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terça-feira, 11 de dezembro de 2018

MARX SEGUNDO MANACORDA: UM COMUNISTA LIBERAL



Resenha

MANACORDA, Mário Alighiero. Karl Marx e a Liberdade. Aquele velho liberal do comunista Karl Marx. Campinas: Alínea, 2012.

MARX SEGUNDO MANACORDA: UM COMUNISTA LIBERAL

Nildo Viana*

Mário Alighiero Manacorda é um autor italiano já conhecido do público brasileiro devido suas outras obras publicadas no Brasil, tais como Marx e a Pedagogia Moderna (1991) e História da Educação (1999). Em Karl Marx e a Liberdade, título da edição brasileira, que coloca o título original como subtítulo: “Aquele velho liberal do comunista Karl Marx”, busca refutar algumas críticas comuns ao pensador alemão e faz isso através da discussão da relação entre liberalismo e comunismo em seu pensamento.

O que Manacorda se propõe é o mesmo que Martin Nicolaus (1969), Maximilien Rubel (2003), Irving Fetscher (1970), Karl Korsch (1983), Carlos Debrito (1985), Antonio Labriola (1979), Viana (2012) e vários outros tentaram, sob formas distintas e com resultados diferentes, a saber: resgatar o verdadeiro Marx. Iniciativa louvável, tendo em vista as inúmeras deformações do pensamento deste autor, tanto de adversários quanto de supostos partidários, e que já recebeu interpretação cristã, anarquista, estruturalista, funcionalista, stalinista, trotskista, entre inúmeras outras. Contudo, a forma como Manacorda faz isto é problemática, tal como colocaremos adiante.

Manacorda aborda o pensamento de Marx inserindo-o na tradição do pensamento liberal progressista, do qual ele seria uma expressão crítica. Para tanto, ele aborda, nos vários capítulos do livro, temas fundamentais do pensamento de Marx: a crítica da realidade e da falsa consciência, o trabalho, o Estado, a formação humana, a religião e a natureza. Todos estes temas são abordados a partir da oposição entre liberalismo e comunismo (e o autor distingue entre estas concepções e suas concretizações históricas, “reais”).

Neste contexto, ele refuta as interpretações que atribuem “determinismo econômico”, estatismo, coletivismo e materialismo ao pensamento de Marx. É através do vínculo de Marx com o liberalismo que Manacorda refuta parte dessas interpretações. No entanto, ele não é muito feliz em sua empreitada. A sua obra apresenta como aspecto positivo retomar alguns temas de Marx e refutar as interpretações simplistas. A sua interpretação, porém, também se revela problemática. Isso ocorre por realizar o vínculo de Marx com o liberalismo, pois apesar de existirem temas semelhantes entre as duas tendências, tal como a questão fundamental que é o grande foco de Manacorda, a liberdade, ele não percebe que as semelhanças são meramente formais.

Os problemas começam com o fato de Manacorda não aprofundar a discussão sobre liberalismo e nem apresentar uma definição deste. Ao não fazer isso, acaba criando uma confusão conceitual e criando problemas interpretativos. Sem dúvida, o termo mais adequado seria libertário ao invés de liberal e ele mesmo cita esta sugestão por parte de amigos no início do livro, mas esclarece que não usa tal termo por ele estar vinculado à recusa do socialismo real e seu caráter “antimarxista” e que ele se refere à longa tradição cultural do liberalismo. Manacorda não percebe que o pensamento de Marx contém uma novidade e uma radicalidade que vai além do liberalismo nos dois elementos fundamentais ressaltados por ele: o indivíduo e a liberdade. Marx é um teórico da liberdade e, sem dúvida, como bem coloca Manacorda e alguns pseudomarxistas e antimarxistas não querem ver, pensa que o comunismo é a forma mais avançada de desenvolvimento da individualidade humana. Contudo, a concepção de liberdade em Marx é radicalmente distinta da concepção liberal, que é a liberdade de escolha e liberdade formal. A concepção de liberdade em Marx é o mesmo que Ernst Bloch e Erich Fromm denominaram “liberdade para”, ou seja, realização das necessidades e potencialidades humanas (que, de resto, Manacorda reconhece ao tratar da formação humana onilateral). No que se refere ao indivíduo, Manacorda falha por não entender que a concepção liberal difere da concepção marxista não só no entendimento do que é o indivíduo, mas também em seu projeto de sociedade.

A raiz destes equívocos de Manacorda está na ausência das classes e luta de classes na obra de Marx e, principalmente, do proletariado como agente do processo revolucionário que realiza a emancipação humana e permite o pleno desenvolvimento do indivíduo, pois no comunismo “o livre desenvolvimento de cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos” (Marx e Engels, 1988, p. 92).

