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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

A FACE OCULTA DA CIDADANIA



A Face Oculta da Cidadania*

 Nildo Viana

 * Capítulo do livro:VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.

O desenvolvimento do estado capitalista e da democracia burguesa foi, principalmente a partir do século 18, acompanhado pelo desenvolvimento da cidadania. A compreensão das mudanças na política institucional passa pela necessidade de compreender o processo de desenvolvimento da cidadania e das ideologias que se inspiram nela.
O que é a cidadania? Sem dúvida poderíamos retomar a concepção grega de cidadania, mas isto seria muito pouco útil tendo em vista as enormes diferenças tanto em relação à idéia quanto em relação à realidade que ela busca expressar. Ao contrário do estado e da democracia, o significado desta expressão não é muito polêmico. Desde a declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão, o cidadão é um indivíduo portador de determinados direitos e deveres. Conseqüentemente, a cidadania é o reconhecimento destes direitos, mas um reconhecimento de fato, ou seja, a cidadania é a concretização destes direitos e deveres[1].
Quais são estes direitos? Hoje se concorda que estes direitos são os direitos civis, políticos e sociais. Os direitos civis são aqueles referentes à liberdade individual, tal como a liberdade de ir e vir, de imprensa, de pensamento, etc.; os direitos políticos são aqueles referentes ao direito de votar e ser votado, entre outros; os direitos sociais são aqueles referentes ao bem estar físico e mental, tal como o direito à saúde, educação, habitação, etc. Os deveres são os deveres para com o estado: pagar impostos, votar, etc.
A cidadania é um privilégio de quem tem concretizado estes direitos e deveres. Entretanto, tal como observou T. H. Marshall, a cidadania é uma instituição em desenvolvimento e, portanto, transformou-se com o processo histórico (Marshall, 1967; Barbalet, 1989). Segundo Marshall, “quando os três elementos (civil, político e social) da cidadania se distanciam uns dos outros, logo passaram a parecer elementos estranhos entre si. O divórcio entre eles era tão completo que é possível, sem destorcer os fatos históricos, atribuir o período de formação da vida de cada um, a um século diferente – os direitos civis ao século XVIII, os políticos ao XIX e os sociais ao XX. Estes períodos, é evidente, devem ser tratados com uma elasticidade razoável, e há algum entrelaçamento, especialmente entre os dois últimos” (Marshall, 1967, p. 66).
Desta forma, a cidadania se desenvolveu e atingiu o seu ápice no século 20, com a conquista dos direitos sociais. Neste momento se unifica os três direitos e os deveres do cidadão e surge a cidadania plena. Porém, isto não ocorre da mesma forma em todos os países, pois tal acontecimento ocorre na Europa Ocidental e em mais alguns poucos países.
Porém, parece que existe algo oculto por detrás desta aparente “inocência” política da cidadania. Será que cidadania significa somente isto? Não existirá um lado oculto da cidadania que é omitido pela ideologia dominante? A nosso ver sim, e o primeiro ponto que encontramos é a relação entre cidadania e estado.
O cidadão é um ser abstrato criado pelo direito. Se a lei diz que “todos os homens são iguais perante a lei”, a realidade diz: “os seres humanos são desiguais perante a sociedade”, devido à divisão social do trabalho. A desigualdade real existente entre os homens é substituída por uma fictícia igualdade, “perante a lei”. Uma vez que a lei é igual para todos, pressupõe-se que existe uma igualdade jurídica entre os homens. Porém, esta igualdade jurídica é fictícia e isto ocorre porque existe uma desigualdade de fato que corrói esta igualdade fictícia. O indivíduo burguês pode usufruir de seu direito de liberdade, pensamento, expressão, reunião, etc., pelo simples motivo que ele possui as condições materiais para efetivar tais direitos. Qualquer disputa jurídica entre um burguês e um proletário, que são “iguais perante a lei”, tende a ser resolvida em favor do primeiro, pois eles são “desiguais perante a realidade”. O primeiro conta com o poder do dinheiro e isto quer dizer os melhores advogados, as melhores provas, a melhor imagem, etc.
