Resenha
MANACORDA, Mário Alighiero. Karl Marx e a Liberdade. Aquele velho
liberal do comunista Karl Marx. Campinas: Alínea, 2012.
MARX SEGUNDO
MANACORDA: UM COMUNISTA LIBERAL
Nildo Viana*
Mário
Alighiero Manacorda é um autor italiano já conhecido do público brasileiro
devido suas outras obras publicadas no Brasil, tais como Marx e a Pedagogia Moderna (1991) e História da Educação (1999). Em Karl
Marx e a Liberdade, título da edição brasileira, que coloca o título
original como subtítulo: “Aquele velho
liberal do comunista Karl Marx”, busca refutar algumas críticas comuns ao
pensador alemão e faz isso através da discussão da relação entre liberalismo e
comunismo em seu pensamento.
O que Manacorda
se propõe é o mesmo que Martin Nicolaus (1969), Maximilien Rubel (2003), Irving
Fetscher (1970), Karl Korsch (1983), Carlos Debrito (1985), Antonio Labriola
(1979), Viana (2012) e vários outros tentaram, sob formas distintas e com
resultados diferentes, a saber: resgatar o verdadeiro Marx. Iniciativa
louvável, tendo em vista as inúmeras deformações do pensamento deste autor,
tanto de adversários quanto de supostos partidários, e que já recebeu
interpretação cristã, anarquista, estruturalista, funcionalista, stalinista,
trotskista, entre inúmeras outras. Contudo, a forma como Manacorda faz isto é
problemática, tal como colocaremos adiante.
Manacorda
aborda o pensamento de Marx inserindo-o na tradição do pensamento liberal
progressista, do qual ele seria uma expressão crítica. Para tanto, ele aborda,
nos vários capítulos do livro, temas fundamentais do pensamento de Marx: a
crítica da realidade e da falsa consciência, o trabalho, o Estado, a formação
humana, a religião e a natureza. Todos estes temas são abordados a partir da
oposição entre liberalismo e comunismo (e o autor distingue entre estas
concepções e suas concretizações históricas, “reais”).
Neste
contexto, ele refuta as interpretações que atribuem “determinismo econômico”,
estatismo, coletivismo e materialismo ao pensamento de Marx. É através do
vínculo de Marx com o liberalismo que Manacorda refuta parte dessas
interpretações. No entanto, ele não é muito feliz em sua empreitada. A sua obra
apresenta como aspecto positivo retomar alguns temas de Marx e refutar as
interpretações simplistas. A sua interpretação, porém, também se revela
problemática. Isso ocorre por realizar o vínculo de Marx com o liberalismo,
pois apesar de existirem temas semelhantes entre as duas tendências, tal como a
questão fundamental que é o grande foco de Manacorda, a liberdade, ele não percebe
que as semelhanças são meramente formais.
Os problemas
começam com o fato de Manacorda não aprofundar a discussão sobre liberalismo e
nem apresentar uma definição deste. Ao não fazer isso, acaba criando uma
confusão conceitual e criando problemas interpretativos. Sem dúvida, o termo
mais adequado seria libertário ao invés de liberal e ele mesmo cita esta
sugestão por parte de amigos no início do livro, mas esclarece que não usa tal
termo por ele estar vinculado à recusa do socialismo real e seu caráter “antimarxista”
e que ele se refere à longa tradição cultural do liberalismo. Manacorda não
percebe que o pensamento de Marx contém uma novidade e uma radicalidade que vai
além do liberalismo nos dois elementos fundamentais ressaltados por ele: o
indivíduo e a liberdade. Marx é um teórico da liberdade e, sem dúvida, como bem
coloca Manacorda e alguns pseudomarxistas e antimarxistas não querem ver, pensa
que o comunismo é a forma mais avançada de desenvolvimento da individualidade
humana. Contudo, a concepção de liberdade em Marx é radicalmente distinta da
concepção liberal, que é a liberdade de escolha e liberdade formal. A concepção
de liberdade em Marx é o mesmo que Ernst Bloch e Erich Fromm denominaram “liberdade
para”, ou seja, realização das necessidades e potencialidades humanas (que, de
resto, Manacorda reconhece ao tratar da formação humana onilateral). No que se
refere ao indivíduo, Manacorda falha por não entender que a concepção liberal
difere da concepção marxista não só no entendimento do que é o indivíduo, mas
também em seu projeto de sociedade.
A raiz destes
equívocos de Manacorda está na ausência das classes e luta de classes na obra
de Marx e, principalmente, do proletariado como agente do processo
revolucionário que realiza a emancipação humana e permite o pleno
desenvolvimento do indivíduo, pois no comunismo “o livre desenvolvimento de
cada um é condição para o livre desenvolvimento de todos” (Marx e Engels, 1988,
p. 92).
