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quarta-feira, 24 de julho de 2019

A FORÇA DA IDEOLOGIA



A FORÇA DA IDEOLOGIA

Nildo Viana 


A compreensão das ideologias do cérebro é facilitada pela compreensão do conceito de ideologia. Isto nos leva, inevitavelmente, a discutir a relação entre ciência e ideologia. Neste sentido iremos, inicialmente, fazer uma discussão sobre o que é a ideologia e quais são suas conseqüências sociais, bem como sua relação com a ciência, para, no capítulo posterior, discutir as ideologias do cérebro.
Uma das palavras mais utilizadas no mundo contemporâneo é ideologia. Nos meios acadêmicos e políticos, principalmente, sempre aparece a acusação de cair no pecado da ideologia. Mas o que significa ideologia? Esta é uma expressão que possui muitos significados e isto complexifica a questão. Apresentaremos, a seguir, uma visão sintética do fenômeno da ideologia, buscando demonstrar como se formaram as atuais concepções de ideologia e apresentar uma determinada concepção deste fenômeno.
O Conceito de Ideologia na História
A palavra ideologia, ao contrário de muitas outras de utilização recorrente na cultura ocidental, é recente. A palavra democracia, por exemplo, remonta a Grécia Antiga, mas ideologia remonta a época do iluminismo. Esta expressão surge com Destutt de Tracy, que buscava criar uma nova ciência: a ciência das idéias. Ideologia, como tal sugere a sua etimologia, é a ciência das idéias. Este pensador escreveu um longo tratado sobre a ideologia e juntamente com um conjunto de colaboradores buscou desenvolver estudos no sentido de consolidar esta nova ciência. Porém, depois de desentendimentos com Napoleão Bonaparte, o significado da palavra iria se alterar. As divergências fizeram com que Napoleão denomina-se Destutt de Tracy e seus seguidores como “ideólogos”, querendo dizer com isso que eles eram pensadores metafísicos, produtores de especulações abstratas (Löwy, 1985; Chauí, 1984).
Desta forma, houve o que os especialistas em semântica denominam “mutação de sentido” da palavra. Ideologia passou a significar um pensamento especulativo, metafísico. Esta concepção de ideologia se tornaria a concepção dominante e seria neste contexto que Marx e Engels abordaram a questão da ideologia em A Ideologia Alemã. Marx e Engels realizaram uma crítica radical à ideologia alemã de sua época, os chamados jovens hegelianos. Para Marx e Engels, ideologia significava uma inversão da realidade (Marx e Engels, 2002). As análises de Marx e Engels são as mais profundas sobre a questão da ideologia. Até hoje, nem os comentaristas nem os que tentaram inovar em relação a estes dois pensadores, conseguiram ir além do que eles colocaram.
A concepção da ideologia como inversão da realidade retoma a concepção napoleônica, mas a aprofunda e lhe dá um significado teórico. Não se trata de apenas um adjetivo pejorativo que significa que determinado pensamento é metafísico e especulativo e sim um conceito articulado com diversos outros conceitos carregando um significado preciso.
Mas a história deste termo não se encerraria aí. A palavra ideologia teria, em sua história, várias outras mutações de sentido. Mesmo entre aqueles que dizem seguir as teses de Marx o conceito de ideologia iria sofrer alterações. Lênin e Gramsci irão compreender ideologia de forma diferente da apresentada por Marx. Lênin, como sabemos, morreu em 1924, e por isso não leu o texto de Marx e Engels, A Ideologia Alemã, publicada somente alguns anos depois. Ele considerava ideologia como sendo concepções produzidas pelas classes sociais que refletem a realidade objetiva (1990). Desta forma, haveria uma ideologia burguesa e uma ideologia proletária, bem como uma ideologia camponesa, pequeno-burguesa, lumpemproletária e assim por diante. Gramsci apresentará uma concepção semelhante. Para ele, ideologia significa visão de mundo e todas as classes sociais produzem sua própria visão de mundo. Gramsci seria o pensador político de influência marxista que mais trabalharia com a questão da cultura e da ideologia (1989), pois para ele a dominação burguesa se sustenta graças ao processo de hegemonia que esta classe exerce sobre as outras, sendo que, para ele, tal hegemonia consiste na direção moral e intelectual que uma classe exerce sobre outras. É no mundo da ideologia que se mantém a hegemonia burguesa.
Esta visão conviveu com outras concepções. O sociólogo alemão Karl Mannheim iria apresentar uma visão não-marxista de ideologia que traria alguns pontos em comum com a visão original de Marx. Para Mannheim, ideologia era uma concepção de mundo ligada aos interesses dos dominantes e, portanto, carregava em si um caráter unilateral que ofuscava uma compreensão fiel da realidade social. Os dominados, por sua vez, produziriam utopias, uma concepção de mundo oposta, crítica e revolucionária (1986). Porém, Mannheim acabava se separando do marxismo ao considerar que esta noção de ideologia devia ser complementada por outra mais ampla e, principalmente, por considerar que a ideologia era prejudicial a um conhecimento fiel da realidade devido sua unilateralidade e que este mesmo defeito estaria presente na utopia. Desta forma, tanto a utopia quanto a ideologia seriam limitadas, visões unilaterais, embora Mannheim considerasse a utopia como mais adequada à realidade do que a ideologia. Mas ao lado desta concepção ele acrescentava a idéia de distinção entre ideologia particular e ideologia total, sendo que a primeira seria a ideologia produzida pela classe dominante e a segunda seria um conceito mais geral, incluindo toda e qualquer visão de mundo, inclusive as utopias.
