A
SOCIEDADE DA EVASÃO
Nildo Viana
Doutor em
Sociologia/UnB; Professor da UFG.
RESUMO
O artigo
tematiza a questão da evasão, um dos maiores problemas da sociedade
contemporânea. A evasão é um problema individual e simultaneamente social e por
isso é analisado, mesmo que usando diversos termos diferenciados para tratar do
fenômeno, pela psicologia, psicologia social, filosofia, sociologia, entre
outras áreas do saber. O nosso propósito é realizar uma análise introdutória
sobre este fenômeno, colocando algumas questões sobre seu significado na
sociedade contemporânea. A partir de uma definição do conceito de evasão e de
reflexões sobre suas formas de manifestação, apontamos as formas de
manifestação, algumas das relações e consequências desse fenômeno.
PALAVRAS-CHAVE: Alienação. Evasão. Tédio.
O
fenômeno da evasão é algo que perpassa a vida cotidiana, mas é pouco percebido
e pouco analisado. Ele é um fenômeno sociopsíquico, pois é um produto da
sociedade capitalista e que se efetiva no universo psíquico dos indivíduos. A
evasão foi confundida, em alguns casos, com “alienação”, através de mau uso
desse termo[1].
O que é a evasão? Quais são suas formas de manifestação? Como ela se torna, no
capitalismo contemporâneo, um dos mais graves problemas sociais? São questões
que poderemos responder de forma breve e introdutória, merecendo análises mais
profundas e desdobramentos posteriores.
ALIENAÇÃO
OU EVASÃO?
A
confusão entre “alienação” e evasão tem que ser desfeita antes de iniciarmos a
reflexão sobre o último fenômeno. O termo “alienação” é utilizado em vários sentidos.
O mais conhecido e divulgado é supostamente a concepção marxista de alienação.
Na década de 1960 e, principalmente, na década de 1970, foram publicados
diversos livros sobre a questão da alienação, seja comentando ou refletindo
sobre a alienação a partir da contribuição de Marx. Muitos pensavam que estavam
usando o conceito marxista de alienação, enquanto que, na verdade, o estavam
deformando, transformando-o num fenômeno da consciência.
Para
Marx, a alienação é um fenômeno social e se materializa, fundamentalmente, no
trabalho alienado, que é um trabalho controlado por outros e é justamente nesse
processo de dominação sobre a atividade do trabalhador que se estabelece a
alienação. A alienação do trabalho, ou seja, o controle da atividade do trabalhador,
gera a alienação do produto do trabalho, ou seja, o controle do que é
produzido. A concepção materialista da alienação vem para explicar que é o
trabalho que cria a propriedade, que há uma relação social de controle e
dominação que permite a relação social de exploração. Alguns, sobre o pretexto
de “tradução” fiel do alemão para o português, deformam completamente o caráter
materialista e transforma a alienação, tal como era em Hegel, num fenômeno da
consciência, gerando uma concepção idealista. Não poderemos desenvolver mais
tal questão, mas existe uma bibliografia que contribui com a compreensão da
concepção marxista de alienação (MARX, 1989; VIANA, 2017; VIANA, 2012).
Sem
dúvida, a interpretação do significado do termo alienação em Marx não é a mesma
em diversos autores, mas a maioria a reduziu a um fenômeno da consciência, se
aproximando muito mais de Hegel do que Marx[2]. O
psicanalista Erich Fromm (1983), por exemplo, define alienação, não sem certa
contradição, como sendo equivalente a “idolatria”. Assim, alguns marxistas, bem
como psicólogos e outros, começaram a identificar alienação e esquizofrenia ou
outros desequilíbrios psíquicos (GABEL, 1973). Essa interpretação se aproxima
de uma outra forma de abordar a alienação, não-marxista, que é a oriunda da
psiquiatria (e basta recordar que os psiquiatras eram chamados também de
“alienistas”, ou seja, os especialistas que tratam dos “alienados”). “O termo
alienação, originariamente – e ainda hoje – era um termo da Psiquiatria que
designava uma forma de perturbação mental, como a esquizofrenia – uma perda de
consciência ou de identidade pessoal” (BASBAUM, 1985, p. 17). A definição de
alienação, nas representações cotidianas, deriva dessas duas fontes,
especialmente a psiquiátrica, pois, nesse caso, o indivíduo alienado é o que
está “fora da realidade”. Alguns psicólogos que trataram da alienação, não
conseguiram definir o conceito com clareza e caíram em contradições e
ambiguidades (MERANI, 1977; CODO, 1985).
