A FORÇA DA IDEOLOGIA
A compreensão das
ideologias do cérebro é facilitada pela compreensão do conceito de ideologia.
Isto nos leva, inevitavelmente, a discutir a relação entre ciência e ideologia.
Neste sentido iremos, inicialmente, fazer uma discussão sobre o que é a
ideologia e quais são suas conseqüências sociais, bem como sua relação com a
ciência, para, no capítulo posterior, discutir as ideologias do cérebro.
Uma das palavras mais
utilizadas no mundo contemporâneo é ideologia. Nos meios acadêmicos e
políticos, principalmente, sempre aparece a acusação de cair no pecado da
ideologia. Mas o que significa ideologia? Esta é uma expressão que possui
muitos significados e isto complexifica a questão. Apresentaremos, a seguir,
uma visão sintética do fenômeno da ideologia, buscando demonstrar como se
formaram as atuais concepções de ideologia e apresentar uma determinada
concepção deste fenômeno.
O Conceito de Ideologia na História
A palavra ideologia, ao
contrário de muitas outras de utilização recorrente na cultura ocidental, é
recente. A palavra democracia, por exemplo, remonta a Grécia Antiga, mas
ideologia remonta a época do iluminismo. Esta expressão surge com Destutt de
Tracy, que buscava criar uma nova ciência: a ciência das idéias. Ideologia,
como tal sugere a sua etimologia, é a ciência das idéias. Este pensador
escreveu um longo tratado sobre a ideologia e juntamente com um conjunto de
colaboradores buscou desenvolver estudos no sentido de consolidar esta nova
ciência. Porém, depois de desentendimentos com Napoleão Bonaparte, o
significado da palavra iria se alterar. As divergências fizeram com que
Napoleão denomina-se Destutt de Tracy e seus seguidores como “ideólogos”,
querendo dizer com isso que eles eram pensadores metafísicos, produtores de
especulações abstratas (Löwy, 1985; Chauí, 1984).
Desta forma, houve o que
os especialistas em semântica denominam “mutação de sentido” da palavra.
Ideologia passou a significar um pensamento especulativo, metafísico. Esta
concepção de ideologia se tornaria a concepção dominante e seria neste contexto
que Marx e Engels abordaram a questão da ideologia em A Ideologia Alemã. Marx e Engels realizaram uma crítica radical à
ideologia alemã de sua época, os chamados jovens hegelianos. Para Marx e
Engels, ideologia significava uma inversão
da realidade (Marx e Engels, 2002). As análises de Marx e Engels são as
mais profundas sobre a questão da ideologia. Até hoje, nem os comentaristas nem
os que tentaram inovar em relação a estes dois pensadores, conseguiram ir além
do que eles colocaram.
A concepção da ideologia
como inversão da realidade retoma a concepção napoleônica, mas a aprofunda e
lhe dá um significado teórico. Não se trata de apenas um adjetivo pejorativo
que significa que determinado pensamento é metafísico e especulativo e sim um
conceito articulado com diversos outros conceitos carregando um significado
preciso.
Mas a história deste
termo não se encerraria aí. A palavra ideologia teria, em sua história, várias
outras mutações de sentido. Mesmo entre aqueles que dizem seguir as teses de
Marx o conceito de ideologia iria sofrer alterações. Lênin e Gramsci irão
compreender ideologia de forma diferente da apresentada por Marx. Lênin, como
sabemos, morreu em 1924, e por isso não leu o texto de Marx e Engels, A Ideologia Alemã, publicada somente
alguns anos depois. Ele considerava ideologia como sendo concepções produzidas
pelas classes sociais que refletem a realidade objetiva (1990). Desta forma,
haveria uma ideologia burguesa e uma ideologia proletária, bem como uma
ideologia camponesa, pequeno-burguesa, lumpemproletária e assim por diante.
Gramsci apresentará uma concepção semelhante. Para ele, ideologia significa
visão de mundo e todas as classes sociais produzem sua própria visão de mundo.
Gramsci seria o pensador político de influência marxista que mais trabalharia
com a questão da cultura e da ideologia (1989), pois para ele a dominação
burguesa se sustenta graças ao processo de hegemonia que esta classe exerce
sobre as outras, sendo que, para ele, tal hegemonia consiste na direção moral e
intelectual que uma classe exerce sobre outras. É no mundo da ideologia que se
mantém a hegemonia burguesa.
Esta visão conviveu com
outras concepções. O sociólogo alemão Karl Mannheim iria apresentar uma visão
não-marxista de ideologia que traria alguns pontos em comum com a visão
original de Marx. Para Mannheim, ideologia era uma concepção de mundo ligada
aos interesses dos dominantes e, portanto, carregava em si um caráter
unilateral que ofuscava uma compreensão fiel da realidade social. Os dominados,
por sua vez, produziriam utopias, uma concepção de mundo oposta, crítica e
revolucionária (1986). Porém, Mannheim acabava se separando do marxismo ao
considerar que esta noção de ideologia devia ser complementada por outra mais
ampla e, principalmente, por considerar que a ideologia era prejudicial a um
conhecimento fiel da realidade devido sua unilateralidade e que este mesmo
defeito estaria presente na utopia. Desta forma, tanto a utopia quanto a
ideologia seriam limitadas, visões unilaterais, embora Mannheim considerasse a
utopia como mais adequada à realidade do que a ideologia. Mas ao lado desta
concepção ele acrescentava a idéia de distinção entre ideologia particular e
ideologia total, sendo que a primeira seria a ideologia produzida pela classe
dominante e a segunda seria um conceito mais geral, incluindo toda e qualquer
visão de mundo, inclusive as utopias.