Ao reconhecer
acertadamente que Marx sempre foi um humanista, Manacorda se equivoca ao pensar
esse humanismo em sua forma burguesa, abstrata e metafísica. Nesse sentido, a
novidade e radicalidade do pensamento de Marx são apagadas e substituídas por
uma união eclética entre “liberalismo” e “comunismo” (estatismo). Nesse
sentido, Manacorda não percebe que Marx não faz parte da tradição do
liberalismo progressista e nem se filia às concepções estatizantes do
pseudocomunismo posterior a ele. Ao postular a ideia de autoemancipação
proletária que rompe radicalmente com o capitalismo e institui uma nova
sociedade, Marx se apresenta como “expressão teórica do movimento
revolucionário do proletariado” (Korsch, 1977; Viana, 2012; Viana, 2007), ou
seja, ele parte da perspectiva do proletariado revolucionário, que nega o
capital e a si mesmo como classe, expressando o projeto de abolição das classes
sociais em geral e instituindo uma sociedade radicalmente diferente, a
sociedade sem classes, que ele denominou “comunismo”; “livre associação dos
produtores”; “autogoverno dos produtores”; “indivíduos livremente associados”,
na qual a relação entre indivíduo e associação não institui nenhum antagonismo.
Daí o
equívoco de Manacorda ao relacionar Marx e liberalismo. Manacorda para de uma
dicotomia entre indivíduo e sociedade, abstrações metafísicas, e tenta
reconciliar isso ao unir comunismo (em sua versão estatizante e que nada tem a
ver com a concepção de Marx) e liberalismo individualista. Para Marx, a relação
entre indivíduo e sociedade é mais complexa e possui caráter histórico, sendo
que a suposta dicotomia é um produto social e histórico e que é superada com o
comunismo. Ao não entender a radicalidade do projeto revolucionário expresso
por Marx, ele tem que inserir um elemento externo e estranho para explicar o
pensamento deste autor. Ele não só não trabalha com os elementos fundamentais
da luta de classe e luta proletária (a não ser um passeio superficial em um
item de um de seus capítulos), não compreendendo o significado da revolução
proletária, como também não aborda os textos de Marx sobre o comunismo, a não
ser em outro contexto e superficialmente. Ele substitui, no final das contas, o
humanismo concreto e revolucionário de Marx por um humanismo abstrato e
burguês.
O processo de
emancipação humana, para Marx, desde que adotou a concepção comunista e
materialista histórica, é realizado via autoemancipação proletária e por isso a
concepção da história como sendo a história das lutas de classes e que cabe ao
proletariado instituir novas relações sociais, novas relações de produção,
abolindo o capital e o Estado e, nesse processo, abolindo a si mesmo como
classe e a sociedade de classes em geral. Todo o pensamento de Marx gira em
torno da ideia de luta de classes e a nova sociedade pós-capitalista emerge a
partir da luta de classe do proletariado. As ideias e ideologias existentes são
manifestação da atual sociedade (o liberalismo e o falso comunismo, por
exemplo) e mesmo as diversas tendências socialistas, criticadas por Marx no Manifesto Comunista, não rompem com a
sociedade capitalista e propõe, no máximo, um capitalismo reformado, seja
através de redistribuição de renda, seja através da tomada do poder estatal e
mera estatização dos meios de produção.
O que permite
Marx romper com tais concepções é seu vínculo, colocado explicitamente em O Capital (1988), com o proletariado,
não somente o vínculo prático, mas o vínculo teórico ao buscar expressar a
perspectiva da classe revolucionária de nossa época. Contudo, ao mesmo tempo
Marx não buscava se vincular ao proletariado existente “empiricamente” e
dominado pelo capital e sim ao proletariado revolucionário (ou ele é
revolucionário, ou “não é nada”, como certa vez afirmou em uma carta o fundador
do marxismo), ou seja, trata-se de expressar o proletariado enquanto classe
para-si, autodeterminada, negação do capital, e não como classe em-si,
determinada pelo capital e que apenas busca melhorar sua situação no interior
do capitalismo.
Outro
problema da obra de Manacorda é a superficialidade de suas refutações das
simplificações e deformações do pensamento de Marx. Por exemplo, para refutar o
“determinismo econômico” de Marx, ao invés de explicitar o significado do
conceito de modo de produção e sua concepção de totalidade e dialética, ele
apenas cita trechos do Prefácio de Para a Crítica da Economia Política (1983)
e apresenta uma interpretação em contradição com os próprios trechos citados e
faz a afirmação não fundamentada de que a “estrutura” é um “produto da mente
humana”, numa clara inversão idealista que nada tem a ver com a obra de Marx. Claro
que o que ele quis afirmar foi que as forças produtivas, tal como as máquinas,
são produzidas pelos seres humanos e que, portanto, são produtos da mente
humana. No entanto, além da pouca clareza na exposição dessa ideia, acaba
criando uma confusão e fugindo do assunto, pois para Marx o peso das forças
produtivas reside no fato de ser herdada de gerações anteriores e que não
podemos desfazer delas, mas atuar no seu contexto. Contudo, a “mente humana”,
como diz Manacorda, segundo o próprio Marx, tanto em A Ideologia Alemã (2002), quando no Prefácio, é um produto social e histórico, é determinada pela vida
e sendo assim, a mera afirmação de que as máquinas, etc. são produzidas por ela
não resolve a questão.