Desta forma observamos que o aparato jurídico do estado Capitalista anuncia a igualdade fictícia dos indivíduos perante a lei (o que significa, no final das contas, perante ao próprio estado). Tal como colocou Marx, “o Estado anula, a seu modo, as diferenças de nascimento, de status social, de cultura e de ocupação, ao declarar o nascimento, o status social, a cultura e a ocupação do homem como diferença não políticas, ao proclamar todo membro do povo, sem atender a estas diferenças, coparticipante da soberania popular em base de igualdade, ao abordar todos os elementos da vida real do povo do ponto de vista do Estado. Contudo, o Estado deixa que a propriedade privada, a cultura e a ocupação atuem ao seu modo, isto é, como propriedade privada, como cultura e como ocupação, e façam valer sua natureza especial. Longe de acabar com estas diferenças de fato, o Estado só existe sobre tais premissas, só se sente como Estado político e só faz valer sua generalidade e contraposição a estes elementos seus” (Marx, 1980, p. 25).
Marx coloca que o cidadão só é cidadão perante o estado. É o estado que, ao declarar os direitos do cidadão, lhe concede a cidadania. “Já se demonstrou como o reconhecimento dos direitos humanos pelo estado moderno tem o mesmo sentido que o reconhecimento da escravidão pelo Estado antigo” (Marx, 1980, p. 93).
O cidadão do estado capitalista é o indivíduo portador dos direitos burgueses, separados entre os direitos civis e os direitos políticos. Os direitos civis são os direitos próprios do indivíduo burguês (o direito à propriedade é o exemplo mais típico) e do indivíduo proletário submetido ao indivíduo burguês (o direito de ir e vir é uma necessidade do capital para que ele possa explorar a força de trabalho). Os direitos políticos são os direitos do indivíduo frente ao estado, o que torna este legítimo, bem como sua ficção da igualdade jurídica.
O cidadão, enfim, é um indivíduo que cumpre com seus deveres e direitos, ou seja, é aquele que respeita a propriedade privada, a liberdade de imprensa, etc., paga os impostos, legitima o estado capitalista reconhecendo o processo eleitoral, etc. O cidadão é o indivíduo conservador, o indivíduo que aceita o mundo existente, ou seja, a sociedade burguesa (modo de produção capitalista e formas de regularização não-estatais) e o estado capitalista. A cidadania, por conseguinte, é a concretização dos direitos do cidadão, e, portanto, significa a integração do indivíduo na sociedade burguesa por intermédio do estado.
Por isso talvez seja interessante retomar o desenvolvimento histórico da cidadania desde o surgimento da sociedade burguesa. O movimento do capital comercial engendrou o predomínio do capital industrial e este se consolidou e transformou em uma nova força dominante. Este processo gerou a necessidade do mercado livre, que se manifesta através da instituição do trabalhador juridicamente livre e da propriedade privada burguesa, ao lado da instituição de um mercado consumidor e um mercado distribuidor igualmente livres. Desta forma, os chamados direitos civis (liberdade de ir e vir, de propriedade, etc.) são conseqüências naturais da emergência da civilização burguesa[2].
Trata-se de um período marcado pela formação das classes sociais fundamentais do modo de produção capitalista e que se consolida com a ascensão da burguesia ao poder político. Para efetivar esta ascensão da burguesia tinha que apresentar seus interesses particulares como sendo interesse universal de todas as classes sociais opostas à antiga classe dominante (a classe feudal) e se dizer representante geral da sociedade (cf. Marx, 1978). A burguesia fala em nome do terceiro estado e consegue unificar este a seu redor. Isto quer dizer que a burguesia apresenta seus interesses particulares como interesse geral da sociedade, mas isto é apenas uma ideologia (sistematização de uma falsa consciência), e não uma realidade e por isto não tem o menor sentido se dizer hoje que a burguesia carregava em si “valores” ou “idéias universais”, tal como alguns colocaram.
