conceito marxista de alienação, enquanto que, na verdade, o estavam deformando, transformando-o num fenômeno da consciência.

Para Marx, a alienação é um fenômeno social e se materializa, fundamentalmente, no trabalho alienado, que é um trabalho controlado por outros e é justamente nesse processo de dominação sobre a atividade do trabalhador que se estabelece a alienação. A alienação do trabalho, ou seja, o controle da atividade do trabalhador, gera a alienação do produto do trabalho, ou seja, o controle do que é produzido. A concepção materialista da alienação vem para explicar que é o trabalho que cria a propriedade, que há uma relação social de controle e dominação que permite a relação social de exploração. Alguns, sobre o pretexto de “tradução” fiel do alemão para o português, deformam completamente o caráter materialista e transforma a alienação, tal como era em Hegel, num fenômeno da consciência, gerando uma concepção idealista. Não poderemos desenvolver mais tal questão, mas existe uma bibliografia que contribui com a compreensão da concepção marxista de alienação (MARX, 1989; VIANA, 2017; VIANA, 2012).

Sem dúvida, a interpretação do significado do termo alienação em Marx não é a mesma em diversos autores, mas a maioria a reduziu a um fenômeno da consciência, se aproximando muito mais de Hegel do que Marx[2]. O psicanalista Erich Fromm (1983), por exemplo, define alienação, não sem certa contradição, como sendo equivalente a “idolatria”. Assim, alguns marxistas, bem como psicólogos e outros, começaram a identificar alienação e esquizofrenia ou outros desequilíbrios psíquicos (GABEL, 1973). Essa interpretação se aproxima de uma outra forma de abordar a alienação, não-marxista, que é a oriunda da psiquiatria (e basta recordar que os psiquiatras eram chamados também de “alienistas”, ou seja, os especialistas que tratam dos “alienados”). “O termo alienação, originariamente – e ainda hoje – era um termo da Psiquiatria que designava uma forma de perturbação mental, como a esquizofrenia – uma perda de consciência ou de identidade pessoal” (BASBAUM, 1985, p. 17). A definição de alienação, nas representações cotidianas, deriva dessas duas fontes, especialmente a psiquiátrica, pois, nesse caso, o indivíduo alienado é o que está “fora da realidade”. Alguns psicólogos que trataram da alienação, não conseguiram definir o conceito com clareza e caíram em contradições e ambiguidades (MERANI, 1977; CODO, 1985).

Sem dúvida, há também abordagens sociológicas sobre a questão da alienação, promovendo um interesse renovado sobre esse fenômeno e novos sentidos emergiram, foram atribuídos a esse termo (GABEL, 1973; TORRE, 1970), embora muitas vezes se aproximando das concepções anteriores, inclusive em sua tendência mais psicológica. Assim, numa coletânea dedicada a análises sociológicas da alienação, há uma síntese que expressa essa última tendência:

A consciência do ator é o lugar constitutivo das alienações possíveis. A alienação é uma síndrome psicológica que manifesta, retomando a definição de Anthony Davids, uma “disposição” ao egocentrismo, à desconfiança, ao pessimismo, à ansiedade e ressentimento (VIDAL, 1970, p. 19).

Porém, consideramos que o conceito de alienação foi estabelecido por Marx e se apresenta como uma relação social e, por conseguinte, não pode ser confundido com um “fenômeno da consciência”, embora, obviamente, produza efeitos na “consciência” (“estranhamento” ou “fetichismo”), mas não se deve confundir um fenômeno com suas consequências. Assim, o fenômeno da consciência que se aproxima desse significado atribuído ao termo “alienação” é o da evasão. Mas o que é a evasão? Essa é a questão que abordaremos a partir de agora.

A FUGA DA REALIDADE

A evasão, enquanto fenômeno psíquico, é uma forma de fuga da realidade. A evasão ocorre sob várias formas e pode se transformar em problemas psíquicos mais graves. Para entender a evasão é necessário entender o motivo pelo qual muitos indivíduos buscam fugir da realidade, bem como é necessário distinguir este fenômeno de outros que são similares. A pergunta fundamental para entender a evasão é: por qual motivo fugir da realidade?

