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domingo, 5 de janeiro de 2020

O MISTÉRIO DA MPB



O MISTÉRIO DA MPB

Nildo Viana




O mistério é algo cuja explicação ou causa é desconhecida, algo pouco compreensível ou desconhecido. Também pode ser considerado algo secreto, acessível apenas aos iniciados. A chamada MPB (Música Popular Brasileira) se encontra no primeiro caso (embora alguns queiram colocá-la no segundo). A definição de MPB é um verdadeiro mistério. Se no samba existe algum mistério (VIANNA, 1995), o que em si já é um mistério, na MPB o aspecto misterioso começa por sua própria denominação. O nosso objetivo é apresentar o significado da MPB, o que remete para várias outras questões, que são importantes para uma análise mais profunda desse fenômeno social, especialmente a problemática de sua conceituação e seu processo de formação e consolidação na história da sociedade brasileira.

O mistério da MPB se inicia com sua própria definição. O que é MPB? Um gênero musical? Um movimento artístico? Apenas uma palavra descritiva sem nenhum significado profundo? Outras respostas poderiam ser fornecidas, mas, além de serem questionáveis, ainda assim o mistério continuaria. Essas respostas dependem da perspectiva teórico-metodológica, no caso do pensamento complexo, ou dos valores e concepções, no caso das representações cotidianas. A nossa resposta tem uma base teórico-metodológica que nos permite a busca de superação desse mistério através de uma investigação que retoma o concreto ao invés de se limitar ao empírico, pois este fica no reino das aparências, o que significa buscar descobrir sua essência e suas demais determinações. Através do método dialético e do materialismo histórico, apontamos para uma compreensão mais profunda desse fenômeno musical, com a possibilidade de sua superação. Essa é a tarefa que nos propomos a concretizar.

A Misteriosa MPB

O mais comum é considerar a MPB um gênero musical. Afinal, nas lojas de discos e CDs, nas locadoras e outros lugares, aparece a gloriosa MPB ao lado do Rock and Roll, Samba e outros gêneros. Contudo, os gêneros existem por que existem aspectos comuns em todas as produções que se encaixam neles. O frevo, o blues, o samba, o rock, o jazz, são gêneros por possuírem elementos comuns perceptíveis que os tornam parte de um grupo de músicas que seguem um padrão, que gera regras de produção musical. As produções musicais consideradas MPB não são homogêneas, não seguem um padrão. Além disso, diversos gêneros distintos são incluídos no rótulo de MPB. Basta citar o exemplo da bossa nova, rock nacional, samba. Também a mistura de gêneros é incluída no rótulo MPB, tal como a “geleia geral” chamada tropicalismo (VIANA, 2009). Por conseguinte, não é possível definir a MPB como um gênero.

Ela é melhor compreendida como um metagênero, no qual se inclui diversos gêneros e misturas de gêneros. Chico Buarque, por exemplo, produz samba, mas também outros gêneros. Moraes Moreira produz frevo e outros gêneros. São dois grandes nomes da MPB. Vai Passar, de Chico Buarque, e Pombo Correio, de Moraes Moreira, são duas grandes produções da MPB, a partir de dois gêneros diferentes, samba e frevo, respectivamente. A classificação da MPB como gênero é, em alguns casos, uma convenção arbitrária por falta de uma definição mais profunda e fundamentada da mesma ou, em outros, uma classificação arbitrária determinada por comodidade ou facilidade[1].

O processo classificatório tem origem social e é realizada por diversos agentes, sendo que os meios oligopolistas de comunicação, os críticos musicais, os produtores, as gravadoras, os cantores, os compositores, são os principais responsáveis por esse processo. A utilidade dessa classificação social é variável, pois não há consenso nesse processo e nem toda classificação tem fundamentação real. Além disso, toda classificação é re-classificada, inclusive por indivíduos que o fazem arbitrariamente. Esse tipo de reclassificação, fundamentando em idiopatias, deve ser descartado. Não se pode aceitar as definições da MPB a partir do que alguns querem que ela seja, de seus desejos sobre o ideal, ao invés do que é o real. Isso significa trocar a realidade pelo desejo e ideal derivado dele.