Outras concepções de ideologia seriam produzidas. Althusser irá conceber a ideologia no sentido de Marx, ou seja, como um pensamento falso (1985). Porém, ele irá opor um pensamento falso a um pensamento verdadeiro, criando a oposição entre ideologia e outro termo que seria o seu contrário. A concepção althusseriana, no entanto, irá se distinguir da concepção de Marx devido o viés estruturalista que este implementará ao termo ideologia, o que o tornará bastante problemática, principalmente em sua afirmação de que a “ideologia não tem história”, “é eterna”, bem como sua interpretação de Marx. Althusser deforma a teoria marxista da ideologia, criando mais uma concepção ideológica de ideologia. Ao recusar a teoria de Marx segundo a qual a ideologia não tem história por possuir uma historicidade dependente da história da sociedade e postular sua onipresença e eternidade, ele simplesmente rompe com o materialismo histórico. Ao autonomizar a ideologia e retirá-la da historicidade do social, Althusser não compreende o fenômeno ideológico. O pressuposto por detrás desta concepção é uma abordagem estruturalista e a-histórica. A historicidade da ideologia é abolida e em seu lugar surge algo simplesmente fantasmagórico.
Se Mannheim opôs ideologia e utopia, Althusser irá opor ideologia e ciência. Outros irão opor ideologia e crítica, ideologia e filosofia, ideologia e teoria e assim por diante. Assim, existe o nosso pensamento e o pensamento do outro, o pensamento verdadeiro e a ideologia. O sentido pejorativo do termo ideologia é predominante. Os positivistas irão opor ciência e ideologia, mas, ao contrário do que colocou Althusser, a ideologia não seria o pensamento da classe dominante e por isso seria falso e sim um pensamento valorativo, por isso carregado de valores.
Todas estas concepções posteriores a Marx são problemáticas. Sem dúvida, alguns, como Lukács (1989) e Korsch (1977), mantiveram – sem dedicar grandes reflexões sobre este termo – a concepção marxista de ideologia. Embora se possa dizer que Gramsci contribui ao analisar a importância da ideologia na sociedade moderna, é necessário também dizer que esta contribuição acabou se revelando limitada, já que o conceito de ideologia neste pensador se tornou demasiadamente amplo. A idéia da ideologia como “visão de mundo” (tal como concebido por Lênin e Gramsci), não só entra em contradição com a concepção de Marx como também nada acrescenta ao materialismo histórico e à compreensão da sociedade. Além disso, revela uma concepção que não parte da perspectiva do proletariado. A visão de Mannheim de ideologia particular e utopia é muito mais próxima da realidade, mas sua idéia de que a utopia é parcial, acaba se mostrando bastante limitada e preso aos interesses da classe dominante.
Uma das grandes contribuições intelectuais de Marx foi justamente mostrar que existem representações ilusórias da realidade, bem como que uma versão sistematizada delas e produzida pelos ideólogos, isto é, que a classe dominante sustenta todo um grupo social voltado para criar uma falsa consciência sistemática da realidade e assim facilitar o processo de dominação de classe. Não perceber a existência da ideologia e seu papel é algo extremamente contrário à perspectiva do proletariado, pois impossibilita a percepção da existência da falsa consciência e dos interesses que estão por detrás dela.
O Fenômeno Ideológico
Desta forma, percebemos que o conceito de ideologia tem uma longa história. A partir da contribuição de Marx e de alguns desdobramentos dela, iremos apresentar nossa concepção de ideologia. A ideologia pode ser definida resumidamente como falsa consciência sistemática. Ela é falsa consciência por estar ligada aos interesses da classe dominante, que não pode revelar a verdade, deve ocultá-la. A classe dominante não pode revelar seus interesses, a exploração, a dominação, etc. A burguesia, atual classe dominante, deve produzir idéias, concepções, ciência, filosofia e o faz a partir de sua perspectiva. A partir de sua situação de classe, a burguesia necessita produzir uma mentalidade e desenvolver sua consciência a respeito de todas as esferas da vida social.
