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segunda-feira, 28 de agosto de 2017

NEONAZISMO - A RENOVAÇÃO DO MANIQUEÍSMO REACIONÁRIO


NEONAZISMO
A RENOVAÇÃO DO MANIQUEÍSMO REACIONÁRIO

Nildo Viana

O neonazismo aparece como um fenômeno recente, marcado por uma retomada do nazismo, o que gera espanto em alguns setores da população. Como é possível um “neonazismo”? O que gera este fenômeno? O que significa neonazismo? Tais questões são formuladas por aqueles que consideram o nazismo um fenômeno indesejável sob qualquer ponto de vista. O fato é que o neonazismo existe e por isso precisa ser explicado. A compreensão do neonazismo pressupõe o entendimento do que foi o nazismo e das bases sociais e psíquicas deste fenômeno social e político. Por isso vamos apresentar uma breve análise do nazismo, para, posteriormente, mostrar o que o neonazismo mantém e o que trás de novo em sua concepção em relação a ele.

O nazismo foi analisado por diversos historiadores e pesquisadores que mostraram seu processo de formação, sua chegada ao poder, suas ações ditatoriais, seus processos de perseguição dos judeus e outros grupos sociais, etc. Alguns tentaram definir e explicitar o caráter do nazismo enquanto ideologia ou concepção de mundo ou a razão de sua tomada do poder e relativo apoio de parte da população[1]. No entanto, é fundamental entender o significado do nazismo e suas bases sociais e psíquicas para entender sua reemergência renovada chamada neonazismo. O nazismo é uma ideologia pouco sistematizada que traz em si um elemento mítico, que é o maniqueísmo, e é perpassado por diversas ambiguidades. O nazismo pode ser definido como uma ideologia maniqueísta reacionária e totalitária que serve de suporte para a legitimação, justificação e valoração de uma política de superioridade dos predestinados que expressa, intencionalmente ou não, os interesses da classe dominante.

O nazismo, como ideologia, é permeado por contradições e ambiguidades. É uma tentativa de sistematização que se sustenta em meio a diversas contradições que são apagadas pelo seu elemento mítico – o maniqueísmo. O maniqueísmo, caracterizado pela oposição entre o bem e o mal, possibilita a formação de um inimigo imaginário. No caso do nazismo, as vítimas foram especialmente os judeus e secundariamente outros grupos. Esse maniqueísmo é “reacionário”, ou seja, é uma forma assumida pelo conservadorismo, por buscar, simultaneamente, impedir mudanças (reação) e voltar ao passado. Por isso o nazismo combate não apenas os revolucionários e contestadores, mas também aqueles que permitem sua existência e luta (democratas, por exemplo). Trata-se de um passado mítico apontando como o objetivo, voltando a um tempo em que o mal ou a impureza não vagavam pela terra. Assim, o antissemitismo é a forma pela qual esse maniqueísmo se manifestou no caso do nazismo alemão. O seu caráter totalitário se revela no fato de que, fundado em seu maniqueísmo, ele não aceita divisão/oposição e por isso, uma vez no poder, exerce um poder ditatorial.

O nazismo precisa criar um inimigo imaginário e reduzir todos os adversários a tal inimigo (VIANA, 2007). O inimigo imaginário é o que popularmente se chama “bode expiatório”, aquele que será culpabilizado por todos os males. Assim, a invenção de tal inimigo, que é imaginário (ilusório), tem a função de responsabilizar determinado grupo social pelos problemas identificados na sociedade. O inimigo imaginário principal criado pelos nazistas é o judeu. Mas, com sua ambiguidade estrutural, há o judeu comunista e o judeu capitalista e ambos são combatidos, bem como os comunistas (geralmente interpretados como sendo judeus) e homossexuais (apesar de sua ligação com a homossexualidade, mostrando outra ambiguidade). Esse inimigo imaginário, no discurso nazista, pode ser interpretado de várias formas e ser completado por outros inimigos imaginários, seja por possuírem uma função semelhante, apoiá-lo ou ser parte dele, mesmo negando-o (e assim de nada adianta o discurso e a prática concreta desse grupo, pois ele negaria o que realmente é).