Os direitos políticos, em sua forma limitada tal como se apresenta na democracia burguesa censitária, são conseqüências naturais da implantação da dominação burguesa. Surge o estado capitalista moderno e com ele os direitos políticos que lhes são correspondentes. A expansão dos direitos políticos (a passagem para a democracia burguesa partidária) revela simplesmente a emergência do proletariado e de sua luta contra a sociedade burguesa e a tentativa do estado capitalista em integrar tal classe social e assim amortecer a luta de classes através do sufrágio universal e do sistema partidário.
Isto, porém, não foi suficiente para impedir a luta operária e o ciclo revolucionário do início do século 20 comprova isto. É a partir da Segunda Guerra Mundial que a classe dominante busca, através do seu poder coletivo, o estado capitalista, consolidar sua dominação e impedir o surgimento de qualquer brecha revolucionária. A reorganização legal da democracia burguesa e a expansão  dos direitos sociais são as formas encontradas para integrar as classes exploradoras na sociedade capitalista, ou seja, a cidadania burguesa entra numa nova fase, onde há algumas alterações nos direitos políticos e a expansão dos chamados direitos sociais, com o surgimento do famigerado estado do bem-estar social.
A passagem da democracia partidária liberal para a democracia partidária burocrática é marcada pela restrição da participação das classes exploradoras na política institucional. Porém, isto vem acompanhado por um crescimento quantitativo das classes auxiliares da burguesia, que recruta indivíduos inclusive provenientes das classes exploradoras, que são cooptados e passam a integrar a burocracia partidária, a burocracia sindical, etc. Isto significa que a expansão das classes auxiliares da burguesia acaba amortecendo a luta de classes.
Iremos abordar rapidamente esta questão das classes auxiliares no contexto desta discussão. Muitos falam do “crescimento da classe média” (sem dúvida, o construto de classe média é bastante útil para a ideologia dominante e está intimamente ligado à ideologia da estratificação social que busca ofuscar a teoria marxista das classes sociais), tal, como, Bottomore: “A luta de classes foi também moderada e está cada vez mais voltada para canais reformistas, pelas mudanças na natureza de estrutura de classes, e em especial pelo crescimento das classes médias” (Bottomore, 1981, p. 29). Este crescimento também foi notado por Poggi, que destaca que tal “classe média assalariada” passa a imitar e superar a classe trabalhadora em sua pressão sobre o estado para satisfazer seus interesses particulares. Ela “procura preservar através da ação estatal essa segurança econômica e posição social que deixou de poder basear na posse de um patrimônio de família (...), ou na capacidade para manter a sua independência enquanto coloca no mercado serviços valiosos e sofisticados”(Poggi, 1981, p. 133).
Poucos são aqueles que percebem que o estado, a democracia burguesa e os partidos políticos são produtores de novos membros das classes auxiliares e por conseguinte, de novos grupos conservadores na sociedade. Robert Michels observou isto em relação aos partidos políticos, que, segundo ele, são produtores de “novas camadas pequeno-burguesas” (Michels, 1982) e Guiducci também observou a expansão das classes auxiliares e seus interesses: “Aqueles que teriam tido o poder de administrar o interesse geral estão impotentes para fazer qualquer coisa sem se autoprejudicar e sem interromper o próprio mecanismo particular de autoconservação através de uma contínua operação parasitária. Portanto, a ‘democracia representativa’, indireta e dominante, consegue representar apenas a si própria, como grupo oligárquico de poder de interesse acima da sociedade civil oprimida. E, em parte notável, também os partidos de esquerda, para continuarem a existir paradoxalmente como partidos de esquerda e/ou diretamente de oposição, entraram no jogo para seu próprio financiamento, tornando-se assim seduzidos e convenientes no jogo particular contra o interesse geral” (Guiducci, 1991, p. 75-76).
Portanto, o que se deve ressaltar é que as classes auxiliares, devido as necessidades de sua própria reprodução, bem como sua inserção social, auxilia a dominação burguesa e se essas classes lutassem contra a burguesia estariam lutando contra a própria existência e privilégios (por exemplo: a luta revolucionária é uma luta pela abolição da democracia burguesa e dos partidos políticos, o que significa a abolição da burocracia parlamentar e partidária... luta que, sem dúvida, elas jamais irão compartilhar, pois assim elas mesmas seriam abolidas enquanto classe, o que significa a perda de seus privilégios).