“Esta situação da burguesia determina a função da consciência de classe na sua luta pela dominação na sociedade. Como a dominação da burguesia se estende realmente a toda a sociedade, como ele pretende efetivamente organizar toda a sociedade em conformidade com os seus interesses e, em parte, o tem conseguido, necessariamente teria que criar também uma doutrina coerente da economia, do Estado, da sociedade, etc., (o que pressupõe e implica já, em si e para si, uma ‘visão do mundo’, uma ‘weltanschauung’), e também desenvolver e tornar consciente em si a crença na sua própria vocação p ara dominar e organizar. O caráter dialético e trágico da situação de classe da burguesia consiste em que, por um lado, não e apenas do seu interesse, é-lhe também absolutamente necessário adquirir, sobre cada questão particular, uma consciência tão clara quanto possível dos seus interesses de classe, e em que, por outro lado, isso se lhe torna fatal, quando essa mesma consciência clara se estende à questão da totalidade. A razão para tal é que, antes de mais, a dominação da burguesia só pode ser dominação de uma minoria. Como esta dominação não só é exercida por uma minoria, mas é também exercida no seu interesse, é condição inelutável da manutenção do regime burguês que as outras classes se iludam, mantendo uma consciência de classe confusa. (São exemplo disso a doutrina que coloca o Estado ‘acima’ das oposições de classe, a justiça ‘imparcial’, etc.). No entanto, velar a essência da sociedade burguesa é também uma necessidade vital para a própria burguesia: com efeito, a uma visão mais clara, melhor se revelam as contradições internas insolúveis desta organização social, o que coloca aos seus partidários a seguinte opção: ou fechar-se conscientemente a esta compreensão crescente, ou reprimir em si todos os instintos morais para poder aprovar, também moralmente, a ordem social que aprovam em virtudes dos seus interesses” (Lukács, 1989, p. 81).
A burguesia deve ocultar o processo de dominação e exploração, bem como as forças motrizes das transformações sociais, ou seja, a própria luta de classes. Porém, quando o proletariado se autonomiza e radicaliza suas lutas, a percepção da luta de classes se torna ainda mais difícil de evitar, mesmo para os representantes ideológicos da burguesia. Segundo Lukács,
“Foi neste ponto da fase ascendente do capitalismo, quando a luta de classe do proletariado ainda só se manifestava por violentas explosões espontâneas que até representantes ideológicos da classe ascendente (Marat, e historiadores posteriores como Mignet, etc.) reconheceram o fato da luta de classes como fato fundamental da vida histórica. No entanto, à medida que este princípio inconscientemente revolucionário da evolução capitalista é elevado pela teoria e pela práxis do proletariado à consciência social, a burguesia vê-se ideologicamente obrigada a defensiva consciente. A contradição dialética na ‘falsa consciência’ da burguesia exacerba-se; a ‘falsa’ consciência transforma-se em falsidade da consciência. A contradição que no início estava presente apenas objetivamente torna-se subjetiva: o problema teórico transforma-se em comportamento moral que influi, de forma decisiva, em todas as tomadas de posição práticas de classe, em todas as situações e em todas as questões vitais” (Lukács, 1989, p. 80).
Desta forma, a dominação burguesa gera uma dominação cultural que tem por base um conjunto de produções intelectuais que, devido à perspectiva burguesa, possui limitações intransponíveis. Para ultrapassar estes limites, teria que “deixar de considerar os fenômenos da sociedade do ponto de vista da burguesia. E disso nenhuma classe é capaz, ou teria que renunciar voluntariamente à sua dominação” (Lukács, 1989, p. 68). Isto cria limites intransponíveis para a consciência burguesa (Marx, 1988).
A ideologia é, portanto, uma falsa consciência sistemática da realidade (Viana, 2006). Ela surge com o processo de divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, tal como colocou Marx e Engels (2002). É quando surgem os intelectuais enquanto grupo social especializado, é que nasce a ideologia. A especialização no trabalho intelectual é condição de possibilidade para a ideologia. O ideólogo, livre do trabalho manual, pode pensar que as idéias são autônomas, independentes de sua base real, concreta, social. E, assim, o especialista no trabalho intelectual, o ideólogo, pode se lançar ao mundo das idéias e constituir um edifício gigantesco que é de difícil acesso para aqueles que não possuem tempo para se dedicar a estudos e pesquisas e compreender o discurso ideológico. A filosofia grega, por exemplo, é uma manifestação de um pensamento complexo que era praticamente inacessível para a maioria da população.
Os ideólogos, porém, estão intimamente ligados à classe dominante, pois a sua sobrevivência material é dependente dos recursos doados por esta e retirada da extração de mais-trabalho das classes exploradas (Viana, 2006). Assim, se torna possível compreender não somente a origem histórica da ideologia (que ocorre com a divisão entre trabalho intelectual e manual, quando surgem as classes sociais, o que significa que não existiu ideologia em sociedades pré-classistas), mas também que se trata não de qualquer representação ilusória da realidade e sim uma consciência sistematizada, um pensamento complexo. Este processo, no entanto, não é geralmente intencional (os ideólogos, na maioria das vezes, acreditam em sua autonomia e de suas idéias).
Os ideólogos, graças a seu modo de vida, interesses e valores, gerados por sua existência social, acabam tendo a predisposição de fazer a apologia da sociedade existente, ou, no máximo, fazer uma crítica superficial devido a sua vontade de conseguir maior espaço no interior da hierarquia social (na sociedade capitalista, isto se manifesta através do desejo de maior status, poder, riqueza, etc.). Esta crítica superficial também pode ocorrer devido a contextos histórico-sociais precisos. Toda sociedade produz uma mentalidade dominante, constituída por interesses, valores, concepções, sentimentos, moral, etc., que é a base da formação das ideologias[1].