Os seres humanos são, como todos os demais seres vivos, portadores de necessidades. Um ser vivo só sobrevive se satisfazer determinadas necessidades. Essas necessidades básicas são comer, beber, dormir, reproduzir, etc. O ser humano compartilha essas necessidades com as demais espécies animais (MARX; ENGELS, 1982). A labuta cotidiana se faz necessária para milhões de seres humanos. Historicamente, existiram épocas em que nenhum ser humano escapava – a não ser em breves momentos da vida, como crianças muito novas ou idosos – do trabalho. Com a emergência das sociedades de classes, emergiu a divisão entre aqueles que se dedicam à produção dos meios de sobrevivência, voltados para a satisfação das necessidades básicas, e aqueles que foram liberados da produção de bens materiais e, assim, se dedicavam ao controle populacional (governantes e guerreiros), bem como os voltados para a produção intelectual (filósofos, artistas, etc.), ou reprodução da unidade doméstica, entre outras atividades sociais. O que interessa, nesse processo, é que nesse momento emerge a possibilidade de liberação do trabalho manual e, assim, a possibilidade do desenvolvimento de outras atividades.

Os trabalhadores manuais, exauridos pelo trabalho, buscam o descanso, o prazer, a satisfação de suas necessidades básicas. A evasão pode ocorrer através de sonhos e devaneios, entre outras formas possíveis, mas não tão praticadas. Os indivíduos das classes superiores, livres do trabalho manual, podem praticar a evasão mais extensamente, pois desfrutam de tempo disponível. Alguns se evadiam através da religião ou de orgias, entre outras formas de manifestação. Esse processo se altera com a emergência da sociedade capitalista. E aqui começamos a entender melhor o problema da evasão, pois é na sociedade moderna que ela se manifesta mais intensa e amplamente.

Na sociedade burguesa, as necessidades básicas não são realizadas por milhões de seres humanos. Aproximadamente 10% da humanidade passa fome, não satisfazendo a mais premente necessidade básica. Além desses, há milhões de desempregados, desabrigados, e outros que conseguem se alimentar razoavelmente, mas não conseguem satisfazer outras necessidades básicas. Esses se encontram numa situação em que a realidade é hostil. Esses seres humanos se defrontam com um mundo miserável ao lado da riqueza e do desperdício. Milhares sofrem com a repressão policial, a falta de acesso a bens coletivos, entre diversos outros processos.

Porém, uma parte considerável da humanidade está para além das necessidades básicas. Uma vez satisfeita tais necessidades, o ser humano pode ter tempo disponível e vontade de realizar novas atividades. Historicamente, como demonstrou Marx, os seres humanos realizam o trabalho e a cooperação para satisfazer tais necessidades e esses meios se tornam, eles mesmos, necessidades (MARX; ENGELS, 1982). Aqui encontramos o que é especificamente humano, o trabalho como práxis, objetivação, e a socialidade, a convivência humana, formando um ser práxico e social. E isso se torna vital para tais seres humanos, são necessidades, que, uma vez não satisfeitas, geram o mal-estar, a insatisfação, gerando desequilíbrios psíquicos e outros problemas. O ser humano que não consegue estabelecer vínculos sentimentais e laborativos com outros, torna-se portador de uma grande carga de insatisfação, mesmo que não a perceba. Da mesma forma, se ele não consegue desenvolver uma práxis (atividade teleológica consciente), se não consegue desenvolver suas potencialidades, suas capacidades físicas e mentais, a sua criatividade, se torna um ser profundamente insatisfeito. Sem dúvida, é possível compensar isso, bem como é possível fugir disso.

Eis que nos deparamos diante do fenômeno da evasão. Os seres humanos, na sociedade moderna, em sua maioria, conseguem satisfazer suas necessidades básicas (bem ou mal, dependendo da classe social), mas não conseguem satisfazer suas necessidades especificamente humanas, que não são materiais, mas psíquicas. Elas não são conscientes e, por conseguinte, podem ser desviadas e podem gerar um mal-estar sem que o indivíduo entenda sua razão, inclusive aqueles que são das classes superiores e possuem condições de exercer as mais variadas atividades. As discussões sobre o sentido da vida, por exemplo, apontam para uma situação na qual os indivíduos satisfazem suas necessidades básicas, mas não satisfazem suas necessidades psíquicas e, devido a isto, buscam um sentido para sua existência ou buscam fugir da realidade. A evasão acaba se espalhando pela sociedade.