A relação
entre indivíduo e sociedade, bem como entre consciência e vida (relações
sociais, modo de produção, etc.) não pode ser compreendida abstratamente e sim
historicamente e um dos maiores problemas da obra de Manacorda é justamente a
ausência da historicidade e ao invés de perceber que Marx, devido seu vínculo
com a classe revolucionária de nossa época, não é um representante de quaisquer
ideologias da sociedade capitalista (liberalismo ou qualquer outra), pois se
coloca da perspectiva da negação desta sociedade, expressando o novo, a utopia
concreta, como diria Ernst Bloch (Bicca, 1987), o concebe como manifestação de
síntese entre liberalismo e estatismo, transformando-o de revolucionário em
reformista.
A sua
inserção das discussões sobre religião e natureza acaba sendo sem sentido.
Manacorda aborda a religião apenas para sustentar que Marx não era autoritário
e nem queria impor a antirreligião aos religiosos, tal como os anarquistas (o
que é uma generalização problemática), e assim vinculá-lo ao liberalismo. Isso
é destituído de sentido, pois não só realiza má interpretação de Marx como
também faz o elogio do liberalismo como se este fosse o lócus da liberdade, numa percepção acrítica e ideológica desta
ideologia burguesa. O liberalismo é uma ideologia burguesa que em alguns
momentos tocam em questões universais, manifestação da natureza humana segundo
concepção de Marx (Marx, 1983; Marx e Engels, 2002; Marx, 1988), mas de forma
radicalmente distinta, a começar pela questão da liberdade, justamente onde
Manacorda quer criar um vínculo entre marxismo e liberalismo. A liberdade
formal, de escolha, do proprietário de mercadorias, nada tem a ver com a
liberdade humana autêntica da autorrealização através da práxis (trabalho não
alienado em associação não degradada pela divisão de classes).
Por fim, o
livro de Manacorda tem seus méritos, mas o fio condutor de sua interpretação do
pensamento de Marx acaba gerando mais uma deformação dele. Nesse sentido, as
obras de Karl Korsch (1983), Maximiliem Rubel (2003) e Carlos Debrito (1985) ainda
são muito mais esclarecedoras e fiéis ao pensamento de Marx e a contribuição de
Manacorda ficou muito aquém da deles.
Referências
BICCA,
Luiz. Marxismo e Liberdade. São
Paulo: Edições Loyola, 1997.
DEBRITO, Carlos. Marx,
Um Elogio Crítico. Lisboa: Antígona, 1985.
FISCHER, Ernst. O Que Marx Realmente Disse. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
KORSCH, K. Marxismo e Filosofia. Porto:
Afrontamento, 1977.
_____, Karl. Karl Marx. Barcelona:
Ariel, 1983.
LABRIOLA, Antonio. La Concepción Materialista de la História.
Madrid: Editorial 7, 1979.
MANACORDA,
Mário Alighiero. História da Educação: da
antiguidade aos nossos dias. São Paulo: Cortez, 1999.
_____, Mário Alighiero. Karl
Marx e a Liberdade. Aquele velho liberal do comunista Karl Marx. Campinas:
Alínea, 2012.
_____, Mário Alighiero. Marx
e a Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez, 1991.
MARX,
Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia
Alemã (Feuerbach). São Paulo: Martins Fontes, 2002.
_____, Karl e _____, Friedrich. Manifesto Comunista. Petrópolis: Vozes,
1988.
MARX,
Karl. Contribuição à Crítica da Economia
Política. 3ª edição, São Paulo: Martins Fontes, 1983.
_____, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. In: FROMM, Erich. O Conceito Marxista de Homem. 8ª edição,
Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
_____, Karl. O Capital. 3ª edição,
vol. 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988.
NICOLAUS, Martin. El Marx
Desconocido. Proletariado y Clase Media em Marx. Barcelona: Anagrama, 1969.
RUBEL, Maximilien. Marx Sin Mito. Barcelona: Octaedro,
2003.
VIANA,
Nildo. Escritos Metodológicos de Marx.
Goiânia: Alternativa, 2007.
VIANA,
Nildo. O que é Marxismo? Florianópolis:
Bookess, 2012.
* Professor da Faculdade
de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela
UnB, Universidade de Brasília.
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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Marx segundo Manacorda: um comunista liberal. CSOnline - REVISTA ELETRÔNICA DE CIÊNCIAS SOCIAIS. n. 15 (2013).
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