A MPB é um metagênero que possui uma classificação social solidificada, mas não é na classificação, em si, que podemos descobrir o que ela é, pois isso seria fácil e não haveria mistério, pois bastaria escolher uma das classificações e estaria tudo resolvido. Se não é na classificação, então resta saber em que podemos nos basear para realizar a definição de MPB. A classificação é sempre classificação de algo e é nesse algo, ou seja, no que é classificado, que podemos encontrar o seu significado. No entanto, nesse caso, nos encontramos diante de um problema: a classificação define o que é classificado. Logo, teremos que partir de uma classificação existente para repensar o classificado e assim, com fundamentos concretos e não arbitrários, transformar a classificação em conceito. Isso significa a superação da própria classificação por uma conceituação.

O primeiro passo para efetivar isso é descartar as classificações arbitrárias e idiopáticas. Nesse sentido, se não encontramos a integralidade do fenômeno MPB no gênero musical, então devemos procurar isso em outro lugar para entender o que realmente esse termo significa. E descobrimos o que significa através da classificação social hegemônica a partir do que é classificado como tal. Um conjunto delimitado de músicas, cantores e cantoras, bandas, gêneros, etc., são considerados MPB. Isso é uma classificação, muito mais que uma definição. Uma classificação é quando se delimita o que se inclui em determinada classe de fenômenos (o que significa, ao mesmo tempo, uma exclusão) e uma definição significa dizer o que é o fenômeno. Assim, se um zoólogo diz que os tigres e gatos são felinos, está classificando e não definindo o que é ser felino (ou o que é um tigre, um gato, etc.), o que significa dizer que eles têm algo em comum e qual é este algo. Da mesma forma, uma tartaruga e uma cobra são repteis (...).

No fundo, no sistema classificatório, é possível existir mais diferenças do que semelhanças. E isso se deve ao processo arbitrário que está na base das classificações. As classificações mais úteis são aquelas que reúnem coisas com mais semelhanças do que diferenças. Mas mesmo nesse caso são deficientes. Elas possuem utilidade quando retratam coisas reais, tal como a MPB. Dizer que Djavan, Milton Nascimento, Beto Guedes, Guilherme Arantes, Rita Lee, Taiguara, Tom Jobim, Toquinho, Geraldo Vandré, José Ramalho, Bezerra da Silva, são cantores de MPB é um processo classificatório, mas que não nos explica que tipo de música eles fazem, nem o que possuem em comum. O que existe em comum entre eles? Após essa problematização, podemos avançar no sentido de definir e revelar o segredo da MPB.

O Segredo da MPB

Existe um fenômeno social concreto que é composto pelo conjunto de produções musicais denominadas MPB. No âmbito da MPB, muita coisa é incluída e muita coisa é excluída. No processo classificatório hegemônico, a MPB exclui o folclórico (desde os autores desconhecidos e músicas repassadas oralmente de geração a geração até o que não ultrapassou o nível folclórico), o exclusivamente regional (de um estado da federação ou de uma região do país) e a música clássica. Ela inclui o que é de âmbito nacional, o que é produzido por compositores/cantores brasileiros, o que é produzido em idioma português (apesar das incursões dos bossanovistas e alguns cantores específicos no idioma inglês). Assim, Caetano Veloso, Lulu Santos, Engenheiros do Hawaii, A Cor do Som, Fagner, Tim Maia, Beto Guedes, Alceu Valença, são representantes da MPB. Contudo, isso acrescenta pouco para o processo analítico e conceitual. A questão permanece (inclusive com a lista acima mencionada): o que eles possuem em comum?

