A
Face Oculta da Cidadania*
Nildo Viana
* Capítulo do livro:VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
O desenvolvimento do estado
capitalista e da democracia burguesa foi, principalmente a partir do século 18,
acompanhado pelo desenvolvimento da cidadania. A compreensão das mudanças na
política institucional passa pela necessidade de compreender o processo de
desenvolvimento da cidadania e das ideologias que se inspiram nela.
O que é a cidadania? Sem dúvida
poderíamos retomar a concepção grega de cidadania, mas isto seria muito pouco
útil tendo em vista as enormes diferenças tanto em relação à idéia quanto em
relação à realidade que ela busca expressar. Ao contrário do estado e da
democracia, o significado desta expressão não é muito polêmico. Desde a
declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão, o cidadão é um
indivíduo portador de determinados direitos e deveres. Conseqüentemente, a
cidadania é o reconhecimento destes direitos, mas um reconhecimento de fato, ou
seja, a cidadania é a concretização destes direitos e deveres[1].
Quais são estes direitos? Hoje se
concorda que estes direitos são os direitos civis, políticos e sociais. Os
direitos civis são aqueles referentes à liberdade individual, tal como a
liberdade de ir e vir, de imprensa, de pensamento, etc.; os direitos políticos
são aqueles referentes ao direito de votar e ser votado, entre outros; os
direitos sociais são aqueles referentes ao bem estar físico e mental, tal como
o direito à saúde, educação, habitação, etc. Os deveres são os deveres para com
o estado: pagar impostos, votar, etc.
A cidadania é um privilégio de quem
tem concretizado estes direitos e deveres. Entretanto, tal como observou T. H.
Marshall, a cidadania é uma instituição em desenvolvimento e, portanto,
transformou-se com o processo histórico (Marshall, 1967; Barbalet, 1989).
Segundo Marshall, “quando os três elementos (civil, político e social) da
cidadania se distanciam uns dos outros, logo passaram a parecer elementos
estranhos entre si. O divórcio entre eles era tão completo que é possível, sem
destorcer os fatos históricos, atribuir o período de formação da vida de cada
um, a um século diferente – os direitos civis ao século XVIII, os políticos ao
XIX e os sociais ao XX. Estes períodos, é evidente, devem ser tratados com uma
elasticidade razoável, e há algum entrelaçamento, especialmente entre os dois
últimos” (Marshall, 1967, p. 66).
Desta forma, a cidadania se
desenvolveu e atingiu o seu ápice no século 20, com a conquista dos direitos
sociais. Neste momento se unifica os três direitos e os deveres do cidadão e
surge a cidadania plena. Porém, isto não ocorre da mesma forma em todos os
países, pois tal acontecimento ocorre na Europa Ocidental e em mais alguns
poucos países.
Porém, parece que existe algo oculto
por detrás desta aparente “inocência” política da cidadania. Será que cidadania
significa somente isto? Não existirá um lado oculto da cidadania que é omitido
pela ideologia dominante? A nosso ver sim, e o primeiro ponto que encontramos é
a relação entre cidadania e estado.
O cidadão é um ser abstrato criado
pelo direito. Se a lei diz que “todos os homens são iguais perante a lei”, a
realidade diz: “os seres humanos são desiguais perante a sociedade”, devido à
divisão social do trabalho. A desigualdade real existente entre os homens é
substituída por uma fictícia igualdade, “perante a lei”. Uma vez que a lei é
igual para todos, pressupõe-se que existe uma igualdade jurídica entre os
homens. Porém, esta igualdade jurídica é fictícia e isto ocorre porque existe
uma desigualdade de fato que corrói esta igualdade fictícia. O indivíduo
burguês pode usufruir de seu direito de liberdade, pensamento, expressão,
reunião, etc., pelo simples motivo que ele possui as condições materiais para
efetivar tais direitos. Qualquer disputa jurídica entre um burguês e um
proletário, que são “iguais perante a lei”, tende a ser resolvida em favor do
primeiro, pois eles são “desiguais perante a realidade”. O primeiro conta com o
poder do dinheiro e isto quer dizer os melhores advogados, as melhores provas,
a melhor imagem, etc.