EVASÃO E MODERNIDADE

E isso pode ocorrer, e efetivamente ocorre, desde a infância. Na sociedade moderna, a infância pode ser marcada pelo isolamento dos outros seres humanos. Milhões de crianças não conseguem se integrar com outras crianças e, em muitos casos, nem com os próprios pais, parentes, vizinhança, etc. Esse processo tem diferentes determinações em casos distintos, variando com a classe social (a frieza dos pais das classes superiores é, por exemplo, uma especificidade das classes superiores; a falta de moradia fixa é um exemplo que pode contribuir com isso nas classes inferiores), sendo que a competição social – elemento fundamental da sociabilidade capitalista – e as divisões sociais uma das determinações desse processo. Um caso muito comum, especialmente nos Estados Unidos e popularizado (bem como incentivado) pelos meios oligopolistas de comunicação, é o das crianças submetidos ao bullying. O isolamento é comum nesses casos, e isso pode promover a evasão como ato cotidiano. O uso de videogames, jogos eletrônicos em geral, é uma das formas de manifestação de evasão nesses casos.

Mas processos semelhantes ocorrem com jovens, adultos e idosos. O isolamento, seja físico ou mental[3], ou ambos, é uma das principais fontes de evasão. O isolamento gera o sentimento de solidão, sendo um fenômeno social (ROLL, 2020), e, ao mesmo tempo, gerador de evasão. Porém, o trabalho alienado ou o conjunto de obrigações sociais (burocracia, compromissos indesejáveis, etc.) também são geradores de evasão. A procrastinação é muitas vezes acompanhada de evasão, no qual se une a fuga de algo com o encontro da ação substituta. Porém, esses processos apenas revelam a insatisfação das necessidades psíquicas dos seres humanos e, por conseguinte, a evasão se relaciona diretamente com a falta de autorrealização social e laboral. Logo, a fuga da realidade ocorre por ela ser insatisfatória em duplo sentido: por gerar atividades alienadas, desinteressantes, repetitivas, desagradáveis, envolvidas em relações marcadas por competição, burocratização, mercantilização, exploração, dominação e conflito, e por não permitir atividades práxicas, enriquecedoras, criativas, marcadas por relações sociais fundadas na cooperação, liberdade, coletivização e no objetivo do atendimento das necessidades humanas.

O vazio e a falta de sentido que emergem a partir dessas atividades e relações capitalistas promovem a evasão. É por isso que a evasão pode emergir como fuga do trabalho alienado e da vida alienada, marcada por muitas atividades, ou do vazio e da falta de atividades, bem como, em ambos os casos, das relações sociais que as constituem. No primeiro caso, ela é menos frequente por causa das atividades necessárias, e menos prejudiciais, já que o indivíduo continua garantindo sua sobrevivência e mantém um equilíbrio psíquico entre realidade e fuga dela. No segundo caso, é mais frequente, pois convive com a inatividade e assim acaba sendo mais constante e duradoura, sendo que é mais prejudicial por permitir um maior afastamento da realidade e por promover uma insatisfação adicional por não ter resultados sociais (e ainda gerar intensas cobranças e pressões sociais, que são ainda mais fortes para os que compartilham os valores e ideias dominantes). Porém, em ambos os casos é preciso entender a situação concreta e os indivíduos concretos, com suas múltiplas determinações (as relações sentimentais com outras pessoas, a classe social e condição social e financeira dos indivíduos, as possibilidades de outras atividades esporádicas relativamente satisfatórias, entre milhares de outras).