A ideologia busca justamente justificar e naturalizar a sociedade existente para assim legitimá-la. Mas isto pode ser feito sob formas diferentes e com objetivos diferentes, dependendo da ideologia em questão. Ao fazer isso, ela inverte a realidade, produz uma consciência ilusória, falsa, desta realidade. Os procedimentos pelos quais realiza isso são os mais variados, entre os quais “tomar o resultado de um processo como se fosse o seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as conseqüências pelas premissas, o determinado pelo determinante” ou tomar a realidade “tal como se oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado que apenas classificamos, ordenamos e sistematizamos, sem nunca indagar como tal realidade foi concretamente produzida” (Chauí, 1984, p. 104) ou, ainda, isolar fenômenos, destacá-los da totalidade no qual são constituídos e relacionados. Claro que a forma do procedimento de uma construção ideológica depende de suas características próprias. Assim, o empiricismo difere radicalmente do racionalismo, mas tanto um quanto o outro são ideologias e possuem em comum a característica essencial de toda ideologia: a inversão da realidade.


Ciência e Ideologia
Para muitos, tal como Althusser, existe uma oposição entre ciência e ideologia. A ciência seria um saber verdadeiro e a ideologia um saber falso. Porém, esta concepção é não-marxista e equivocada. No fundo, revela uma concepção ideológica de ideologia, já que retira a base social da ciência, além de retirar a ciência da história, isto é, não percebe que é um produto da sociedade capitalista e envolvida com ela até o pescoço. O processo de dominação e exploração na sociedade capitalista está intimamente ligado à força da ideologia e, principalmente, ao poder e influência da ciência.
A ciência assume um papel importante neste processo. Ela não escapa às determinações da consciência burguesa em geral. A ciência – seja qual for – é não só dominada pelas instâncias de regularização e controle da sociedade capitalista (Estado, empresas privadas, universidades, institutos de pesquisa, fundações, etc.), como tem a mesma base de interesses (que pressupõe valores, objetivos, concepções, sentimentos) comuns com a perspectiva burguesa. Assim, o Estado neutro no exemplo anteriormente citado por Lukács, poderia ser substituído pelo exemplo da “ciência neutra”, “objetiva”, duas ilusões do pensamento científico (Viana, 2006; Viana, 2000). A ciência é, tal como as outras formas de manifestação da ideologia burguesa, uma falsa consciência sistematizada.
Este é um ponto polêmico. Para muitos, a ciência é um saber verdadeiro, inclusive para muitos que se dizem marxistas. Para outros, existem duas ciências, a burguesa e proletária, sendo esta última verdadeira. Há, ainda, alguns que sustentam, tal como fazemos aqui, que a ciência é uma ideologia, logo, falsa consciência sistematizada. Alguns questionam essa tese a partir dos resultados práticos da ciência, tal como o desenvolvimento tecnológico, que seria aplicação do saber científico e, sendo assim, como este poderia ser falso? A ciência permite construir uma televisão, um carro, uma semente híbrida, uma célula vegetal, etc. e também permite curar ou pelo menos diminuir a dor dos indivíduos (não só com os remédios como também com terapias, etc.). Pois bem, isto parece contradizer a tese de que a ciência é uma ideologia e por isso iremos abordar esta questão a partir de agora.
A Eficácia Prática da Ciência e da Ideologia
O antropólogo Lévi-Strauss, apesar de ser um ideólogo, produziu uma análise interessante e correta sobre o papel do xamã numa sociedade indígena, que seria semelhante ao de um psicanalista, logo, um cientista, na sociedade capitalista. Lévi-Strauss busca explicar o processo de cura no caso de indígenas através do trabalho do xamã. A explicação do xamã e da totalidade da sociedade indígena é a feitiçaria, o espírito maligno, etc. Uma vez que o indivíduo se crê enfeitiçado, crença compartilhada pela comunidade, o isolamento ocorre, o que gera o agravamento de sua debilidade física. Lévi-Strauss cita um pesquisador que explica este processo – que, aliás, já foi explicado pela psicanálise através da tese psicossomática segunda a qual os problemas psíquicos afetam o corpo humano:
“Cannon mostrou que o medo, assim como a cólera, se faz acompanhar de uma atividade particularmente intensa do sistema nervoso simpático. Esta atividade é normalmente útil, acarretando modificações orgânicas que possibilitam ao indivíduo se adaptar a uma situação nova: mas se o indivíduo não dispõe de nenhuma resposta instintiva ou adquirida para uma situação extraordinária, ou que ele considere como tal, a atividade do simpático se amplia e se desorganiza, e pode, em algumas horas às vezes, determinar uma diminuição do volume sangüíneo e uma queda de pressão concomitante, tendo como resultado desgastes irreparáveis para os órgãos da circulação. A recusa de alimentos e bebidas, freqüentes em doentes tomados de uma angústia profunda, precipita essa evolução, a desidratação agindo como estimulante do simpático e a diminuição do volume sangüíneo sendo acrescida pela permeabilidade crescente dos vasos capilares. Estas hipóteses foram confirmadas pelo estudo de inúmeros casos de traumatismos conseqüentes de bombardeios, de ações no campo de batalha, ou mesmo de operações cirúrgicas: a morte intervém, sem que a autópsia possa revelar a lesão” (Lévi-Strauss, 1970, p. 184).
