Comuna de Paris, Interpretações e Perspectiva de Classe
Nildo Viana*
Resumo: O presente artigo
analisa algumas das interpretações da Comuna de Paris, que expressam diferentes
perspectivas de classe, focalizando a perspectiva burocrática. Após uma
discussão teórica introdutória sobre perspectiva de classe na abordagem
materialista histórica, apresenta, brevemente a perspectiva burguesa e a
proletária da Comuna de Paris e, posteriormente, a perspectiva burocrática,
extraída da obra de Lênin. A conclusão geral é que as interpretações são
perpassadas por perspectivas de classe e por isso não são neutras e o caso de
Lênin é exemplar, pois tanto sua interpretação da Comuna quanto do texto de
Marx é burocrática e por isso deforma a ambos.
Palavras-chave: Comuna de
Paris, Interpretações, Perspectiva de Classe, Perspectiva Burocrática,
Interesses de Classe.
O objetivo do presente artigo não é
analisar a Comuna de Paris e sim as interpretações que existiram sobre ela.
Para tanto, lançamos mão do materialismo histórico e do método dialético para
reconstituir algumas interpretações e mostrar seu vínculo de classe, ou seja,
seu caráter de classe, apresentando uma percepção do fenômeno ligada a
perspectiva da classe de pertencimento ou adesão do intérprete.
Os acontecimentos históricos são
abordados sob inúmeras formas e possuem as mais variadas interpretações. O caso
não é diferente com a Comuna de Paris de 1871. Esse acontecimento histórico
recebeu inúmeras interpretações desde seu desencadeamento até os dias de hoje.
O presente artigo visa, justamente, analisar algumas das interpretações da
Comuna de Paris a partir da análise do materialismo histórico e, portanto,
remete ao problema das classes sociais e de que como, a partir delas, emergem
determinadas interpretações correspondentes aos seus interesses. Isso significa
que não realizaremos nenhuma discussão sobre as variadas concepções e teorias
acerca da interpretação e sim utilizaremos uma abordagem específica para
trabalhar as interpretações da Comuna.
Materialismo Histórico,
Interpretação e Perspectiva de Classe
A interpretação de um livro, de um fenômeno
social, um acontecimento histórico, um filme, entre diversos outros elementos,
revelam uma determinada perspectiva de classe. O que é uma perspectiva de
classe? Como um indivíduo pode expressar uma perspectiva de classe sem saber ou
ter essa intencionalidade? Como identificar a perspectiva de classe de um
escrito? Vamos fornecer uma breve resposta a estas questões ao expor a base de
nosso processo analítico de algumas das interpretações da Comuna de Paris.
A ideia básica se encontra exposta por
Marx. Para ele, as ideias, representações, formas de consciência, não podem ser
separadas dos indivíduos reais, concretos. A consciência é o ser consciente, ou
seja, não existe “a consciência” fora dos indivíduos e, portanto, fora de sua
corporeidade, sua história, suas relações sociais. As representações ilusórias
que os indivíduos criam tem sua fonte nas relações sociais limitadas que
possuem com os outros seres humanos ou com a natureza. Assim, a base das
representações ilusórias e da ideologia é social (Marx e Engels, 2002). Com a
emergência das sociedades de classes, a divisão social do trabalho produz
relações sociais limitadas e derivadas da posição de cada individuo nessa
divisão, ele irá ter um modo de vida específico, atividades fixas e
específicas, costumes, representações determinadas, o que gera determinados
interesses. E isto é compartilhado por todos os indivíduos de uma determinada
classe social que promove oposição e luta contra as demais classes sociais (Marx
e Engels, 2002; Marx, 1989; Marx, 1986). Segundo Korsch:
“A classe no seu conjunto – diz Marx no 18 do Brumário, onde se debruçou um
pouco mais profundamente sobre esta relação – cria e forma, a partir das suas
‘bases materiais’ toda uma ‘superestrutura’ e diversas sensações, ilusões,
modos de pensar e concepção da vida ‘particularmente configurados ‘e a
filosofia da classe em questão pertence, primeiro, pelo seu conteúdo e, no fim
de contas, também pela sua forma, à superestrutura assim ‘condicionada pela
classe’, como parte particularmente afastada da ‘base material, econômica’”
(Korsch, 1977, p. 70).
Derivado do
pertencimento de classe (o que determina seu processo histórico de vida, o
conjunto de relações sociais em que vive e se desenvolve), o indivíduo possui a
tendência de desenvolver valores, concepções, sentimentos, e, por conseguinte,
interesses, que são os de sua classe (Viana, 2007a), mesmo que seja de forma
contraditória em alguns casos, devido influências culturais e outras oriundas
de outras classes (Viana, 2008).
Porém, cada classe social gera os seus
próprios representantes políticos, literários e intelectuais (Marx, 1986).
Estes expressam os interesses de uma classe social sob forma literária,
política ou ideológica/teórica. Segundo Marx, ao abordar a questão dos
representantes intelectuais da pequena burguesia, coloca os elementos que
vinculam classe e representantes intelectuais:
“O que os torna representantes da pequena burguesia é
o fato de que sua mentalidade não ultrapassa os limites que esta não ultrapassa
na vida, de que são consequentemente impelidos, teoricamente, para os mesmos
problemas e soluções para os quais o interesse material e a posição social
impelem, na prática, a pequena burguesia. Está é, em geral, a relação que
existe entre os representantes políticos e literários de uma classe e a classe
que representam” (Marx, 1986, p. 48).
Assim, cada classe possui uma perspectiva,
ligada aos seus interesses materiais, posição social, problemas e soluções para
os quais são impelidos. É nesse sentido que Marx percebe e realiza a crítica
aos economistas burgueses (vulgares, ecléticos e clássicos) por não
ultrapassarem a perspectiva burguesa. Porém, é preciso acrescentar que, de
acordo com Marx e os principais representantes do materialismo histórico
(Labriola, 1979; Korsch, 1977; Lukács, 1989), as diversas perspectivas de
classes não são equivalentes, pois as classes sociais envolvidas com a
sociedade existente, a classe dominante e suas classes auxiliares[1],
possuem limites na percepção da realidade tal como ela é devido seus
interesses, voltados para a reprodução da dominação e da exploração. Porém,
existe uma classe social que, devido sua posição nas relações de produção e
interesses de classe, realiza a crítica da sociedade burguesa e pode expressar
uma consciência correta da realidade. Trata-se do proletariado, “cuja missão
histórica é a derrubada do modo de produção capitalista e a abolição final das
classes”, que é uma classe cujos interesses particulares, já que não visa
implantar uma nova forma de dominação, é, simultaneamente, os interesses
universais da humanidade (Marx, 1968; Marx e Engels, 2002). O proletariado é a
classe social que ao realizar a revolução social, emancipa a humanidade como um
todo abolindo a sociedade de classes e as classes em geral (Marx, 1983; Marx,
1979; Marx e Engels, 2002; Marx, 1989).
Nesse sentido, as interpretações dos
processos históricos (e obras, etc.) são perpassadas por uma perspectiva de
classe que bloqueia ou incentiva uma interpretação correta. A perspectiva de
classe que está na base das interpretações dos acontecimentos históricos – e
não só destes – é um elemento fundamental para sua compreensão. A perspectiva
de classe é o conjunto de valores, sentimentos, concepções, interesses de uma
classe social expressa por um indivíduo.
A Comuna de Paris e
suas interpretações, uma interpretação das interpretações
A
Comuna de Paris foi um acontecimento histórico, tal como tantos outros, interpretado
sob diversas formas. As diversas interpretações da Comuna de Paris surgem com o
próprio desencadeamento da luta operária na França em 1871. Karl Marx (2011) e
Mikhail Bakunin (2011) foram dois dos primeiros intérpretes dessa primeira
experiência revolucionária do proletariado. E quando eles escrevem fazem
referências às demais interpretações. Claro que a interpretação de ambos é mais
desenvolvida do que a da maioria da época. No entanto, Marx apresenta um
elemento importante que explica a diversidade de interpretações desse fenômeno
histórico:
“A variedade de interpretações a que foi submetida
a Comuna e a variedade de interesses que a interpretaram a seu favor,
demonstram que era uma forma política perfeitamente flexível, diferentemente
das formas anteriores de governo que foram todas fundamentalmente repressivas.