Sem
dúvida, há também abordagens sociológicas sobre a questão da alienação,
promovendo um interesse renovado sobre esse fenômeno e novos sentidos
emergiram, foram atribuídos a esse termo (GABEL, 1973; TORRE, 1970), embora
muitas vezes se aproximando das concepções anteriores, inclusive em sua tendência
mais psicológica. Assim, numa coletânea dedicada a análises sociológicas da
alienação, há uma síntese que expressa essa última tendência:
A
consciência do ator é o lugar constitutivo das alienações possíveis. A
alienação é uma síndrome psicológica que manifesta, retomando a definição de
Anthony Davids, uma “disposição” ao egocentrismo, à desconfiança, ao
pessimismo, à ansiedade e ressentimento (VIDAL, 1970, p. 19).
Porém,
consideramos que o conceito de alienação foi estabelecido por Marx e se
apresenta como uma relação social e, por conseguinte, não pode ser confundido
com um “fenômeno da consciência”, embora, obviamente, produza efeitos na “consciência”
(“estranhamento” ou “fetichismo”), mas não se deve confundir um fenômeno com
suas consequências. Assim, o fenômeno da consciência que se aproxima desse
significado atribuído ao termo “alienação” é o da evasão. Mas o que é a evasão?
Essa é a questão que abordaremos a partir de agora.
A
FUGA DA REALIDADE
A
evasão, enquanto fenômeno psíquico, é uma forma de fuga da realidade. A evasão
ocorre sob várias formas e pode se transformar em problemas psíquicos mais
graves. Para entender a evasão é necessário entender o motivo pelo qual muitos
indivíduos buscam fugir da realidade, bem como é necessário distinguir este
fenômeno de outros que são similares. A pergunta fundamental para entender a
evasão é: por qual motivo fugir da realidade?
Os
seres humanos são, como todos os demais seres vivos, portadores de
necessidades. Um ser vivo só sobrevive se satisfazer determinadas necessidades.
Essas necessidades básicas são comer, beber, dormir, reproduzir, etc. O ser
humano compartilha essas necessidades com as demais espécies animais (MARX;
ENGELS, 1982). A labuta cotidiana se faz necessária para milhões de seres
humanos. Historicamente, existiram épocas em que nenhum ser humano escapava – a
não ser em breves momentos da vida, como crianças muito novas ou idosos – do
trabalho. Com a emergência das sociedades de classes, emergiu a divisão entre
aqueles que se dedicam à produção dos meios de sobrevivência, voltados para a
satisfação das necessidades básicas, e aqueles que foram liberados da produção
de bens materiais e, assim, se dedicavam ao controle populacional (governantes
e guerreiros), bem como os voltados para a produção intelectual (filósofos,
artistas, etc.), ou reprodução da unidade doméstica, entre outras atividades
sociais. O que interessa, nesse processo, é que nesse momento emerge a
possibilidade de liberação do trabalho manual e, assim, a possibilidade do
desenvolvimento de outras atividades.
Os
trabalhadores manuais, exauridos pelo trabalho, buscam o descanso, o prazer, a
satisfação de suas necessidades básicas. A evasão pode ocorrer através de
sonhos e devaneios, entre outras formas possíveis, mas não tão praticadas. Os
indivíduos das classes superiores, livres do trabalho manual, podem praticar a
evasão mais extensamente, pois desfrutam de tempo disponível. Alguns se evadiam
através da religião ou de orgias, entre outras formas de manifestação. Esse
processo se altera com a emergência da sociedade capitalista. E aqui começamos
a entender melhor o problema da evasão, pois é na sociedade moderna que ela se
manifesta mais intensa e amplamente.
Na
sociedade burguesa, as necessidades básicas não são realizadas por milhões de
seres humanos. Aproximadamente 10% da humanidade passa fome, não satisfazendo a
mais premente necessidade básica. Além desses, há milhões de desempregados,
desabrigados, e outros que conseguem se alimentar razoavelmente, mas não
conseguem satisfazer outras necessidades básicas. Esses se encontram numa
situação em que a realidade é hostil. Esses seres humanos se defrontam com um
mundo miserável ao lado da riqueza e do desperdício. Milhares sofrem com a
repressão policial, a falta de acesso a bens coletivos, entre diversos outros
processos.
