NEONAZISMO
A
RENOVAÇÃO DO MANIQUEÍSMO REACIONÁRIO
Nildo
Viana
O neonazismo
aparece como um fenômeno recente, marcado por uma retomada do nazismo, o que
gera espanto em alguns setores da população. Como é possível um “neonazismo”? O
que gera este fenômeno? O que significa neonazismo? Tais questões são
formuladas por aqueles que consideram o nazismo um fenômeno indesejável sob
qualquer ponto de vista. O fato é que o neonazismo existe e por isso precisa
ser explicado. A compreensão do neonazismo pressupõe o entendimento do que foi
o nazismo e das bases sociais e psíquicas deste fenômeno social e político. Por
isso vamos apresentar uma breve análise do nazismo, para, posteriormente,
mostrar o que o neonazismo mantém e o que trás de novo em sua concepção em
relação a ele.
O nazismo foi
analisado por diversos historiadores e pesquisadores que mostraram seu processo
de formação, sua chegada ao poder, suas ações ditatoriais, seus processos de
perseguição dos judeus e outros grupos sociais, etc. Alguns tentaram definir e
explicitar o caráter do nazismo enquanto ideologia ou concepção de mundo ou a
razão de sua tomada do poder e relativo apoio de parte da população[1].
No entanto, é fundamental entender o significado do nazismo e suas bases sociais
e psíquicas para entender sua reemergência renovada chamada neonazismo. O
nazismo é uma ideologia pouco sistematizada que traz em si um elemento mítico,
que é o maniqueísmo, e é perpassado por diversas ambiguidades. O nazismo pode
ser definido como uma ideologia maniqueísta reacionária e totalitária que serve
de suporte para a legitimação, justificação e valoração de uma política de
superioridade dos predestinados que expressa, intencionalmente ou não, os
interesses da classe dominante.
O nazismo,
como ideologia, é permeado por contradições e ambiguidades. É uma tentativa de
sistematização que se sustenta em meio a diversas contradições que são apagadas
pelo seu elemento mítico – o maniqueísmo. O maniqueísmo, caracterizado pela
oposição entre o bem e o mal, possibilita a formação de um inimigo imaginário.
No caso do nazismo, as vítimas foram especialmente os judeus e secundariamente
outros grupos. Esse maniqueísmo é “reacionário”, ou seja, é uma forma assumida
pelo conservadorismo, por buscar, simultaneamente, impedir mudanças (reação) e
voltar ao passado. Por isso o nazismo combate não apenas os revolucionários e
contestadores, mas também aqueles que permitem sua existência e luta
(democratas, por exemplo). Trata-se de um passado mítico apontando como o
objetivo, voltando a um tempo em que o mal ou a impureza não vagavam pela
terra. Assim, o antissemitismo é a forma pela qual esse maniqueísmo se manifestou
no caso do nazismo alemão. O seu caráter totalitário se revela no fato de que,
fundado em seu maniqueísmo, ele não aceita divisão/oposição e por isso, uma vez
no poder, exerce um poder ditatorial.
O nazismo
precisa criar um inimigo imaginário e reduzir todos os adversários a tal
inimigo (VIANA, 2007). O inimigo imaginário é o que popularmente se chama “bode
expiatório”, aquele que será culpabilizado por todos os males. Assim, a
invenção de tal inimigo, que é imaginário (ilusório), tem a função de
responsabilizar determinado grupo social pelos problemas identificados na
sociedade. O inimigo imaginário principal criado pelos nazistas é o judeu. Mas,
com sua ambiguidade estrutural, há o judeu comunista e o judeu capitalista e
ambos são combatidos, bem como os comunistas (geralmente interpretados como
sendo judeus) e homossexuais (apesar de sua ligação com a homossexualidade,
mostrando outra ambiguidade). Esse inimigo imaginário, no discurso nazista,
pode ser interpretado de várias formas e ser completado por outros inimigos
imaginários, seja por possuírem uma função semelhante, apoiá-lo ou ser parte
dele, mesmo negando-o (e assim de nada adianta o discurso e a prática concreta desse
grupo, pois ele negaria o que realmente é).
Se o nazismo
é maniqueísta e cria o inimigo imaginário, os judeus, então quem seriam os
predestinados, responsáveis pela recuperação do mundo puro e verdadeiro? Esses
seriam os arianos. Aqui se coloca a questão do racismo no interior do nazismo.