Reside aqui o seu verdadeiro segredo: a Comuna era, essencialmente, um governo
da classe operária, fruto da luta da classe produtora contra a classe
apropriadora, a forma política finalmente descoberta que permitia realizar a
emancipação econômica do trabalho” (Marx, 2011, p. 21).
Assim, a
flexibilidade da Comuna de Paris permite uma variedade de interpretações que “a
interpretam a seu favor” a partir de uma “variedade de interesses”. Nesse
sentido, é interessante perceber a história das interpretações da Comuna de
Paris e que estas interpretações são produtos de determinadas perspectivas de
classe. Porém, não será possível aqui apresentar esse conjunto de
interpretações e nem mesmo analisar profundamente as principais. O que podemos
fazer, no espaço que temos, é apenas destacar que existem, fundamentalmente,
três tendências interpretativas da Comuna de Paris, expressando três perspectivas
de classes diferentes. Assim, as interpretações burguesas, burocráticas e
proletárias são as principais e mais comuns e escolher uma no interior delas
para objeto de análise, mas enfatizando uma delas em especial.
Assim, discutiremos
resumidamente as duas perspectivas explicitamente antagônicas, a das duas
classes fundamentais, a da burguesia e do proletariado, e encerramos com a
análise de uma perspectiva que se aproxima de uma delas e diz manifestá-la,
mas, no fundo, expressa outra classe social, que é a perspectiva da burocracia.
O foco na perspectiva da burocracia tem o objetivo de não só apresentar uma
outra perspectiva além da burguesa e proletária como demonstrar que, grande
parte do que se coloca como sendo proletário, no fundo é burocrático.
A Comuna de Paris segundo a
Perspectiva Burguesa e a Perspectiva Proletária
As
interpretações burguesas da Comuna de Paris iniciaram desde que eclodiu este
acontecimento histórico. Não poderemos analisar mais profundamente as diversas
interpretações burguesas da Comuna de Paris e por isso apresentaremos a forma
como este acontecimento foi recebido pelos literatos que expressavam a
perspectiva burguesa no momento da existência da Comuna e depois um autor
específico que reproduz tais concepções. O trabalho de Paul Lidsky revela bem
isso. Ele faz um apanhado dos principais temas que a literatura anticomunarda
e, portanto, que parte da perspectiva burguesa, usou par abordar a Comuna. O
primeiro tema é a orgia. Ele cita Montégut e diversos outros que descreveram a
Comuna como o “desencadeamento dos instintos mais baixos”, uma “irrupção das
bestas imundas do subterrâneo”. Enfim, a orgia, tema repetido ao infinito,
através das descrições literárias, seria, nessa perspectiva, “o verdadeiro
sentido da Comuna” (Lidsky, 1971, p. 131).
Emile Zola,
por sua vez, considera a Comuna como uma “enfermidade coletiva” e para outros é
manifestação de uma “cultura pervertida”. A família é outro tema recorrente,
onde os comunardos, em novelas fictícias, buscam abolir a família. Os
personagens criados são comunardos, muitos arrependidos do envolvimento com a
política, pois “a verdadeira família”, diz um personagem comunardo, “é uma
mulher que se ama, são algumas crianças em casa” (Lidsky, 1971, p. 141). A
descrição do autor de Germinal, Emile Zola, mostra claramente a perspectiva
burguesa: “O terror reina, a liberdade individual e o respeito às propriedades
são violados, o clero é odiosamente perseguido, as buscas e requisições são
utilizadas como meio de governar, em toda sua miséria e vergonha” (Zola, 1992,
p. 92)[2].
Porém, a
expressão da perspectiva burguesa sobre a Comuna de Paris mais sistematizada se
encontra na obra do português Manuel Pinheiro Chagas é aquele que expressa de
forma mais sistemática a posição anticomunarda. Pinheiro Chagas afirma que “o
princípio autoritário é a base de todas as doutrinas socialistas”. A burguesia
conquistou quais direitos que o operário não usufrui? Pergunta essa feita em
1972. Pinheiro Chagas também refuta que a burguesia tenha privilégio da riqueza,
pois ela conquistou seus bens “pelo trabalho, pela inteligência, pela economia”
(Pinheiro Chagas, 1872, p. 7).
Depois de
citar várias passagens de Marx, demonstrando não entender bem o que lia
(confundia autogoverno da classe por governos de indivíduos da classe, “direção
intelectual” com “direção prática”), Pinheiro Chagas chega à sua conclusão: “A
república ideal da Comuna era a oligarquia operária” (Pinheiro Chagas, 1872, p.
121). Uma oligarquia de uma classe inteira é uma contradição, porém, no
imaginário burguês isso é possível. Pinheiro Chagas apresenta a Comuna como se
fosse a materialização da AIT – Associação Internacional dos Trabalhadores. A
sua análise da Comuna, baseada em documentos, pode ser sintetizada da seguinte
forma:
“Assim, a Internacional está sendo atualmente, não
a associação universal dos operários para poderem discutir com mais eficácia as
questões do seu salário, mas uma associação que tem por fim a destruição da
sociedade atual, destruição completa e absoluta. Os internacionalistas não são
nem progressistas, nem liberais, nem sequer republicanos. Os seus fins são
diversíssimos dos dos partidos políticos mais avançados. [...]. Supõe alguém
que eles combatem contra a distinção de classes. Querem-na, pelo contrário, mas
a sua há de ter o predomínio. Os ouvriers,
dizia um declamador socialista, quand
serez-vous lês maîtres de vos maîtres? Note-se bem que não se diz: Les ègaux de vos maîtres, mas sim les maîtres de vos maîtres! Estas ideias
de ódio, de guerra sem tréguas, de tirania, são pregadas a cada instante pelo
jornalismo internacional” (Pinheiro Chagas, 1872, p. 18).
Assim, a
interpretação burguesa da Comuna de Paris a apresenta como o mal a ser
combatido, o lugar da destruição da liberdade (individual ou coletiva), da família,
da propriedade e, além disso, o lugar da orgia, da baixeza, dos instintos
baixos, da cultura pervertida.
A
perspectiva proletária foi manifesta sob formas diferentes por diversos indivíduos
que escreveram sobre a Comuna de Paris, tais como Marx, Bakunin, Korsch, Kropotkin,
Debord, entre outros[3]. Não
poderemos apresentar todas elas e por isso escolhemos apenas uma para
apresentar de forma sintética a perspectiva proletária. Optamos pela concepção
de Marx, por ser a mais conhecida e aquela que a perspectiva burocrática, tal
como mostraremos a seguir, busca se apropriar e deformar.
Marx buscou
explicitar o que foi a Comuna de Paris. Ele analisa a luta de classes e como
ela engendrou essa experiência histórica do proletariado, mostrando seu
caráter, seus limites e suas lições para o futuro. Marx afirmou que a Comuna de
Paris foi marcada pela recusa do poder estatal centralizado e seus “órgãos
onipotentes”, o exército permanente, a polícia, a burocracia, o clero e a
magistratura, oriundo da divisão social do trabalho da sociedade burguesa.
Dessa recusa
prática, Marx deriva o princípio de que uma revolução proletária o objetivo não
é a conquista do poder estatal e sim sua abolição. A Comuna realizou essa
tarefa e substituiu a máquina estatal burguesa por uma nova forma de
organização, o “autogoverno dos produtores” (Marx, 2011). Essa nova organização
tinha como base a decisão coletiva e a formação de delegados comunais
elegíveis, substituíveis, demissíveis e responsáveis. A elegibilidade garantia
que todo trabalhador poderia ser delegado; a substitubilidade permitia a
substituição sempre que necessário; o caráter demissível permitia que os
comunardos demitissem os que não executassem a decisão coletiva; a
responsabilidade, elemento fundamental, significa que o delegado não pode se
autonomizar, criar interesses próprios, devendo ser expressão da decisão
coletiva da Comuna.