Porém,
uma parte considerável da humanidade está para além das necessidades básicas.
Uma vez satisfeita tais necessidades, o ser humano pode ter tempo disponível e
vontade de realizar novas atividades. Historicamente, como demonstrou Marx, os
seres humanos realizam o trabalho e a cooperação para satisfazer tais
necessidades e esses meios se tornam, eles mesmos, necessidades (MARX; ENGELS,
1982). Aqui encontramos o que é especificamente humano, o trabalho como práxis,
objetivação, e a socialidade, a convivência humana, formando um ser práxico e
social. E isso se torna vital para tais seres humanos, são necessidades, que,
uma vez não satisfeitas, geram o mal-estar, a insatisfação, gerando
desequilíbrios psíquicos e outros problemas. O ser humano que não consegue
estabelecer vínculos sentimentais e laborativos com outros, torna-se portador
de uma grande carga de insatisfação, mesmo que não a perceba. Da mesma forma,
se ele não consegue desenvolver uma práxis (atividade teleológica consciente),
se não consegue desenvolver suas potencialidades, suas capacidades físicas e
mentais, a sua criatividade, se torna um ser profundamente insatisfeito. Sem
dúvida, é possível compensar isso, bem como é possível fugir disso.
Eis
que nos deparamos diante do fenômeno da evasão. Os seres humanos, na sociedade
moderna, em sua maioria, conseguem satisfazer suas necessidades básicas (bem ou
mal, dependendo da classe social), mas não conseguem satisfazer suas
necessidades especificamente humanas, que não são materiais, mas psíquicas.
Elas não são conscientes e, por conseguinte, podem ser desviadas e podem gerar
um mal-estar sem que o indivíduo entenda sua razão, inclusive aqueles que são
das classes superiores e possuem condições de exercer as mais variadas
atividades. As discussões sobre o sentido da vida, por exemplo, apontam para
uma situação na qual os indivíduos satisfazem suas necessidades básicas, mas
não satisfazem suas necessidades psíquicas e, devido a isto, buscam um sentido
para sua existência ou buscam fugir da realidade. A evasão acaba se espalhando
pela sociedade.
EVASÃO
E MODERNIDADE
E
isso pode ocorrer, e efetivamente ocorre, desde a infância. Na sociedade
moderna, a infância pode ser marcada pelo isolamento dos outros seres humanos. Milhões
de crianças não conseguem se integrar com outras crianças e, em muitos casos,
nem com os próprios pais, parentes, vizinhança, etc. Esse processo tem
diferentes determinações em casos distintos, variando com a classe social (a
frieza dos pais das classes superiores é, por exemplo, uma especificidade das
classes superiores; a falta de moradia fixa é um exemplo que pode contribuir
com isso nas classes inferiores), sendo que a competição social – elemento
fundamental da sociabilidade capitalista – e as divisões sociais uma das
determinações desse processo. Um caso muito comum, especialmente nos Estados
Unidos e popularizado (bem como incentivado) pelos meios oligopolistas de
comunicação, é o das crianças submetidos ao bullying. O isolamento é
comum nesses casos, e isso pode promover a evasão como ato cotidiano. O uso de
videogames, jogos eletrônicos em geral, é uma das formas de manifestação de
evasão nesses casos.
Mas
processos semelhantes ocorrem com jovens, adultos e idosos. O isolamento, seja
físico ou mental[3],
ou ambos, é uma das principais fontes de evasão. O isolamento gera o sentimento
de solidão, sendo um fenômeno social (ROLL, 2020), e, ao mesmo tempo, gerador
de evasão. Porém, o trabalho alienado ou o conjunto de obrigações sociais
(burocracia, compromissos indesejáveis, etc.) também são geradores de evasão. A
procrastinação é muitas vezes acompanhada de evasão, no qual se une a fuga de
algo com o encontro da ação substituta. Porém, esses processos apenas revelam a
insatisfação das necessidades psíquicas dos seres humanos e, por conseguinte, a
evasão se relaciona diretamente com a falta de autorrealização social e
laboral. Logo, a fuga da realidade ocorre por ela ser insatisfatória em duplo
sentido: por gerar atividades alienadas, desinteressantes, repetitivas,
desagradáveis, envolvidas em relações marcadas por competição, burocratização,
mercantilização, exploração, dominação e conflito, e por não permitir
atividades práxicas, enriquecedoras, criativas, marcadas por relações sociais
fundadas na cooperação, liberdade, coletivização e no objetivo do atendimento
das necessidades humanas.