Este crescimento quantitativo das classes auxiliares juntamente com a expansão dos direitos sociais é possibilitado pela estabilidade e ampliação da acumulação capitalista nos países capitalistas imperialistas a partir da Segunda Guerra Mundial. Esta ampliação da acumulação capitalista foi incentivada pelas condições favoráveis pela situação do pós-Guerra (destruição em massa das forças produtivas, o que serviu como contrapeso temporário ao nível elevado de composição orgânica do capital) e pela exploração imperialista através da transferência de mais-valor dos países capitalistas subordinados para os países capitalistas imperialistas.
Os direitos sociais oferecidos pelo estado integracionista (do “bem estar social”) são, na verdade, formas de integração das classes exploradoras no modo de produção capitalista. O estado capitalista fornece estes direitos sociais (através de sua política social) porque isto é de interesse do capital. O direito à educação, por exemplo, é uma exigência de muitos setores das classes exploradoras e estes exercem pressão sobre o estado, sendo que contam com o apoio de partes das classes auxiliares (principalmente as produzidas e/ou ligadas aos partidos reformistas). O não-atendimento desta reivindicação fortalece a oposição (tanto a reformista quanto a radical que pode se aproveitar da situação e radicalizar o discurso oposicionista e buscar a hegemonia) e por isso o estado capitalista se vê constrangido a atendê-la. Mas, mesmo que não houvesse reivindicação, o estado capitalista poderia ampliar o atendimento oferecida pela rede escolar estatal, pois isto é de interesse do capital. Qual é o interesse do capital nisto? A escola estatal é uma instituição útil para o capital por vários motivos: a) Ela repassa a ideologia e os valores dominantes e assim contribui com o amortecimento das lutas de classes; b) Ela prepara a força de trabalho necessária ao capital; c) Ela corrompe diversos indivíduos que são incluídos na burocracia escolar ou em posições que fornecem status ou adquirem autoridade sobre outros por conseguinte, o estado capitalista adquire legitimidade ao atender reivindicações populares e ao mesmo tempo reforça a integração dos indivíduos nas suas instituições.
O exemplo da educação revela o que é comum à todos os chamados “direitos sociais”. O seu papel, apesar das diferenças na forma como tais direitos atendem os interesses do capital, é o de legitimar o estado capitalista e integrar os indivíduos na sociedade burguesa.
Aqui podemos colocar uma questão importante para os ideólogos da cidadania. Alguns, ao falarem sobre cidadania, a colocam como se ela fosse doada pelo estado capitalista (Marshall, 1967). Outros vociferam contra a “cidadania outorgada” e defendem a “cidadania conquistada”. Sobre este último ponto de vista, podemos ver esse tipo de afirmação: “A luta pela educação, pela cultura, pelo saber e pela instrução encontra sentido, se inserida nesse movimento de constituição da identidade política do povo comum. Essa luta é um momento educativo enquanto representa uma movimentação, organização, confronto, reivindicação e, conseqüentemente, expressão e prática de consciência do legítimo e do devido” (Arroyo, 1987, p. 77).
Segundo este último ponto de vista, a democracia e a cidadania só são válidas se forem conquistadas e não doadas pelo estado e a própria conquista, que pressupõe mobilização, organização, etc., é que oferece valor à cidadania. A ênfase na conquista parece, se formos incautos, um discurso esquerdista. Mas não é isto que ocorre devido ao fato de se enfatizar a ação no sentido de conquistar cidadania. Uma ação só é revolucionária ou só colabora com o processo de libertação dos explorados se ela tiver um objetivo revolucionário. Uma grande mobilização popular não quer dizer nada se não tiver um objetivo revolucionário ou tiver no seu interior tendências que tenham tal objetivo e busquem torná-lo hegemônico.