Outras concepções de
ideologia seriam produzidas. Althusser irá conceber a ideologia no sentido de
Marx, ou seja, como um pensamento falso (1985). Porém, ele irá opor um
pensamento falso a um pensamento verdadeiro, criando a oposição entre ideologia
e outro termo que seria o seu contrário. A concepção althusseriana, no entanto,
irá se distinguir da concepção de Marx devido o viés estruturalista que este
implementará ao termo ideologia, o que o tornará bastante problemática,
principalmente em sua afirmação de que a “ideologia não tem história”, “é
eterna”, bem como sua interpretação de Marx. Althusser deforma a teoria
marxista da ideologia, criando mais uma concepção ideológica de ideologia. Ao
recusar a teoria de Marx segundo a qual a ideologia não tem história por
possuir uma historicidade dependente da história da sociedade e postular sua
onipresença e eternidade, ele simplesmente rompe com o materialismo histórico.
Ao autonomizar a ideologia e retirá-la da historicidade do social, Althusser
não compreende o fenômeno ideológico. O pressuposto por detrás desta concepção
é uma abordagem estruturalista e a-histórica. A historicidade da ideologia é
abolida e em seu lugar surge algo simplesmente fantasmagórico.
Se Mannheim opôs
ideologia e utopia, Althusser irá opor ideologia e ciência. Outros irão opor
ideologia e crítica, ideologia e filosofia, ideologia e teoria e assim por
diante. Assim, existe o nosso pensamento e o pensamento do outro, o pensamento
verdadeiro e a ideologia. O sentido pejorativo do termo ideologia é
predominante. Os positivistas irão opor ciência e ideologia, mas, ao contrário
do que colocou Althusser, a ideologia não seria o pensamento da classe
dominante e por isso seria falso e sim um pensamento valorativo, por isso
carregado de valores.
Todas estas concepções
posteriores a Marx são problemáticas. Sem dúvida, alguns, como Lukács (1989) e
Korsch (1977), mantiveram – sem dedicar grandes reflexões sobre este termo – a
concepção marxista de ideologia. Embora se possa dizer que Gramsci contribui ao
analisar a importância da ideologia na sociedade moderna, é necessário também
dizer que esta contribuição acabou se revelando limitada, já que o conceito de
ideologia neste pensador se tornou demasiadamente amplo. A idéia da ideologia
como “visão de mundo” (tal como concebido por Lênin e Gramsci), não só entra em
contradição com a concepção de Marx como também nada acrescenta ao materialismo
histórico e à compreensão da sociedade. Além disso, revela uma concepção que
não parte da perspectiva do proletariado. A visão de Mannheim de ideologia
particular e utopia é muito mais próxima da realidade, mas sua idéia de que a
utopia é parcial, acaba se mostrando bastante limitada e preso aos interesses
da classe dominante.
Uma das grandes
contribuições intelectuais de Marx foi justamente mostrar que existem
representações ilusórias da realidade, bem como que uma versão sistematizada
delas e produzida pelos ideólogos, isto é, que a classe dominante sustenta todo
um grupo social voltado para criar uma falsa consciência sistemática da
realidade e assim facilitar o processo de dominação de classe. Não perceber a
existência da ideologia e seu papel é algo extremamente contrário à perspectiva
do proletariado, pois impossibilita a percepção da existência da falsa
consciência e dos interesses que estão por detrás dela.
O Fenômeno Ideológico
Desta forma, percebemos que
o conceito de ideologia tem uma longa história. A partir da contribuição de
Marx e de alguns desdobramentos dela, iremos apresentar nossa concepção de
ideologia. A ideologia pode ser definida resumidamente como falsa consciência
sistemática. Ela é falsa consciência por estar ligada aos interesses da classe
dominante, que não pode revelar a verdade, deve ocultá-la. A classe dominante
não pode revelar seus interesses, a exploração, a dominação, etc. A burguesia,
atual classe dominante, deve produzir idéias, concepções, ciência, filosofia e
o faz a partir de sua perspectiva. A partir de sua situação de classe, a
burguesia necessita produzir uma mentalidade e desenvolver sua consciência a
respeito de todas as esferas da vida social.