Desta forma observamos que o aparato
jurídico do estado Capitalista anuncia a igualdade fictícia dos indivíduos
perante a lei (o que significa, no final das contas, perante ao próprio
estado). Tal como colocou Marx, “o Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status social, de cultura
e de ocupação, ao declarar o
nascimento, o status social, a
cultura e a ocupação do homem como diferença não políticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a
estas diferenças, coparticipante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do
povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade
privada, a cultura e a ocupação atuem ao
seu modo, isto é, como
propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza especial. Longe de acabar com estas
diferenças de fato, o Estado só
existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer
sua generalidade e contraposição a estes elementos seus” (Marx, 1980, p. 25).
Marx coloca que o cidadão só é
cidadão perante o estado. É o estado que, ao declarar os direitos do cidadão,
lhe concede a cidadania. “Já se demonstrou como o reconhecimento dos direitos
humanos pelo estado moderno tem o mesmo sentido que o reconhecimento da
escravidão pelo Estado antigo” (Marx, 1980, p. 93).
O cidadão do estado capitalista é o
indivíduo portador dos direitos burgueses, separados entre os direitos civis e
os direitos políticos. Os direitos civis são os direitos próprios do indivíduo
burguês (o direito à propriedade é o exemplo mais típico) e do indivíduo
proletário submetido ao indivíduo burguês (o direito de ir e vir é uma
necessidade do capital para que ele possa explorar a força de trabalho). Os
direitos políticos são os direitos do indivíduo frente ao estado, o que torna
este legítimo, bem como sua ficção da igualdade jurídica.
O cidadão, enfim, é um indivíduo que
cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é aquele que respeita a
propriedade privada, a liberdade de imprensa, etc., paga os impostos, legitima
o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral, etc. O cidadão é o
indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, a
sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização
não-estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por conseguinte, é a
concretização dos direitos do cidadão, e, portanto, significa a integração do indivíduo na sociedade
burguesa por intermédio do estado.
Por isso talvez seja interessante
retomar o desenvolvimento histórico da cidadania desde o surgimento da sociedade
burguesa. O movimento do capital comercial engendrou o predomínio do capital
industrial e este se consolidou e transformou em uma nova força dominante. Este
processo gerou a necessidade do mercado
livre, que se manifesta através da instituição do trabalhador juridicamente livre e da propriedade
privada burguesa, ao lado da instituição de um mercado consumidor e um mercado
distribuidor igualmente livres. Desta forma, os chamados direitos civis
(liberdade de ir e vir, de propriedade, etc.) são conseqüências naturais da
emergência da civilização burguesa[2].
Trata-se de um período marcado pela
formação das classes sociais fundamentais do modo de produção capitalista e que
se consolida com a ascensão da burguesia ao poder político. Para efetivar esta
ascensão da burguesia tinha que apresentar seus interesses particulares como
sendo interesse universal de todas as classes sociais opostas à antiga classe
dominante (a classe feudal) e se dizer representante geral da sociedade (cf.
Marx, 1978). A burguesia fala em nome do terceiro estado e consegue unificar
este a seu redor. Isto quer dizer que a burguesia apresenta seus interesses
particulares como interesse geral da sociedade, mas isto é apenas uma ideologia
(sistematização de uma falsa consciência), e não uma realidade e por isto não
tem o menor sentido se dizer hoje que a burguesia carregava em si “valores” ou
“idéias universais”, tal como alguns colocaram.
Os direitos políticos, em sua forma
limitada tal como se apresenta na democracia burguesa censitária, são conseqüências
naturais da implantação da dominação burguesa. Surge o estado capitalista
moderno e com ele os direitos políticos que lhes são correspondentes. A
expansão dos direitos políticos (a passagem para a democracia burguesa
partidária) revela simplesmente a emergência do proletariado e de sua luta
contra a sociedade burguesa e a tentativa do estado capitalista em integrar tal
classe social e assim amortecer a luta de classes através do sufrágio universal
e do sistema partidário.