Este estado de saúde, nas sociedades indígenas, recebe o tratamento do xamã. Este possui uma interpretação de tal estado que desconhece por completo todos os elementos acima aludidos e atribui causas mágicas a ele. Assim, o xamã atende ao indivíduo e ao grupo que compartilha a crença do indivíduo, o que aumenta a possibilidade dele interferir no estado emocional da pessoa doente. Ao realizar seu trabalho, consegue, muitas vezes, a cura, isto é, o desaparecimento do sintoma e, por conseguinte, do mal estar.
“Tratando o seu doente, o xamã oferece a seu auditório um espetáculo. Que espetáculo? Com risco de generalizar imprudentemente certas observações, diríamos que este espetáculo é sempre o de uma repetição, pelo xamã, do ‘chamado’, isto é, a crise inicial que forneceu a revelação do seu estado. Mas a expressão do espetáculo não deve enganar: o xamã não se contenta em reproduzir ou representar mimicamente certos acontecimentos: ele os revive efetivamente em toda sua vivacidade, originalidade e violência. E visto que, ao término da seção, ele retorna ao estado normal, podemos dizer, tomando emprestado da psicanálise um termo essencial, que ele abreagiu. Sabe-se que a psicanálise denomina ab-reação ao momento decisivo da cura, quando o doente revive intensamente a situação inicial que está na origem de sua perturbação, antes de superá-la definitivamente. Neste sentido, o xamã é um abreator profissional” (Lévi-Strauss, 1970, p. 199).
Assim, para Lévi-Strauss, a cura xamanística possui eficácia simbólica. Embora parte do que Lévi-Strauss colocou acima (o reviver do trauma original) seja questionável, a idéia básica e geral é correta. O xamã realiza um ritual e interfere no estado físico do doente, principalmente devido à crença deste e do reforço da crença coletiva[2]. O estado de debilidade, muitas vezes, é superado. Isto, tal como compara posteriormente Lévi-Strauss, é semelhante ao que faz a psicanálise.
“Neste sentido, a cura xamanística se situa a meio-caminho entre nossa medicina orgânica e terapêuticas psicológicas como a psicanálise. Sua originalidade provém de que ela aplica a uma perturbação orgânica um método bem próximo dessas últimas” (Lévi-Strauss, 1970, p. 217).
Assim, as bases interpretativas do xamã são falsas, mas que chegam a resultados práticos pretendidos. O mesmo ocorre no caso da psicanálise. Um psicanalista kleiniano pode ter bases interpretativas equivocadas, mas a simples sessão de análise fornece elementos de terapia e, portanto, surte efeito. Isto quer dizer que uma idéia falsa pode gerar uma prática eficaz e isto ocorre em milhares de casos no mundo da ciência (além do exemplo da psicanálise, podemos pensar em outros exemplos, retirados das ciências humanas e das outras). É isto que torna possível a crítica aos fundamentos ideológicos da antropologia e, ao mesmo tempo, demonstrar o serviço que ela prestou ao processo de colonização (Leclerc, 1973), revelando que é uma falsa consciência e, apesar disso, produz resultados práticos, ou seja, é eficaz. Alguns dos resultados das ciências se fundamentam em premissas falsas, mas produzem resultados práticos que se pretende. A matemática, por exemplo, pode fornecer um modelo analítico preciso tanto do movimento dos astros quanto de obras de arte, mas ela irá fazer, num caso, uma quantificação (e não uma explicação), sendo, pois uma falsa consciência já que diz explicar, mas tão-somente quantifica e, em casos mais graves, irá “explicar” tudo a partir da matematização e pensar, numa inversão fantástica, que a matemática é o fundamento explicativo da realidade.
Isto explica alguns processos ideológicos por detrás da produção científica, mas existe uma questão mais profunda, que é o campo das ciências naturais, ou, mais especificamente, o que se acostumou a chamar “ciência aplicada”. Quando há a aplicação do saber científico na produção de tecnologias, e tal tecnologia funciona, então se pode perguntar: como pode ser falso tal saber? A questão é que uma coisa é o saber científico e outra a tecnologia, a técnica ou uma invenção (a televisão, o carro, o telefone, etc.). As premissas por detrás deste saber científico podem ser falsas e mesmo assim é possível a construção do carro ou da televisão. Principalmente se levarmos em conta que, tal como vamos enfatizar adiante, a ideologia não é somente falsa consciência, que ela trás em si momentos de verdade e o quantum destes momentos pode ser maior ou menor dependendo da ideologia.