A chave para abrir a porta que revela o segredo da MPB é a palavra “popular”. A música popular brasileira remete ao popular nacional. Isso explica a exclusão do folclórico e do regional. No entanto, isso nos remente ao processo de formação do “nacional-popular” no plano musical. Como a música pode se tornar “popular” e deixar de ser folclórica ou regional? Aqui temos o processo de discussão sobre a emergência da música popular em geral e não apenas a MPB. Essa discussão pode lançar luzes sobre a questão específica que é analisada aqui.

A expressão “popular” é muitas vezes utilizada não no sentido do público em geral, mas no sentido de que possui ressonância em um determinado público, geralmente o das camadas mais intelectualizadas da população. Isto significa que a Música Popular Brasileira é toda e qualquer música que possui abrangência nacional e produzida por brasileiros em língua portuguesa e que possui um público intelectualizado e pertencente prioritariamente às classes sociais superiores. Assim, ela inclui o que alguns consideram “música brasileira de qualidade”, como a bossa-nova.

Entretanto, essa é uma das formas classificatórias problemáticas da MPB. O “nacional-popular” é algo constituído social e historicamente e não se refere apenas ao que alguns chamam de “elite”. Essa é a classificação hegemônica e não deixa de ter bases reais, mas é preciso entender outros elementos do processo social real para não cometer equívocos. A MPB é uma manifestação musical que tem sua fonte nas relações sociais concretas, mais especificamente na emergência da reprodutibilidade tecnológica da música e do nascimento do capital comunicacional[2].

A MPB surge com a formação e desenvolvimento do capitalismo brasileiro. É este que gera as condições de possibilidade de seu surgimento, como a urbanização, a industrialização, o desenvolvimento tecnológico. A MPB depende do Rádio e, posteriormente, da TV, para existir. A música folclórica[3], produzida pela própria população, sofre um processo crescente de mercantilização e burocratização. O samba é uma música folclórica no seu nascimento, ligada ao processo de urbanização, bem como diversas outras manifestações musicais (baião, frevo, etc.).

Antes do avanço do capitalismo no Brasil, era possível identificar duas manifestações musicais: a clássica e a folclórica. A música clássica, de origem estrangeira, tinha como público principal a burguesia nascente e a música folclórica as classes inferiores. Esse processo se altera com o desenvolvimento capitalista e a urbanização, que aproxima mais as classes superiores das classes inferiores, e a emergência do processo de mercantilização (e sua inseparável companheira, a burocratização) que acompanha a consolidação e expansão do modo de produção capitalista, inclusive gerando um incipiente capital comunicacional, constituindo as bases sociais da MPB.

A MPB é produto do capital comunicacional. A emergência das primeiras emissoras de rádio, que logo constituiriam o capital radiofônico (um setor específico do capital comunicacional), e do capital fonográfico (as primeiras gravadoras de discos) promoveu o processo de reprodução tecnológica da música. A música folclórica tradicional é oral, reproduzida apenas em situações sociais festivas, reuniões, lares e repassada pela tradição. A emergência da grande cidade capitalista e do incipiente capital comunicacional já aponta para mudanças. O capital radiofônico visa o lucro, tão logo ultrapassa a fase experimental e amadora. A música folclórica vai perdendo seu caráter tradicional e vai sendo cada vez mais produto de uma mistura de tradições. O samba surge e vai se desenvolvendo, ganhando novos significados no interior de novas relações sociais (carnaval, por exemplo). A gravação de discos e a reprodução tecnológica da música se tornam cada vez mais amplas e relacionadas com o mercado consumidor e o capital radiofônico, o seu grande divulgador.