Isto, porém, não foi suficiente para
impedir a luta operária e o ciclo revolucionário do início do século 20
comprova isto. É a partir da Segunda Guerra Mundial que a classe dominante
busca, através do seu poder coletivo, o estado capitalista, consolidar sua
dominação e impedir o surgimento de qualquer brecha revolucionária. A
reorganização legal da democracia burguesa e a expansão dos direitos sociais são as formas
encontradas para integrar as classes exploradoras na sociedade capitalista, ou
seja, a cidadania burguesa entra numa nova fase, onde há algumas alterações nos
direitos políticos e a expansão dos chamados direitos sociais, com o surgimento
do famigerado estado do bem-estar social.
A passagem da democracia partidária liberal para a
democracia partidária burocrática é marcada pela restrição da participação das
classes exploradoras na política institucional. Porém, isto vem acompanhado por
um crescimento quantitativo das classes auxiliares da burguesia, que recruta
indivíduos inclusive provenientes das classes exploradoras, que são cooptados e
passam a integrar a burocracia partidária, a burocracia sindical, etc. Isto
significa que a expansão das classes auxiliares da burguesia acaba amortecendo
a luta de classes.
Iremos abordar rapidamente esta
questão das classes auxiliares no contexto desta discussão. Muitos falam do
“crescimento da classe média” (sem dúvida, o construto de classe média é
bastante útil para a ideologia dominante e está intimamente ligado à ideologia
da estratificação social que busca ofuscar a teoria marxista das classes
sociais), tal, como, Bottomore: “A luta de classes foi também moderada e está
cada vez mais voltada para canais reformistas, pelas mudanças na natureza de
estrutura de classes, e em especial pelo crescimento das classes médias”
(Bottomore, 1981, p. 29). Este crescimento também foi notado por Poggi, que
destaca que tal “classe média assalariada” passa a imitar e superar a classe
trabalhadora em sua pressão sobre o estado para satisfazer seus interesses
particulares. Ela “procura preservar através da ação estatal essa segurança
econômica e posição social que deixou de poder basear na posse de um patrimônio
de família (...), ou na capacidade para manter a sua independência enquanto
coloca no mercado serviços valiosos e sofisticados”(Poggi, 1981, p. 133).
Poucos são aqueles que percebem que o
estado, a democracia burguesa e os partidos políticos são produtores de novos
membros das classes auxiliares e por conseguinte, de novos grupos conservadores
na sociedade. Robert Michels observou isto em relação aos partidos políticos,
que, segundo ele, são produtores de “novas camadas pequeno-burguesas” (Michels,
1982) e Guiducci também observou a expansão das classes auxiliares e seus
interesses: “Aqueles que teriam tido o poder de administrar o interesse geral
estão impotentes para fazer qualquer coisa sem se autoprejudicar e sem
interromper o próprio mecanismo
particular de autoconservação através de uma contínua operação parasitária.
Portanto, a ‘democracia representativa’, indireta e dominante, consegue
representar apenas a si própria, como
grupo oligárquico de poder de interesse acima da sociedade civil oprimida. E,
em parte notável, também os partidos de esquerda, para continuarem a existir
paradoxalmente como partidos de esquerda e/ou diretamente de oposição, entraram
no jogo para seu próprio financiamento, tornando-se assim seduzidos e
convenientes no jogo particular contra o interesse geral” (Guiducci, 1991, p.
75-76).
Portanto, o que se deve ressaltar é
que as classes auxiliares, devido as necessidades de sua própria reprodução,
bem como sua inserção social, auxilia a dominação burguesa e se essas classes
lutassem contra a burguesia estariam lutando contra a própria existência e
privilégios (por exemplo: a luta revolucionária é uma luta pela abolição da
democracia burguesa e dos partidos políticos, o que significa a abolição da
burocracia parlamentar e partidária... luta que, sem dúvida, elas jamais irão
compartilhar, pois assim elas mesmas seriam abolidas enquanto classe, o que
significa a perda de seus privilégios).