Mas é preciso, também, distinguir entre ciência e invenção. Algumas vezes a ciência fornece os fundamentos para uma determinada invenção, mas não é o que ocorre na maioria dos casos. Alguns exemplos podem esclarecer este ponto. A obra de Schwartz (1992) colabora na compreensão deste processo. A partir da distinção entre ciência pura e ciência aplicada, que, no entanto, expressa distinção semelhante entre ciência e tecnologia (ou qualquer outro resultado do uso do saber científico, tal como invenções, técnicas, práticas, políticas estatais, etc.), temos elementos esclarecedores para entender o papel do saber científico na produção tecnológica. A tecnologia, ou qualquer técnica ou aparelho, tal como a televisão, não se fundamenta, na maioria dos casos, no saber científico. Schwartz reforça esta tese:
“O vapor foi a primeira das duas grandes inovações tecnológicas que marcaram a revolução industrial. A eletricidade foi a segunda. A história da segunda metade da revolução industrial pode ser vista como uma crônica do surgimento de aparelhos eletrônicos – os telégrafos elétricos de 1837, a galvanoplastia em 1840, o cabo transatlântico em 1857, a luz elétrica em 1860, o dínamo em 1867, a lâmpada incandescente em 1878, as usinas elétricas em 1880, a transmissão radiofônica em 1894, o eletrocardiograma em 1909” (Schwartz, 1992, p. 89).
O que possibilitou estas invenções? Schwartz afirma:
“Essa seqüência de desenvolvimento seguia uma lógica. O telégrafo só foi possível com a expansão das ferrovias. A galvanização em ouro e prata de utensílios de mesa dependia do mercado aberto pela nova classe média no começo da era vitoriana na Inglaterra. O cabo transatlântico, o do mar Vermelho e o Indo-europeu acompanharam o crescimento do império britânico e de suas atividades imperialistas. A próspera classe média européia da década de 1860 forneceu o mercado para a energia elétrica, que por sua vez criou a necessidade do dínamo e de usinas elétricas comerciais. Com o advento da energia elétrica comercial, tornou-se vantajoso eletrificar os vagões das minas, os trens e a maquinaria pesada” (Schwartz, 1992, p. 89-90).
Até aqui nenhuma afirmação que explique a separação entre ciência e invenções, etc. Schwartz tratou apenas das invenções e sua razão de ser. Agora vejamos o que ele diz sobre a relação entre ciência e invenções:
“A história oficializada destes avanços enfatizou a contribuição fundamental da física básica para o sucesso das invenções técnicas. Primeiro viria a idéia, depois o mecanismo. Esse tipo de pretensão contribuiu, no último século, para que os pesquisadores arrecadassem fundos para as chamadas pesquisas puras e preservassem uma hierarquia que privilegiava a ciência pura em vez da aplicada, a teoria em vez da prática. Os geradores elétricos realmente se utilizaram de um aspecto da interação eletromagnética, mas nada nas equações do eletromagnetismo indicam como fazer os aparelhos funcionarem. Os verdadeiros autores das invenções se ressentem compreensivelmente da atitude elitista assumida por teóricos, que não têm a qualificação necessária para criar mecanismos a partir das leis implacáveis da natureza. Théodore du Moncel, um dos criadores dos eletroímãs, escreveu o seguinte em 1886: ‘Há uma queixa geral e justificada de que os assuntos do eletromagnetismo é tratado de modo muito obscuro pelos cientistas, que chegam a conclusões de tão pouco valor prático que os inventores nada têm a lucrar com elas. Os físicos matemáticos acham que tais questões são de uma ordem tão elevada que não se deixam desviar por considerações a respeito de aplicações práticas’” (Schwartz, 1992, p. 89).
Assim, estes dois aspectos mostram que as invenções e a tecnologia podem ser construídas apesar da base intelectual falsa da ciência e, na maioria das vezes, sem o uso desta base. Logo, as invenções e a tecnologia não refutam a afirmação de que a ciência é ideologia, principalmente levando em consideração que uma ideologia não é somente falsidade, tal como veremos a seguir.

Ideologia e Verdade

A ideologia não pode ser compreendida como pura falsidade. O que significa esta afirmação? Significa dizer que a ideologia, enquanto saber sistemático, é uma totalidade e que sua essência (ou, se preferir, seu “núcleo”) é falsa, ou seja, se baseia numa inversão da realidade. Ora, é este núcleo, a base da totalidade da ideologia, é necessariamente falso, mas isto não quer dizer que todos os seus elementos o sejam.
A ideologia, por ser inversão da realidade, não pode apagar totalmente esta. Em maior ou menor grau, com maior ou menor intensidade, a realidade está presente. A ideologia se refere à realidade, embora a deformando. Ela não pode aboli-la e os ideólogos nem o desejam. Na maioria das vezes, desejam o contrário. A ideologia possui uma base real, que são seus produtores, os ideólogos, e a totalidade das relações dos seres humanos entre si ou com a natureza que eles buscam expressar. Estes são seres sociais, históricos, que produzem idéias a partir de sua relação com o mundo (sociedade, meio ambiente, etc.) a partir de sua posição na divisão social do trabalho. Assim, eles não podem deformar totalmente o mundo existente, já que tem suas bases instauradas nele. Além disso, esta relação com o mundo existente é a referência da qual não é possível escapar e mesmo invertida, ela deve aparecer. A realidade, assim, não pode estar totalmente ausente da ideologia. A realidade é não só a base constitutiva como também é a referência da ideologia e, assim, por mais que o ideólogo queira ou faça inintencionalmente a inversão da realidade, ele não poderá fazê-lo sem se remeter e, portanto, aludir a ela. A ideologia oculta e ao mesmo tempo revela a realidade, mas em sua essência e totalidade constitui uma consciência falsa dela.