“Esta
situação da burguesia determina a função da consciência de classe na sua luta
pela dominação na sociedade. Como a dominação da burguesia se estende realmente
a toda a sociedade, como ele pretende efetivamente organizar toda a sociedade
em conformidade com os seus interesses e, em parte, o tem conseguido,
necessariamente teria que criar também uma doutrina coerente da economia, do
Estado, da sociedade, etc., (o que pressupõe e implica já, em si e para si, uma
‘visão do mundo’, uma ‘weltanschauung’), e também desenvolver e tornar consciente
em si a crença na sua própria vocação p ara dominar e organizar. O caráter
dialético e trágico da situação de classe da burguesia consiste em que, por um
lado, não e apenas do seu interesse, é-lhe também absolutamente necessário
adquirir, sobre cada questão particular, uma consciência tão clara quanto
possível dos seus interesses de classe, e em que, por outro lado, isso se lhe
torna fatal, quando essa mesma consciência clara se estende à questão da
totalidade. A razão para tal é que, antes de mais, a dominação da burguesia só
pode ser dominação de uma minoria. Como esta dominação não só é exercida por
uma minoria, mas é também exercida no seu interesse, é condição inelutável da
manutenção do regime burguês que as outras classes se iludam, mantendo uma consciência
de classe confusa. (São exemplo disso a doutrina que coloca o Estado ‘acima’
das oposições de classe, a justiça ‘imparcial’, etc.). No entanto, velar a
essência da sociedade burguesa é também uma necessidade vital para a própria
burguesia: com efeito, a uma visão mais clara, melhor se revelam as
contradições internas insolúveis desta organização social, o que coloca aos
seus partidários a seguinte opção: ou fechar-se conscientemente a esta
compreensão crescente, ou reprimir em si todos os instintos morais para poder
aprovar, também moralmente, a ordem social que aprovam em virtudes dos seus
interesses” (Lukács, 1989, p. 81).
A burguesia deve ocultar o
processo de dominação e exploração, bem como as forças motrizes das
transformações sociais, ou seja, a própria luta de classes. Porém, quando o
proletariado se autonomiza e radicaliza suas lutas, a percepção da luta de
classes se torna ainda mais difícil de evitar, mesmo para os representantes
ideológicos da burguesia. Segundo Lukács,
“Foi
neste ponto da fase ascendente do capitalismo, quando a luta de classe do
proletariado ainda só se manifestava por violentas explosões espontâneas que
até representantes ideológicos da classe ascendente (Marat, e historiadores
posteriores como Mignet, etc.) reconheceram o fato da luta de classes como fato
fundamental da vida histórica. No entanto, à medida que este princípio
inconscientemente revolucionário da evolução capitalista é elevado pela teoria
e pela práxis do proletariado à consciência social, a burguesia vê-se
ideologicamente obrigada a defensiva consciente. A contradição dialética na
‘falsa consciência’ da burguesia exacerba-se; a ‘falsa’ consciência
transforma-se em falsidade da consciência. A contradição que no início estava
presente apenas objetivamente torna-se subjetiva: o problema teórico
transforma-se em comportamento moral que influi, de forma decisiva, em todas as
tomadas de posição práticas de classe, em todas as situações e em todas as
questões vitais” (Lukács, 1989, p. 80).
Desta forma, a dominação
burguesa gera uma dominação cultural que tem por base um conjunto de produções
intelectuais que, devido à perspectiva burguesa, possui limitações
intransponíveis. Para ultrapassar estes limites, teria que “deixar de
considerar os fenômenos da sociedade do ponto de vista da burguesia. E disso
nenhuma classe é capaz, ou teria que renunciar voluntariamente à sua dominação”
(Lukács, 1989, p. 68). Isto cria limites intransponíveis para a consciência
burguesa (Marx, 1988).
A ideologia é, portanto, uma
falsa consciência sistemática da realidade (Viana, 2006). Ela surge com o
processo de divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, tal como
colocou Marx e Engels (2002). É quando surgem os intelectuais enquanto grupo
social especializado, é que nasce a ideologia. A especialização no trabalho
intelectual é condição de possibilidade para a ideologia. O ideólogo, livre do
trabalho manual, pode pensar que as idéias são autônomas, independentes de sua
base real, concreta, social. E, assim, o especialista no trabalho intelectual,
o ideólogo, pode se lançar ao mundo das idéias e constituir um edifício
gigantesco que é de difícil acesso para aqueles que não possuem tempo para se
dedicar a estudos e pesquisas e compreender o discurso ideológico. A filosofia
grega, por exemplo, é uma manifestação de um pensamento complexo que era
praticamente inacessível para a maioria da população.
Os ideólogos, porém, estão
intimamente ligados à classe dominante, pois a sua sobrevivência material é
dependente dos recursos doados por esta e retirada da extração de mais-trabalho
das classes exploradas (Viana, 2006). Assim, se torna possível compreender não
somente a origem histórica da ideologia (que ocorre com a divisão entre
trabalho intelectual e manual, quando surgem as classes sociais, o que
significa que não existiu ideologia em sociedades pré-classistas), mas também
que se trata não de qualquer representação ilusória da realidade e sim uma
consciência sistematizada, um pensamento complexo. Este processo, no entanto,
não é geralmente intencional (os ideólogos, na maioria das vezes, acreditam em
sua autonomia e de suas idéias).
Os ideólogos, graças a seu
modo de vida, interesses e valores, gerados por sua existência social, acabam
tendo a predisposição de fazer a apologia da sociedade existente, ou, no
máximo, fazer uma crítica superficial devido a sua vontade de conseguir maior
espaço no interior da hierarquia social (na sociedade capitalista, isto se
manifesta através do desejo de maior status,
poder, riqueza, etc.). Esta crítica superficial também pode ocorrer devido a
contextos histórico-sociais precisos. Toda sociedade produz uma mentalidade
dominante, constituída por interesses, valores, concepções, sentimentos, moral,
etc., que é a base da formação das ideologias[1].