Nesse
contexto, Marx cita o exemplo da milícia popular, composta por indivíduos
responsáveis e demissíveis a qualquer momento, como expressão da transformação,
parcial[4],
realizada pela Comuna. A Comuna não se constitui de forma parlamentar e sim
como organização coletiva do trabalho, simultaneamente “executiva” e
“legislativa”, ou seja, sem a divisão entre dirigidos e dirigentes. Marx coloca,
de forma relativamente detalhada, a destruição dos aparelhos da sociedade
burguesa (exército, polícia, igreja, etc.) e as mudanças ocorridas nas relações
sociais. O governo centralizado foi substituído pelo autogoverno dos produtores
e algumas poucas funções do governo central não seriam suprimidas e sim
realizadas por agentes comunais (responsáveis, demissíveis, substituíveis e
eleitos). Note-se aqui que Marx não fala de manutenção do governo central e sim
de funções dele – tal como, por exemplo, serviço de energia elétrica – que não
mais seriam executadas por ele e sim por agentes comunais submetidos à decisão
coletiva.
A autogestão
operária na Comuna de Paris, um autogoverno proletário, é condição fundamental,
segundo Marx, para abolir os fundamentos da sociedade classista e generalizar o
trabalho produtivo, abolindo as classes sociais. A Comuna anuncia o comunismo,
ou seja, a abolição da propriedade privada e a transformação dos meios de
produção em instrumentos dos trabalhadores livremente associados. Ela apontava
para a concretização da transformação total e iniciou esse processo, que foi
interrompido pela contrarrevolução burguesa e por isso não pode levar até o fim
o seu projeto iniciado. A Comuna significou que os “simples operários” ousaram
violar o “monopólio de governo” de seus superiores “naturais” (Marx, 2011),
apesar das condições mais desfavoráveis.
As medidas
práticas da Comuna também foram analisadas por Marx, colocando seus méritos no
contexto – uma cidade sitiada – em que ocorria a luta proletária. Os limites da
Comuna são apontados por Marx e são explicados por dois motivos essenciais: o
primeiro é seu caráter de revolução proletária inacabada, onde concretizou
partes do projeto revolucionário e esboçou outros, ficando aquém em alguns aspectos.
De qualquer forma, ao contrário da perspectiva burguesa, Marx ressalta a
emancipação humana esboçada num novo tipo de organização social,
autogestionária, na qual a exploração de classes começava a ser destruída e a
divisão da sociedade em dirigentes e dirigidos foi abolida em diversas
instâncias da sociedade e avançava para outra. Nesse sentido, Marx demonstrou a
essência autogestionária da Comuna de Paris (Viana, 2011d), o que foi possível
devido ao fato dele partir da perspectiva do proletariado[5].
A Comuna de Paris
Segundo a Perspectiva Burocrática
A
perspectiva burocrática da Comuna de Paris (expressa por Lênin e Trotsky, entre
outros que seguiram seus passos), se manifesta através de um conjunto de
interpretações problemáticas e que coloca ênfase nas falhas nas luta heroica do
proletariado francês. Porém, se a perspectiva burguesa se manifesta em pleno e
direto confronto com a perspectiva proletária, o mesmo não ocorre com a
perspectiva burocrática.
Tal
como Marx já colocava, toda classe que aspira se tornar nova classe dominante
deve apresentar seus interesses particulares como interesses universais (Marx,
1968). Porém, na sociedade atual, a transformação social radical só pode
ocorrer com a mudança nas relações de produção, mas, para mudanças
superficiais, tal como a troca da classe dominante no poder, e, portanto, a substituição
de uma sociedade de classes por outro, a radicalidade não é tão grande. Uma
classe que busca a dominação tem que conquistar apoio das demais classes e, no
capitalismo, precisa do apoio fundamental do proletariado. É por isso que a
burocracia diz representar ou ser a vanguarda do proletariado, pois não poderia
transformar as relações de produção por não ser a classe produtora e por sua
esfera de ação ser o Estado, as organizações burocráticas, etc.
É
por isso que tomaremos como exemplo da interpretação da Comuna de Paris de
inspiração burocrática a obra de Lênin. E este, por conseguinte, remete a Marx,
que, como já vimos, expressa a perspectiva do proletariado. Marx e Lênin
são pensadores antagônicos. Afirmação que muitos considerarão curiosa ou mesmo
extravagante. Porém, não é uma leitura totalmente original, pois outros já
perceberam isso (Berger; etc.). A estranheza desta afirmação é derivada da
não-leitura, ou da pouca ou má leitura destes dois pensadores e,
principalmente, a partir do processo de bolchevização dos partidos comunistas,
da interpretação do primeiro mediada pelo segundo. Esse é o caso da
interpretação da Comuna de Paris realizada por Marx e deformada por Lênin, que
se tornou a interpretação canonizada da abordagem marxista da Comuna. Devido a
isto, vamos, sinteticamente, discutir as teses de Marx sobre a Comuna em
contraposição à interpretação de Lênin.
Não iremos aqui
reconstituir a interpretação geral que Marx realizou da Comuna de Paris, o que
realizamos em outro lugar (Viana, 2011d). O nosso objetivo aqui é destacar os
pontos dissonantes das afirmações de Lênin sobre tal interpretação e mostrar o
que Marx realmente disse, para recordar título do livro de Ernst Fischer (1970).
Lênin afirma
que a “única correção” que Marx julgou necessária realizar a partir das lições
da experiência revolucionária dos comunardos de Paris reside na ideia de que
não basta à classe operária se apoderar da máquina estatal existente e usá-la
para seus fins. “Assim, Marx e Engels atribuíam uma importância tão gigantesca
a essa lição fundamental da Comuna de Paris, que a introduziram como correção
essencial no Manifesto Comunista”
(Lênin, 1987, p. 82).
Lênin contesta
as interpretações daqueles que ele chama de “oportunistas”, que falsearam o
caráter da correção, cujo sentido seria desconhecido por 99% dos leitores do Manifesto. Lênin, afirma, parecendo se
aproximar do anarquismo, que “a ideia de Marx consiste em que a classe operária
deve destruir, romper, a ‘máquina estatal existente’ e não limitar-se
simplesmente a apoderar-se dela” (Lênin, 1987, p. 82). Lênin cita a carta de
Marx a Kugelmann na qual diz que já no seu livro O Dezoito Brumário (1986), já abordava a questão da destruição do
Estado. Esta concepção teria sido adulterada pelo kautskismo.
Esse início
aproxima Lênin do marxismo autêntico e do anarquismo e é um dos motivos de O Estado e a Revolução ser considerado
um livro anarquista, por alguns comentaristas e “libertário”, por
representantes ou autores próximos do marxismo autêntico. Porém, não é nada
disso. E basta observar as motivações e afirmações posteriores para desaparecer
o encantamento libertário envolto na obra de Lênin.
Quando
Lênin passa para a questão do que deve substituir a máquina
estatal após sua destruição é que começa a delinear sua verdadeira
concepção, que ele atribui a Marx. Ele inicia ainda dentro do espírito
libertário, colocando que, para Marx, houve a passagem da resposta abstrata
constante no Manifesto Comunista para
uma resposta concreta no texto sobre a Comuna e isso foi resultado do fato de
Marx não se perder em utopismo e, ao mesmo tempo, por se fundamentar na experiência
do movimento de massas. Até aqui Lênin não deformou nenhuma afirmação
de Marx. No Manifesto, Marx apontava
para substituir a máquina do Estado pela “organização do proletariado em classe
dominante” e pela “conquista da democracia”. Lênin inicia a deformação
do pensamento de Marx a partir de sua análise do que deve substituir a máquina
estatal. Após algumas citações de Marx, Lênin passa para sua interpretação:
“Assim,
ao destruir a máquina estatal, a Comuna aparentemente 'apenas' a substitui por
uma democracia mais completa: supressão do exército permanente e total elegibilidade e removibilidade de todos os funcionários. Mas, na realidade, esse 'apenas'
representa uma substituição gigantesca de umas instituições por outras, essencialmente
diferentes. Encontramo-nos exatamente diante de um caso de 'transformação da quantidade em
qualidade': a democracia, levada à
prática do modo mais completo e conseqüente que se
pode conhecer, transforma-se de democracia burguesa em democracia proletária,
de um Estado (força especial de repressão de uma determinada classe) em algo
que já não é um Estado propriamente dito” (Lênin, 1987, p. 87).