Vejamos um exemplo. Um economista pode observar no mundo a existência da fome. A fome existe, é um “fato”, diria ele, e esta informação é verdadeira. Ele, então, busca descobrir qual é a razão de ser da fome. Ele define a fome como um estado de carência alimentar, no qual as necessidades calóricas não são satisfeitas. Definição que podemos aceitar como verdadeira. A seguir ele relaciona produção de alimentos e fome. Ora, se existe fome e esta é definida pela carência de alimentação, então é preciso abordar a questão da produção de alimentos. Por quê a produção de alimentos não é suficiente para alimentar todo mundo? Esta é a problematização que ele levanta e ela é falsa e já coloca os rumos da pesquisa. Onde está sua falsidade? Na afirmação de que a produção de alimentos é insuficiente para alimentar todo o mundo, o que é uma meia-verdade, pois não é aí que reside o problema real, pois ele parte de uma informação, um “dado” (a suposta insuficiência da produção de alimentos) e o toma como ponto de partida inquestionável. Assim, continua o economista, é preciso estudar o processo de produção de alimentos. Ele pode fazê-lo como Thomas Malthus e concluir que a produção de alimentos cresce em progressão aritmética e a população em progressão geométrica, o que é uma tese absolutamente falsa, como Marx demonstrou (Marx, 1985; Viana, 2006). Sendo assim, a fome é um fenômeno natural e, por conseguinte, não há muito a fazer. Embora falsa, pode produzir práticas, tal como a do próprio Malthus, que foi contra a “lei dos pobres”, bem como políticas estatais, controle da natalidade, etc.
Obviamente que aqui temos momentos de verdade e uma sustentação ideológica das práticas propostas (contra a lei dos pobres). Mas o fundamental aqui é discutir a distinção entre ideologia e seus produtos (práticas, técnicas, instrumentos, máquinas, etc.). Sem dúvida, a produção de máquinas e tecnologias pode, embora como demonstra Schwartz isto raramente ocorra, contribuição de elementos intelectuais oriundos da ciência. Porém aqui reside a chave para entender por qual motivo a ciência é uma ideologia: é a variação entre o quantum de momentos de verdade contido em cada ideologia particular. O saber científico terá mais momentos de verdade devido sua utilidade, funcionalidade. Os ideólogos irão chegar mais perto da verdade quanto mais isto for necessário para se atingir um objetivo que é uma necessidade do capital. Por isso, no que se refere à produção de tecnologia, por exemplo, existe um maior quantum de momentos de verdade do que na produção de uma obra de ciência política. Se a ideologia fosse somente falsidade, não contivesse em si nenhum momento de verdade, ela não se sustentaria, apareceria como um mito indígena numa sociedade moderna, algo em que ninguém acreditaria.
Tomemos o exemplo da ciência econômica. A economia é uma ideologia (a análise marxista do processo de produção não é “ciência econômica” e sim crítica dela). Ela informa e sustenta diversas políticas estatais (que dão resultados). Ela tem momentos de verdade, mas em seu conjunto e em sua essência é falsa. Em determinados momentos, marcados pela dificuldade de reprodução do modo de produção capitalista, ela pode avançar devido à necessidade prática (inclusive retirando da análise marxista do capitalismo elementos explicativos da realidade), o que significa que, quando se faz necessário se aproximar da verdade para manter a dominação, a ciência se desenvolve.
É o que Marx colocou a respeito da história da economia política nos Prefácios de O Capital. No momento de ascensão do capitalismo era necessário um certo desenvolvimento científico no sentido da verdade e isto ocorreu e, uma vez consolidado o domínio do capital, há um retrocesso, e assim a economia clássica é substituída pela economia vulgar. Esta questão da aproximação da verdade também foi colocada por Lukács:
“Contudo, as classes capazes de dominação nem sequer devem ser todas postas no mesmo plano no que diz respeito à estrutura interna da consciência de classe. O que importa aqui é em que medida elas se podem tornar conscientes das ações que devem executar e executam efetivamente para conquistar e para organizar sua posição dominante. Portanto, o que importa é a questão seguinte: até que ponto a classe em questão realiza ‘conscientemente’, até que ponto ‘inconscientemente’, até que ponto com uma consciência ‘correta’ até que ponto com uma consciência ‘falsa’, as tarefas que lhe são postas pela história? Não são distinções puramente acadêmicas. Porque, independentemente dos problemas da cultura, em que as dissonâncias resultantes destas questões são de importância decisiva, o destino de uma classe depende da sua capacidade em discernir com clareza e resolver os problemas que lhe impõe a evolução histórica em todas as suas decisões práticas” (Lukács, 1989, p. 67).