A ideologia busca justamente
justificar e naturalizar a sociedade existente para assim legitimá-la. Mas isto
pode ser feito sob formas diferentes e com objetivos diferentes, dependendo da
ideologia em questão. Ao fazer isso, ela inverte a realidade, produz uma consciência
ilusória, falsa, desta realidade. Os procedimentos pelos quais realiza isso são
os mais variados, entre os quais “tomar o resultado de um processo como se
fosse o seu começo, tomar os efeitos pelas causas, as conseqüências pelas
premissas, o determinado pelo determinante” ou tomar a realidade “tal como se
oferece à nossa experiência imediata, como algo dado, feito e acabado que
apenas classificamos, ordenamos e sistematizamos, sem nunca indagar como tal
realidade foi concretamente produzida” (Chauí, 1984, p. 104) ou, ainda, isolar
fenômenos, destacá-los da totalidade no qual são constituídos e relacionados.
Claro que a forma do procedimento de uma construção ideológica depende de suas
características próprias. Assim, o empiricismo difere radicalmente do
racionalismo, mas tanto um quanto o outro são ideologias e possuem em comum a
característica essencial de toda ideologia: a inversão da realidade.
Ciência e Ideologia
Para muitos, tal como
Althusser, existe uma oposição entre ciência e ideologia. A ciência seria um
saber verdadeiro e a ideologia um saber falso. Porém, esta concepção é
não-marxista e equivocada. No fundo, revela uma concepção ideológica de
ideologia, já que retira a base social da ciência, além de retirar a ciência da
história, isto é, não percebe que é um produto da sociedade capitalista e
envolvida com ela até o pescoço. O processo de dominação e exploração na
sociedade capitalista está intimamente ligado à força da ideologia e,
principalmente, ao poder e influência da ciência.
A ciência assume um papel
importante neste processo. Ela não escapa às determinações da consciência
burguesa em geral. A ciência – seja qual for – é não só dominada pelas
instâncias de regularização e controle da sociedade capitalista (Estado,
empresas privadas, universidades, institutos de pesquisa, fundações, etc.),
como tem a mesma base de interesses (que pressupõe valores, objetivos,
concepções, sentimentos) comuns com a perspectiva burguesa. Assim, o Estado
neutro no exemplo anteriormente citado por Lukács, poderia ser substituído pelo
exemplo da “ciência neutra”, “objetiva”, duas ilusões do pensamento científico
(Viana, 2006; Viana, 2000). A ciência é, tal como as outras formas de
manifestação da ideologia burguesa, uma falsa consciência sistematizada.
Este é um ponto polêmico.
Para muitos, a ciência é um saber verdadeiro, inclusive para muitos que se
dizem marxistas. Para outros, existem duas ciências, a burguesa e proletária,
sendo esta última verdadeira. Há, ainda, alguns que sustentam, tal como fazemos
aqui, que a ciência é uma ideologia, logo, falsa consciência sistematizada.
Alguns questionam essa tese a partir dos resultados práticos da ciência, tal
como o desenvolvimento tecnológico, que seria aplicação do saber científico e,
sendo assim, como este poderia ser falso? A ciência permite construir uma
televisão, um carro, uma semente híbrida, uma célula vegetal, etc. e também
permite curar ou pelo menos diminuir a dor dos indivíduos (não só com os
remédios como também com terapias, etc.). Pois bem, isto parece contradizer a
tese de que a ciência é uma ideologia e por isso iremos abordar esta questão a
partir de agora.
A Eficácia Prática da Ciência e
da Ideologia
O antropólogo
Lévi-Strauss, apesar de ser um ideólogo, produziu uma análise interessante e
correta sobre o papel do xamã numa sociedade indígena, que seria semelhante ao
de um psicanalista, logo, um cientista, na sociedade capitalista. Lévi-Strauss
busca explicar o processo de cura no caso de indígenas através do trabalho do
xamã. A explicação do xamã e da totalidade da sociedade indígena é a
feitiçaria, o espírito maligno, etc. Uma vez que o indivíduo se crê
enfeitiçado, crença compartilhada pela comunidade, o isolamento ocorre, o que
gera o agravamento de sua debilidade física. Lévi-Strauss cita um pesquisador
que explica este processo – que, aliás, já foi explicado pela psicanálise
através da tese psicossomática segunda a qual os problemas psíquicos afetam o
corpo humano:
“Cannon mostrou
que o medo, assim como a cólera, se faz acompanhar de uma atividade
particularmente intensa do sistema nervoso simpático. Esta atividade é
normalmente útil, acarretando modificações orgânicas que possibilitam ao
indivíduo se adaptar a uma situação nova: mas se o indivíduo não dispõe de
nenhuma resposta instintiva ou adquirida para uma situação extraordinária, ou
que ele considere como tal, a atividade do simpático se amplia e se
desorganiza, e pode, em algumas horas às vezes, determinar uma diminuição do
volume sangüíneo e uma queda de pressão concomitante, tendo como resultado
desgastes irreparáveis para os órgãos da circulação. A recusa de alimentos e
bebidas, freqüentes em doentes tomados de uma angústia profunda, precipita essa
evolução, a desidratação agindo como estimulante do simpático e a diminuição do
volume sangüíneo sendo acrescida pela permeabilidade crescente dos vasos
capilares. Estas hipóteses foram confirmadas pelo estudo de inúmeros casos de
traumatismos conseqüentes de bombardeios, de ações no campo de batalha, ou
mesmo de operações cirúrgicas: a morte intervém, sem que a autópsia possa
revelar a lesão” (Lévi-Strauss, 1970, p. 184).