Aqui
parece, à primeira vista, que Lênin é um intérprete fiel de Marx, porém, já se
nota duas ausências importantes, que complementam a elegibilidade e
removibilidade, que é o caráter substituível e responsável dos agentes
comunais, o que é uma ausência significativa, tal como mostraremos adiante. Mas
Lênin avança com um “porém”: é preciso reprimir e vencer a resistência
da classe burguesa e a maioria do povo deve reprimir por si mesma seus
opressores, não sendo necessário uma “força especial” para tal. É, continua
Lênin, “nesse sentido o Estado começa a extinguir-se”. Essas considerações apontam
para a necessidade de uma força repressiva e nesse sentido o Estado começa a se
extinguir. Para Marx, na verdade, o Estado não começa a se extinguir, afirmação
que não se encontra em seus escritos e muito menos em seu texto sobre a Comuna,
o que ocorre é a abolição do Estado, como o próprio Lênin disse
anteriormente. Lênin vai destacar um ponto secundário da abordagem de Marx e
superada por ele: a questão de todos receberem salários de operários:
“A esse
respeito, é singularmente notável uma das medidas decretadas pela Comuna, que
Marx sublinha: a abolição de todas as verbas de representação, de todos os
privilégios pecuniários dos funcionários, a redução dos ordenados de todos os funcionários do Estado até o
nível do 'salário de um operário'. É aqui que se expressa da maneira mais
evidente a passagem da democracia burguesa para a democracia proletária, da
democracia dos opressores para a democracia das classes oprimidas, do Estado
como 'força especial' de repressão de uma classe determinada para a repressão dos
opressores pela força conjunta da maioria do povo, dos operários e camponeses!
E é precisamente nesse ponto tão evidente – talvez o mais importante, no que se refere à
questão do Estado – que as lições de Marx foram mais relegadas ao
esquecimento!” (Lênin, 1987, p. 88).
Nada
mais curioso do que essa superênfase na igualdade de salários, um
elemento ainda da sociedade capitalista que a Comuna não teve tempo de superar
e que Marx, em seu texto de Crítica ao Programa de Gota (Marx, 1974) já
havia superado pelo sistema de bônus, coerente com a sua tese da abolição
do salariato (Berger, 1977)[6].
Em Marx, é uma medida da Comuna que se dá num contexto preciso e que contribui
com o que é realmente importante (elegibilidade, removibilidade,
substitubilidade e responsabilidade) de forma temporária, pois logo se deveria
generalizar o trabalho produtivo e abolir as classes e o salariato. Outra
diferença é que no texto sobre a Comuna Marx não afirma em nenhum lugar que tal
igualdade de salários, nem as demais medidas, se aplicam aos “funcionários do
Estado” e sim agentes comunais, etc., ou seja, a ideia de Estado está ausente em
Marx. Obviamente que a superênfase de Lênin reside, em parte, em sua
polêmica contra Bernstein e Kautsky, bem como a toda a social-democracia
reformista, o que se observa nos seus parágrafos seguintes. Porém, nada mais cômico
do que combater o reformismo com teses reformistas, afinal, a igualdade de
salários, agora transformado em “talvez o mais importante” das lições extraídas
da Comuna por Marx, significa a manutenção do trabalho assalariado, do
dinheiro, etc., em síntese, do capitalismo.
Esse é o elemento eleito por Lênin como sendo da passagem
da “democracia burguesa” para a “democracia proletária”, sendo que joga para a
questão da democracia algo que se refere ao processo de remuneração pelo
trabalho. Lênin não se esquece, expressando a ideologia da burocracia
partidária da qual era representante, de ver a necessidade de chamar para seu
lado o campesinato.
“A
total elegibilidade e a removibilidade a qualquer “momento de todos os funcionários, a redução de
seu ordenado até os limites do 'salário corrente de um operário', estas medidas
democráticas, simples, e 'compreensível por si mesmas', ao mesmo tempo que unificam totalmente os
interesses dos operários e da maioria dos camponeses, servem como ponte que
leva do capitalismo ao socialismo” (Lênin, 1987, p. 89).
Aqui
temos novamente a forma vanguardista de ver o processo social. Trata-se,
segundo Lênin, de “reorganização estatal” e de fornecer um
“governo barato” aos camponeses, o desejo desta classe (Lênin, 1987). Isso
significaria um passo “em direção da transformação socialista do
Estado”, ou seja, Lênin não abandona a ideia de Estado e isto
terá implicações, como veremos adiante.
Lênin
passa a trabalhar a questão do parlamentarismo. Marx, ao colocar que a Comuna
não é uma corporação parlamentar e sim de trabalho, e
criticar as eleições a cada quatro ou seis anos, e defender o sufrágio
universal, critica o parlamentarismo que Lênin reconhece corretamente. Porém,
Lênin não poderia ir até o fundo e expressar a perspectiva do
proletariado. Vejamos como ele vai da crítica do parlamentarismo à defesa da
participação nele: “Essa notável crítica do parlamentarismo, feita em 1871,
hoje também figura, graças ao predomínio do social-chauvinismo e do
oportunismo, entre as 'palavras esquecidas' do marxismo” (Lênin,
1987, p. 90). Assim, os oportunistas deixaram campo aberto para os anarquistas.
“Mas,
para Marx, a dialética revolucionária nunca foi essa vaga frase de moda, essa
ninharia em
que foi
convertida por Plekhânov, Kautsky e outros. Marx soube romper implacavelmente
com o anarquismo, pela incapacidade deste em aproveitar até o 'estábulo' do
parlamentarismo burguês – sobretudo quando se sabe que não se está perante situações revolucionárias
– porém, ao mesmo tempo, também sabia fazer uma crítica autenticamente
revolucionária, proletária, do parlamentarismo” (Lênin, 1987, p. 90).
Lênin não
mostra, em nenhum momento, onde estaria essa concepção de Marx sobre o
parlamentarismo. No fundo, esta é uma atribuição de Lênin
a Marx e por isso não cita fonte e o texto citado, sobre a Comuna, mostra
justamente não só os limites do parlamentarismo, mas seu caráter burguês,
tal como toda a organização do Estado moderno. Lênin se pergunta sobre qual é a
opção ao parlamentarismo e responde: a alternativa
não é abolir as instituições representativas e sim transformá-las
em corporações de trabalho. Após criticar alguns social-democratas e
semelhantes, afirma que a Comuna substitui o parlamentarismo por instituições
marcadas pela liberdade de opinião e discussão[7].
Porém,
com o desenvolvimento do texto, Lênin se afasta cada vez mais de Marx falando
em nome deste: “é extremamente instrutivo que Marx, ao falar das funções
daquela burocracia de que a comuna e a democracia proletária necessitam,
tome
como termo de comparação os empregados de 'qualquer outro patrão',
ou seja, uma empresa capitalista comum, com 'operários, inspetores e
contadores'”. Curiosamente Lênin inventa que Marx
fala das funções de uma suposta burocracia que a Comuna e a “democracia
proletária” necessitariam. Obviamente, que qualquer um que leia o texto de Marx
sobre a Comuna não verá nenhuma referência a qualquer necessidade de
burocracia. E para convencer os leitores incautos, os não-leitores
e mau-leitores de Marx, ele diz que em Marx não há utopismo e
complementa:
“Não se pode falar da abolição da
burocracia de repente, em toda parte e totalmente. Isso é uma utopia. Porém
destruir de imediato a velha máquina burocrática e começar no mesmo instante a
construir outra nova, que permita ir reduzindo gradualmente toda burocracia,
não é uma utopia; é a experiência da
Comuna, é a tarefa essencial e imediata do
proletariado revolucionário” (Lênin, 1987, p. 93).