Nesse caso, podemos definir evasão como a fuga de uma realidade insatisfatória através da fixação em atividades, ações, que promove o escape dela e seu sobrepujamento. Para não se confundir o fenômeno da evasão com outros fenômenos, é necessário esclarecer aqui o significado dos termos utilizados em sua definição. A fuga, aqui, significa escapismo, mas não o processo consciente de fugir de algo. O operário que falta ao trabalho não realiza evasão, bem como diversas formas conscientes e esporádicas de evitar situações, relações, que promovem mal-estar. Se a realidade é insatisfatória, seja em sua totalidade ou em alguns de seus aspectos, nada mais saudável do que fugir dela, momentaneamente ou usando mecanismos racionais e conscientes. Assim, é útil distinguir recusa de fuga. A fuga é um processo de não enfrentamento, de buscar escapar e se distanciar, que, mesmo sendo relativamente consciente[4], não aponta para sua superação e não é acompanhada da percepção de suas raízes sociais. A recusa é um processo de enfrentamento, que pode gerar uma fuga, mas que é acompanhada de uma percepção de sua motivação, mesmo que parcial, e que tem como objetivo sua superação. Porém, a evasão não é qualquer afastamento da realidade e sim aquela que se converte em atividade fixa. Quando um jovem foge dos estudos para se dedicar exclusivamente aos jogos eletrônicos e gasta, diariamente, várias horas com isso, realiza evasão. Se ele faz isso nos fins de semana e alguns dias da semana, com variações (algumas semanas mais, outras não, mais nas férias ou passa períodos sem o fazê-lo), então não se trata de evasão. Por outro lado, essa fixação deve funcionar como um substituto da realidade, sobrepujando-a. A criação de uma realidade paralela ocorre no mundo da fantasia e da ficção, mas isso é produzido conscientemente e não como uma fuga, mas, mesmo se fosse, ainda não seria evasão, porquanto não substitua a realidade concreta na mente do indivíduo, ou seja, a realidade é esquecida nos momentos evasivos. Assim, para haver evasão, é preciso que haja quatro elementos interligados: realidade insatisfatória, fuga (e não recusa), fixação, substituição da realidade concreta por uma realidade artificial.

A fronteira entre evasão e outros fenômenos semelhantes é tênue, bem como a distinção entre fuga e recusa, pois numa sociedade fundada na exploração, dominação e processos derivados (incluindo os conflitos sociais e a luta de classes), com as especificidades do capitalismo (mercantilização, burocratização e competição) é comum a fuga e a recusa da realidade, mas nem sempre gerando evasão. No entanto, a evasão se torna extremamente comum e ocorre num grau elevado e vem se ampliando com o desenvolvimento do capitalismo e da tecnologia.

A REALIDADE INSATISFATÓRIA

Assim, a evasão é um problema psíquico e social, mas não é o grande problema. A psicologia conservadora pararia sua análise aí e já passaria para o aconselhamento para tratar da evasão. Contudo, o grande problema é a realidade insatisfatória para milhões de seres humanos que gera a evasão. A evasão é uma resposta à uma realidade que nega a autorrealização dos seres humanos, que impede o desenvolvimento de suas potencialidades e criatividade, que gera relações sociais marcadas pela exploração, dominação, conflito, mercantilização, burocratização e competição social.

Não é difícil perceber que a fuga do trabalho alienado, e das organizações burocráticas (universidades, escolas, partidos, sindicatos, entre diversas outras instituições), de ambientes competitivos, é saudável e produto dessas próprias instituições que existem para garantir a sua própria manutenção e a reprodução das relações de produção capitalistas.

A evasão é um problema por gerar sofrimento psíquico e dificultar a passagem da fuga para a recusa radical, ou seja, para a ação consciente de combate às causas do mal-estar gerado pela sociedade capitalista. O único “tratamento” efetivo contra a evasão é a transformação da realidade que gera a evasão. Nos limites do capitalismo, o que se pode fazer é contribuir com que alguns indivíduos superem a evasão e isso pode ser efetivado sob várias formas, a começar pela ampliação da consciência sobre a própria evasão.

A INTENSIDADE DA EVASÃO

A evasão pode ser mais ou menos intensa, com uma fixação maior ou menor, bem como existem casos em que pode ser mais “variada”. É possível distinguir entre evasão consciente e evasão insciente[5]. A evasão consciente é quando o indivíduo sabe que está fugindo de algo. O grau de consciência pode variar, pois pode saber do que foge ou não, embora não saiba o motivo da fuga. Aqui temos a consciência da fuga e do que se foge, mas não da motivação da fuga. Assim, um trabalhador pode fugir do trabalho (alienado) e saber que está fugindo e do que está fugindo. Mas a razão profunda pela qual ele faz isso não é consciente. No fundo, isso gera uma contradição psíquica, pois o indivíduo sabe que foge do trabalho, mas não sabe o motivo e isso se deve, em parte, às ideias e valores dominantes sobre o trabalho, o que gera uma insatisfação adicional, pois além de insatisfação com o trabalho, o que gera a fuga, há a insatisfação com a fuga, que é condenada pela moral, pelas ideias dominantes e pela sociedade como um todo[6].