Este estado de saúde, nas
sociedades indígenas, recebe o tratamento do xamã. Este possui uma
interpretação de tal estado que desconhece por completo todos os elementos
acima aludidos e atribui causas mágicas a ele. Assim, o xamã atende ao
indivíduo e ao grupo que compartilha a crença do indivíduo, o que aumenta a
possibilidade dele interferir no estado emocional da pessoa doente. Ao realizar
seu trabalho, consegue, muitas vezes, a cura, isto é, o desaparecimento do
sintoma e, por conseguinte, do mal estar.
“Tratando o seu
doente, o xamã oferece a seu auditório um espetáculo. Que espetáculo? Com risco
de generalizar imprudentemente certas observações, diríamos que este espetáculo
é sempre o de uma repetição, pelo xamã, do ‘chamado’, isto é, a crise inicial
que forneceu a revelação do seu estado. Mas a expressão do espetáculo não deve
enganar: o xamã não se contenta em reproduzir ou representar mimicamente certos
acontecimentos: ele os revive efetivamente em toda sua vivacidade,
originalidade e violência. E visto que, ao término da seção, ele retorna ao
estado normal, podemos dizer, tomando emprestado da psicanálise um termo
essencial, que ele abreagiu. Sabe-se que a psicanálise denomina ab-reação ao
momento decisivo da cura, quando o doente revive intensamente a situação
inicial que está na origem de sua perturbação, antes de superá-la
definitivamente. Neste sentido, o xamã é um abreator profissional”
(Lévi-Strauss, 1970, p. 199).
Assim, para Lévi-Strauss,
a cura xamanística possui eficácia simbólica. Embora parte do que Lévi-Strauss
colocou acima (o reviver do trauma original) seja questionável, a idéia básica
e geral é correta. O xamã realiza um ritual e interfere no estado físico do
doente, principalmente devido à crença deste e do reforço da crença coletiva[2]. O
estado de debilidade, muitas vezes, é superado. Isto, tal como compara
posteriormente Lévi-Strauss, é semelhante ao que faz a psicanálise.
“Neste sentido, a
cura xamanística se situa a meio-caminho entre nossa medicina orgânica e
terapêuticas psicológicas como a psicanálise. Sua originalidade provém de que
ela aplica a uma perturbação orgânica um método bem próximo dessas últimas”
(Lévi-Strauss, 1970, p. 217).
Assim, as bases
interpretativas do xamã são falsas, mas que chegam a resultados práticos
pretendidos. O mesmo ocorre no caso da psicanálise. Um psicanalista kleiniano
pode ter bases interpretativas equivocadas, mas a simples sessão de análise
fornece elementos de terapia e, portanto, surte efeito. Isto quer dizer que uma
idéia falsa pode gerar uma prática eficaz e isto ocorre em milhares de casos no
mundo da ciência (além do exemplo da psicanálise, podemos pensar em outros
exemplos, retirados das ciências humanas e das outras). É isto que torna
possível a crítica aos fundamentos ideológicos da antropologia e, ao mesmo
tempo, demonstrar o serviço que ela prestou ao processo de colonização
(Leclerc, 1973), revelando que é uma falsa consciência e, apesar disso, produz
resultados práticos, ou seja, é eficaz. Alguns dos resultados das ciências se
fundamentam em premissas falsas, mas produzem resultados práticos que se
pretende. A matemática, por exemplo, pode fornecer um modelo analítico preciso
tanto do movimento dos astros quanto de obras de arte, mas ela irá fazer, num
caso, uma quantificação (e não uma explicação), sendo, pois uma falsa
consciência já que diz explicar, mas tão-somente quantifica e, em casos mais
graves, irá “explicar” tudo a partir da matematização e pensar, numa inversão
fantástica, que a matemática é o fundamento explicativo da realidade.
Isto explica alguns
processos ideológicos por detrás da produção científica, mas existe uma questão
mais profunda, que é o campo das ciências naturais, ou, mais especificamente, o
que se acostumou a chamar “ciência aplicada”. Quando há a aplicação do saber
científico na produção de tecnologias, e tal tecnologia funciona, então se pode
perguntar: como pode ser falso tal saber? A questão é que uma coisa é o saber
científico e outra a tecnologia, a técnica ou uma invenção (a televisão, o
carro, o telefone, etc.). As premissas por detrás deste saber científico podem
ser falsas e mesmo assim é possível a construção do carro ou da televisão.
Principalmente se levarmos em conta que, tal como vamos enfatizar adiante, a
ideologia não é somente falsa consciência, que ela trás em si momentos de
verdade e o quantum destes momentos pode ser maior ou menor dependendo
da ideologia.
Mas é preciso, também,
distinguir entre ciência e invenção. Algumas vezes a ciência fornece os
fundamentos para uma determinada invenção, mas não é o que ocorre na maioria
dos casos. Alguns exemplos podem esclarecer este ponto. A obra de Schwartz
(1992) colabora na compreensão deste processo. A partir da distinção entre
ciência pura e ciência aplicada, que, no entanto, expressa distinção semelhante
entre ciência e tecnologia (ou qualquer outro resultado do uso do saber
científico, tal como invenções, técnicas, práticas, políticas estatais, etc.),
temos elementos esclarecedores para entender o papel do saber científico na
produção tecnológica. A tecnologia, ou qualquer técnica ou aparelho, tal como a
televisão, não se fundamenta, na maioria dos casos, no saber científico.