Contudo, não se trata de “raça”, propriamente dita. Os “arianos” podem ser
considerados partes de uma raça humana, que seria a raça branca, mas não sua
totalidade. Os judeus, por sua vez, mesmo se originalmente tiveram uma unidade
étnica que seria simultaneamente uma unidade racial, ainda seriam uma parte e
não a totalidade. O desenvolvimento histórico dos judeus suprimiu os laços
originais e o judaísmo se constituiu como uma religião, a qual qualquer
indivíduo pode aderir independente de sua raça. A ideologia nazista, contudo,
se move não através de análises históricas ou científicas e sim mitológicas,
apesar de seu discurso pseudocientífico. E para se legitimar, pode lançar mão
do darwinismo, da eugenia, da filosofia de Nietzsche, etc. Os predestinados são
a raça pura, forte, a mais apta. Nesse sentido, o racismo é, aparentemente, um
elemento definidor do nazismo, mas trata-se de um falso racismo. O maniqueísmo
reacionário define melhor a concepção nazista. A ambiguidade é uma de suas
marcas e que permite encontrar adesão até em indivíduos pertencentes a grupos
considerados “inferiores” e vítimas da perseguição nazista.
No fundo, a
origem da ideologia nazista remete à figura de Hitler. Ele foi o principal
idealizador do nazismo e contou com a ajuda de inúmeros outros para uma maior sistematização
de sua ideologia. É necessário entender as raízes psíquicas do nazismo. A
concepção e recepção do nazismo pressupõem determinadas relações sociais. Ele
emerge em momentos de crise geral da sociedade capitalista ou então quando
alguns grupos, classes ou frações de classes sociais são atingidos
negativamente pelas mudanças sociais. Ou seja, o terreno em que brota o nazismo
é o da crise, seja da sociedade em geral ou de setores da sociedade.
Esse momento
de crise gera inquietação, angústia, etc. (GIRARDET, 1977). É nesse contexto que
a invenção, reprodução, aceitação, de um inimigo imaginário se torna mais comum
e generalizada (no conjunto da sociedade ou em setores específicos da mesma).
Esse inimigo imaginário é uma resposta simples, repetitiva e geral, que fornece
uma explicação da crise e dos problemas e, ao mesmo tempo, encontra seus
responsáveis e a solução. A solução pode ser o extermínio ou a subjugação,
entre outras possibilidades, do inimigo imaginário (VIANA, 2007). Assim, o
sentimento de insegurança, medo, ansiedade, etc. provocados por uma situação de
crise, cria uma predisposição em muitos indivíduos, grupos, frações de classes,
etc., a aderirem à explicação e solução fácil expressa no maniqueísmo
reacionário. O nazismo usa como uma de suas estratégias a manipulação dos sentimentos
da população ou setores dela, fortalecendo o ódio e o medo, e canalizando-os
para determinado inimigo imaginário. Na Alemanha, essa manipulação de
sentimentos ocorreu em relação aos atingidos pela crise, setores atingidos pelo
desemprego, por exemplo. Os recém desempregados tinham uma explicação simples e
solução fácil para os seus problemas: os judeus eram os responsáveis pelo
desemprego e, portanto, tinham que ser excluídos, o que permitiria a retomada
do emprego.
O nazismo
surge a partir de pequenos grupos atingidos por essa desestabilização social,
por problemas sociais específicos, aglutinando também indivíduos com
desequilíbrios psíquicos. Esse pequeno grupo, no entanto, com o passar do
tempo, cresce e com a continuidade da crise e com a insegurança crescente da
burguesia, esta acaba apoiando os nazistas, o que os leva ao poder. O nazismo
aparece, portanto, como a ideologia adequada e o partido nazista como a
organização necessária para superar a crise capitalista e manter a dominação
burguesa.
Uma vez que o
nazismo se estabelece no poder, a ditadura fundamentada em sua ideologia
maniqueísta reacionária acaba se generalizando e trazendo a necessidade de
manter seu discurso, e a guerra aparece como a expansão da solução para outros
lugares e todos os países inimigos podem se considerados “nações judaicas”. A
unidade nacional é garantida agora via a unidade dos predestinados, a “raça
ariana”.
Essa breve
análise do nazismo é fundamental para entender o neonazismo. O sufixo “neo”
aponta para a emergência de um “novo nazismo”. Desta forma, há permanência e
mudança. O neonazismo é uma forma nova de nazismo. Por isso é, tal como o
nazismo, uma ideologia maniqueísta reacionária e totalitária que legitima,
justifica e valora uma política de superioridade dos predestinados e que
expressa, intencionalmente ou não, os interesses da classe capitalista.