Assim, quando a evasão é mais consciente, ela é mais moderada e mais controlada, absorvendo menos tempo dos indivíduos, mas pode ser, em certo sentido, mais dolorosa, justamente devido ao fato de ser consciente. A evasão insciente é quando não se sabe que é uma fuga e do que se foge. Ela pode ser mais intensa e menos controlada, bem como pode absorver maior tempo e energia dos indivíduos. Assim, quando um indivíduo se envolve com o futebol e sabe que o faz para fugir da família, do trabalho, etc. então sua evasão é consciente. Um outro indivíduo que usa drogas cotidianamente pode não ter consciência de suas reais motivações e de que se trata de uma fuga. A evasão varia de intensidade, indo da forma mais moderada até a forma de desequilíbrio psíquico, tal como no caso das psicoses[7].

A evasão é mais perceptível no uso de jogos eletrônicos, drogas, mas também está presente na internet e nas redes sociais virtuais, que se tornam substitutas da vida real. Por outro lado, a evasão é menos perceptível em formas consideradas culturalmente mais elevadas ou socialmente mais aceitas, como no caso da religião, literatura, ciência, política, trabalho, etc. Nesses casos, a fronteira entre curiosidade e/ou profissão, por um lado, e evasão, por outro, é mais difícil de delimitar. No caso do fanatismo político ou religioso, ela é mais facilmente perceptível. Existem outras formas de evasão pouco perceptíveis, como, por exemplo, o hábito de viajar, que pode ser enfeitado com o gosto por viagens, que, no fundo, pode ser apenas a fuga da cotidianidade, do trabalho, entre outras possibilidades. Por outro lado, o que é evasão para um indivíduo pode não ser para outro. Um indivíduo que viaja a trabalho, obviamente, não realiza evasão. Da mesma forma, alguém que gosta efetivamente de atuação política e a faz sob forma racional (ou seja, não criando uma realidade paralela, como ocorre em certas crenças conspiracionistas) e sem deixar de lado as outras atividades necessárias para a sobrevivência e convivência social, também não estaria se evadindo.

AS FORMAS DE EVASÃO

As formas de manifestação da evasão são variadas. A religião, o futebol, os videogames e jogos em geral, a arte, a sexualidade, a televisão, são algumas de suas formas mais comuns[8]. O que há em comum nesses casos é que todos eles criam uma “segunda realidade”, uma realidade paralela, que passa a sobrepujar a realidade concreta. A religião cria a realidade religiosa que se manifesta na vida social e concreta, mas que trabalha com seres sobrenaturais e com a “vida após a morte”. O futebol tem uma base real, os jogos, o campeonato, a mercantilização, etc., mas também gera sua “realidade” nas regras do campeonato e na dinâmica dos jogos. Os jogos em geral também criam uma realidade paralela, marcada por suas regras e sua dinâmica (VIANA, 2019)[9]. Porém, não é possível descartar estes e outros fenômenos como sendo evasão ou como algo puramente prejudicial. A religião, o futebol, os videogames, não são formas de evasão em si e sim podem se tornar assim a partir de determinada relação que determinados indivíduos estabelecem com esses fenômenos sociais. Alguns fenômenos sociais, por gerarem uma realidade paralela, acabam sendo mais adequados para os indivíduos que buscam evasão, bem como as relações sociais que se instituem ao seu redor.

Por outro lado, esses fenômenos, quando são meios de evasão para determinados indivíduos, não são equivalentes. Um pode ser menos prejudicial do que o outro, inclusive alguns indivíduos, com muito esforço, passam de uma para outra (é o caso do usuário de drogas que não conseguia sobreviver razoavelmente e que passa para uma religião e assim consegue se reinserir nas atividades sociais). Em outros casos, a evasão pode se tornar profissão ou meio de sobrevivência[10]. Porém, algumas formas, como o fanatismo por futebol, já geram uma maior dificuldade nesse processo de passagem de evasão para trabalho. Um outro aspecto é que a evasão pode intensificar o isolamento ou promover sua diminuição. Os jogos eletrônicos individuais tendem a gerar maior isolamento, enquanto que o jogo em equipe cria uma sociabilidade entre os jogadores, mesmo que mais restrita.