Este crescimento quantitativo das
classes auxiliares juntamente com a expansão dos direitos sociais é
possibilitado pela estabilidade e ampliação da acumulação capitalista nos
países capitalistas imperialistas a partir da Segunda Guerra Mundial. Esta
ampliação da acumulação capitalista foi incentivada pelas condições favoráveis
pela situação do pós-Guerra (destruição em massa das forças produtivas, o que
serviu como contrapeso temporário ao nível elevado de composição orgânica do
capital) e pela exploração imperialista através da transferência de mais-valor
dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas imperialistas.
Os direitos sociais oferecidos pelo
estado integracionista (do “bem estar social”) são, na verdade, formas de
integração das classes exploradoras no modo de produção capitalista. O estado
capitalista fornece estes direitos sociais (através de sua política social)
porque isto é de interesse do capital. O direito à educação, por exemplo, é uma
exigência de muitos setores das classes exploradoras e estes exercem pressão
sobre o estado, sendo que contam com o apoio de partes das classes auxiliares
(principalmente as produzidas e/ou ligadas aos partidos reformistas). O
não-atendimento desta reivindicação fortalece a oposição (tanto a reformista
quanto a radical que pode se aproveitar da situação e radicalizar o discurso
oposicionista e buscar a hegemonia) e por isso o estado capitalista se vê
constrangido a atendê-la. Mas, mesmo que não houvesse reivindicação, o estado
capitalista poderia ampliar o atendimento oferecida pela rede escolar estatal,
pois isto é de interesse do capital. Qual é o interesse do capital nisto? A
escola estatal é uma instituição útil para o capital por vários motivos: a) Ela
repassa a ideologia e os valores dominantes e assim contribui com o
amortecimento das lutas de classes; b) Ela prepara a força de trabalho
necessária ao capital; c) Ela corrompe diversos indivíduos que são incluídos na
burocracia escolar ou em posições que fornecem status ou adquirem autoridade sobre outros por conseguinte, o
estado capitalista adquire legitimidade ao atender reivindicações populares e
ao mesmo tempo reforça a integração dos indivíduos nas suas instituições.
O exemplo da educação revela o que é
comum à todos os chamados “direitos sociais”. O seu papel, apesar das
diferenças na forma como tais direitos atendem os interesses do capital, é o de
legitimar o estado capitalista e integrar os indivíduos na sociedade burguesa.
Aqui podemos colocar uma questão
importante para os ideólogos da cidadania. Alguns, ao falarem sobre cidadania,
a colocam como se ela fosse doada pelo estado capitalista (Marshall, 1967).
Outros vociferam contra a “cidadania outorgada” e defendem a “cidadania
conquistada”. Sobre este último ponto de vista, podemos ver esse tipo de
afirmação: “A luta pela educação, pela cultura, pelo saber e pela instrução
encontra sentido, se inserida nesse movimento de constituição da identidade
política do povo comum. Essa luta é um momento educativo enquanto representa
uma movimentação, organização, confronto, reivindicação e, conseqüentemente,
expressão e prática de consciência do legítimo e do devido” (Arroyo, 1987, p.
77).
Segundo este último ponto de vista, a
democracia e a cidadania só são válidas se forem conquistadas e não doadas pelo
estado e a própria conquista, que pressupõe mobilização, organização, etc., é
que oferece valor à cidadania. A ênfase na conquista parece, se formos
incautos, um discurso esquerdista. Mas não é isto que ocorre devido ao fato de
se enfatizar a ação no sentido de conquistar cidadania. Uma ação só é
revolucionária ou só colabora com o processo de libertação dos explorados se
ela tiver um objetivo revolucionário. Uma grande mobilização popular não quer
dizer nada se não tiver um objetivo revolucionário ou tiver no seu interior
tendências que tenham tal objetivo e busquem torná-lo hegemônico.