Tomemos um exemplo. O impeachment do presidente Fernando Collor de Melo no Brasil. Houve uma grande mobilização popular e esta acabou atingindo os seus objetivos: a derrubada do governo Collor. Porém, isto não provocou nenhum acúmulo para a luta operária e a luta de outros setores explorados, e nem mesmo para o movimento estudantil, um dos principais articuladores da mobilização. Quais foram as razões disto? Isto ocorreu porque tal mobilização foi hegemonizada, inicialmente, pelo bloco reformista (partidos de “esquerda”, que queriam derrubar o governo e convocar novas eleições presidenciais, para lançar seu candidato, Lula), e posteriormente, pelo bloco dominante, que queria tão somente a derrubada do presidente Collor e sua substituição pelo vice-presidente. Poucas vozes discordantes se manifestaram.
Terminada a mobilização, todo mundo, ou melhor, os cidadãos, voltaram para casa e assistiram pela televisão a lição de cidadania que deram ao país. E tudo continuou como antes, com exceção da presidência, que proporcionou uma substituição que nada alterou. Mas o resto estava lá: o conformismo, a consciência fetichista, etc. Apenas outra coisa mudou além do fato do presidente Collor e alguns “bodes expiatórios” terem sido “punidos”: o estado capitalista recuperou sua legitimidade perdida.
Por conseguinte, se a cidadania é outorgada ou conquistada, não faz a menor diferença. A luta pelos direitos sociais só seria proveitosa para o proletariado se fosse uma luta autogerida e com objetivos revolucionários (aliás, uma coisa gera outra), embora um movimento possa começar heterogerido e reformista, defendendo da correlação de forças, se tornar autogerido e revolucionário ou pelo menos fortalecer essa posição junto à sociedade ao disputar a hegemonia no movimento. No entanto, o engajamento nesta luta só tem sentido se existir esta possibilidade concreta.
Neste momento, podemos colocar outra questão muito discutida pelos ideólogos da cidadania: a questão da inclusão e da exclusão. Os excluídos são aqueles que estão fora das esferas burguesas de produção e consumo, dos direitos sociais. Os incluídos são os cidadãos que usufruem da cidadania. Existem os excluídos da cidadania. Resta saber quem são estes indivíduos excluídos que devem, segundo os ideólogos da cidadania, ser incluídos, o que significa serem integrados na sociedade capitalista.
O próximo passo após ter definido que o grande problema social hoje é a exclusão e que a solução é a inclusão (integração) é propor, para os excluídos, o acesso ou a conquista da cidadania e, para os já incluídos, a ampliação da cidadania (claro que esse discurso é mais comum nos países capitalistas subordinados).
Encontramos aqui o mesmo problema anteriormente colocado referente à opção pela “cidadania conquistada”. Conquistar ou ampliar a cidadania significa realizar a integração, ou intensificá-la, na sociedade capitalista. O desempregado (um excluído) teve que receber um emprego (ser incluído) e assim se submeter ao trabalho alienado, à exploração capitalista. Um analfabeto não-eleitor (excluído dos direitos políticos, por não ter o direito de voto) teve ser “educado” pelo estado e/ou deve se tornar um eleitor. Desta forma, ele deve ser oprimido na escola (através da inculcação da ideologia dominante) e deve se tornar mais um legitimador do estado capitalista que o oprime através da participação no processo eleitoral.
Mas o que se deve fazer? Aceitar o desemprego, o analfabetismo, o desrespeito ao direito de votar? Devemos aceitar a exclusão? O problema não se encontra em lutar contra o desemprego, o analfabetismo, etc., e sim na forma como se faz isto, ou seja, o problema se encontra em buscar superar esta situação de miséria e opressão de parte da população através da integração dela na sociedade capitalista. O direito ao voto, por exemplo, deve ser reconhecido legalmente, mas não deve ser um dever (ou seja, não deve ser obrigatório). O direito à educação deve ser reconhecido de fato, mas a própria forma de educação deve ser acompanhado com a transformação da escola e o mesmo ocorre com o emprego, mas trata-se de propor uma transformação na “forma de emprego” no sentido de contribuir com a transformação social. Não se trata também de ampliar a cidadania mas de superá-la, ou seja, o problema não está em conquistar direitos (civis, políticos e sociais) e deveres e sim em transformar a sociedade.