O
vazio e a falta de sentido que emergem a partir dessas atividades e relações
capitalistas promovem a evasão. É por isso que a evasão pode emergir como fuga
do trabalho alienado e da vida alienada, marcada por muitas atividades, ou do
vazio e da falta de atividades, bem como, em ambos os casos, das relações
sociais que as constituem. No primeiro caso, ela é menos frequente por causa
das atividades necessárias, e menos prejudiciais, já que o indivíduo continua
garantindo sua sobrevivência e mantém um equilíbrio psíquico entre realidade e
fuga dela. No segundo caso, é mais frequente, pois convive com a inatividade e
assim acaba sendo mais constante e duradoura, sendo que é mais prejudicial por
permitir um maior afastamento da realidade e por promover uma insatisfação
adicional por não ter resultados sociais (e ainda gerar intensas cobranças e
pressões sociais, que são ainda mais fortes para os que compartilham os valores
e ideias dominantes). Porém, em ambos os casos é preciso entender a situação
concreta e os indivíduos concretos, com suas múltiplas determinações (as
relações sentimentais com outras pessoas, a classe social e condição social e
financeira dos indivíduos, as possibilidades de outras atividades esporádicas
relativamente satisfatórias, entre milhares de outras).
Nesse
caso, podemos definir evasão como a fuga de uma realidade insatisfatória
através da fixação em atividades, ações, que promove o escape dela e seu sobrepujamento.
Para não se confundir o fenômeno da evasão com outros fenômenos, é necessário
esclarecer aqui o significado dos termos utilizados em sua definição. A fuga,
aqui, significa escapismo, mas não o processo consciente de fugir de algo. O
operário que falta ao trabalho não realiza evasão, bem como diversas formas
conscientes e esporádicas de evitar situações, relações, que promovem
mal-estar. Se a realidade é insatisfatória, seja em sua totalidade ou em alguns
de seus aspectos, nada mais saudável do que fugir dela, momentaneamente ou
usando mecanismos racionais e conscientes. Assim, é útil distinguir recusa de
fuga. A fuga é um processo de não enfrentamento, de buscar escapar e se
distanciar, que, mesmo sendo relativamente consciente[4],
não aponta para sua superação e não é acompanhada da percepção de suas raízes
sociais. A recusa é um processo de enfrentamento, que pode gerar uma fuga, mas
que é acompanhada de uma percepção de sua motivação, mesmo que parcial, e que
tem como objetivo sua superação. Porém, a evasão não é qualquer afastamento da
realidade e sim aquela que se converte em atividade fixa. Quando um jovem foge
dos estudos para se dedicar exclusivamente aos jogos eletrônicos e gasta,
diariamente, várias horas com isso, realiza evasão. Se ele faz isso nos fins de
semana e alguns dias da semana, com variações (algumas semanas mais, outras não,
mais nas férias ou passa períodos sem o fazê-lo), então não se trata de evasão.
Por outro lado, essa fixação deve funcionar como um substituto da realidade,
sobrepujando-a. A criação de uma realidade paralela ocorre no mundo da fantasia
e da ficção, mas isso é produzido conscientemente e não como uma fuga, mas,
mesmo se fosse, ainda não seria evasão, porquanto não substitua a realidade
concreta na mente do indivíduo, ou seja, a realidade é esquecida nos momentos
evasivos. Assim, para haver evasão, é preciso que haja quatro elementos
interligados: realidade insatisfatória, fuga (e não recusa), fixação,
substituição da realidade concreta por uma realidade artificial.
A
fronteira entre evasão e outros fenômenos semelhantes é tênue, bem como a
distinção entre fuga e recusa, pois numa sociedade fundada na exploração,
dominação e processos derivados (incluindo os conflitos sociais e a luta de
classes), com as especificidades do capitalismo (mercantilização,
burocratização e competição) é comum a fuga e a recusa da realidade, mas nem
sempre gerando evasão. No entanto, a evasão se torna extremamente comum e
ocorre num grau elevado e vem se ampliando com o desenvolvimento do capitalismo
e da tecnologia.