O desenvolvimento do capital radiofônico e do capital fonográfico gera um processo de audição indireta das músicas, para além dos bailes, bares, boates, etc. O desenvolvimento tecnológico permite o avanço da produção musical, entre outras mudanças. A música deixa de ser folclórica e passa a ser popular. Qual a diferença entre música folclórica e popular? Essa questão é fundamental para entender a MPB, pois esta se afirma como “popular”. A música folclórica é a aquela produzida e reproduzida pela própria população. A música popular é produzida, obviamente, por parte da população, mas uma parte cada vez mais especializada, mercantilizada e submetida à burocratização e sua reprodução é tecnológica, realizada por quem detém os meios tecnológicos de reprodução, o capital comunicacional. Logo, o seu produto é cada vez mais não-folclórico e especializado. Houve um longo processo histórico para isso se concretizar e consolidar e não é nosso objetivo reconstitui-lo. Se a música popular não é folclórica, produzida pela própria população, então o que significa o “popular” no seu nome? Significa que é de consumo popular. A música popular não significa produzida pela própria população e sim consumida por grande parte da população.

O significado do termo “música popular brasileira” fica, portanto, mais facilmente compreensível. A palavra “brasileira” é outra questão importante e que arremata a definição de MPB. A MPB se distingue de outras manifestações musicais e a percepção disso é relativamente fácil quanto se trata de sua distinção com as músicas estrangeiras. As músicas estrangeiras, no entanto, sempre influenciaram a MPB. Essa é uma das razões dela ser considerada por alguns como sendo mais “universal” do que a música folclórica. A música estrangeira é produzida por pessoas de outra nacionalidade e em outro idioma. Ela pode ser “popular”, mas não é brasileira. Para ser brasileira, é preciso ser produzida por brasileiros e em idioma português.

A palavra “brasileira” tem outro significado importante na definição de MPB. Ela significa que possui abrangência nacional, se distinguindo tanto da música folclórica quanto da música popular regional (cuja popularidade se manifesta nas fronteiras de um estado da federação ou região do país). A abrangência nacional é possibilitada pela gravação de discos e pelo capital comunicacional (inicialmente apenas o radiofônico e, posteriormente, também o televisivo), ou seja, pela reprodução tecnológica. A MPB não é sinônimo de música nacional, que é qualquer música produzida em território nacional (o que incluiria a música folclórica, regional, etc.). Esse é outro mistério a ser desvendado.

O caráter brasileiro da MPB que aparece em seu nome remete ao nacional-popular. O que é o nacional-popular? Não utilizamos aqui a concepção gramsciana (GRAMSCI, 1978), nem a de outros autores. O nacional-popular significa aqui algo que é constituído de cima para baixo. O que lhe confere o caráter nacional é fundamentalmente o capital comunicacional e, secundariamente, o aparato estatal. O que lhe confere caráter popular é o consumo generalizado em território nacional, mesmo com desníveis nesse processo. O nacional-popular é, portanto, uma produção cultural nacional, instituída de cima para baixo, via capital comunicacional e política estatal cultural, que gera um consumo popular generalizado em território nacional. O capital comunicacional se preocupa mais como o aspecto popular (consumo generalizado) e o aparato estatal se preocupa mais com seu caráter “nacional” e “positivo”.

A MPB é, portanto, um metagênero cuja essência é o nacional-popular. Alguns podem questionar e para isso poderiam apelas para o exemplo do samba para mostrar que a produção musical não seria de “cima para baixo”. Essa ideia é equivocada e fica perceptível tão logo abordemos a formação da MPB. O segredo da MPB é seu caráter nacional-popular, que revela quem a criou, o capital comunicacional (com apoio da burguesia nacional principalmente a partir de 1930, através do aparato estatal). Ao contrário do que alguns pensam, não foi Baiano (Manuel Pedro dos Santos), Francisco Alves, Pixinguinha, Noel Rosa, Lamartine Babo, Carmem Miranda, Tom Jobim ou João Gilberto e sim o capital comunicacional e o Estado burguês[4] que geraram a MPB, ou seja, a burguesia.