Se lembrarmos que cidadania significa a integração do indivíduo no capitalismo por intermédio do estado, veremos que todas estas reivindicações de direitos são dirigidas ao estado capitalista. A cidadania cedida pelo estado (não interessa se é outorgada ou conquistada) é controlada por ele, pois o sistema de saúde, o sistema escolar, o sistema eleitoral, etc., é tudo dirigido pelo estado capitalista. A conquista da cidadania legitima o estado capitalista e reafirma o processo de exploração capitalista.
Enfim, a busca de cidadania significa a luta por uma integração na sociedade capitalista, isto é, significa lutar por compartilhar do processo de exploração e opressão efetivado por esta sociedade, e significa reconhecer o estado capitalista como legítimo e como a instituição que deve controlar a população. Isto ocorre porque tal luta se fundamenta nos “direitos do cidadão”, mesmo que estes incluam os direitos sociais, pois tais direitos são direitos do cidadão do estado capitalista. É por isso que Marshall, com o seu conservadorismo muito mais esclarecedor do que a ideologia progressista de outros, pôde dizer que: “as diferenças de status podem receber a parcela da legitimidade em termos de cidadania democrática, desde que não sejam muito profundas, mas ocorram numa população unida, numa civilização única; e desde que não sejam expressão de privilégio hereditário. Isto significa que desigualdades podem ser toleradas numa sociedade fundamentalmente igualitária desde que não sejam dinâmicas, isto é, que não criem incentivos que se originam do descontentamento e do sentimento de que ‘este tipo de vida não me agrada’, ou ‘estou decidido a fazer tudo para que meu filho não passe pelo que passei’ ” (Marshall, 1967, p. 108).
O que Marshall quis dizer é que, deixando de lado os seus eufemismos, as diferenças de status e as desigualdades podem ser toleradas graças à cidadania e a “igualdade” que ela proporciona. Substituindo esta linguagem ideológica, podemos dizer que a exploração de classes (e, conseqüentemente, a divisão da sociedade em classes sociais, o que implica em “desigualdade” e “diferença de status”) pode ser tolerada havendo a igualdade fictícia proporcionada pela cidadania. Marshall busca nos convencer da possibilidade da cidadania reduzir as desigualdades mas nós sabemos que isto é impossível por vários motivos, entre os quais, a existência, em todos os países do mundo, de setores que não possuem cidadania. Mas, além disso, podemos dizer que a cidadania não pode e nem quer reduzir as desigualdades e diferenças de status, pois ela é a própria aceitação e reprodução da “desigualdade” e “diferenças de status”, ou melhor dizendo, da exploração de classe.
A classe capitalista não busca o atendimento de “direitos sociais”, pois ela possui o poder financeiro. As migalhas que o estado capitalista cede às classes exploradas servem apenas para reproduzir a situação que gera a necessidade de migalhas por parte delas. A busca da cidadania tão propagandeada pelos reformistas é simplesmente isto: o reconhecimento da exploração e a tentativa de amenizar tais efeitos através do estado capitalista para que se dê continuidade ao processo de exploração.
Se as classes exploradas lutam por migalhas é porque elas realmente precisam de migalhas e é isto que possibilita a reprodução de sua situação de necessitar de migalhas. Se o estado capitalista, o poder coletivo da burguesia, cede migalhas, isto se deve ao fato de que ceder tais migalhas permite a continuidade da apropriação de um mundo de riquezas, a permanência da exploração de classe. Desta forma, reconhecemos que a luta pela cidadania é um projeto do bloco reformista que serve para a reprodução da sociedade burguesa e que a “cidadania conquistada” significa um amortecimento das lutas de classes, o que pressupõe a continuidade da existência das classes sociais e, conseqüentemente, da exploração, da opressão e da miséria.