A
REALIDADE INSATISFATÓRIA
Assim,
a evasão é um problema psíquico e social, mas não é o grande problema. A
psicologia conservadora pararia sua análise aí e já passaria para o
aconselhamento para tratar da evasão. Contudo, o grande problema é a
realidade insatisfatória para milhões de seres humanos que gera a evasão. A
evasão é uma resposta à uma realidade que nega a autorrealização dos seres
humanos, que impede o desenvolvimento de suas potencialidades e criatividade,
que gera relações sociais marcadas pela exploração, dominação, conflito, mercantilização,
burocratização e competição social.
Não
é difícil perceber que a fuga do trabalho alienado, e das organizações
burocráticas (universidades, escolas, partidos, sindicatos, entre diversas
outras instituições), de ambientes competitivos, é saudável e produto dessas
próprias instituições que existem para garantir a sua própria manutenção e a
reprodução das relações de produção capitalistas.
A
evasão é um problema por gerar sofrimento psíquico e dificultar a passagem da
fuga para a recusa radical, ou seja, para a ação consciente de combate às
causas do mal-estar gerado pela sociedade capitalista. O único “tratamento”
efetivo contra a evasão é a transformação da realidade que gera a evasão. Nos
limites do capitalismo, o que se pode fazer é contribuir com que alguns
indivíduos superem a evasão e isso pode ser efetivado sob várias formas, a
começar pela ampliação da consciência sobre a própria evasão.
A
INTENSIDADE DA EVASÃO
A
evasão pode ser mais ou menos intensa, com uma fixação maior ou menor, bem como
existem casos em que pode ser mais “variada”. É possível distinguir entre
evasão consciente e evasão insciente[5]. A
evasão consciente é quando o indivíduo sabe que está fugindo de algo. O grau de
consciência pode variar, pois pode saber do que foge ou não, embora não saiba o
motivo da fuga. Aqui temos a consciência da fuga e do que se foge, mas não da
motivação da fuga. Assim, um trabalhador pode fugir do trabalho (alienado) e
saber que está fugindo e do que está fugindo. Mas a razão profunda pela qual
ele faz isso não é consciente. No fundo, isso gera uma contradição psíquica,
pois o indivíduo sabe que foge do trabalho, mas não sabe o motivo e isso se
deve, em parte, às ideias e valores dominantes sobre o trabalho, o que gera uma
insatisfação adicional, pois além de insatisfação com o trabalho, o que gera a
fuga, há a insatisfação com a fuga, que é condenada pela moral, pelas ideias
dominantes e pela sociedade como um todo[6].
Assim,
quando a evasão é mais consciente, ela é mais moderada e mais controlada,
absorvendo menos tempo dos indivíduos, mas pode ser, em certo sentido, mais
dolorosa, justamente devido ao fato de ser consciente. A evasão insciente é
quando não se sabe que é uma fuga e do que se foge. Ela pode ser mais intensa e
menos controlada, bem como pode absorver maior tempo e energia dos indivíduos. Assim,
quando um indivíduo se envolve com o futebol e sabe que o faz para fugir da
família, do trabalho, etc. então sua evasão é consciente. Um outro indivíduo
que usa drogas cotidianamente pode não ter consciência de suas reais motivações
e de que se trata de uma fuga. A evasão varia de intensidade, indo da forma
mais moderada até a forma de desequilíbrio psíquico, tal como no caso das
psicoses[7].
A
evasão é mais perceptível no uso de jogos eletrônicos, drogas, mas também está
presente na internet e nas redes sociais virtuais, que se tornam substitutas da
vida real. Por outro lado, a evasão é menos perceptível em formas consideradas
culturalmente mais elevadas ou socialmente mais aceitas, como no caso da
religião, literatura, ciência, política, trabalho, etc. Nesses casos, a
fronteira entre curiosidade e/ou profissão, por um lado, e evasão, por outro, é
mais difícil de delimitar. No caso do fanatismo político ou religioso, ela é
mais facilmente perceptível. Existem outras formas de evasão pouco
perceptíveis, como, por exemplo, o hábito de viajar, que pode ser enfeitado com
o gosto por viagens, que, no fundo, pode ser apenas a fuga da cotidianidade, do
trabalho, entre outras possibilidades. Por outro lado, o que é evasão para um
indivíduo pode não ser para outro. Um indivíduo que viaja a trabalho,
obviamente, não realiza evasão. Da mesma forma, alguém que gosta efetivamente
de atuação política e a faz sob forma racional (ou seja, não criando uma
realidade paralela, como ocorre em certas crenças conspiracionistas) e sem
deixar de lado as outras atividades necessárias para a sobrevivência e
convivência social, também não estaria se evadindo.