Eis
o que diz Lênin, em um texto que para muitos é “libertário”: não se pode abolir
a burocracia imediatamente e sim substituir a velha máquina burocrática por uma
nova, que, magicamente, não defenderia seus próprios
interesses e se reduziria por conta própria gradualmente. Lênin reforça
dizendo que não é utópico, e que é “sonho anarquista” prescindir de vez de todo
governo e subordinação:
“Não somos utópicos. Não 'sonhamos'
em como se poderá prescindir de uma vez de todo governo, de qualquer subordinação; esses
sonhos anarquistas, baseados na incompreensão das tarefas da ditadura do proletariado, são fundamentalmente
estranhos ao marxismo e, de fato, só servem para adiar a revolução
socialista até que os homens sejam diferentes. Não, nós queremos a revolução
socialista com homens como os de hoje, com homens que não podem passar sem subordinação, sem
controle, sem “inspetores e contadores” (Lênin, 1987, p. 93).
Nessa
passagem Lênin esclarece que defende um novo governo e existência
da subordinação, totalmente ao contrário de Marx e, obviamente, sem fazer
referência direta a ele, apesar de ficar subentendido de que essa seria sua posição.
Curiosamente diz que quer fazer a revolução socialista com
os homens de hoje, domesticados que precisam de subordinação,
ao contrário ao que diz Marx, que afirma no seu texto sobre a Comuna (que serve
de base para toda a argumentação leninista):
“[Os
proletários – NV] Sabem que para conseguir sua própria emancipação, e com ela
essa forma superior de vida para a qual tende irresistivelmente a sociedade
atual, por seu próprio desenvolvimento econômico, terão de enfrentar longas
lutas, toda uma série de processos históricos que transformarão as circunstâncias
e os homens. Eles não têm que realizar nenhum ideal, mas simplesmente libertar
os elementos da nova sociedade, que a velha sociedade burguesa agonizante traz
em seu seio. Plenamente consciente de sua missão histórica e heroicamente
decidida a atuar de acordo com ela, a classe operária pode sorrir diante das
grosseiras invectivas dos lacaios da pena e do patronato recheado de doutrinas
burguesas de beneficência, que derramam suas ignorantes vulgaridades e suas
fantasias sectárias com um tom sibilino de infalibilidade científica” (Marx, 2011,
p. 22-23)”.
Assim,
Marx pensa que a luta de classes transformam as circunstâncias e
os homens, e esses que realizarão o comunismo, enquanto que para Lênin
é dispensável esta transformação dos homens, ele quer homens servis para
reproduzir a servidão. Mas, se há subordinação, então
existem aqueles que subordinam e os que são subordinados. Quem
subordina? Lênin responde: “mas é à vanguarda armada de todos os explorados
e trabalhadores, ao proletariado, que devem se submeter”. A vanguarda armada é
quem subordina. Porém, no texto, Lênin toma como equivalente
“vanguarda armada dos explorados e trabalhadores” e proletariado. Sem dúvida,
se não fosse a palavra “armada” a equivalência seria aceitável e a ambigüidade
esconde algo que só será revelado posteriormente. Ele acrescenta que “nós
mesmos, os operários” (como se ele tivesse sido operário alguma vez na
vida...), “partindo do que já tenha sido criado pelo capitalismo”, partindo de
“nossa experiência” e estabelecendo uma “disciplina rigorosíssima, férrea,
mantida pelo poder estatal dos operários armados” (Lênin,
1987, p. 94) é que tem a responsabilidade de reorganizar a produção. Partindo
do que foi criado pelo capitalismo, e não é demais lembrar que Lênin
era um entusiasta do capitalismo e sua verdadeira e profunda aversão era ao
czarismo, retoma a questão da disciplina férrea organizada por um poder estatal
dos operários armados.
Aqui
ainda existe, partindo das criações capitalistas, um poder estatal
que impõe uma disciplina férrea. Apenas problemas de vocabulário
equivocado? Hipótese pouco plausível, mas que é totalmente descartada lendo o
resto do texto. Ele usa o exemplo dos correios, “uma empresa organizada no
estilo de um monopólio capitalista de estado”, como forma de
usar algo criado pelo capitalismo para servir ao socialismo, onde os operários
armados (obviamente, a vanguarda, pois se todos os operários
estivessem armados, seria desnecessário o uso da segunda palavra) irão
“contratar” (relação tipicamente burguesa: contrato de trabalho,
assalariamento) técnicos, inspetores, contadores, a serviço
do novo estado. Lênin continua:
“Organizar
toda a economia nacional como está organizado o correio, para que os técnicos,
os inspetores, os contadores e todos os funcionários em geral recebam ordenados
que não sejam superiores ao 'salário de um operário', sob o controle e a direção do
proletariado armado: esse é o nosso objetivo imediato. Esse é o Estado que
necessitamos e essa é a base econômica sobre a qual deve repousar. Nisso é que dará a abolição do
parlamentarismo e a conservação das instituições representativas; isso é o que livrará a classe trabalhadora da prostituição dessas
instituições pela burguesia” (Lênin, 1987, p. 95).
Indiretamente,
ao colocar o correio com sua divisão social do trabalho e
hierarquia como modelo, Lênin reproduz todos os elementos da
sociedade capitalista. A diferença seria que ao invés do burocrata estatal ou
do capitalista ou burocrata empresarial, o comando está nas mãos
da “vanguarda armada” do proletariado e ele confunde a si mesmo com o
proletariado, não sem motivo, como veremos adiante. Esse é o “Estado” defendido
por Lênin. Aqui a distância de Marx é grande e é por isso que ele não
cita nada de Marx para defender suas teses extravagantes para a perspectiva
marxista.
Porém,
quanto mais Lênin avança, mas evidente ficam
suas concepções. Ao discutir a questão da “organização
da unidade da nação”, explicita-se o caráter deformador da
interpretação leninista de Marx. Após citar alguns trechos de Marx sobre
organização nacional, cita Bernstein e a proximidade das teses de Marx com as
do federalismo de Proudhon. Segundo Bernstein, há uma enorme semelhança entre o
federalismo de Proudhon e a proposta contida no escrito de Marx sobre a Comuna.
Lênin busca desqualificar o escrito de Bernstein com o estratagema
retórico da escandalização, dizendo que “isso é simplesmente monstruoso”. Segundo ele, Bernstein
confunde a tese da destruição do poder estatal parasita (ou seja, um poder
estatal que é parasita, ao contrário do que Marx coloca, que todo poder estatal
é parasita...) com o federalismo de Proudhon. Lênin diz que não passa na cabeça
do oportunista Bernstein que Marx se referia à destruição da velha máquina
burguesa de Estado e não uma oposição do federalismo ao centralismo.
Os
oportunistas, “ridículos”, com seu “filisteísmo mesquinho”, continua o retórico
Lênin, não conseguem pensar a revolução. Assim, em meio a vários adjetivos
pejorativos, outro estratagema retórico de Lênin, ele afirma que nem os
defensores do “marxismo ortodoxo” (Kautsky e Plekhanov) discutiram essa
tergiversação de Marx por Bernstein. Não, segundo Lênin, nem “sombra de
federalismo” em Marx e Bernstein nem desconfia em que Marx concorda e discorda
de Proudhon. Marx concorda com Proudhon no que se refere à “destruição” (as
aspas são de Lênin...) da máquina moderna do Estado. E Lênin revela sua
concepção ao dizer em que Marx discorda:
“Marx
discorda de Proudhon e de Bakunin precisamente na questão do federalismo (ainda
sem falar da ditadura do proletariado). O federalismo deriva, em princípio, das
concepções pequeno-burguesas do anarquismo. Marx
é centralista. Em suas passagens citadas anteriormente não se afasta
minimamente do centralismo. Só os que se acham possuídos da ‘fé
supersticiosa’ dos filisteus no Estado podem confundir a destruição da máquina
estatal burguesa com a destruição do centralismo!” (Lênin, 1987, p. 97).
[Grifos meus].
Assim, lendo e
acreditando em Lênin, ficamos sabendo que Marx é centralista e que suas
passagens citadas por Lênin mostram que ele não se afasta minimamente do
centralismo. Aqui a deformação é clara e isso pode ser provado com as citações
de Marx apresentadas por Lênin:
“[...] No breve esboço de organização nacional que a Comuna
não teve tempo de desenvolver, mostrou-se claramente que a Comuna haveria de ser
[...] a forma política que atingisse até a menor aldeia [...]. As comunas
elegeriam também a ‘delegação nacional’ de Paris.