No entanto, é preciso ter em mente que a passagem de uma forma de evasão para outra, ou sua amenização, entre outros processos que atingem apenas a maneira em que ela se manifesta ou sua intensidade, não é uma superação da insatisfação, mas tão somente uma menor ou maior adaptação à sociedade geradora de insatisfações.

EVASÃO, CONSUMO, POLÍTICA E TÉDIO

A evasão é um problema individual e social. É individual por atingir o indivíduo e sua vida e é social não apenas por ser um produto da sociedade, mas também por estar indissoluvelmente ligada com diversas relações sociais e provocar consequências sociais. Sem dúvida, da perspectiva do capital, a evasão é um problema para o rendimento no trabalho, a participação na política institucional (legitimadora da sociedade moderna), entre outros problemas derivados, mas também é um momento de oportunidade de lucro e pode ser gerador de vantagens políticas. Desde os tratamentos clínicos para os casos mais graves (e os remédios que beneficiam o capital farmacêutico) até a mercantilização de atividades de evasão, o capital sempre lucra com a miséria que produz. O futebol profissional funciona como evasão para muitos indivíduos e isso gera audiência, aquisição de mercadorias (ingressos para o jogo, camisas do time, etc.), divulgação, entre outros elementos que os clubes e meios oligopolistas de comunicação usam para lucrar. A busca da evasão promove um amplo mercado consumidor para o lazer mercantilizado e se torna fonte de lucro.

A evasão tem um significado político fundamental para o capital. Numa sociedade na qual se poderia satisfazer todas as necessidades básicas de toda a população por existir condições tecnológicas e laborais para tal, mas na qual é impossível a satisfação das necessidades especificamente humanas, as necessidades psíquicas, a evasão emerge como uma das alternativas e gera uma falsa satisfação substituta para grande parte da população. O capital gera uma ampla fabricação de desejos (FROMM, 1986) e manipulação da insatisfação social (VIANA, 2021) com objetivos mercantis e/ou objetivos políticos. A evasão é um produto do capitalismo e se torna uma mercadoria ou mercancia lucrativa e algo vantajoso politicamente. As novas tecnologias e a internet permitiram uma ampliação e generalização da evasão como nunca antes visto na história da humanidade. Uma sociedade evasiva é, ao mesmo tempo, manipulável e explosiva, pois ao lado da evasão generalizada há a insatisfação generalizada e se a manipulação falha, abre a possibilidade da explosão social que pode gerar uma revolta destrutiva ou uma revolução social.

Assim se produz uma sexualidade evasiva, uma arte evasiva, comunicação (via internet e outros meios) evasiva. A sexualidade evasiva é aquela que proporciona uma fuga da realidade, na qual se cria uma fixação e redução do mundo à atividade sexual, gerando o homo sexualis. Isso se intensifica no capitalismo contemporâneo, pois o novo regime de acumulação instaurado, o integral, traz consiga uma renovação hegemônica e o paradigma subjetivista, e, junto com ele, o hedonismo, novos valores, etc.

E a evasão gera o tédio e o vazio. Rojas, Prokop e outros abordaram tal aspecto. Rojas mostra aspectos dessa relação entre vazio e tédio, sem utilizar tais termos, na fase do capitalismo sob o regime de acumulação integral. Prokop trata dessa questão ao abordar o cinema e o que ele denomina “fascinação” (que aqui denominamos evasão) e o tédio que lhe acompanha (PROKOP, 1986; VIANA, 2020; SOUZA, 2008).

Os produtos da cultura monopolística de massa têm algo de entediante. O incrível design, o rápido noticiário, os balés de televisão escassamente gesticulados, Angélique, Cathérine, Amber e Barry Lindon, que são procurados em virtude do seu sucesso e de seus elementos trágicos – em determinado aspecto, muitos dos produtos adorados e mais frequentemente consumidos são simplesmente cansativos. Esta não é apenas uma impressão subjetiva. O público de fato se entedia (PROKOP, 1986, p. 152).