Tomemos um exemplo. O impeachment do presidente Fernando
Collor de Melo no Brasil. Houve uma grande mobilização popular e esta acabou
atingindo os seus objetivos: a derrubada do governo Collor. Porém, isto não
provocou nenhum acúmulo para a luta operária e a luta de outros setores explorados,
e nem mesmo para o movimento estudantil, um dos principais articuladores da
mobilização. Quais foram as razões disto? Isto ocorreu porque tal mobilização
foi hegemonizada, inicialmente, pelo bloco reformista (partidos de “esquerda”,
que queriam derrubar o governo e convocar novas eleições presidenciais, para
lançar seu candidato, Lula), e posteriormente, pelo bloco dominante, que queria
tão somente a derrubada do presidente Collor e sua substituição pelo
vice-presidente. Poucas vozes discordantes se manifestaram.
Terminada a mobilização, todo mundo,
ou melhor, os cidadãos, voltaram para casa e assistiram pela televisão a lição
de cidadania que deram ao país. E tudo continuou como antes, com exceção da
presidência, que proporcionou uma substituição que nada alterou. Mas o resto
estava lá: o conformismo, a consciência fetichista, etc. Apenas outra coisa
mudou além do fato do presidente Collor e alguns “bodes expiatórios” terem sido
“punidos”: o estado capitalista recuperou sua legitimidade perdida.
Por conseguinte, se a cidadania é
outorgada ou conquistada, não faz a menor diferença. A luta pelos direitos
sociais só seria proveitosa para o proletariado se fosse uma luta autogerida e
com objetivos revolucionários (aliás, uma coisa gera outra), embora um movimento
possa começar heterogerido e reformista, defendendo da correlação de forças, se
tornar autogerido e revolucionário ou pelo menos fortalecer essa posição junto
à sociedade ao disputar a hegemonia no movimento. No entanto, o engajamento
nesta luta só tem sentido se existir esta possibilidade concreta.
Neste momento, podemos colocar outra
questão muito discutida pelos ideólogos da cidadania: a questão da inclusão e
da exclusão. Os excluídos são aqueles que estão fora das esferas burguesas de
produção e consumo, dos direitos sociais. Os incluídos são os cidadãos que
usufruem da cidadania. Existem os excluídos da cidadania. Resta saber quem são
estes indivíduos excluídos que devem, segundo os ideólogos da cidadania, ser
incluídos, o que significa serem integrados na sociedade capitalista.
O próximo passo após ter definido que
o grande problema social hoje é a exclusão e que a solução é a inclusão
(integração) é propor, para os excluídos, o acesso ou a conquista da cidadania
e, para os já incluídos, a ampliação da cidadania (claro que esse discurso é
mais comum nos países capitalistas subordinados).
Encontramos aqui o mesmo problema anteriormente
colocado referente à opção pela “cidadania conquistada”. Conquistar ou ampliar
a cidadania significa realizar a integração, ou intensificá-la, na sociedade
capitalista. O desempregado (um excluído) teve que receber um emprego (ser
incluído) e assim se submeter ao trabalho alienado, à exploração capitalista.
Um analfabeto não-eleitor (excluído dos direitos políticos, por não ter o
direito de voto) teve ser “educado” pelo estado e/ou deve se tornar um eleitor.
Desta forma, ele deve ser oprimido na escola (através da inculcação da
ideologia dominante) e deve se tornar mais um legitimador do estado capitalista
que o oprime através da participação no processo eleitoral.
Mas o que se deve fazer? Aceitar o
desemprego, o analfabetismo, o desrespeito ao direito de votar? Devemos aceitar
a exclusão? O problema não se encontra em lutar contra o desemprego, o
analfabetismo, etc., e sim na forma como se faz isto, ou seja, o problema se
encontra em buscar superar esta situação de miséria e opressão de parte da
população através da integração dela na sociedade capitalista. O direito ao
voto, por exemplo, deve ser reconhecido legalmente, mas não deve ser um dever
(ou seja, não deve ser obrigatório). O direito à educação deve ser reconhecido
de fato, mas a própria forma de educação deve ser acompanhado com a
transformação da escola e o mesmo ocorre com o emprego, mas trata-se de propor uma
transformação na “forma de emprego” no sentido de contribuir com a
transformação social. Não se trata também de ampliar a cidadania mas de
superá-la, ou seja, o problema não está em conquistar direitos (civis,
políticos e sociais) e deveres e sim em transformar a sociedade.