Schwartz reforça esta tese:
“O vapor foi a
primeira das duas grandes inovações tecnológicas que marcaram a revolução
industrial. A eletricidade foi a segunda. A história da segunda metade da
revolução industrial pode ser vista como uma crônica do surgimento de aparelhos
eletrônicos – os telégrafos elétricos de 1837, a galvanoplastia em 1840, o cabo
transatlântico em 1857, a luz elétrica em 1860, o dínamo em 1867, a lâmpada
incandescente em 1878, as usinas elétricas em 1880, a transmissão radiofônica
em 1894, o eletrocardiograma em 1909” (Schwartz, 1992, p. 89).
O que
possibilitou estas invenções? Schwartz afirma:
“Essa seqüência
de desenvolvimento seguia uma lógica. O telégrafo só foi possível com a
expansão das ferrovias. A galvanização em ouro e prata de utensílios de mesa
dependia do mercado aberto pela nova classe média no começo da era vitoriana na
Inglaterra. O cabo transatlântico, o do mar Vermelho e o Indo-europeu
acompanharam o crescimento do império britânico e de suas atividades
imperialistas. A próspera classe média européia da década de 1860 forneceu o
mercado para a energia elétrica, que por sua vez criou a necessidade do dínamo
e de usinas elétricas comerciais. Com o advento da energia elétrica comercial,
tornou-se vantajoso eletrificar os vagões das minas, os trens e a maquinaria pesada”
(Schwartz, 1992, p. 89-90).
Até
aqui nenhuma afirmação que explique a separação entre ciência e invenções, etc.
Schwartz tratou apenas das invenções e sua razão de ser. Agora vejamos o que
ele diz sobre a relação entre ciência e invenções:
“A história oficializada
destes avanços enfatizou a contribuição fundamental da física básica para o
sucesso das invenções técnicas. Primeiro viria a idéia, depois o mecanismo.
Esse tipo de pretensão contribuiu, no último século, para que os pesquisadores
arrecadassem fundos para as chamadas pesquisas puras e preservassem uma
hierarquia que privilegiava a ciência pura em vez da aplicada, a teoria em vez
da prática. Os geradores elétricos realmente se utilizaram de um aspecto da
interação eletromagnética, mas nada nas equações do eletromagnetismo indicam
como fazer os aparelhos funcionarem. Os verdadeiros autores das invenções se
ressentem compreensivelmente da atitude elitista assumida por teóricos, que não
têm a qualificação necessária para criar mecanismos a partir das leis
implacáveis da natureza. Théodore du Moncel, um dos criadores dos eletroímãs,
escreveu o seguinte em 1886: ‘Há uma queixa geral e justificada de que os
assuntos do eletromagnetismo é tratado de modo muito obscuro pelos cientistas,
que chegam a conclusões de tão pouco valor prático que os inventores nada têm a
lucrar com elas. Os físicos matemáticos acham que tais questões são de uma
ordem tão elevada que não se deixam desviar por considerações a respeito de
aplicações práticas’” (Schwartz, 1992, p. 89).
Assim, estes dois
aspectos mostram que as invenções e a tecnologia podem ser construídas apesar
da base intelectual falsa da ciência e, na maioria das vezes, sem o uso desta
base. Logo, as invenções e a tecnologia não refutam a afirmação de que a ciência
é ideologia, principalmente levando em consideração que uma ideologia não é
somente falsidade, tal como veremos a seguir.
Ideologia e Verdade
A ideologia não pode ser
compreendida como pura falsidade. O que significa esta afirmação? Significa
dizer que a ideologia, enquanto saber sistemático, é uma totalidade e que sua
essência (ou, se preferir, seu “núcleo”) é falsa, ou seja, se baseia numa
inversão da realidade. Ora, é este núcleo, a base da totalidade da ideologia, é
necessariamente falso, mas isto não quer dizer que todos os seus elementos o
sejam.
A ideologia, por ser
inversão da realidade, não pode apagar totalmente esta. Em maior ou menor grau,
com maior ou menor intensidade, a realidade está presente. A ideologia se
refere à realidade, embora a deformando. Ela não pode aboli-la e os ideólogos
nem o desejam. Na maioria das vezes, desejam o contrário. A ideologia possui
uma base real, que são seus produtores, os ideólogos, e a totalidade das
relações dos seres humanos entre si ou com a natureza que eles buscam
expressar. Estes são seres sociais, históricos, que produzem idéias a partir de
sua relação com o mundo (sociedade, meio ambiente, etc.) a partir de sua
posição na divisão social do trabalho. Assim, eles não podem deformar
totalmente o mundo existente, já que tem suas bases instauradas nele. Além
disso, esta relação com o mundo existente é a referência da qual não é possível
escapar e mesmo invertida, ela deve aparecer. A realidade, assim, não pode
estar totalmente ausente da ideologia. A realidade é não só a base constitutiva
como também é a referência da ideologia e, assim, por mais que o ideólogo
queira ou faça inintencionalmente a inversão da realidade, ele não poderá
fazê-lo sem se remeter e, portanto, aludir a ela. A ideologia oculta e ao mesmo
tempo revela a realidade, mas em sua essência e totalidade constitui uma
consciência falsa dela.