A evasão gera o tédio e pode gerar outros efeitos psíquicos que podem se tornar cada vez mais graves com sua intensificação. E tanto a evasão quanto o tédio são mercantilizados. Assim, ambos fazem parte do processo de reprodução da sociedade capitalista. E um aspecto curioso desse processo é que com o desenvolvimento capitalista isso se amplia e intensifica, gerando novas formas de evasão e intensificando a sua ocorrência, bem como a do tédio. O mundo virtual da internet acaba gerando uma ampliação do isolamento, um maior grau de insatisfação, já que os indivíduos não podem satisfazer sua necessidade de socialidade, ou seja, de convivência social satisfatória. Curiosamente, a internet se torna refúgio para evasão, o que gera uma possibilidade de comunicação e convivência, mas virtual e geralmente artificial, o que é mais um elemento gerador de tédio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A superação da evasão pressupõe a superação da sociedade produtora de evasão. Assim, é preciso superar o reino das insatisfações e das satisfações substitutas por um mundo satisfatório. O realismo conservador tornou inusual e condenou uso da expressão “felicidade”. A ideia de felicidade, para além das concepções ideológicas e reducionistas, é justamente o processo no qual o ser humano consegue satisfazer suas necessidades radicais – as básicas e as especificamente humanas. Nessa situação, o ser humano não necessita de evasão. A ausência da felicidade garante a presença da evasão. A presença da felicidade garante a ausência da evasão. A luta contra a evasão é uma luta pela felicidade, que se sintetiza na luta contra o capital e a favor da autogestão.

REFERÊNCIAS

BASBAUM, Leôncio. Alienação e Humanismo. 6ª edição, São Paulo: Global, 1985.

CALDERONI, José. A Psicose no Cotidiano. Revista de Psicanálise Integral. Ano 03, num. 05, 1980.

CODO, Wanderley. O Que é Alienação. 2ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1985.

FROMM, Erich. Do Amor à Vida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986.

GABEL, Joseph. Sociología de la Alienación. Buenos Aires: Amorrortu, 1973.

MARX, Karl. Manuscritos Económicos-Filosóficos. Lisboa: Edições 70, 1989.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 3ª Edição, São Paulo: Ciências Humanas, 1982.

MERANI, Alberto. Psicologia e Alienação. 2ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

PROKOP, Dieter. Fascinação e Tédio na Comunicação. Produtos de Monopólio e Consciência. In: Filho, Ciro M. (org.). Prokop. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo, Ática, 1986.

ROJAS, Enrique. O Homem Moderno. A Luta contra o Vazio. São Paulo: Mandarim, 1996.

ROLL, Richard. O Significado da Solidão. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2020.

SCHNEIDER, Michael. Neurose e Classes Sociais. Uma Síntese Freudiano-Marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

SOUZA, Erisvaldo. A Renovação da Teoria da Indústria Cultural em Prokop. In: VIANA, Nildo (org.). Indústria Cultural e Cultura Mercantil. Rio de Janeiro: Corifeu, 2008.

TORRE, Juan Carlos (org.). La Alienación como Concepto Sociologico. Buenos Aires: Ediciones Signos, 1970.

VIANA, Nildo. A Alienação Como Relação Social. Revista Sapiência (UEG). Vol. 01, num. 02, 2012.

VIANA, Nildo. A Sociologia do Filme de Dieter Prokop. Sociologia em Rede, v. 9, n. 09, 2020.

VIANA, Nildo. Capitalismo e Neurose. Sociologia em Rede, vol. 04, num. 04, 2014.

VIANA, Nildo. Jogos e Valores. Informe e Crítica. Vol. 08, num. 08, 2019.

VIANA, Nildo. Movimentos Sociais e Insatisfação Social. in: ANDRADE, Gabrielle; TELES, Gabriel; VIANA, Nildo (orgs.). Movimentos Sociais e Sociedade Moderna. Goiânia: Edições Enfrentamento, 2021.

VIDAL, Daniel. Un Caso de Falso Concepto: La Nocion de Alienacion. In: TORRE, Juan Carlos (org.). La Alienación como Concepto Sociologico. Buenos Aires: Ediciones Signos, 1970.

WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 2ª edição, São Paulo: Pioneira, 1987.