Se lembrarmos que cidadania significa
a integração do indivíduo no capitalismo por intermédio do estado, veremos que
todas estas reivindicações de direitos são dirigidas ao estado capitalista. A
cidadania cedida pelo estado (não interessa se é outorgada ou conquistada) é controlada por ele, pois o sistema de
saúde, o sistema escolar, o sistema eleitoral, etc., é tudo dirigido pelo
estado capitalista. A conquista da cidadania legitima o estado capitalista e
reafirma o processo de exploração capitalista.
Enfim, a busca de cidadania significa
a luta por uma integração na sociedade capitalista, isto é, significa lutar por
compartilhar do processo de exploração e opressão efetivado por esta sociedade,
e significa reconhecer o estado capitalista como legítimo e como a instituição
que deve controlar a população. Isto ocorre porque tal luta se fundamenta nos
“direitos do cidadão”, mesmo que estes incluam os direitos sociais, pois tais
direitos são direitos do cidadão do estado capitalista. É por isso que
Marshall, com o seu conservadorismo muito mais esclarecedor do que a ideologia
progressista de outros, pôde dizer que: “as diferenças
de status podem receber a parcela da legitimidade em termos de cidadania
democrática, desde que não sejam muito profundas, mas ocorram numa população
unida, numa civilização única; e desde que não sejam expressão de privilégio
hereditário. Isto significa que
desigualdades podem ser toleradas numa sociedade fundamentalmente
igualitária desde que não sejam dinâmicas, isto é, que não criem incentivos que
se originam do descontentamento e do sentimento de que ‘este tipo de vida não
me agrada’, ou ‘estou decidido a fazer tudo para que meu filho não passe pelo
que passei’ ” (Marshall, 1967, p. 108).
O que Marshall quis dizer é
que, deixando de lado os seus eufemismos, as diferenças de status e as desigualdades podem ser toleradas graças à cidadania e
a “igualdade” que ela proporciona. Substituindo esta linguagem ideológica,
podemos dizer que a exploração de classes (e, conseqüentemente, a divisão da
sociedade em classes sociais, o que implica em “desigualdade” e “diferença de status”) pode ser tolerada havendo a
igualdade fictícia proporcionada pela cidadania. Marshall busca nos convencer
da possibilidade da cidadania reduzir as desigualdades mas nós sabemos que isto
é impossível por vários motivos, entre os quais, a existência, em todos os
países do mundo, de setores que não possuem cidadania. Mas, além disso, podemos
dizer que a cidadania não pode e nem quer reduzir as desigualdades e diferenças
de status, pois ela é a própria
aceitação e reprodução da “desigualdade” e “diferenças de status”, ou melhor dizendo, da exploração de classe.
A classe capitalista não
busca o atendimento de “direitos sociais”, pois ela possui o poder financeiro.
As migalhas que o estado capitalista cede às classes exploradas servem apenas
para reproduzir a situação que gera a necessidade de migalhas por parte delas.
A busca da cidadania tão propagandeada pelos reformistas é simplesmente isto: o
reconhecimento da exploração e a tentativa de amenizar tais efeitos através do
estado capitalista para que se dê continuidade ao processo de exploração.
Se as classes exploradas
lutam por migalhas é porque elas realmente precisam de migalhas e é isto que
possibilita a reprodução de sua situação de necessitar de migalhas. Se o estado
capitalista, o poder coletivo da burguesia, cede migalhas, isto se deve ao fato
de que ceder tais migalhas permite a continuidade da apropriação de um mundo de
riquezas, a permanência da exploração de classe. Desta forma, reconhecemos que
a luta pela cidadania é um projeto do bloco reformista que serve para a
reprodução da sociedade burguesa e que a “cidadania conquistada” significa um
amortecimento das lutas de classes, o que pressupõe a continuidade da
existência das classes sociais e, conseqüentemente, da exploração, da opressão
e da miséria.
Os defensores mais ingênuos
da conquista da cidadania, mesmo os que buscam um discurso “progressista” se
referindo a Marx e ao socialismo, revelam ser portadores de uma ideologia
burguesa que buscam integrar as classes exploradoras na sociedade capitalista,
principalmente com o discurso de que a cidadania é “uma categoria estratégica
para uma sociedade melhor” (Covre, 1991).