A questão,
então, é o que há de novo no neonazismo? A novidade representada pelo
neonazismo é que ele reaparece em novos contextos sociais e históricos. O
maniqueísmo reacionário continua, mas os predestinados e o inimigo imaginário
devem ser outros, de acordo com os adeptos do neonazismo, com qual é o país e
suas divisões sociais, com a dinâmica das classes sociais e da evolução das
crises (setoriais ou geral), com as tradições culturais, etc. Os judeus eram os
inimigos imaginários adequados para o caso alemão dos anos 1920-1930, devido sua
existência, condições sociais e antissemitismo existente, pois podiam ser
responsabilizados pelos problemas sociais. A situação dos neonazistas na
Inglaterra é bem distinta. Os skinheads surgiram após a copa do mundo de 1966,
num contexto de relação com torcidas organizadas e violência, gerando uma
gangue de origem jovem e operária, que depois, com a crise do final dos anos
1960 (incluindo aumento do desemprego), ao lado da imigração de força de
trabalho da África e Ásia, lhe proporciona a aproximação com a ideologia
nazista. Assim surgem as gangues neonazistas.
Contudo, as
gangues neonazistas são apenas a ponta do iceberg. Ao contrário do nazismo, que
surge como pequeno grupo e vai buscando financiamento, adeptos, etc. o neonazismo
emerge a partir de duas fontes. Uma fonte são as gangues neonazistas. Outra
fonte são partidos e instituições com recursos financeiros e lugares
estratégicos no mundo político-institucional. Esse é o caso de National Allience, American Nazi Party,
nos Estados Unidos; ou National Front,
na Inglaterra, ou, ainda, determinados partidos e organizações na França,
Alemanha, Holanda, Áustria e Itália, embora nem todos se declarem nazistas, por
razões óbvias. Há também relatos sobre algumas instituições que se autodeclaram
como “associação cultural” ou “filosófica”, e que seriam, na verdade, apenas
fachada de organizações neonazistas. Da mesma forma, existem indivíduos nazistas
inseridos em outras agremiações partidárias e com espaços
político-institucionais, como se pode ver no filme Infiltrator (dirigido por John Mackenzie, de 1995), baseado em
fatos reais, no qual se mostra as diversas faces do neonazismo, desde as gangues
até os altos burocratas e senadores.
No Brasil,
existem várias gangues neonazistas, sendo os Carecas do Subúrbio, que surgiu
nos anos 1980, a mais famosa. Em São Paulo, haveria também o Kombat Rac, Front
88 e Impacto Hooligan e há notícias sobre existência de gangues neonazistas em
todos os estados da região sul do país (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e
Paraná), Minas Gerais, Distrito Federal[2]. Em
cada contexto, o neonazismo muda o inimigo imaginário. Em São Paulo, os
nordestinos já foram alvos dos neonazistas, bem como negros, homossexuais, etc.
Os judeus ainda podem ser alvos em determinadas cidades e contextos. A
ideologia neonazista realiza poucas alterações na versão original produzida por
Hitler e outros. Isso pode ser visto no caso do grupo Valhalla 88:
As novas
teorias raciais utilizadas pelo grupo Valhalla 88 são construídas a partir da
década de 1980, principalmente nos Estados Unidos e na Europa. Um dos destaques
mencionados pelo grupo no site é o supremacista racial David Lane. Durante sua
vida, ele defendeu que a raça branca estaria em extinção, então propunha que a
raça branca se isolasse do mundo, se organizando em fazendas ou sociedades
segregadas. Frases que ficaram conhecidas e foram utilizadas como slogans pelos
grupos neonazistas, hoje é referência na forma de identificação dos grupos
racistas e neonazistas. Eles, após suas manifestações ou produção de artigo no
final, utilizam os números 14/88. O número 14 é referência as quatorze palavras
de David Lane “Devemos assegurar a existência de nosso povo e um futuro para as
Crianças Brancas" e o número 88 se refere às letras do alfabeto: 8 seria a
letra H, os dois números 88 fazem referência a saudação nazista Heil Hitler
(ANDRADE, 2014, p. 172).
Esse grupo,
pouco conhecido, ajuda a explicar a pouca inovação ideológica do neonazismo. Um
dos motivos dessa pouca inovação reside no fato de as gangues neonazistas,
pequenos grupos, entre outros, não possuem, em seus quadros, intelectuais ou
ideólogos que pudessem efetivar acréscimos ou alteração na ideologia nazista. A
composição social desses grupos é geralmente de jovens, a maioria das classes
sociais desprivilegiadas, e sem grande bagagem cultural. Além disso, a
repressão e censura (sendo que em alguns países, como no Brasil, existe lei
contra propaganda nazista, o que impede a existência de sites neonazistas, que
são fechados tão logo sejam identificados) dificultam não só a proliferação,
mas a colaboração dos diferentes grupos e desenvolvimento da ideologia. No que
se refere aos partidos, instituições e outras formas mais desenvolvidas de
neonazismo, há também dificuldades com a repressão e censura, mas o fenômeno
nazista e sua imagem é suficiente para que eles mesmos queiram adotar a
discrição e não se assumam publicamente como tal e assim, não podem apresentar,
pelo menos para o público externo, suas teses, o que é outro obstáculo para o
desenvolvimento e divulgação de inovações ideológicas.