A Formação da MPB

A formação da MPB ocorre num processo histórico relativamente longo. A sociedade brasileira, antes do surgimento da MPB, viveu numa situação marcada pela pós-abolição da escravidão e emergência do modo de produção latifundiário (através do coronelismo) e formação do capitalismo, com grande força, nesse momento, do capital comercial. O processo de industrialização inicia-se no final do século 19, especialmente no Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo. A burguesia industrial estava na sua infância. No entanto, a proclamação da República em 1889 já trazia os primeiros ventos da modernidade, que já existia em germe. Desde a Proclamação da Independência em 1822 há uma busca inicial no sentido de criar uma “identidade nacional” e o romantismo na literatura, que surge na década de 1830, é expressão dessa tentativa (VIANA, 2016). O avanço na constituição de uma identidade nacional na literatura antecedeu o que ocorreria posteriormente no plano musical.

A cidade do Rio de Janeiro vai ter um lugar de destaque na origem da MPB. A cidade reunia as diversas classes sociais num meio urbano sem a futura divisão capitalista do espaço e assim a música produzida na época acaba sendo popularizada para todos. Tratava-se de uma produção musical folclórica e amadorística, que, a partir de 1902 ganha a primeira gravação em disco, quando Baiano canta o lundu Isto é bom. O desenvolvimento das gravadoras e emissoras de rádio avança e vai promovendo um processo de mercantilização e burocratização crescente da produção musical. O capital fonográfico, que em sua maioria absoluta era constituído por capital transnacional, avançava tecnologicamente (e as “grandes vozes” vão sendo substituídas por cantorias mais suaves, pois a tecnologia de gravação deixou de necessitar de que o canto fosse gritaria). O capital radiofônico, principal meio de divulgação e incentivo de venda de discos, começou artesanalmente[5] até ir se estruturando e tornar-se cada vez mais profissional. Essa fase artesanal do capital radiofônico convivia com o amadorismo dos cantores e compositores. Nessa época há um embrião da subesfera musical que só vai passar a ter existência muitos anos depois. Em 1917, é gravado o samba Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida. O processo de produção já havia avançado no sentido tecnológico e o seu desenvolvimento é ininterrupto. O samba era uma música urbana e que se tornava cada vez mais popular. No entanto, já era vista com preconceito pela classe dominante[6]. Chiquinha Gonzaga, compositora de uma das mais famosas músicas carnavalescas, Ô Abre Alas (1899), provocou críticas de jornais e protestos de estudantes quando cantou O Corta-Jaca no palácio presidencial a convite da esposa do Marechal Hermes da Fonseca, Nair de Teffé, em 1914. A estratificação do gosto musical da sociedade ocorria entre os adeptos da música clássica ou estrangeira e os adeptos da música folclórica (das classes superiores e das classes inferiores, respectivamente). O samba se originava da música folclórica e a mantinha como sua forma urbanizada[7], o que seria fonte de preconceitos das classes superiores.

O capital industrial vai se fortalecendo nas grandes cidades com o desenvolvimento do regime de acumulação extensivo-subordinado e o proletariado emerge na cena política. E nesse contexto também há o desenvolvimento tecnológico e do capital fonográfico e radiofônico. Os anos 1920 apontam para um desenvolvimento da mercantilização e burocratização da produção musical. O amadorismo anuncia a subesfera musical[8], que já começa a criar uma comunidade de produtores, mas muito incipiente devido o pertencimento de classe dos cantores e compositores, oriundos das classes inferiores e com pouca formação técnica-especializada. No entanto, a formação da MPB ganha um maior impulso a partir da Revolução Burguesa de 1930 e a substituição do Estado oligárquico por um Estado liberal. Esse é o momento mais importante no processo de formação da MPB:

Chegava ao fim uma era, que, no Brasil, durou cerca de três decênios. Quando os anos 30 chegaram, o Rio de Janeiro contava com quatro emissoras, e São Paulo, com duas na capital e várias pelo interior. A novidade começava a espalhar-se por outros estados. Foi uma época historicamente muito rica não só para a música popular e para o rádio, mas também para a economia, com a ampliação do parque industrial do país, e para a política, com as mudanças provocadas pela Revolução de 1930, que acabou de vez com a República Velha. Em 1927, a gravadora Odeon introduziu nos seus estúdios, no Rio de Janeiro, o sistema elétrico de gravações de discos, uma novidade surgida nos Estados Unidos em 1924 e que seria desenvolvida pelo engenheiro Joseph Maxfield e pela empresa Bell Laboratories, da Western Eletric. O sistema elétrico de gravações, tudo indica, salvou as gravadoras dos Estados Unidos de uma crise provocada pelos avanços tecnológicos obtidos pelo rádio e que levava o consumidor a optar por este quando queria ouvir música. A qualidade de som melhorava e o ouvinte não precisava pagar nada pela audição de sua canção preferida. Com a adoção do sistema elétrico e com as novas tecnologias surgidas na fabricação de discos, as gravadoras puderam lançar produtos de melhor qualidade, em grandes quantidades e com preços competitivos (CABRAL, 1996, p. 18).

A relação dos cantores e compositores com o capital radiofônico e fonográfico foi mudando paulatinamente e cada vez mais se tornava mais profissional. A subesfera musical começa a se estruturar, ainda que precariamente.

Os primeiros anos da década de 30 ficariam marcados ainda pelo início de um processo de conscientização profissional dos compositores. Os dirigentes das gravadoras e das emissoras de rádio, assim como os proprietários das editoras musicais que começavam a se multiplicar, abriram os seus negócios sabendo que estes eram capazes de render lucros incalculáveis. Alguns cantores também percebiam que o ofício escolhido poderia proporcionar recursos suficientes para a sua sobrevivência. Mas os compositores ainda levariam algum tempo para se convencerem de que exerciam uma profissão que poderia ser remunerada (CABRAL, 1996, p. 30).

Nesse período, o carnaval era o grande incentivador dos lançamentos musicais[9], seguindo a tradição existente[10]. É neste contexto que o capital fonográfico, mais estruturado, busca criar uma nova onda de consumo, fazendo nascer a “música de meio de ano” e gerando o samba-canção. Isso gerou um novo filão do mercado consumidor e uma estratificação social no samba brasileiro. O samba-canção era uma filtragem do samba original no sentido de torná-lo mais adequado ao gosto das classes superiores e mais próxima da música norte-americana: “cabe lembrar que essa influência da música norte-americana só se faria sentir de certa maneira sobre as variedades de sambas orquestrados para atender ao gosto da classe média (samba-canção, samba orquestral tipo Aquarela do Brasil, etc.)” (TINHORÃO, 1966, p. 37). O samba-canção tem suas raízes nas classes superiores:

O samba-canção resultou de experiências feitas por compositores semieruditos (Henrique Vogeler, Heckel Tavares, Joubert Carvalho) ou, pelo menos, hábeis instrumentistas (Sinhô), só depois passando ao domínio dos maestros do assobio, isto é, aos compositores das camadas mais baixas da população, semianalfabetos e ignorantes de música (TINHORÃO, 1966, p. 39-40).

Esses músicos semieruditos e instrumentistas hábeis são as fontes do samba-canção e seus sucessores, mais influenciados ainda pela música estrangeira, que alguns consideram continuação do samba-canção e outros como sendo produções distintas, o sambalada e o sambabolero (mistura de samba e bolero, gênero de origem cubana). Esse desenvolvimento do samba significa criar um subgênero que expressam as classes superiores, embora de forma ainda rudimentar. Também demonstra um desenvolvimento no sentido da formação da subesfera musical, pois trata-se não apenas de uma distinção de gêneros, mas também de um esboço de hierarquização no seu interior, já que os semieruditos anunciam os futuros hegemônicos nessa subesfera.