A argumentação ideológica é
muitas vezes simplista mesmo quando busca se apresentar como “progressista” ou
de “esquerda”. Num pequeno livro introdutório ao tema da cidadania (Covre,
1991), a autora busca legitimar, por diversas vezes, a discussão em torno deste
tema através do apelo ao fato da “derrocada do socialismo da URSS e Leste
Europeu”. Numa dessas passagens podemos ler o seguinte: “Numa era em que os
modelos revolucionários desencadeadores do socialismo do Leste perdem credibilidade, o que colocar em
seu lugar para satisfazer o sonho – que o
homem sempre terá – de alcançar uma sociedade
melhor? Para refletir sobre isso, retornemos ao período riquíssimo da
burguesia revolucionária e bebamos em
suas fontes, naquilo que se propôs e não realizou. Bebamos também na fonte
marxista, no que acenou e igualmente não realizou” (Covre, 1991, p. 62. Grifos
meus). Deixando de lado que nunca houve socialismo no Leste e sim capitalismo
de estado, observamos uma concepção conformista (o sonho que o homem sempre
terá, e que, portanto, nunca será realizado...) e reformista (sociedade
“melhor” e não uma sociedade radicalmente
diferente) que busca assimilar o marxismo (bebamos “também” na fonte
marxista) a partir do ponto de vista da burguesia (que mesmo em seu período
revolucionário já era burguesia...).
Este ponto de vista está tão
ligado à ideologia burguesa que podemos observar, simultaneamente, uma visão
europocêntrica do mundo (a Europa Ocidental foi o “berço” da civilização
burguesa) e uma mentalidade burguesa na busca em assimilar outras ideologias:
“A base de sua inspiração (da ideologia burguesa), estava na releitura dos
clássicos (gregos e romanos), que teve sua grande expressão na Renascença,
aprendendo tudo o que de melhor houve na humanidade” (Covre, 1991, p. 25). Não
deixa de ser cômico ficar sabendo que o escravismo antigo e sua ideologia
constitui “tudo o que de melhor houve na humanidade” (sem citar o fato de que o
Oriente e o resto do mundo devem ser esquecidos...). Até a ascensão da
burguesia que os resgatou e “melhorou”.
Outras afirmações brilhantes
são feitas sobre o estado, que não serve somente à reprodução do capitalismo,
pois este é “ambivalente” e graças a isto nos permite “acenar à igualdade”: “a
ambivalência do capitalismo: de um lado exploração e desigualdade; de outro,
caminhando concomitantemente, o aceno à igualdade e à construção da cidadania
mais plena” (Covre, 1991, p. 36). Além da ideologia do “estado neutro” temos a
ideologia do capitalismo que (acreditem se puderem) acena à igualdade (!). De
onde se retira tão extravagante idéia? De Marx! Vejam só: “retiramos do próprio
marxismo esse jogo de possibilidades: os homens fazem a história, mas sob
determinadas condições. Para manter-se o mais fiel às proposições de Marx, é
preciso não pender para nenhum dos lados”; “A mudança entre estrutura e sujeito
é complexa; tanto um quanto o outro mudam-se reciprocamente, e é preciso, de
forma contínua, apreender-se o novo, a nova estrutura, o novo sujeito” (Covre,
1991, p. 36-37).