Ao reconhecer acertadamente que Marx sempre foi um humanista, Manacorda se equivoca ao pensar esse humanismo em sua forma burguesa, abstrata e metafísica. Nesse sentido, a novidade e radicalidade do pensamento de Marx são apagadas e substituídas por uma união eclética entre “liberalismo” e “comunismo” (estatismo). Nesse sentido, Manacorda não percebe que Marx não faz parte da tradição do liberalismo progressista e nem se filia às concepções estatizantes do pseudocomunismo posterior a ele. Ao postular a ideia de autoemancipação proletária que rompe radicalmente com o capitalismo e institui uma nova sociedade, Marx se apresenta como “expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado” (Korsch, 1977; Viana, 2012; Viana, 2007), ou seja, ele parte da perspectiva do proletariado revolucionário, que nega o capital e a si mesmo como classe, expressando o projeto de abolição das classes sociais em geral e instituindo uma sociedade radicalmente diferente, a sociedade sem classes, que ele denominou “comunismo”; “livre associação dos produtores”; “autogoverno dos produtores”; “indivíduos livremente associados”, na qual a relação entre indivíduo e associação não institui nenhum antagonismo.

Daí o equívoco de Manacorda ao relacionar Marx e liberalismo. Manacorda para de uma dicotomia entre indivíduo e sociedade, abstrações metafísicas, e tenta reconciliar isso ao unir comunismo (em sua versão estatizante e que nada tem a ver com a concepção de Marx) e liberalismo individualista. Para Marx, a relação entre indivíduo e sociedade é mais complexa e possui caráter histórico, sendo que a suposta dicotomia é um produto social e histórico e que é superada com o comunismo. Ao não entender a radicalidade do projeto revolucionário expresso por Marx, ele tem que inserir um elemento externo e estranho para explicar o pensamento deste autor. Ele não só não trabalha com os elementos fundamentais da luta de classe e luta proletária (a não ser um passeio superficial em um item de um de seus capítulos), não compreendendo o significado da revolução proletária, como também não aborda os textos de Marx sobre o comunismo, a não ser em outro contexto e superficialmente. Ele substitui, no final das contas, o humanismo concreto e revolucionário de Marx por um humanismo abstrato e burguês.

O processo de emancipação humana, para Marx, desde que adotou a concepção comunista e materialista histórica, é realizado via autoemancipação proletária e por isso a concepção da história como sendo a história das lutas de classes e que cabe ao proletariado instituir novas relações sociais, novas relações de produção, abolindo o capital e o Estado e, nesse processo, abolindo a si mesmo como classe e a sociedade de classes em geral. Todo o pensamento de Marx gira em torno da ideia de luta de classes e a nova sociedade pós-capitalista emerge a partir da luta de classe do proletariado. As ideias e ideologias existentes são manifestação da atual sociedade (o liberalismo e o falso comunismo, por exemplo) e mesmo as diversas tendências socialistas, criticadas por Marx no Manifesto Comunista, não rompem com a sociedade capitalista e propõe, no máximo, um capitalismo reformado, seja através de redistribuição de renda, seja através da tomada do poder estatal e mera estatização dos meios de produção.

O que permite Marx romper com tais concepções é seu vínculo, colocado explicitamente em O Capital (1988), com o proletariado, não somente o vínculo prático, mas o vínculo teórico ao buscar expressar a perspectiva da classe revolucionária de nossa época. Contudo, ao mesmo tempo Marx não buscava se vincular ao proletariado existente “empiricamente” e dominado pelo capital e sim ao proletariado revolucionário (ou ele é revolucionário, ou “não é nada”, como certa vez afirmou em uma carta o fundador do marxismo), ou seja, trata-se de expressar o proletariado enquanto classe para-si, autodeterminada, negação do capital, e não como classe em-si, determinada pelo capital e que apenas busca melhorar sua situação no interior do capitalismo.