Se o nazismo é maniqueísta e cria o inimigo imaginário, os judeus, então quem seriam os predestinados, responsáveis pela recuperação do mundo puro e verdadeiro? Esses seriam os arianos. Aqui se coloca a questão do racismo no interior do nazismo. Contudo, não se trata de “raça”, propriamente dita. Os “arianos” podem ser considerados partes de uma raça humana, que seria a raça branca, mas não sua totalidade. Os judeus, por sua vez, mesmo se originalmente tiveram uma unidade étnica que seria simultaneamente uma unidade racial, ainda seriam uma parte e não a totalidade. O desenvolvimento histórico dos judeus suprimiu os laços originais e o judaísmo se constituiu como uma religião, a qual qualquer indivíduo pode aderir independente de sua raça. A ideologia nazista, contudo, se move não através de análises históricas ou científicas e sim mitológicas, apesar de seu discurso pseudocientífico. E para se legitimar, pode lançar mão do darwinismo, da eugenia, da filosofia de Nietzsche, etc. Os predestinados são a raça pura, forte, a mais apta. Nesse sentido, o racismo é, aparentemente, um elemento definidor do nazismo, mas trata-se de um falso racismo. O maniqueísmo reacionário define melhor a concepção nazista. A ambiguidade é uma de suas marcas e que permite encontrar adesão até em indivíduos pertencentes a grupos considerados “inferiores” e vítimas da perseguição nazista.

No fundo, a origem da ideologia nazista remete à figura de Hitler. Ele foi o principal idealizador do nazismo e contou com a ajuda de inúmeros outros para uma maior sistematização de sua ideologia. É necessário entender as raízes psíquicas do nazismo. A concepção e recepção do nazismo pressupõem determinadas relações sociais. Ele emerge em momentos de crise geral da sociedade capitalista ou então quando alguns grupos, classes ou frações de classes sociais são atingidos negativamente pelas mudanças sociais. Ou seja, o terreno em que brota o nazismo é o da crise, seja da sociedade em geral ou de setores da sociedade.

Esse momento de crise gera inquietação, angústia, etc. (GIRARDET, 1977). É nesse contexto que a invenção, reprodução, aceitação, de um inimigo imaginário se torna mais comum e generalizada (no conjunto da sociedade ou em setores específicos da mesma). Esse inimigo imaginário é uma resposta simples, repetitiva e geral, que fornece uma explicação da crise e dos problemas e, ao mesmo tempo, encontra seus responsáveis e a solução. A solução pode ser o extermínio ou a subjugação, entre outras possibilidades, do inimigo imaginário (VIANA, 2007). Assim, o sentimento de insegurança, medo, ansiedade, etc. provocados por uma situação de crise, cria uma predisposição em muitos indivíduos, grupos, frações de classes, etc., a aderirem à explicação e solução fácil expressa no maniqueísmo reacionário. O nazismo usa como uma de suas estratégias a manipulação dos sentimentos da população ou setores dela, fortalecendo o ódio e o medo, e canalizando-os para determinado inimigo imaginário. Na Alemanha, essa manipulação de sentimentos ocorreu em relação aos atingidos pela crise, setores atingidos pelo desemprego, por exemplo. Os recém desempregados tinham uma explicação simples e solução fácil para os seus problemas: os judeus eram os responsáveis pelo desemprego e, portanto, tinham que ser excluídos, o que permitiria a retomada do emprego.

O nazismo surge a partir de pequenos grupos atingidos por essa desestabilização social, por problemas sociais específicos, aglutinando também indivíduos com desequilíbrios psíquicos. Esse pequeno grupo, no entanto, com o passar do tempo, cresce e com a continuidade da crise e com a insegurança crescente da burguesia, esta acaba apoiando os nazistas, o que os leva ao poder. O nazismo aparece, portanto, como a ideologia adequada e o partido nazista como a organização necessária para superar a crise capitalista e manter a dominação burguesa.

Uma vez que o nazismo se estabelece no poder, a ditadura fundamentada em sua ideologia maniqueísta reacionária acaba se generalizando e trazendo a necessidade de manter seu discurso, e a guerra aparece como a expansão da solução para outros lugares e todos os países inimigos podem se considerados “nações judaicas”. A unidade nacional é garantida agora via a unidade dos predestinados, a “raça ariana”.

Essa breve análise do nazismo é fundamental para entender o neonazismo. O sufixo “neo” aponta para a emergência de um “novo nazismo”. Desta forma, há permanência e mudança. O neonazismo é uma forma nova de nazismo. Por isso é, tal como o nazismo, uma ideologia maniqueísta reacionária e totalitária que legitima, justifica e valora uma política de superioridade dos predestinados e que expressa, intencionalmente ou não, os interesses da classe capitalista.