[...] As poucas, mas importantes, funções que ainda restassem
para um governo central não seriam suprimidas, como foi dito, deturpando a
verdade propositadamente - mas seriam desempenhadas por agentes comunais e,
portanto, estritamente responsáveis. [...].
[...] Não se tratava de destruir a unidade da nação,
mas, pelo contrário, de organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a
numa realidade ao destruir o poder do Estado, que pretendia ser a encarnação
daquela unidade, independente e situado acima da própria nação, em cujo corpo
não era mais que uma excrescência parasitária [...].
Enquanto
os órgãos puramente repressivos do velho poder estatal teriam que ser amputados,
suas funções legítimas teriam de ser arrancadas a uma autoridade que usurpava
uma posição proeminente sobre a própria sociedade, para restituí-las aos
servidores responsáveis dessa sociedade” (Lênin, 1987, p. 95).
O que Lênin faz é, como
provam as chaves que apontam para partes do texto retiradas, é selecionar
trechos que apóiam sua interpretação e deixar de lado o que contradiz tal
interpretação. Ele usa trechos descontextualizados para tornar sua
interpretação mais convincente. Ele, por exemplo, retira as duas primeiras
frases (em seu lugar aparece os parêntesis) que antecede sua primeira citação,
sendo que a segunda afirma o seguinte: “Uma vez estabelecido o regime comunal em
Paris e nos centros secundários, o antigo
governo centralizado teria de dar lugar, inclusive nas províncias, ao autogoverno dos produtores” (Marx, 2011,
p. 73). Aqui se complicaria a interpretação leninista, pois o antigo governo
centralizado cede lugar ao autogoverno dos produtores, elemento fundamental e
nunca reproduzido por Lênin em suas 10 páginas sobre um texto de
aproximadamente o mesmo tamanho.
A última frase da primeira
citação de Lênin diz: “As comunas elegeriam também a ‘delegação nacional’ de
Paris”, enquanto que, na verdade, Marx disse: “as comunas rurais de cada
distrito administrariam seus assuntos coletivos por meio de uma assembléia de
delegados na capital do distrito correspondente a essas assembléias, por sua
vez, enviariam deputados à delegação
nacional em Paris, entendendo-se que todos os delegados seriam substituídos
a qualquer momento e comprometidos com um mandat impératif [mandato imperativo]
(instruções formais) de seus eleitores” (Marx, 1986, p. 73-74).
Obviamente que pode ser mero
problema de tradução, mas o significado altera radicalmente. Uma coisa é as
comunas elegerem uma “delegação nacional”, outra coisa é elegerem seus
delegados e os enviarem para Paris, pois num caso temos centralização (a
“delegação nacional” é eleita nacionalmente) e noutro a descentralização (cada
comuna escolhe seus delegados e os enviam à Paris). Num caso, temos eleições
típicas da democracia burguesa e noutro forma autogestionária de escolha dos
delegados. Outros elementos problemáticos existem, mas deixaremos quando Lênin
for apresentar sua interpretação do texto de Marx.
Assim, Lênin diz que nas
citações acima “Marx não se afasta minimamente do centralismo” e ele é
“centralista”. Além da afirmação de Marx sobre a substituição do antigo poder
centralizado pelo autogoverno dos produtores, em toda interpretação leninista
do texto sobre a Comuna, a questão da responsabilidade é ocultada. Num dos
trechos citados por Lênin aparece, bem como em uma ou outra passagem. Porém,
Lênin enfatizou a igualdade de salários, algo que nada tem de comunista, e a
elegibilidade e removibilidade. O caráter substituível e responsável é
esquecido e o mais importante de todos é justamente a questão da
responsabilidade. É no caráter responsável dos agentes comunais diante da
Comuna que reside o caráter autogestionário da Comuna (Viana, 2011d). O que
significa tal caráter responsável? Significa que não pode se autonomizar e
constituir interesses próprios, deve seguir a decisão coletiva da Comuna. Assim, não existe a divisão entre dirigentes
e dirigidos, por isso Marx colocava que a Comuna devia ser “legislativa e
executiva” simultaneamente. Pois bem, ao recolocar o caráter responsável, então
fica insustentável qualquer centralismo, pois este significa que há um centro
de decisão, o que nunca foi expresso no texto de Marx. Lênin continua:
“Ora,
se o proletariado e os camponeses pobres tomam o poder do Estado, se organizam
de um modo absolutamente livre em comunas e unificam a ação de todas as comunas
para dirigir os golpes contra o capital, para esmagar a resistência dos
capitalistas, para entregar a propriedade privadas das ferrovias, das fábricas,
da terra, etc., a toda a nação, a toda a sociedade, por acaso isso não será o
centralismo? Por acaso isso não será o mais conseqüente centralismo democrático
e, além disso, um centralismo proletário?” (Lênin, 1987, p. 97).
Aqui novamente Lênin parece
libertário. Mas lendo mais atentamente, observa-se que ele diz que o
proletariado e os camponeses pobres “tomam o poder do Estado”. Ora, se tomam o
poder estatal, é o poder já existente, o poder estatal burguês. Esse poder
estatal, agora “tomado”, não se sabe como, pelo proletariado e campesinato
pobre, socializa os meios de produção. A chave para entender esse “centralismo”
é dizer, no fundo, quem toma o poder estatal centraliza tudo. Eis a questão, e
esta não é respondida nessa frase, mas veremos a resposta adiante. A escolha da
palavra centralismo, não usada por Marx positivamente em nenhum momento, é já
um sinal de preferência que não é gratuita.
Lênin continua criticando
Bernstein com seus adjetivos pejorativos e diz que para tal “filisteu”, o
centralismo “só pode ser imposto e
mantido pela burocracia e pelo militarismo” (Lênin, 1987, p. 98). Apenas
mais uma aparente contradição? Tal afirmação quer dizer que o centralismo pode
ser imposto e mantido por outros que não os burocratas e militares. Quem são
estes outros que irão impor e manter o centralismo? Veremos adiante. Antes,
vejamos mais aspectos da interpretação leninista do texto de Marx sobre a
Comuna:
“Marx
sublinha intencionalmente, como se previsse a possibilidade de que suas ideias
fossem adulteradas, que acusar a Comuna de querer destruir a unidade da nação,
de querer suprimir o poder central, é uma falsidade consciente. Marx usa
intencionalmente a expressão ‘organizar a unidade da nação’ para contrapor o
centralismo consciente, democrático, proletário, ao centralismo burguês, militar,
burocrático” (Lênin, 1987, p. 98).
Curiosa forma de
interpretação, pois Lênin lê os pensamentos não escritos de Marx, suas
intenções secretas, de décadas anteriores... Na verdade, Marx como bom escritor
e leitor que era, sabia muito bem que existem aqueles que deformam o pensamento
alheio, e Lênin é um dos mais famosos praticantes dessa “arte”, coisa que hoje
nós sabemos. Porém, Marx se referia à Comuna e não ao seu próprio pensamento.
No que se refere ao problema da unidade da nação, Marx afirmou que não se
tratava de destruir a unidade da nação, mas organizá-la sob o regime comunal,
realizando-a ao destruir o poder estatal. O que significa isso? O poder estatal
cria uma unidade falsa e artificial, e ele sendo destruído e substituído por um
regime comunal, a nação converte-se em realidade[8]. Porém, a Comuna também
era “um governo internacional no pleno sentido da palavra” (Marx, 2011, p. 17).
A questão é que a discussão sobre a questão nacional em Marx é distinta da do
poder central. Aliás, Marx vê antagonismo entre ambos e Lênin usa a defesa da
unidade nacional para defender o poder central, esquecendo todas as afirmações
de Marx contra o poder central e usando o estratagema retórico de unir crítica
ao centralismo com anarquismo, para conseguir ser convincente para parcela dos
leitores que carregam preconceitos contra o anarquismo.
