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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Gramsci, Nietzsche e o Super-Homem (Notas sobre Gramsci 02)


Gramsci, Nietzsche e o Super-Homem
(Notas Sobre Gramsci 02)

Nildo Viana


Gramsci foi um especialista em criar monstros. Um dos monstrengos que ele criou foi sua fantástica hipótese da origem da ideia nietzschiana do super-homem. Usando o seu método filológico, que também pode ser chamado de “método Frankenstein”, ele se pergunta sobre quando os “admiradores de Nietzsche” pensam no super-homem, estão se inspirando em Nietzsche ou não? Daí ele cria mais um monstrengo: a origem popularesca do super-homem.

Essa origem popularesca tem como base, se acreditarmos em Gramsci e seus monstrengos imaginários, na literatura de folhetim. Gramsci sugere que o Conde de Monte Cristo, personagem de Dumas e nome do seu romance, é a verdadeira fonte inspiradora dos “nietzschianos” (como, a partir de agora, chamarei o que ele denominou os “admiradores de Nietzsche”), e não a “alta cultura”, isto é, a obra de Nietzsche. Assim, “ao que parece”, diz Gramsci, “pode-se afirmar que muito da chamada 'super-humanidade' nietzschiana tem como origem e modelo doutrinário apenas O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, e não Zarathustra” (Gramsci, 1986, p. 125).

Uma assertiva curiosa, mas típica de Gramsci e uma demonstração de seu método filológico. Mais curiosa ainda é sua hipótese de que o próprio Nietzsche teria se inspirado na literatura de folhetim para criar a sua ideia de super-homem. Ele se pergunta, sem indício nenhum, se Nietzsche não teria sido influenciado pelos romances franceses de folhetim. A única coisa que ele pòde dizer a favor dessa assertiva é que essa literatura foi bastante difundida até 1870 entre os intelectuais, sem citar a fonte dessa informação. Ele não se contenta com isso e continua com suas conjecturas e especulações, onde chega a afirmar que “para o 'super-homem' de Nietzsche, além do influxo romântico francês (e, em geral, do culto de Napoleão), deve-se examinar as tendências racistas, que culminaram em Gobineau e, portanto, em Chamberlain e no pangermanismo (Treitschke, a teoria da potência, etc.). Mas talvez se deva considerar o 'super-homem' dumasiano precisamente como uma reação 'democrática' à concepção racista de origem feudal, que deve ser unida à exaltação do 'galicismo' feita nos romances de Eugène Sue” (Gramsci, 1986, p. 128).

O tema é relativamente banal, mas merece um duplo comentário, no sentido de que essa abordagem permite uma discussão de conteúdo e de procedimento. Devido à influência de Gramsci nos meios políticos chamados de “esquerda” e nos meios acadêmicos, isso se faz necessário, para, como dizem os ideólogos do pós-modernismo, “desconstruir” esse monstro fabuloso chamado Gramsci.

A análise de Gramsci tem metade de conjectura e metade de extrapolação. Supor que Nietzsche elaborou sua concepção filosófica de super-homem, intimamente ligada a toda a sua filosofia irracionalista cujo fundamento principal é a “vontade de potência”, de reconhecida influência darwinista, mas também Richard Wagner, Kant, Schopenhauer, é uma conjectura muito simplista e que surge da imaginação fértil de Gramsci. Sem dúvida, não é impossível que Nietzsche tenha lido romance de folhetim e que isso possa ter até inspirado de alguma forma sua elaboração, mas isto é algo remoto e seria apenas no nível genérico da formação dos seus valores e representações cotidianas, ou seja, num nível mais basilar, pois sua concepção filosófica possui uma origem intelectual muito mais profunda. Claro é que outros equívocos, como o “racismo de origem feudal”, que não se sabe de onde Gramsci tirou isso, podem ser levantados, mas nos interessa apenas o fundamental na questão, a da origem popularesca da ideia nietzschiana do super-homem.

Porém, menos problemática é a tese de que os “admiradores de Nietzsche” tenham pudor em assumir as origens romanescas e popularescas da ideia de super-homem e por isso apelam para Nietzsche. Sem dúvida, no mundo da incultura e da erudição superficial das classes privilegiadas, isso é bem provável. Porém, não passa de conjectura e extrapolação, pois ficar ao nível genérico de que as classes privilegiadas tendem a um grau e qualidade de leitura baixa e ao mesmo tempo manter o desejo de distinção por sua suposta “cultura superior” é uma coisa, agora apresentar assertivas particulares sobre tais tendências, apresentadas como probabilidades, é outra coisa, e, nesse caso, extremamente problemática.

Daí vem a segunda questão, metodológica, pois o método Frankenstein assombra os textos gramscianos. A questão é que a tese de Gramsci não é a de que as classes privilegiadas tenham essa tendência e sim que os “admiradores de Nietzsche”, uma abstração, portanto, ou seja, os que defendem a ideia de super-homem, a retira dos romances populares. Assim, a base real do processo, desapareceu, pois determinados indivíduos pensam de determinada forma e sua origem está em certos romances. Isso é pura extrapolação, já que não tem base concreta. Meras suposições. Gramsci vivia num mundo de suposições? Sem dúvida, mas essas suposições não eram gratuitas, faziam parte do seu procedimento analítico, fundado no seu método filológico, e possuíam uma crença orientadora que estava presente em todas as suas análises.


Assim, é interessante perceber a ação de seu método: fatos (os “nietzschianos” que defendem a ideia de super-homem e questionam a moral convencional) geram conjecturas (“não se fundamentam em Nietzsche e sim na literatura de folhetim”) que promove especulações e extrapolações (Nietzsche também deve ter se inspirado em tal literatura), que, por sua vez, confirma a crença orientadora. Esse é o procedimento gramsciano por excelência. Resta, portanto, discutir qual é a sua crença orientadora e, a partir dela, o que Gramsci obscurece.

A crença orientadora é a ideia de “corrente cultural” e o processo de suas “derivações culturais”. É por isso que ele irá afirmar que as obras de Dostoiévski, Balzac e parcialmente Victor Hugo, “são culturalmente derivados dos romances de folhetim, tipo Sue, etc.” (Gramsci, 1986, p. 123). A partir dessa crença orientadora se chega às conjecturas e extrapolações e assim temos um círculo fechado, pois estas reforçam aquelas. Assim, método filológico conduz ao reforço da crença orientadora e vice-versa.

O que ficou obscuro em todo esse processo? O que fica obscuro é justamente a base real e concreta de tudo isso e as determinações de uma determinada produção cultural. O russo Dostoiévski, o francês Balzac e o alemão Nietzsche produziram obras que foram derivações dos folhetins populares franceses e com esse tipo de afirmação o concreto, no sentido marxista do termo, foi para o espaço. As classes sociais, os valores, a situação nacional, a conjuntura histórica, os indivíduos produtores, o acesso à literatura francesa de folhetim, e tudo o mais foi descartado com tamanha facilidade que somente um criador de monstrengos imaginários poderia fazer. Aqui se revela uma forte oposição entre o marxismo e Gramsci. A concepção materialista da história foi substituída por uma concepção idealista, culturalista e, portanto, abstrato-metafísica. Porém, no campo da teoria não se pode trocar a realidade concreta por mundos imaginários e por isso a utilidade dos escritos de Gramsci é bem reduzida, e, se tomada ao pé da letra, é prejudicial para qualquer avanço do pensamento crítico-revolucionário.

Referências

GRAMSCI, Antonio. Literatura e Vida Nacional. 3ª edição, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1986.

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