AS
FORMAS DE EVASÃO
As
formas de manifestação da evasão são variadas. A religião, o futebol, os
videogames e jogos em geral, a arte, a sexualidade, a televisão, são algumas de
suas formas mais comuns[8]. O
que há em comum nesses casos é que todos eles criam uma “segunda realidade”,
uma realidade paralela, que passa a sobrepujar a realidade concreta. A religião
cria a realidade religiosa que se manifesta na vida social e concreta, mas que
trabalha com seres sobrenaturais e com a “vida após a morte”. O futebol tem uma
base real, os jogos, o campeonato, a mercantilização, etc., mas também gera sua
“realidade” nas regras do campeonato e na dinâmica dos jogos. Os jogos em geral
também criam uma realidade paralela, marcada por suas regras e sua dinâmica
(VIANA, 2019)[9].
Porém, não é possível descartar estes e outros fenômenos como sendo evasão ou
como algo puramente prejudicial. A religião, o futebol, os videogames, não são
formas de evasão em si e sim podem se tornar assim a partir de determinada
relação que determinados indivíduos estabelecem com esses fenômenos sociais.
Alguns fenômenos sociais, por gerarem uma realidade paralela, acabam sendo mais
adequados para os indivíduos que buscam evasão, bem como as relações sociais
que se instituem ao seu redor.
Por
outro lado, esses fenômenos, quando são meios de evasão para determinados
indivíduos, não são equivalentes. Um pode ser menos prejudicial do que o outro,
inclusive alguns indivíduos, com muito esforço, passam de uma para outra (é o
caso do usuário de drogas que não conseguia sobreviver razoavelmente e que passa
para uma religião e assim consegue se reinserir nas atividades sociais). Em
outros casos, a evasão pode se tornar profissão ou meio de sobrevivência[10]. Porém,
algumas formas, como o fanatismo por futebol, já geram uma maior dificuldade
nesse processo de passagem de evasão para trabalho. Um outro aspecto é que a
evasão pode intensificar o isolamento ou promover sua diminuição. Os jogos
eletrônicos individuais tendem a gerar maior isolamento, enquanto que o jogo em
equipe cria uma sociabilidade entre os jogadores, mesmo que mais restrita.
No
entanto, é preciso ter em mente que a passagem de uma forma de evasão para
outra, ou sua amenização, entre outros processos que atingem apenas a maneira
em que ela se manifesta ou sua intensidade, não é uma superação da
insatisfação, mas tão somente uma menor ou maior adaptação à sociedade geradora
de insatisfações.
EVASÃO,
CONSUMO, POLÍTICA E TÉDIO
A
evasão é um problema individual e social. É individual por atingir o indivíduo
e sua vida e é social não apenas por ser um produto da sociedade, mas também
por estar indissoluvelmente ligada com diversas relações sociais e provocar
consequências sociais. Sem dúvida, da perspectiva do capital, a evasão é um
problema para o rendimento no trabalho, a participação na política
institucional (legitimadora da sociedade moderna), entre outros problemas
derivados, mas também é um momento de oportunidade de lucro e pode ser gerador
de vantagens políticas. Desde os tratamentos clínicos para os casos mais graves
(e os remédios que beneficiam o capital farmacêutico) até a mercantilização de
atividades de evasão, o capital sempre lucra com a miséria que produz. O
futebol profissional funciona como evasão para muitos indivíduos e isso gera
audiência, aquisição de mercadorias (ingressos para o jogo, camisas do time, etc.),
divulgação, entre outros elementos que os clubes e meios oligopolistas de
comunicação usam para lucrar. A busca da evasão promove um amplo mercado
consumidor para o lazer mercantilizado e se torna fonte de lucro.