Sem dúvida Marx falou que os
homens fazem a história sob condições determinadas mas isto não tem nada a ver
com uma “ambivalência do capitalismo”, pois ele não acena para a igualdade e
sim a sua negação, o proletariado, que faz isto, mesmo sob as condições
determinadas pelo capitalismo. A autora troca “faz a história” por “faz o
capitalismo”. O discurso sobre “novo sujeito” e “nova estrutura” não vem
acompanhado por nada de “novo”, nem a estrutura (que continua capitalista, só
que “melhorada” e “mais democrática”) e nem o “sujeito” (o cidadão em busca da
cidadania). Por fim, ficamos sabendo que “a luta mais ampla direciona-se para o
estado, e que capital e trabalho podem, de certa forma, conviver, embora
conscientes do conflito, e estabelecer normas que permitam construir uma
sociedade melhor” (Covre, 1991, p. 37), que “determinados empresários e
administradores de alto nível podem ter uma visão avançada do processo social,
de tal modo que suas empresas tornem-se, de certo modo, patrimônio da
sociedade” (Covre, 1991, p. 67), que “a própria constituição é um processo, e
não uma carta estagnada” (Covre, 1991, p. 73) e que “a cidadania é o próprio
direito à vida no sentido pleno. Trata-se de um direito que precisa ser
construído coletivamente, não só em termos de atendimento às necessidades
básicas, mas acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais
abrangente, o papel do (s) homem (s) no universo” (Covre, 1991, p. 11). Assim,
o estado capitalista torna-se uma “forma de dominação legítima”; o conflito
capital-trabalho pode conviver e proporcionar uma sociedade melhor; alguns
empresários poderão contribuir com isso, bem como as normas jurídicas, tal como
a constituição; e devemos buscar integrar o homem num nível mais abrangente da
existência, com um apelo místico ao seu “papel no universo”. O capitalismo é
prodigioso em produzir ideólogos e ideologias, sustentando as classes
auxiliares da burguesia, principalmente os intelectuais, especialistas em
falsificar a realidade de acordo com os interesses do capital.
Assim sendo, a cidadania revela sua face oculta: ela
significa a integração dos indivíduos na sociedade capitalista por meio do
estado. A ideologia da cidadania, por sua vez, é uma concepção que corresponde
aos interesses de frações das classes auxiliares da burguesia e que é
convergente com o interesse da classe capitalista, sendo, pois, uma ideologia
burguesa. Sem dúvida, em determinados momentos históricos e países (devido sua
posição na divisão internacional do trabalho), a cidadania pode se converter
num obstáculo para a realização dos interesses da classe capitalista ou de
algumas de suas frações. Este é o motivo pelo qual a cidadania é mais débil nos
países capitalistas subordinados e também a razão de ser do ataque neoliberal a
ela, pois a crise do regime de acumulação cria novas necessidades para o
capital, que entram em contradição com a cidadania. Este será o ponto que
analisaremos a seguir, a dinâmica da política institucional envolvida na luta
de classes e no desenvolvimento capitalista.
[1] “A
cidadania é uma status concedido
àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem
o status são iguais com respeito aos
direitos e obrigações pertinentes ao status”
(Marshall, 1967, p. 76.).
[2] “Houve um tempo em que a burguesia, então
emergente, defendia idéias universais, como a cidadania, proposta para todos”
(Buffa, 1987, p. 11); “Se foi com as revoluções burguesas que a burguesia tomou
o poder estatal, e se foi com a Revolução Francesa que se instauram de vez a
burguesia como classe dominante e o capitalismo como forma de produzir e viver,
como situar a questão do Estado de direito a da cidadania? Como intrinsecamente
burguesa? Respondo com um sim e um não... Não, se identificarmos esses resultados
como conquista da burguesia – que se processa por longo período de transição
entre o feudalismo e o capitalismo – por valores universais, quando carrega
todos os segmentos subalternizados (camponeses, artesão, etc.), o chamado
terceiro Estado, para a revolução. Sim, se nos ativermos à concepção do Estado
de direito, de cidadania, depois que a burguesia se transforma em classe
dominante; Principalmente depois que Napoleão Bonaparte torna-se Imperador,
difundindo o capitalismo pelo mundo, a partir do século XIX” (Covre, 1991, p.
18-19). As “idéias universais” defendidas pela burguesia são idéias burguesas,
e Marx já havia desmascarado elas, tal como se ê em sua análise da declaração
dos direitos e deveres do homem e do cidadão (Marx, 1980). A questão é que a
burguesia apresenta seus interesses particulares como interesses universais e
propor tais interesses para “todos” não nada de verdadeiramente universal, pois
isto não passa de uma impostura, tal como se vê nestes intelectuais.
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