Nesse momento, entra em cena com mais força o aparato estatal. O seu controle sobre as concessões ao capital radiofônico e sua incipiente política cultural já começava a se tornar mais influente e forte nesse período. É uma época de músicas “eleitoreiras” e “getulistas”[11], gravadas por Francisco Alves e outros cantores, com alguns poucos “divergentes”. É nessa época que Noel Rosa, Lamartine Babo, Silvio Caldas, Carlos Galhardo, entre outros, se destacam. A música internacional tinha grande força, como sempre, e o gênero da moda na época era o foxtrote.

O aparato estatal começa a regularizar mais intensamente o capital comunicacional e as relações de trabalho, gerando conflitos e avanço na profissionalização, o que significa mercantilização e burocratização. A burocratização avança, no âmbito do capital radiofônico, com a criação da Confederação Brasileira de Radiodifusão, entidade empresarial. É nesse contexto que o tema da malandragem, comum no samba, sofre censura em nome da moralidade. O trabalho deve substituir a malandragem. Isso gerou, inclusive, a polêmica musical entre Wilson Batista e Noel Rosa. Sem dúvida, isso revela dois elementos. Um é a disputa pela hegemonia, na qual a burguesia nacional via aparato estatal, queria valorar o trabalho e transformá-lo num valor fundamental para as classes inferiores, e não é sem motivo que em 1945 será fundado o PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). O outro é a própria constituição da subesfera musical, que vai buscar romper com suas origens populares e folclóricas, buscando autonomia e entendendo a produção musical não como algo desligado das relações de trabalho e sim como forma de trabalho e profissão. O Governo Getúlio Vargas era outro incentivador do trabalho como valor em substituição ao tema da malandragem. Durante o Estado Novo, o “samba negativo” foi condenado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda), e em seu lugar emerge o “samba positivo” até chegar ao “samba exaltação”. A música “O bonde de São Januário” é um exemplo dessa mudança valorativa da MPB nascente:

                                                
                                                 O Bonde de São Januário
Cyro Monteiro
 
Quem trabalha é que tem razão
Eu digo e não tenho medo de errar
O bonde São Januário
Leva mais um operário:
Sou eu que vou trabalhar

Antigamente eu não tinha juízo
Mas resolvi garantir meu futuro
Vejam vocês:

Sou feliz, vivo muito bem
A boemia não dá camisa a ninguém
É, digo bem


A letra da música não apenas coloca uma oposição entre trabalho e boemia (ligada à “malandragem”), como ainda mostra uma evolução: “antigamente eu não tinha juízo”, mostrando que a mudança deve vir com o passar do tempo e a malandragem deve ser substituída pelo trabalho. Outros gêneros também foram mobilizados com o mesmo objetivo.

Em síntese, podemos dizer que a formação da MPB tem seus primeiros momentos nos primeiros anos do século 19 e vai se fortalecendo nos anos 1920, sendo que sua existência, apesar de ainda precária, pois é quando ganha abrangência nacional via capital comunicacional, data da década de 1930. O samba é o gênero nacional-popular que faz surgir a MPB[12], ao lado de outros menos influentes e que se fortalecerão posteriormente.

O samba que se tornou a expressão mais sólida do chamado nacional-popular, no entanto, precisava ser domesticado. Esse processo de domesticação era generalizado, mas no caso do samba, devido seu caráter de principal símbolo da música popular nacional (que posteriormente será chamada MPB), havia uma atenção especial voltada para ele. Esse processo vai se desenvolvendo desde 1930 e continua até início dos anos 1940. É possível ler nas páginas da Revista Cultura Política, publicação governamental, a seguinte afirmação:

O samba, que traz em sua etimologia a marca do sensualismo, é feio, indecente, desarmônico e arrítmico. Mas, paciência: não repudiemos esse nosso irmão pelos defeitos que contém. Sejamos benévolos: lancemos mão da inteligência e da civilização. Tentemos, devagarinho, torná-lo mais educado e social... Pouco se nos importa de quem seja ele filho... O samba é nosso; como nós nasceu no Brasil. É a nossa música mais popular e para J. Otaviano “música popular representa a alma do povo na sua simplicidade pura e encantadora”. Não toleramos os moleques peraltas dados a traquinagens de toda a espécie. Entretanto, não os eliminamos da sociedade: pedimos escola para eles. A marchinha, o samba, o maxixe, a embolada, o frevo, precisam, unicamente, de escola (SALGADO, 1941, p. 86).