Contudo, a
interpretação do texto sobre a Comuna de Marx não vai mais longe do que isso e
os pontos não respondidos se encontram nas outras partes da obra O Estado e a Revolução. Por isso, vamos
preencher as lacunas de Lênin com algumas passagens de sua obra. A primeira
refere-se à defesa leninista da abolição do Estado burguês e emergência de um
Estado proletário:
“Engels
diz logo no começo de seu raciocínio que, ao tomar o poder estatal, o
proletariado ‘destrói com isso, o Estado como tal. Não é costume parar-se para
pensar no que significa isso. O comum é fazer-se de desentendido a esse
respeito e considerá-lo algo assim como uma ‘debilidade hegeliana’ de Engels.
Na realidade, essas palavras encerram concisamente a experiência de uma das
maiores revoluções proletárias, a experiência da Comuna de Paris de 1871 [...].
Na verdade, Engels fala aqui de ‘destruição’ do Estado da burguesia pela
revolução proletária, enquanto as palavras relativas à extinção do Estado se
referem aos restos do Estado proletário, depois da revolução socialista. O
Estado burguês não se ‘extingue’, segundo Engels, mas ‘é destruído’ pelo proletariado
na revolução. O que se extingue, depois dessa revolução, é o Estado ou
semi-Estado proletário” (Lênin, 1987, p. 64).
Aqui Lênin
repete o procedimento comum do pseudomarxismo de citar Engels como se ele e
Marx fossem a mesma coisa ou pessoa. Porém, o argumento aqui é a de que Engels
defendia a destruição do Estado burguês, o que é correto, e sua substituição
por um Estado proletário, o que é problemático, e este se “extinguiria”. Não
vamos comentar o texto de Engels e a interpretação de Lênin do mesmo, pois
nosso objetivo é outro. Na seqüência, Lênin dá a entender que o Estado
proletário mantém o uso da força e esse seria o seu elemento característico. É
por isso que ele afirma, posteriormente, o papel do “proletariado armado”.
Porém, no capítulo dedicado à Comuna, Lênin fala da subordinação, do
centralismo e da necessidade da burocracia, afinal, “não se pode falar da
abolição da burocracia de repente”, isso seria utopia. Então haverá o aspecto
repressivo, subordinação, centralismo e burocracia. É possível destruir
imediatamente “a velha maquina burocrática”, e “começar no mesmo instante a
construir outra nova” (Lênin, 1987, p. 93).
Nas páginas
posteriores ao capítulo de análise do texto de Marx sobre a Comuna, vai ficando
mais claro quem exerce a subordinação, de quem é esse centralismo e qual é essa
burocracia: “Mas a ditadura do proletariado, quer dizer, a organização da vanguarda dos oprimidos em classe dominante para
esmagar os opressores”. A vanguarda dos oprimidos, pode-se interpretar, é o
proletariado. A questão é que não se trata do proletariado como um todo e aqui
reside o caráter da tese leninista. Trata-se do proletariado armado e
“organizado”. Por questão lógica, se pensar em um proletariado armado, então
deve existir o “desarmado” e ao usar a expressão “organização da vanguarda”
revela que não se trata de organização de todos . Porém, mais importante do que
isso é a referência a proletariado armado junto com centralismo e burocracia. O
que é burocracia para Lênin? Ele afirma que os burocratas são “pessoas
privilegiadas, divorciadas das massas, situadas acima delas” (Lênin, 1987, p.
157). E acrescenta: “Nisso reside a essência do burocratismo e, enquanto os
capitalistas não forem expropriados, enquanto não se derrubar a burguesia, uma
será inevitável uma certa ‘burocratização’, inclusive dos funcionários
proletários” (Lênin, 1987, p. 157). Ou seja, Lênin justifica e legitima a
burocracia e não só faz isso como atribui tal pensamento a Marx, que foi
totalmente contrário a isso.
A questão da
responsabilidade é outra questão fundamental e deixada de lado por Lênin, não
sem razão. O caráter responsável, discutido por Marx, mostra justamente o
antídoto contra a burocracia, a possibilidade de autonomização dos delegados
comunais e Lênin se esquece disso e prefere colocar a necessidade de uma
burocracia, entrando em frontal contradição com o pensamento de Marx que ele
diz reproduzir.
Para encerrar
essa breve análise da deformação leninista do pensamento de Marx e da prática
comunarda, resta colocar dois elementos. Um é explicar as razões pelas quais
subsiste algumas afirmações ambíguas em Lênin que alguns confundem com um
suposto caráter libertário e outro é apresentar, mesmo que resumidamente,
outras considerações de Lênin sobre a Comuna apresentada em outros textos dele.
O aparente caráter libertário do texto de Lênin tem três determinações básicas.
A primeira é o escrito de Marx ao qual tem que se remeter e por mais que o
tenha deformado, não era possível fazer de conta que certas coisas não estavam
escritas lá, tal como abolição do poder estatal centralizado. Daí foi
necessário um subterfúgio (destrói o poder estatal centralizado burguês e cria
um proletário...). A segunda foi que o seu objetivo era combater a
socialdemocracia, o anarquismo, ou seja, os adversários políticos, embora seu
foco fosse a socialdemocracia e o confronto dessa com o pensamento Marx (o que
faz ele apelar até para Pannekoek, que pouco depois seria um dos grandes
teóricos do Comunismo de Conselhos, antileninista) para qualificá-los de
oportunistas, tinha como objetivo combatê-los e enfraquecer sua influência. A
última determinação é a fundamental, o texto foi redigido antes da tomada de
poder estatal pelo partido bolchevique e após a Revolução de Fevereiro, na qual
os sovietes – conselhos operários – já haviam emergido e criando novas formas
de auto-organização dos trabalhadores. Nesse sentido, Lênin buscava, por um
lado, atacar os adversários (principalmente a socialdemocracia que tinha forte
influência na Rússia, inclusive nos mencheviques), e para isso retomava Marx, o
que era problemático, mas era resolvido com a deformação daquilo que era útil
aos seus propósitos insurrecionalistas e, ainda, manter uma posição
aparentemente libertária e a favor dos sovietes, para, assim, garantir sua
hegemonia no desencadear do processo, permitindo a conquista do poder estatal.
Outro
aspecto importante é a ênfase nas falhas da Comuna e ele reproduziu suas
considerações sobre os erros da Comuna em várias oportunidades:
“Porém,
dois erros estragaram os frutos da brilhante vitória: em lugar de proceder à ‘expropriação
dos expropriadores’, colocou-se a sonhar com a entronização da justiça suprema
em um país unido por uma tarefa comum a toda a nação; não se apoderou de
instituições como, por exemplo, o banco; as teorias dos proudhonistas da “troca
justa”, etc., dominavam ainda entre os socialistas. O segundo erro consistiu na
excessiva magnanimidade do proletariado: em lugar de exterminar seus inimigos,
que era o que devia ter feito, tratou de influir moralmente sobre eles,
desprezou a importância que na guerra civil tem as ações puramente militares e,
ao invés de coroar sua vitória em Paris com uma ofensiva resoluta contra
Versalhes, deu tempo ao tempo e permitiu que o governo versalhense reunisse as
forças tenebrosas e se preparasse para a semana sangrenta de maio” (Lênin, 1978,
p.21).
Aqui, além de
uma posição não-marxista, voltada para “exterminar seus inimigos”, a ideia de
se “apoderar” das instituições burguesas ao invés de aboli-las, e ênfase nas “ações
puramente militares”, temos uma questão fundamental que é o exemplo do banco,
que deveria ter sido “apoderado”. Sem dúvida, para quem pensa que o trabalho
assalariado deve permanecer (através da equiparação), tomar o banco é algo
necessário. Ou seja, o dinheiro, o salário, o banco, um conjunto de
instituições burguesas, continuam existindo (junto com a burocracia e a nova
máquina estatal) e o que muda, no fundo, é quem se apropria disso tudo e não é
a totalidade da classe proletária que o faz e sim sua “vanguarda organizada”, o
partido.
Desta forma,
Lênin interpreta a Comuna de Paris a partir da perspectiva burocrática e por
isso deve sustentar a necessidade de conquista do poder estatal, de burocracia,
de vanguarda, etc. junto com a manutenção de aspectos da sociedade burguesa,
pois o objetivo não é a abolição geral das classes sociais e sim substituição
da classe dominante.