A
evasão tem um significado político fundamental para o capital. Numa sociedade
na qual se poderia satisfazer todas as necessidades básicas de toda a população
por existir condições tecnológicas e laborais para tal, mas na qual é
impossível a satisfação das necessidades especificamente humanas, as
necessidades psíquicas, a evasão emerge como uma das alternativas e gera uma
falsa satisfação substituta para grande parte da população. O capital gera uma
ampla fabricação de desejos (FROMM, 1986) e manipulação da insatisfação social
(VIANA, 2021) com objetivos mercantis e/ou objetivos políticos. A evasão é um
produto do capitalismo e se torna uma mercadoria ou mercancia lucrativa e algo vantajoso
politicamente. As novas tecnologias e a internet permitiram uma ampliação e
generalização da evasão como nunca antes visto na história da humanidade. Uma
sociedade evasiva é, ao mesmo tempo, manipulável e explosiva, pois ao lado da
evasão generalizada há a insatisfação generalizada e se a manipulação falha,
abre a possibilidade da explosão social que pode gerar uma revolta destrutiva
ou uma revolução social.
Assim
se produz uma sexualidade evasiva, uma arte evasiva, comunicação (via internet
e outros meios) evasiva. A sexualidade evasiva é aquela que proporciona uma
fuga da realidade, na qual se cria uma fixação e redução do mundo à atividade
sexual, gerando o homo sexualis. Isso
se intensifica no capitalismo contemporâneo, pois o novo regime de acumulação
instaurado, o integral, traz consiga uma renovação hegemônica e o paradigma
subjetivista, e, junto com ele, o hedonismo, novos valores, etc.
E
a evasão gera o tédio e o vazio. Rojas, Prokop e outros abordaram tal aspecto. Rojas
mostra aspectos dessa relação entre vazio e tédio, sem utilizar tais termos, na
fase do capitalismo sob o regime de acumulação integral. Prokop trata dessa
questão ao abordar o cinema e o que ele denomina “fascinação” (que aqui
denominamos evasão) e o tédio que lhe acompanha (PROKOP, 1986; VIANA, 2020;
SOUZA, 2008).
Os
produtos da cultura monopolística de massa têm algo de entediante. O incrível
design, o rápido noticiário, os balés de televisão escassamente gesticulados,
Angélique, Cathérine, Amber e Barry Lindon, que são procurados em virtude do
seu sucesso e de seus elementos trágicos – em determinado aspecto, muitos dos
produtos adorados e mais frequentemente consumidos são simplesmente cansativos.
Esta não é apenas uma impressão subjetiva. O público de fato se entedia
(PROKOP, 1986, p. 152).
A
evasão gera o tédio e pode gerar outros efeitos psíquicos que podem se tornar
cada vez mais graves com sua intensificação. E tanto a evasão quanto o tédio
são mercantilizados. Assim, ambos fazem parte do processo de reprodução da
sociedade capitalista. E um aspecto curioso desse processo é que com o
desenvolvimento capitalista isso se amplia e intensifica, gerando novas formas
de evasão e intensificando a sua ocorrência, bem como a do tédio. O mundo
virtual da internet acaba gerando uma ampliação do isolamento, um maior grau de
insatisfação, já que os indivíduos não podem satisfazer sua necessidade de
socialidade, ou seja, de convivência social satisfatória. Curiosamente, a
internet se torna refúgio para evasão, o que gera uma possibilidade de
comunicação e convivência, mas virtual e geralmente artificial, o que é mais um
elemento gerador de tédio.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A
superação da evasão pressupõe a superação da sociedade produtora de evasão.
Assim, é preciso superar o reino das insatisfações e das satisfações
substitutas por um mundo satisfatório. O realismo conservador tornou inusual e
condenou uso da expressão “felicidade”. A ideia de felicidade, para além das concepções
ideológicas e reducionistas, é justamente o processo no qual o ser humano
consegue satisfazer suas necessidades radicais – as básicas e as
especificamente humanas. Nessa situação, o ser humano não necessita de evasão.
A ausência da felicidade garante a presença da evasão. A presença da felicidade
garante a ausência da evasão. A luta contra a evasão é uma luta pela
felicidade, que se sintetiza na luta contra o capital e a favor da autogestão.
REFERÊNCIAS
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edição, São Paulo: Global, 1985.
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WEBER, Max. A
Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. 2ª edição, São Paulo:
Pioneira, 1987.