Outro problema da obra de Manacorda é a superficialidade de suas refutações das simplificações e deformações do pensamento de Marx. Por exemplo, para refutar o “determinismo econômico” de Marx, ao invés de explicitar o significado do conceito de modo de produção e sua concepção de totalidade e dialética, ele apenas cita trechos do Prefácio de Para a Crítica da Economia Política (1983) e apresenta uma interpretação em contradição com os próprios trechos citados e faz a afirmação não fundamentada de que a “estrutura” é um “produto da mente humana”, numa clara inversão idealista que nada tem a ver com a obra de Marx. Claro que o que ele quis afirmar foi que as forças produtivas, tal como as máquinas, são produzidas pelos seres humanos e que, portanto, são produtos da mente humana. No entanto, além da pouca clareza na exposição dessa ideia, acaba criando uma confusão e fugindo do assunto, pois para Marx o peso das forças produtivas reside no fato de ser herdada de gerações anteriores e que não podemos desfazer delas, mas atuar no seu contexto. Contudo, a “mente humana”, como diz Manacorda, segundo o próprio Marx, tanto em A Ideologia Alemã (2002), quando no Prefácio, é um produto social e histórico, é determinada pela vida e sendo assim, a mera afirmação de que as máquinas, etc. são produzidas por ela não resolve a questão.

A relação entre indivíduo e sociedade, bem como entre consciência e vida (relações sociais, modo de produção, etc.) não pode ser compreendida abstratamente e sim historicamente e um dos maiores problemas da obra de Manacorda é justamente a ausência da historicidade e ao invés de perceber que Marx, devido seu vínculo com a classe revolucionária de nossa época, não é um representante de quaisquer ideologias da sociedade capitalista (liberalismo ou qualquer outra), pois se coloca da perspectiva da negação desta sociedade, expressando o novo, a utopia concreta, como diria Ernst Bloch (Bicca, 1987), o concebe como manifestação de síntese entre liberalismo e estatismo, transformando-o de revolucionário em reformista.

A sua inserção das discussões sobre religião e natureza acaba sendo sem sentido. Manacorda aborda a religião apenas para sustentar que Marx não era autoritário e nem queria impor a antirreligião aos religiosos, tal como os anarquistas (o que é uma generalização problemática), e assim vinculá-lo ao liberalismo. Isso é destituído de sentido, pois não só realiza má interpretação de Marx como também faz o elogio do liberalismo como se este fosse o lócus da liberdade, numa percepção acrítica e ideológica desta ideologia burguesa. O liberalismo é uma ideologia burguesa que em alguns momentos tocam em questões universais, manifestação da natureza humana segundo concepção de Marx (Marx, 1983; Marx e Engels, 2002; Marx, 1988), mas de forma radicalmente distinta, a começar pela questão da liberdade, justamente onde Manacorda quer criar um vínculo entre marxismo e liberalismo. A liberdade formal, de escolha, do proprietário de mercadorias, nada tem a ver com a liberdade humana autêntica da autorrealização através da práxis (trabalho não alienado em associação não degradada pela divisão de classes).

Por fim, o livro de Manacorda tem seus méritos, mas o fio condutor de sua interpretação do pensamento de Marx acaba gerando mais uma deformação dele. Nesse sentido, as obras de Karl Korsch (1983), Maximiliem Rubel (2003) e Carlos Debrito (1985) ainda são muito mais esclarecedoras e fiéis ao pensamento de Marx e a contribuição de Manacorda ficou muito aquém da deles.

Referências

BICCA, Luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

DEBRITO, Carlos. Marx, Um Elogio Crítico. Lisboa: Antígona, 1985.

FISCHER, Ernst. O Que Marx Realmente Disse. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.

KORSCH, K. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.

_____, Karl. Karl Marx. Barcelona: Ariel, 1983.

LABRIOLA, Antonio. La Concepción Materialista de la História. Madrid: Editorial 7, 1979.

MANACORDA, Mário Alighiero. História da Educação: da antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1999.

_____, Mário Alighiero. Karl Marx e a Liberdade. Aquele velho liberal do comunista Karl Marx. Campinas: Alínea, 2012.

_____, Mário Alighiero. Marx e a Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez, 1991.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo: Martins Fontes, 2002.

_____, Karl e _____, Friedrich. Manifesto Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 3ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.

_____, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: FROMM, Erich. O Conceito Marxista de Homem. 8ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

_____, Karl. O Capital. 3ª edição, vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

NICOLAUS, Martin. El Marx Desconocido. Proletariado y Clase Media em Marx. Barcelona: Anagrama, 1969.

RUBEL, Maximilien. Marx Sin Mito. Barcelona: Octaedro, 2003.

VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia: Alternativa, 2007.

VIANA, Nildo. O que é Marxismo? Florianópolis: Bookess, 2012.


* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB, Universidade de Brasília.


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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Marx segundo Manacorda: um comunista liberal. CSOnline - REVISTA ELETRÔNICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS. n. 15 (2013). 
Disponível em:
https://csonline.ufjf.emnuvens.com.br/csonline/article/view/2266

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