Considerações Finais
A Comuna de
Paris foi uma obra coletiva de importância histórica fundamental. Nesse
contexto, sofreu inúmeras interpretações, tal como colocamos aqui. De forma
breve, apresentamos as interpretações burguesa, proletária e burocrática da
Comuna de Paris. Focalizamos mais esta última por expressar a versão dominante
dos acontecimentos de 1871 em Paris.
A interpretação
hegemônica é a bolchevique, leninista. Essa expressa a perspectiva de classe da
burocracia. Por qual motivo esta interpretação é a dominante? Isso se deve ao
fato de que a interpretação burguesa da Comuna é quantitativamente diminuta. Os
representantes intelectuais e literários da burguesia assumiram duas posições
diante deste evento histórico: a primeira posição, mais forte no calor da luta,
era de combate e ataque à experiência comunarda. Contudo, a posição dominante
na perspectiva burguesa é aquela que quer esquecer a Comuna de Paris e sua
existência, pois ela foi um evento traumático para a burguesia, em primeiro
lugar, por sua própria existência e apresentado a primeira tentativa de
revolução proletária da história e, depois, porque seu massacre dos operários
parisienses não é algo muito agradável de recordar, pois coloca em evidência o
papel do poder burguês[9].
A interpretação
proletária, por sua vez, é a que foi efetivada por um conjunto de
representantes intelectuais e literários do proletariado, desde Marx e Bakunin,
passando por Kropotkin, Korsch, Debord e outros. No entanto, foi uma
interpretação sufocada pela interpretação leninista. No caso de Marx e dos
marxistas, ela foi deformada e adulterada ou então simplesmente esquecida e
substituída pelos escritos de Lênin e leninistas. No caso dos anarquistas, foi
amplamente sufocada e sobreviveu marginalmente.
Assim, os
textos e interpretações mais famosos acabaram sendo o de Marx e Lênin e o
primeiro foi lido a partir da interpretação do segundo – e até aqueles que
expressavam a perspectiva do proletariado foram influenciados por essa
interpretação e por isso se colocaram em uma posição crítica em relação ao
texto de Marx (Korsch, 2011a; Korsch, 2011b; Viana, 2011e).
A interpretação
leninista se tornou, portanto, hegemônica. Aqueles leitores que perceberam a
proximidade com o texto de Marx e aspectos aparentemente libertários, acabaram realizando
uma confusão e passaram a pensar que o livro de Lênin, O Estado e a Revolução, era uma obra
libertária. Ledo engano, pois, no fundo, era uma “obra tática”, estava ligada
aos interesses políticos de Lênin, tal como a necessidade de combater
adversários políticos e conquistar apoio popular. A perspectiva burocrática se
manifesta na obra de Lênin e diversos outros, ressaltando que o grande problema
da Comuna foi a falta de um partido revolucionário (Luquet, 1968), falta de
conquista do poder estatal, falta de tomar o banco, etc., ou seja, falta de
burocracia, controle, poder, justamente o contrário da proposta comunal e de
Marx (Viana, 2011d). A concepção leninista é burocrática e segue a lógica da
política burguesa, na qual a burocratização e canalização das lutas rumo ao
Estado se opõe à política proletária de autogestão das lutas (Viana, 2011f).
Assim,
uma história das interpretações da Comuna de Paris de 1871 e de outras
experiências históricas a partir do materialismo histórico e do conceito de
perspectiva de classe assume grande importância para as análises históricas e das
lutas sociais. O que fizemos aqui foi esboçar, brevemente, alguns elementos
para tal discussão no que se refere ao caso da Comuna e abordar
introdutoriamente algumas das perspectivas de classe que geraram distintas interpretações
deste fenômeno histórico.
Abstract:
This article examines some
of the interpretations of the
Paris Commune, which express different perspectives
of class, focusing on the bureaucratic perspective. After an introductory theoretical
discussion about class
perspective on historical
materialist approach, briefly
presents the perspective of
proletarian and bourgeois
Paris Commune, and later, the bureaucratic
perspective, drawn from the work
of Lenin. The general conclusion
is that interpretations are pervaded by the prospects of class and therefore are not neutral and the case is
an example of Lenin, for both their
interpretation of the Commune and
Marx's text is so
bureaucratic and distorts both.
Keywords: Paris
Commune, Interpretations, Perspective Class, bureaucratic perspective, class interests.
* Professor
da Faculdade de Ciências Sociais da UFG/Universidade Federal de Goiás; Doutor
em Sociologia pela UnB/Universidade de Brasília.
[1] A existência de classes auxiliares da burguesia é
tematizada em algumas obras (Viana, 2007; Viana, 2011a; Viana, 2011b), para as
quais remetemos, pois não poderíamos trabalhar esse aspecto no presente
trabalho, mesmo porque não é nosso foco.
[2] Para uma descrição mais detalhada sobre essa
literatura anticomunarda, a consulta da obra de Lidsky (1971) e a coletânea de
texto de Vallés (1992) e outros é um bom material.
[3] Uma seleção de textos que abordam a Comuna nesta
perspectiva pode ser consultada em Viana, 2011c, contendo também comentários
sobre os mesmos.
[4] A Comuna de Paris foi uma revolução proletária
inacabada e por isso apresentou, em alguns aspectos, uma forma autenticamente
autogestionária, mas em alguns aspectos teve limites, principalmente no
processo de abolição das relações de produção capitalistas, que se iniciou mas
sua curta duração impediu sua concretização.
[5] Sem dúvida, a breve apresentação da concepção de Marx
se deve aos limites do espaço para o presente trabalho, mas uma análise mais
pormenorizada pode ser vista em Viana, 2011d.
[6] Lênin não faz
nenhuma ressalva quanto a isto e não tem como afirmar que não conhecia esse
escrito, pois ele cita nos capítulos posteriores de sua obra. Também podemos
destacar que elemento “tão importante” só é defendido de acordo com o
oportunismo vanguardista de Lênin, pois o mesmo, ao chegar ao poder, mesmo
considerando “um passo atrás”, implantará “salários elevados para alguns
especialistas burgueses” (Lênin, 1988).
[7] Não é preciso
lembrar que, uma vez no poder, Lênin fez novamente o contrário: “poderes
ditatoriais e direção unipessoal não são contraditórios com a democracia
socialista” (apud. Rodrigues e De Fiore, 1978, p. 51). Basta lembrar a abolição
das frações no interior do partido bolchevique, a repressão à Kronstadt, o
esvaziamento dos sovietes, para ver a prática leninista. Sobre isto, há uma boa
documentação no livro de Brinton (1975).
[8] “Não se tratava de destruir a unidade da nação, mas,
ao contrário, de organizá-la mediante um regime comunal, convertendo-a numa
realidade ao destruir o poder estatal, que pretendia ser a encarnação daquela
unidade, independente e situado acima da própria nação, em cujo corpo não era
mais que uma excrescência parasitária (Marx, 2011, p. 22).
[9] Pinheiro Chagas mostra sua reserva sobre o massacre,
que não era possível evitar num escrito sobre a Comuna: “então começaram as
sinistras vinganças. Levado pela opinião pública desvairada o governo de Thiers
procedeu largo tempo aos fuzilamentos em massa. Essa vingança, que a França
inteira aplaudia, foi uma nódoa na vitória, nodoa indelével, que transformou em
mártires homens que não tinham sido senão simples e vulgares criminosos”
(Pinheiro Chagas, 1872, p. 304). Eis que o governo de Thiers apenas atendeu a
“opinião pública”, mas, o que mostra esse trecho, além da justificativa dos
atos do governo, é a vergonha de uma pessoa de mentalidade burguesa diante do
ocorrido, sendo que entrava em contradição com os princípios que defendeu em
sua obra e que mostra um ato criminoso por parte do Estado (assassinato) é
apenas um erro.
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Artigo publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. Comuna de Paris, Interpretações e Perspectiva de Classe. História Revista. v. 16, n. 2 (2011), doi: 10.5216/hr.v16i2.18146
VIANA, Nildo. Comuna de Paris, Interpretações e Perspectiva de Classe. História Revista. v. 16, n. 2 (2011), doi: 10.5216/hr.v16i2.18146
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