Sendo assim, parece que resta esclarecer as bases desta visão de que a ciência é ideologia. Para chegar a isto é fundamental a contribuição da visão da historicidade, tal como se vê em Marx (1989), Korsch (1977) e em menor grau em outros pensadores, como Lukács (1989). Uma determinada sociedade possui sua singularidade, tanto na esfera do modo de produção quanto das formas de regularização[3]. O feudalismo, por exemplo, é uma totalidade concreta, com determinadas relações de produção, forças produtivas, formas de regularização, que possuem uma ligação indissolúvel. A forma dominante de ideologia é a teologia e a religião é sua face popular. Esta ideologia representa os interesses da classe dominante e possui a supremacia sobre as outras formas de saber. A filosofia, por exemplo, foi totalmente subordinada à teologia. Até aqueles que contestavam a dominação feudal o faziam a partir do pensamento religioso. Engels fez uma excelente reflexão sobre isto:
“A idade média emergira inteiramente da barbárie; fizera tábua rasa da civilização antiga e de sua filosofia, política e jurisprudência para começar tudo de novo. Do mundo antigo, herdara apenas o cristianismo e certo número de cidades em ruínas, despojadas de toda a sua civilização. A conseqüência foi que os padres obtiveram o monopólio da instrução, conforme costuma acontecer com toda civilização primitiva, e que a própria instrução tivesse acentuado caráter teológico. Nas mãos dos sacerdotes, a política, a jurisprudência e todas as outras ciências não passavam de simples ramos da teologia a que se aplicavam os princípios da teologia. O dogma da Igreja era também axioma político e os textos sagrados tinham força de lei em todos os tribunais. Mesmo após a criação da profissão independente dos juristas a jurisprudência permaneceu sob a tutela da teologia. Tal supremacia da teologia em todos os ramos da atividade intelectual era devida também à posição peculiar da Igreja como símbolo e sanção da ordem feudal. Torna-se evidente que qualquer ataque geral contra o feudalismo devia primeiramente dirigir-se contra a Igreja e que todas as doutrinas revolucionárias sociais e políticas deveriam ser, em primeiro lugar, heresias teológicas. Para atingir-se a ordem social existente era preciso despojá-la de sua aureola” (Engels, 1977, p. 38-39).
Aqui temos uma ideologia (teologia) e uma cultura (religião) dominando amplamente uma sociedade na esfera intelectual. Na época, não era perceptível que se tratava de ideologia (falsa consciência sistemática, a teologia) e cultura (representações cotidianas ilusórias, a religião) de caráter feudal. E a sociedade funcionava, existia e se reproduzia. Pois bem, o mesmo ocorria na sociedade escravista e na sociedade capitalista. Dentre estas sociedades, a capitalista é a que mais necessita de desenvolvimento técnico e tecnológico e sua ideologia não pode ser, devido sua própria natureza, teológica ou filosófica. Mas para quem vive na nossa sociedade, a percepção disto se torna quase impossível e quem quer combater a ideologia dominante acaba, na maioria dos casos, utilizando sua linguagem, tal como Engels falou em relação aos camponeses. O combate à ciência se revela, na maioria dos casos, como “heresias científicas”.
A própria idéia de um socialismo científico, inaugurada por Proudhon e retomada por Marx e Engels, é expressão desta força atraente da consciência burguesa. As heresias teológicas do feudalismo, assim como as heresias científicas do capitalismo, são limitadas e dificultam o processo de constituição de uma nova sociedade. Entre as diversas formas de sociedade existe uma diferença radical, na esfera da produção e em tudo o mais. É por isso que existe uma incompreensão no que se refere ao socialismo, pois se pensa nele com as categorias e problemáticas da nossa sociedade. A ruptura com o pensamento científico é uma necessidade do movimento revolucionário e pode parecer loucura e, no fundo, esta aparência apenas revela a dificuldade de pensar o radicalmente diferente e novo, o não-capitalismo, o pós-capitalismo. O pensamento exterior ao capitalismo é um sacrilégio, para utilizar mais uma vez a linguagem religiosa.
O pensamento crítico-revolucionário deve ser sacrílego. Assim, devemos olhar para a sociedade capitalista com os olhos de Kronos, o Deus do Tempo, isto é, como quem olha para algo passageiro, algo do passado, algo histórico, delimitado, com pretensão universal, mas com realidade temporal. Assim como vemos a sociedade feudal e consideramo-la uma sociedade ultrapassada, dominada intelectualmente por um saber obscuro e falso, devemos ver a sociedade capitalista, embora esta última tarefa seja extremamente dolorosa e difícil. Aqui o sacrilégio é também um sacrifício, pois temos que ter a coragem de realizar a crítica desapiedada do existente e ver que somos parte deste existente, e carregamos suas marcas em nós mesmos.
Este é um pressuposto para realizar a crítica ao mundo ideológico e ilusório da consciência burguesa que nos sufoca e impede de ver a verdade. A compreensão das ideologias do cérebro requer esta perspectiva crítica e histórica.



[1] “O conteúdo da mentalidade é formado pelos valores, razão e sentimentos conscientes dos indivíduos. É o conjunto de elementos conscientes que fazem um indivíduo agir, é a força motriz de seu comportamento e também da produção de idéias e concepções sistematizadas ou articuladas (ideologia, teoria)” (Viana, 2007, p. 18).
[2] “A cura consistiria, pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a tolerar. Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva, não tem importância: a doente acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que acredita” (Lévi-Strauss, 1970, p. 216).
[3] Sobre o conceito de formas de regularização, cf. Viana, 2007.
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O presente texto é o primeiro capítulo da obra:

VIANA, Nildo. Cérebro e Ideologia. Uma Crítica das Ideologias do Cérebro. São Paulo: Paco, 2011.


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