[1]
Muitos pensavam que estavam usando o conceito marxista de alienação, enquanto
que, na verdade, o estavam deformando, transformando-o num fenômeno da
consciência. Para Marx, a alienação é um fenômeno social e se materializa,
fundamentalmente, no trabalho alienado, que é um trabalho controlado por outros
e é justamente nesse processo de dominação sobre a atividade do trabalhador que
se estabelece a alienação. A alienação do trabalho, ou seja, o controle da
atividade do trabalhador, gera a alienação do produto do trabalho, ou seja, o
controle do que é produzido. A concepção materialista da alienação vem para
explicar que é o trabalho que cria a propriedade, que há uma relação social de
controle e dominação que permite a relação social de exploração. Alguns, sobre
o pretexto de “tradução” fiel do alemão para o português, deformam
completamente o caráter materialista e transforma a alienação, tal como era em
Hegel, num fenômeno da consciência, gerando uma concepção idealista. Não
poderemos desenvolver mais tal questão, mas existe uma bibliografia que
contribui com a compreensão da concepção marxista de alienação (MARX, 1989;
VIANA, 2017; VIANA, 2012).
[2]
“Hegel usou o termo como significando a apropriação do homem pelo espírito
absoluto. Para Hegel, segundo Marx, o ser humano, o homem, é igual à
consciência de si. ‘Toda alienação do ser humano não é, por conseguinte, senão
a alienação da consciência de si’” (BASBAUM, 1985, p. 17).
[3]
O isolamento mental é quando o indivíduo está cercado de pessoas, mas não se
identifica, não combina, não compartilha coisas ou não possui afinidade com
elas. É a velha ideia do indivíduo “sozinho na multidão”, tema de diversas
músicas populares no Brasil e no mundo.
[4]
A fuga pode ser efetivada a partir de uma situação mental que vai do totalmente
insciente até a relativamente consciente. No primeiro caso, é o que é comum nos
problemas de desequilíbrio psíquico, que é o caso da psicose, mas existem
formas intermediárias até chegar ao relativamente consciente, pois, nesse
último caso, o indivíduo pode ter consciência da fuga, mas que dificilmente
chegará até a proposta de superação efetiva ou uma compreensão de suas
determinações (a não ser as imediatas e/ou aparentes).
[5]
O termo “insciente” é pouco usual, pois geralmente se usa “inconsciente” (de
acordo com seu uso na linguagem cotidiana, o que pode promover confusão com seu
significado psicanalítico) ou “não-consciente”. O insciente é algo não
consciente e assim se difere do inconsciente, no sentido psicanalítico, que
remete aos desejos ou necessidades reprimidas na mente do indivíduo. O uso do
termo insciente evita o equívoco da confusão com o inconsciente no sentido
psicanalítico do termo, bem como é preferível a não-consciente, pois tem o
mesmo significado e aponta para um fenômeno real que não se caracteriza apenas
por ser ausência de outro fenômeno (a consciência).
[6]
O trabalho alienado como valor é algo que acompanha a história do capitalismo,
tal como se vê no caso da ética protestante (WEBER, 1987).
[7]
A psicose é um desequilíbrio psíquico mais comum nas classes inferiores, no
qual a intensidade da insatisfação e falta de satisfações substitutas é maior.
Assim, a divisão realizada por Schneider (1977), segundo a qual no proletariado
a psicose é mais comum e na burguesia a neurose, é explicada pelas relações de
classes no capitalismo (VIANA, 2014). A psicose é uma espécie de evasão total,
no qual a realidade psiquicamente constituída pelo indivíduo substitui a realidade
concreta.
[8]
Rojas (1996) aborda alguns casos, tal como a televisão, embora não se possa
concordar com o conjunto de sua abordagem, que são contribuições para pensar a
evasão na contemporaneidade.
[9]
Calderoni descreve as multidões indo ao estádio com seus “olhos cintilantes” e
“respiração ofegante” e aponta um indivíduo imaginário desconhecedor desse
processo social e dinâmica desse esporte que pensaria, na frente dos estádios,
que lá estaria se decidindo “o futuro da humanidade”.
[10]
O que pode criar a sua superação ou apenas fusão com uma atividade
profissional.
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Publicado em:
VIANA, Nildo. A Sociedade da Evasão. In: FERREIRA, Ezequiel; FREITAS, Patrícia; MELLO, Roger. (Org.). Psicologia e Desenvolvimento. Pesquisa e Atuação. 1ed.Rio de Janeiro: E-Publicar, 2022, v. 1, p. 98-112. Disponível em: https://www.academia.edu/69898927/A_Sociedade_da_Evas%C3%A3o
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