A força do
neonazismo é diminuta. O aparecimento do neonazismo de forma mais popular, ou
seja, através das gangues neonazistas, surge com a desestabilização social da
segunda metade dos anos 1960 e da crise posterior, que dura até os anos 1970,
sendo que a emergência de um novo regime de acumulação, caracterizado por uma
nova formação estatal (neoliberalismo), nova forma de organização do trabalho
(toyotismo), novas relações internacionais (hiperimperialismo, mais conhecido
como “globalização”), trouxe um aumento do empobrecimento da população
(inclusive nos países de capitalismo superdesenvolvido, como Estados Unidos e
França, sendo que neste país se cunhou a expressão “exclusão social” para
expressar a nova situação), reforça suas bases de existência. A situação
difícil, a desilusão, a ansiedade, a insegurança, a insatisfação de diversos
setores acabam proporcionando adeptos ao neonazismo. O seu crescimento
acompanha o desenvolvimento da sociedade moderna e as novas mudanças que
ocorrem com a nova desestabilização reforçam os extremismos e entre eles o
neonazismo[3].
Em síntese, o
neonazismo é um desdobramento contemporâneo do nazismo, cuja inovação é
pequena, sendo mais no que se refere ao inimigo imaginário e para adaptação às
mudanças sociais e diferenças nacionais, regionais, etc. A essência do nazismo
continua a mesma, mudança apenas alguns aspectos do maniqueísmo reacionário que
o caracteriza. Nesse sentido, o neonazismo possui o mesmo significado que o
nazismo quando este surgiu: grupos sem força e sem popularidade, que, com o
desenvolvimento de uma crise, pode ganhar espaço e receber apoio de setores do
grande capital, ganhando a possibilidade real de tomar o poder estatal.
Referências
ANDRADE, Guilherme. A ideologia
racial do grupo neonazista Valhalla 88 e a influência da teoria racial de Adolf
Hitler. Revista Hominum. Num. 15,
julho de 2014.
ARENDT, Hannah. Anti-Semitismo,
Instrumento do Poder. Rio de Janeiro, Documentário, 1975.
FROMM, Erich. O Medo à Liberdade.
13ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
GIRARDET, Raul. Mitos e Mitologias
Políticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1977.
JESUS, Carlos G. N. Neonazismo:
Nova Roupagem para um Velho Problema. Akrópolis,
V. 11, n.2, abr./jun., 2003. Disponível em: http://revistas.unipar.br/index.php/akropolis/article/view/333/300 Acessado em: 05/03/2017
LENHARO, Alcir. Nazismo. O Triunfo da Vontade. São
Paulo, Ática, 1986.
SARTRE, Jean-Paul. Reflexões sobre o
Racismo. São Paulo, Difel, 1960.
VIANA, Nildo. A
Invenção do Inimigo Imaginário. Antítese.
Ano 02, num. 04, Outubro de 2007.
VIANA, Nildo. Capitalismo e Racismo. In: VIANA, Nildo e SANTOS, Cleito P.
(orgs.). Capitalismo e Questão Racial.
Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.
Nildo Viana é Professor da
Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB, pós-doutor pela
Universidade de São Paulo e autor de diversos livros.
Artigo publicado em “Mistérios da
Psique”.
[1]
Existe uma extensa bibliografia sobre o nazismo, desde livros introdutórios, passando
por livros históricos, análises sociológicas e psicológicas, etc. A nossa
análise se baseia em diversas obras, com destaque para: ARENDT (1975),
FROMM (1981), GIRARDET (1977), LENHARO (1986), SARTRE (1960), VIANA (2009), VIANA, (2007).
[2]
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38603560
[3]
A força do moralismo progressista e a competição social por espaços na
sociedade capitalista por parte daquilo que foi chamado “minorias” (uma crítica
a tal expressão pode ser vista em: http://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/6viana09pos/378),
é outro elemento contemporâneo propulsor de intolerância e de adesão ao
reacionarismo, incluindo sua forma neonazista.
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