[1] Muitos pensavam que estavam usando o conceito marxista de alienação, enquanto que, na verdade, o estavam deformando, transformando-o num fenômeno da consciência. Para Marx, a alienação é um fenômeno social e se materializa, fundamentalmente, no trabalho alienado, que é um trabalho controlado por outros e é justamente nesse processo de dominação sobre a atividade do trabalhador que se estabelece a alienação. A alienação do trabalho, ou seja, o controle da atividade do trabalhador, gera a alienação do produto do trabalho, ou seja, o controle do que é produzido. A concepção materialista da alienação vem para explicar que é o trabalho que cria a propriedade, que há uma relação social de controle e dominação que permite a relação social de exploração. Alguns, sobre o pretexto de “tradução” fiel do alemão para o português, deformam completamente o caráter materialista e transforma a alienação, tal como era em Hegel, num fenômeno da consciência, gerando uma concepção idealista. Não poderemos desenvolver mais tal questão, mas existe uma bibliografia que contribui com a compreensão da concepção marxista de alienação (MARX, 1989; VIANA, 2017; VIANA, 2012).

[2] “Hegel usou o termo como significando a apropriação do homem pelo espírito absoluto. Para Hegel, segundo Marx, o ser humano, o homem, é igual à consciência de si. ‘Toda alienação do ser humano não é, por conseguinte, senão a alienação da consciência de si’” (BASBAUM, 1985, p. 17).

[3] O isolamento mental é quando o indivíduo está cercado de pessoas, mas não se identifica, não combina, não compartilha coisas ou não possui afinidade com elas. É a velha ideia do indivíduo “sozinho na multidão”, tema de diversas músicas populares no Brasil e no mundo.

[4] A fuga pode ser efetivada a partir de uma situação mental que vai do totalmente insciente até a relativamente consciente. No primeiro caso, é o que é comum nos problemas de desequilíbrio psíquico, que é o caso da psicose, mas existem formas intermediárias até chegar ao relativamente consciente, pois, nesse último caso, o indivíduo pode ter consciência da fuga, mas que dificilmente chegará até a proposta de superação efetiva ou uma compreensão de suas determinações (a não ser as imediatas e/ou aparentes).

[5] O termo “insciente” é pouco usual, pois geralmente se usa “inconsciente” (de acordo com seu uso na linguagem cotidiana, o que pode promover confusão com seu significado psicanalítico) ou “não-consciente”. O insciente é algo não consciente e assim se difere do inconsciente, no sentido psicanalítico, que remete aos desejos ou necessidades reprimidas na mente do indivíduo. O uso do termo insciente evita o equívoco da confusão com o inconsciente no sentido psicanalítico do termo, bem como é preferível a não-consciente, pois tem o mesmo significado e aponta para um fenômeno real que não se caracteriza apenas por ser ausência de outro fenômeno (a consciência).

[6] O trabalho alienado como valor é algo que acompanha a história do capitalismo, tal como se vê no caso da ética protestante (WEBER, 1987).

[7] A psicose é um desequilíbrio psíquico mais comum nas classes inferiores, no qual a intensidade da insatisfação e falta de satisfações substitutas é maior. Assim, a divisão realizada por Schneider (1977), segundo a qual no proletariado a psicose é mais comum e na burguesia a neurose, é explicada pelas relações de classes no capitalismo (VIANA, 2014). A psicose é uma espécie de evasão total, no qual a realidade psiquicamente constituída pelo indivíduo substitui a realidade concreta.

[8] Rojas (1996) aborda alguns casos, tal como a televisão, embora não se possa concordar com o conjunto de sua abordagem, que são contribuições para pensar a evasão na contemporaneidade.

[9] Calderoni descreve as multidões indo ao estádio com seus “olhos cintilantes” e “respiração ofegante” e aponta um indivíduo imaginário desconhecedor desse processo social e dinâmica desse esporte que pensaria, na frente dos estádios, que lá estaria se decidindo “o futuro da humanidade”.

[10] O que pode criar a sua superação ou apenas fusão com uma atividade profissional.


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Publicado em:

VIANA, Nildo. A Sociedade da Evasão. In: FERREIRA, Ezequiel; FREITAS, Patrícia; MELLO, Roger. (Org.). Psicologia e Desenvolvimento. Pesquisa e Atuação. 1ed.Rio de Janeiro: E-Publicar, 2022, v. 1, p. 98-112. Disponível em: https://www.academia.edu/69898927/A_Sociedade_da_Evas%C3%A3o 

https://aterraeredonda.com.br/a-sociedade-da-evasao/ 

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