Vejamos um exemplo. Um
economista pode observar no mundo a existência da fome. A fome existe, é um
“fato”, diria ele, e esta informação é verdadeira. Ele, então, busca descobrir
qual é a razão de ser da fome. Ele define a fome como um estado de carência
alimentar, no qual as necessidades calóricas não são satisfeitas. Definição que
podemos aceitar como verdadeira. A seguir ele relaciona produção de alimentos e
fome. Ora, se existe fome e esta é definida pela carência de alimentação, então
é preciso abordar a questão da produção de alimentos. Por quê a produção de
alimentos não é suficiente para alimentar todo mundo? Esta é a problematização
que ele levanta e ela é falsa e já coloca os rumos da pesquisa. Onde está sua
falsidade? Na afirmação de que a produção de alimentos é insuficiente para
alimentar todo o mundo, o que é uma meia-verdade, pois não é aí que reside o
problema real, pois ele parte de uma informação, um “dado” (a suposta
insuficiência da produção de alimentos) e o toma como ponto de partida
inquestionável. Assim, continua o economista, é preciso estudar o processo de
produção de alimentos. Ele pode fazê-lo como Thomas Malthus e concluir que a produção
de alimentos cresce em progressão aritmética e a população em progressão
geométrica, o que é uma tese absolutamente falsa, como Marx demonstrou (Marx,
1985; Viana, 2006). Sendo assim, a fome é um fenômeno natural e, por
conseguinte, não há muito a fazer. Embora falsa, pode produzir práticas, tal
como a do próprio Malthus, que foi contra a “lei dos pobres”, bem como
políticas estatais, controle da natalidade, etc.
Obviamente que aqui temos
momentos de verdade e uma sustentação ideológica das práticas propostas (contra
a lei dos pobres). Mas o fundamental aqui é discutir a distinção entre
ideologia e seus produtos (práticas, técnicas, instrumentos, máquinas, etc.).
Sem dúvida, a produção de máquinas e tecnologias pode, embora como demonstra
Schwartz isto raramente ocorra, contribuição de elementos intelectuais oriundos
da ciência. Porém aqui reside a chave para entender por qual motivo a ciência é
uma ideologia: é a variação entre o quantum
de momentos de verdade contido em cada ideologia particular. O saber científico
terá mais momentos de verdade devido sua utilidade, funcionalidade. Os
ideólogos irão chegar mais perto da verdade quanto mais isto for necessário
para se atingir um objetivo que é uma necessidade do capital. Por isso, no que
se refere à produção de tecnologia, por exemplo, existe um maior quantum de momentos de verdade do que na
produção de uma obra de ciência política. Se a ideologia fosse somente
falsidade, não contivesse em si nenhum momento de verdade, ela não se
sustentaria, apareceria como um mito indígena numa sociedade moderna, algo em
que ninguém acreditaria.
Tomemos o exemplo da
ciência econômica. A economia é uma ideologia (a análise marxista do processo
de produção não é “ciência econômica” e sim crítica dela). Ela informa e sustenta
diversas políticas estatais (que dão resultados). Ela tem momentos de verdade,
mas em seu conjunto e em sua essência é falsa. Em determinados momentos,
marcados pela dificuldade de reprodução do modo de produção capitalista, ela
pode avançar devido à necessidade prática (inclusive retirando da análise
marxista do capitalismo elementos explicativos da realidade), o que significa
que, quando se faz necessário se aproximar da verdade para manter a dominação,
a ciência se desenvolve.
É o que Marx colocou a
respeito da história da economia política nos Prefácios de O Capital. No momento de ascensão do
capitalismo era necessário um certo desenvolvimento científico no sentido da
verdade e isto ocorreu e, uma vez consolidado o domínio do capital, há um retrocesso,
e assim a economia clássica é substituída pela economia vulgar. Esta questão da
aproximação da verdade também foi colocada por Lukács:
“Contudo, as
classes capazes de dominação nem sequer devem ser todas postas no mesmo plano
no que diz respeito à estrutura interna da consciência de classe. O que importa
aqui é em que medida elas se podem tornar conscientes das ações que devem
executar e executam efetivamente para conquistar e para organizar sua posição
dominante. Portanto, o que importa é a questão seguinte: até que ponto a classe
em questão realiza ‘conscientemente’, até que ponto ‘inconscientemente’, até
que ponto com uma consciência ‘correta’ até que ponto com uma consciência
‘falsa’, as tarefas que lhe são postas pela história? Não são distinções
puramente acadêmicas. Porque, independentemente dos problemas da cultura, em
que as dissonâncias resultantes destas questões são de importância decisiva, o
destino de uma classe depende da sua capacidade em discernir com clareza e
resolver os problemas que lhe impõe a evolução histórica em todas as suas
decisões práticas” (Lukács, 1989, p. 67).