Os defensores mais ingênuos da conquista da cidadania, mesmo os que buscam um discurso “progressista” se referindo a Marx e ao socialismo, revelam ser portadores de uma ideologia burguesa que buscam integrar as classes exploradoras na sociedade capitalista, principalmente com o discurso de que a cidadania é “uma categoria estratégica para uma sociedade melhor” (Covre, 1991).
A argumentação ideológica é muitas vezes simplista mesmo quando busca se apresentar como “progressista” ou de “esquerda”. Num pequeno livro introdutório ao tema da cidadania (Covre, 1991), a autora busca legitimar, por diversas vezes, a discussão em torno deste tema através do apelo ao fato da “derrocada do socialismo da URSS e Leste Europeu”. Numa dessas passagens podemos ler o seguinte: “Numa era em que os modelos revolucionários desencadeadores do socialismo do Leste perdem credibilidade, o que colocar em seu lugar para satisfazer o sonho – que o homem sempre terá – de alcançar uma sociedade melhor? Para refletir sobre isso, retornemos ao período riquíssimo da burguesia revolucionária e bebamos em suas fontes, naquilo que se propôs e não realizou. Bebamos também na fonte marxista, no que acenou e igualmente não realizou” (Covre, 1991, p. 62. Grifos meus). Deixando de lado que nunca houve socialismo no Leste e sim capitalismo de estado, observamos uma concepção conformista (o sonho que o homem sempre terá, e que, portanto, nunca será realizado...) e reformista (sociedade “melhor” e não uma sociedade radicalmente diferente) que busca assimilar o marxismo (bebamos “também” na fonte marxista) a partir do ponto de vista da burguesia (que mesmo em seu período revolucionário já era burguesia...).
Este ponto de vista está tão ligado à ideologia burguesa que podemos observar, simultaneamente, uma visão europocêntrica do mundo (a Europa Ocidental foi o “berço” da civilização burguesa) e uma mentalidade burguesa na busca em assimilar outras ideologias: “A base de sua inspiração (da ideologia burguesa), estava na releitura dos clássicos (gregos e romanos), que teve sua grande expressão na Renascença, aprendendo tudo o que de melhor houve na humanidade” (Covre, 1991, p. 25). Não deixa de ser cômico ficar sabendo que o escravismo antigo e sua ideologia constitui “tudo o que de melhor houve na humanidade” (sem citar o fato de que o Oriente e o resto do mundo devem ser esquecidos...). Até a ascensão da burguesia que os resgatou e “melhorou”.
Outras afirmações brilhantes são feitas sobre o estado, que não serve somente à reprodução do capitalismo, pois este é “ambivalente” e graças a isto nos permite “acenar à igualdade”: “a ambivalência do capitalismo: de um lado exploração e desigualdade; de outro, caminhando concomitantemente, o aceno à igualdade e à construção da cidadania mais plena” (Covre, 1991, p. 36). Além da ideologia do “estado neutro” temos a ideologia do capitalismo que (acreditem se puderem) acena à igualdade (!). De onde se retira tão extravagante idéia? De Marx! Vejam só: “retiramos do próprio marxismo esse jogo de possibilidades: os homens fazem a história, mas sob determinadas condições. Para manter-se o mais fiel às proposições de Marx, é preciso não pender para nenhum dos lados”; “A mudança entre estrutura e sujeito é complexa; tanto um quanto o outro mudam-se reciprocamente, e é preciso, de forma contínua, apreender-se o novo, a nova estrutura, o novo sujeito” (Covre, 1991, p. 36-37).