A questão, então, é o que há de novo no neonazismo? A novidade representada pelo neonazismo é que ele reaparece em novos contextos sociais e históricos. O maniqueísmo reacionário continua, mas os predestinados e o inimigo imaginário devem ser outros, de acordo com os adeptos do neonazismo, com qual é o país e suas divisões sociais, com a dinâmica das classes sociais e da evolução das crises (setoriais ou geral), com as tradições culturais, etc. Os judeus eram os inimigos imaginários adequados para o caso alemão dos anos 1920-1930, devido sua existência, condições sociais e antissemitismo existente, pois podiam ser responsabilizados pelos problemas sociais. A situação dos neonazistas na Inglaterra é bem distinta. Os skinheads surgiram após a copa do mundo de 1966, num contexto de relação com torcidas organizadas e violência, gerando uma gangue de origem jovem e operária, que depois, com a crise do final dos anos 1960 (incluindo aumento do desemprego), ao lado da imigração de força de trabalho da África e Ásia, lhe proporciona a aproximação com a ideologia nazista. Assim surgem as gangues neonazistas.

Contudo, as gangues neonazistas são apenas a ponta do iceberg. Ao contrário do nazismo, que surge como pequeno grupo e vai buscando financiamento, adeptos, etc. o neonazismo emerge a partir de duas fontes. Uma fonte são as gangues neonazistas. Outra fonte são partidos e instituições com recursos financeiros e lugares estratégicos no mundo político-institucional. Esse é o caso de National Allience, American Nazi Party, nos Estados Unidos; ou National Front, na Inglaterra, ou, ainda, determinados partidos e organizações na França, Alemanha, Holanda, Áustria e Itália, embora nem todos se declarem nazistas, por razões óbvias. Há também relatos sobre algumas instituições que se autodeclaram como “associação cultural” ou “filosófica”, e que seriam, na verdade, apenas fachada de organizações neonazistas. Da mesma forma, existem indivíduos nazistas inseridos em outras agremiações partidárias e com espaços político-institucionais, como se pode ver no filme Infiltrator (dirigido por John Mackenzie, de 1995), baseado em fatos reais, no qual se mostra as diversas faces do neonazismo, desde as gangues até os altos burocratas e senadores.

No Brasil, existem várias gangues neonazistas, sendo os Carecas do Subúrbio, que surgiu nos anos 1980, a mais famosa. Em São Paulo, haveria também o Kombat Rac, Front 88 e Impacto Hooligan e há notícias sobre existência de gangues neonazistas em todos os estados da região sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná), Minas Gerais, Distrito Federal[2]. Em cada contexto, o neonazismo muda o inimigo imaginário. Em São Paulo, os nordestinos já foram alvos dos neonazistas, bem como negros, homossexuais, etc. Os judeus ainda podem ser alvos em determinadas cidades e contextos. A ideologia neonazista realiza poucas alterações na versão original produzida por Hitler e outros. Isso pode ser visto no caso do grupo Valhalla 88:

As novas teorias raciais utilizadas pelo grupo Valhalla 88 são construídas a partir da década de 1980, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Um dos destaques mencionados pelo grupo no site é o supremacista racial David Lane. Durante sua vida, ele defendeu que a raça branca estaria em extinção, então propunha que a raça branca se isolasse do mundo, se organizando em fazendas ou sociedades segregadas. Frases que ficaram conhecidas e foram utilizadas como slogans pelos grupos neonazistas, hoje é referência na forma de identificação dos grupos racistas e neonazistas. Eles, após suas manifestações ou produção de artigo no final, utilizam os números 14/88. O número 14 é referência as quatorze palavras de David Lane “Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as Crianças Brancas" e o número 88 se refere às letras do alfabeto: 8 seria a letra H, os dois números 88 fazem referência a saudação nazista Heil Hitler (ANDRADE, 2014, p. 172).