Sendo assim, parece que
resta esclarecer as bases desta visão de que a ciência é ideologia. Para chegar
a isto é fundamental a contribuição da visão da historicidade, tal como se vê
em Marx (1989), Korsch (1977) e em menor grau em outros pensadores, como Lukács
(1989). Uma determinada sociedade possui sua singularidade, tanto na esfera do
modo de produção quanto das formas de regularização[3]. O
feudalismo, por exemplo, é uma totalidade concreta, com determinadas relações
de produção, forças produtivas, formas de regularização, que possuem uma
ligação indissolúvel. A forma dominante de ideologia é a teologia e a religião
é sua face popular. Esta ideologia representa os interesses da classe dominante
e possui a supremacia sobre as outras formas de saber. A filosofia, por
exemplo, foi totalmente subordinada à teologia. Até aqueles que contestavam a
dominação feudal o faziam a partir do pensamento religioso. Engels fez uma
excelente reflexão sobre isto:
“A idade média emergira inteiramente da barbárie;
fizera tábua rasa da civilização antiga e de sua filosofia, política e
jurisprudência para começar tudo de novo. Do mundo antigo, herdara apenas o
cristianismo e certo número de cidades em ruínas, despojadas de toda a sua
civilização. A conseqüência foi que os padres obtiveram o monopólio da
instrução, conforme costuma acontecer com toda civilização primitiva, e que a
própria instrução tivesse acentuado caráter teológico. Nas mãos dos sacerdotes,
a política, a jurisprudência e todas as outras ciências não passavam de simples
ramos da teologia a que se aplicavam os princípios da teologia. O dogma da
Igreja era também axioma político e os textos sagrados tinham força de lei em todos
os tribunais. Mesmo após a criação da profissão independente dos juristas a
jurisprudência permaneceu sob a tutela da teologia. Tal supremacia da teologia
em todos os ramos da atividade intelectual era devida também à posição peculiar
da Igreja como símbolo e sanção da ordem feudal. Torna-se evidente que qualquer
ataque geral contra o feudalismo devia primeiramente dirigir-se contra a Igreja
e que todas as doutrinas revolucionárias sociais e políticas deveriam ser, em
primeiro lugar, heresias teológicas. Para atingir-se a ordem social existente
era preciso despojá-la de sua aureola” (Engels, 1977, p. 38-39).
Aqui temos uma ideologia
(teologia) e uma cultura (religião) dominando amplamente uma sociedade na
esfera intelectual. Na época, não era perceptível que se tratava de ideologia
(falsa consciência sistemática, a teologia) e cultura (representações
cotidianas ilusórias, a religião) de caráter feudal. E a sociedade funcionava,
existia e se reproduzia. Pois bem, o mesmo ocorria na sociedade escravista e na
sociedade capitalista. Dentre estas sociedades, a capitalista é a que mais
necessita de desenvolvimento técnico e tecnológico e sua ideologia não pode
ser, devido sua própria natureza, teológica ou filosófica. Mas para quem vive
na nossa sociedade, a percepção disto se torna quase impossível e quem quer
combater a ideologia dominante acaba, na maioria dos casos, utilizando sua
linguagem, tal como Engels falou em relação aos camponeses. O combate à ciência
se revela, na maioria dos casos, como “heresias científicas”.
A própria idéia de um
socialismo científico, inaugurada por Proudhon e retomada por Marx e Engels, é
expressão desta força atraente da consciência burguesa. As heresias teológicas
do feudalismo, assim como as heresias científicas do capitalismo, são limitadas
e dificultam o processo de constituição de uma nova sociedade. Entre as
diversas formas de sociedade existe uma diferença radical, na esfera da
produção e em tudo o mais. É por isso que existe uma incompreensão no que se
refere ao socialismo, pois se pensa nele com as categorias e problemáticas da
nossa sociedade. A ruptura com o pensamento científico é uma necessidade do
movimento revolucionário e pode parecer loucura e, no fundo, esta aparência
apenas revela a dificuldade de pensar o radicalmente diferente e novo, o
não-capitalismo, o pós-capitalismo. O pensamento exterior ao capitalismo é um
sacrilégio, para utilizar mais uma vez a linguagem religiosa.
O pensamento
crítico-revolucionário deve ser sacrílego. Assim, devemos olhar para a sociedade
capitalista com os olhos de Kronos, o Deus do Tempo, isto é, como quem olha
para algo passageiro, algo do passado, algo histórico, delimitado, com
pretensão universal, mas com realidade temporal. Assim como vemos a sociedade
feudal e consideramo-la uma sociedade ultrapassada, dominada intelectualmente
por um saber obscuro e falso, devemos ver a sociedade capitalista, embora esta
última tarefa seja extremamente dolorosa e difícil. Aqui o sacrilégio é também
um sacrifício, pois temos que ter a coragem de realizar a crítica desapiedada
do existente e ver que somos parte deste existente, e carregamos suas marcas em
nós mesmos.
Este é um pressuposto para
realizar a crítica ao mundo ideológico e ilusório da consciência burguesa que
nos sufoca e impede de ver a verdade. A compreensão das ideologias do cérebro
requer esta perspectiva crítica e histórica.
[1] “O
conteúdo da mentalidade é formado pelos valores, razão e sentimentos
conscientes dos indivíduos. É o conjunto de elementos conscientes que fazem um
indivíduo agir, é a força motriz de seu comportamento e também da produção de
idéias e concepções sistematizadas ou articuladas (ideologia, teoria)” (Viana,
2007, p. 18).
[2] “A cura
consistiria, pois, em tornar pensável uma situação dada inicialmente em termos
afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a
tolerar. Que a mitologia do xamã não corresponda a uma realidade objetiva, não
tem importância: a doente acredita nela, e ela é membro de uma sociedade que
acredita” (Lévi-Strauss, 1970, p. 216).
[3] Sobre o
conceito de formas de regularização, cf. Viana, 2007.
O presente texto é o primeiro capítulo da obra:
VIANA, Nildo. Cérebro
e Ideologia. Uma Crítica das Ideologias do Cérebro. São Paulo: Paco,
2011.
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