Sem dúvida Marx falou que os homens fazem a história sob condições determinadas mas isto não tem nada a ver com uma “ambivalência do capitalismo”, pois ele não acena para a igualdade e sim a sua negação, o proletariado, que faz isto, mesmo sob as condições determinadas pelo capitalismo. A autora troca “faz a história” por “faz o capitalismo”. O discurso sobre “novo sujeito” e “nova estrutura” não vem acompanhado por nada de “novo”, nem a estrutura (que continua capitalista, só que “melhorada” e “mais democrática”) e nem o “sujeito” (o cidadão em busca da cidadania). Por fim, ficamos sabendo que “a luta mais ampla direciona-se para o estado, e que capital e trabalho podem, de certa forma, conviver, embora conscientes do conflito, e estabelecer normas que permitam construir uma sociedade melhor” (Covre, 1991, p. 37), que “determinados empresários e administradores de alto nível podem ter uma visão avançada do processo social, de tal modo que suas empresas tornem-se, de certo modo, patrimônio da sociedade” (Covre, 1991, p. 67), que “a própria constituição é um processo, e não uma carta estagnada” (Covre, 1991, p. 73) e que “a cidadania é o próprio direito à vida no sentido pleno. Trata-se de um direito que precisa ser construído coletivamente, não só em termos de atendimento às necessidades básicas, mas acesso a todos os níveis de existência, incluindo o mais abrangente, o papel do (s) homem (s) no universo” (Covre, 1991, p. 11). Assim, o estado capitalista torna-se uma “forma de dominação legítima”; o conflito capital-trabalho pode conviver e proporcionar uma sociedade melhor; alguns empresários poderão contribuir com isso, bem como as normas jurídicas, tal como a constituição; e devemos buscar integrar o homem num nível mais abrangente da existência, com um apelo místico ao seu “papel no universo”. O capitalismo é prodigioso em produzir ideólogos e ideologias, sustentando as classes auxiliares da burguesia, principalmente os intelectuais, especialistas em falsificar a realidade de acordo com os interesses do capital.
Assim sendo, a cidadania revela sua face oculta: ela significa a integração dos indivíduos na sociedade capitalista por meio do estado. A ideologia da cidadania, por sua vez, é uma concepção que corresponde aos interesses de frações das classes auxiliares da burguesia e que é convergente com o interesse da classe capitalista, sendo, pois, uma ideologia burguesa. Sem dúvida, em determinados momentos históricos e países (devido sua posição na divisão internacional do trabalho), a cidadania pode se converter num obstáculo para a realização dos interesses da classe capitalista ou de algumas de suas frações. Este é o motivo pelo qual a cidadania é mais débil nos países capitalistas subordinados e também a razão de ser do ataque neoliberal a ela, pois a crise do regime de acumulação cria novas necessidades para o capital, que entram em contradição com a cidadania. Este será o ponto que analisaremos a seguir, a dinâmica da política institucional envolvida na luta de classes e no desenvolvimento capitalista.





[1] “A cidadania é uma status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao status” (Marshall, 1967, p. 76.).
[2]  “Houve um tempo em que a burguesia, então emergente, defendia idéias universais, como a cidadania, proposta para todos” (Buffa, 1987, p. 11); “Se foi com as revoluções burguesas que a burguesia tomou o poder estatal, e se foi com a Revolução Francesa que se instauram de vez a burguesia como classe dominante e o capitalismo como forma de produzir e viver, como situar a questão do Estado de direito a da cidadania? Como intrinsecamente burguesa? Respondo com um sim e um não... Não, se identificarmos esses resultados como conquista da burguesia – que se processa por longo período de transição entre o feudalismo e o capitalismo – por valores universais, quando carrega todos os segmentos subalternizados (camponeses, artesão, etc.), o chamado terceiro Estado, para a revolução. Sim, se nos ativermos à concepção do Estado de direito, de cidadania, depois que a burguesia se transforma em classe dominante; Principalmente depois que Napoleão Bonaparte torna-se Imperador, difundindo o capitalismo pelo mundo, a partir do século XIX” (Covre, 1991, p. 18-19). As “idéias universais” defendidas pela burguesia são idéias burguesas, e Marx já havia desmascarado elas, tal como se ê em sua análise da declaração dos direitos e deveres do homem e do cidadão (Marx, 1980). A questão é que a burguesia apresenta seus interesses particulares como interesses universais e propor tais interesses para “todos” não nada de verdadeiramente universal, pois isto não passa de uma impostura, tal como se vê nestes intelectuais.

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