Esse grupo, pouco conhecido, ajuda a explicar a pouca inovação ideológica do neonazismo. Um dos motivos dessa pouca inovação reside no fato de as gangues neonazistas, pequenos grupos, entre outros, não possuem, em seus quadros, intelectuais ou ideólogos que pudessem efetivar acréscimos ou alteração na ideologia nazista. A composição social desses grupos é geralmente de jovens, a maioria das classes sociais desprivilegiadas, e sem grande bagagem cultural. Além disso, a repressão e censura (sendo que em alguns países, como no Brasil, existe lei contra propaganda nazista, o que impede a existência de sites neonazistas, que são fechados tão logo sejam identificados) dificultam não só a proliferação, mas a colaboração dos diferentes grupos e desenvolvimento da ideologia. No que se refere aos partidos, instituições e outras formas mais desenvolvidas de neonazismo, há também dificuldades com a repressão e censura, mas o fenômeno nazista e sua imagem é suficiente para que eles mesmos queiram adotar a discrição e não se assumam publicamente como tal e assim, não podem apresentar, pelo menos para o público externo, suas teses, o que é outro obstáculo para o desenvolvimento e divulgação de inovações ideológicas.

A força do neonazismo é diminuta. O aparecimento do neonazismo de forma mais popular, ou seja, através das gangues neonazistas, surge com a desestabilização social da segunda metade dos anos 1960 e da crise posterior, que dura até os anos 1970, sendo que a emergência de um novo regime de acumulação, caracterizado por uma nova formação estatal (neoliberalismo), nova forma de organização do trabalho (toyotismo), novas relações internacionais (hiperimperialismo, mais conhecido como “globalização”), trouxe um aumento do empobrecimento da população (inclusive nos países de capitalismo superdesenvolvido, como Estados Unidos e França, sendo que neste país se cunhou a expressão “exclusão social” para expressar a nova situação), reforça suas bases de existência. A situação difícil, a desilusão, a ansiedade, a insegurança, a insatisfação de diversos setores acabam proporcionando adeptos ao neonazismo. O seu crescimento acompanha o desenvolvimento da sociedade moderna e as novas mudanças que ocorrem com a nova desestabilização reforçam os extremismos e entre eles o neonazismo[3].

Em síntese, o neonazismo é um desdobramento contemporâneo do nazismo, cuja inovação é pequena, sendo mais no que se refere ao inimigo imaginário e para adaptação às mudanças sociais e diferenças nacionais, regionais, etc. A essência do nazismo continua a mesma, mudança apenas alguns aspectos do maniqueísmo reacionário que o caracteriza. Nesse sentido, o neonazismo possui o mesmo significado que o nazismo quando este surgiu: grupos sem força e sem popularidade, que, com o desenvolvimento de uma crise, pode ganhar espaço e receber apoio de setores do grande capital, ganhando a possibilidade real de tomar o poder estatal.

Referências

ANDRADE, Guilherme. A ideologia racial do grupo neonazista Valhalla 88 e a influência da teoria racial de Adolf Hitler. Revista Hominum. Num. 15, julho de 2014.

ARENDT, Hannah. Anti-Semitismo, Instrumento do Poder. Rio de Janeiro, Documentário, 1975.

FROMM, Erich. O Medo à Liberdade. 13ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1981.

GIRARDET, Raul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1977.

JESUS, Carlos G. N. Neonazismo: Nova Roupagem para um Velho Problema. Akrópolis, V. 11, n.2, abr./jun., 2003. Disponível em: http://revistas.unipar.br/index.php/akropolis/article/view/333/300 Acessado em: 05/03/2017

LENHARO, Alcir. Nazismo. O Triunfo da Vontade. São Paulo, Ática, 1986.

SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o Racismo. São Paulo, Difel, 1960.

VIANA, Nildo. A Invenção do Inimigo Imaginário. Antítese. Ano 02, num. 04, Outubro de 2007.

VIANA, Nildo. Capitalismo e Racismo. In: VIANA, Nildo e SANTOS, Cleito P. (orgs.). Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.

Nildo Viana é Professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB, pós-doutor pela Universidade de São Paulo e autor de diversos livros.

Artigo publicado em “Mistérios da Psique”.



[1] Existe uma extensa bibliografia sobre o nazismo, desde livros introdutórios, passando por livros históricos, análises sociológicas e psicológicas, etc. A nossa análise se baseia em diversas obras, com destaque para: ARENDT (1975), FROMM (1981), GIRARDET (1977), LENHARO (1986), SARTRE (1960), VIANA (2009), VIANA, (2007).

[2] http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38603560

[3] A força do moralismo progressista e a competição social por espaços na sociedade capitalista por parte daquilo que foi chamado “minorias” (uma crítica a tal expressão pode ser vista em: http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/6viana09pos/378), é outro elemento contemporâneo propulsor de intolerância e de adesão ao reacionarismo, incluindo sua forma neonazista.

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