A construção da ideia de nacionalidade precisa domesticar a produção cultural popular para que cumpra seu papel civilizador. Assim, o capital comunicacional realizava o processo de domesticar no sentido musical e o aparato estatal reforçava isso e acrescentava a preocupação temática. Apesar do samba ser o principal gênero nacional-popular, não era o único, pois convivia com diversos outros. Um dos gêneros que ganha notoriedade nos anos 1940 é o baião, com destaque para Luiz Gonzaga, que conseguiu colocá-lo no nível da MPB, ou seja, assumindo caráter nacional-popular[13]. A seresta se torna um dos gêneros mais populares, como os “reis da voz” (Silvio Caldas, Orlando Silva, Carlos Galhardo, entre outros), no qual reina o romantismo sentimentalista. O grande sucesso significou a primeira onda de ídolos nacionais, tal como Orlando Silva, chamado de “o cantor das multidões”.

As músicas anteriores a 1930 pertencem a um estágio rudimentar de formação da MPB, com limites em sua abrangência e caráter nacional-popular.  Contudo, como influenciaram e foram resgatadas pela produção musical posterior, bem como foram popularizadas nacionalmente posteriormente pelo capital comunicacional, então podem ser consideradas MPB. Uma MPB rudimentar. Nos anos 1930 e 1940 temos a MPB mais pura, embora ainda não tenha criado o modelo nacional-popular que será constituído nas décadas seguintes.

A Consolidação da MPB

A sociedade brasileira se moderniza rapidamente a partir de 1950. O capitalismo brasileiro entra na fase do regime de acumulação conjugado-subordinado. O capital oligopolista transnacional, que já atuava em alguns poucos setores (como no caso do capital fonográfico), invade a sociedade brasileira, tendo como símbolo máximo o capital automobilístico. O Estado assume a forma populista-desenvolvimentista e se torna mais moderno e racional, apesar dos elementos poucos modernos persistentes, mas subordinados ao processo de modernização. Ao lado disso, a modernização tecnológica e um grau de urbanização ainda mais intenso vai se desenvolvendo. É nessa época que surge a televisão, que terá um forte impacto sobre a música com o passar dos anos, especialmente no processo de divulgação.

A classe operária aumenta numericamente e a mercantilização das relações sociais avança, promovendo também maior burocratização das mesmas. No plano cultural, isso é cada vez mais visível, inclusive no musical. A subesfera musical se consolida, bem como a MPB. A política cultural já vinha apontando para a necessidade de domesticar a música popular, tal como colocamos anteriormente.

Essa política cultural é aprimorada a partir de 1950 e é nesse contexto que ocorre o processo de consolidação da MPB. A mudança no espaço urbano, com uma maior divisão espacial que expressão a divisão de classes, bem como uma expansão da intelectualidade e burocracia, classes auxiliares da burguesia, convivendo com o inelutável sucesso da música e do rádio, apontava para a necessidade de elaboração de uma musicalidade burguesa. A ideia era refinar a música popular brasileira, que foi se formando e ganhando cada vez mais um caráter nacional-popular, especialmente com a expansão do capital comunicacional. Esse refinamento deveria dar maior requinte à MPB para se adequar o gosto burguês[14] e poder servir de imagem da música brasileira no exterior. É nesse processo que surge o samba-jazz denominado “bossa nova”:

A década de 1950 marcava, no Rio de Janeiro, o advento da primeira geração de jovens do após-guerra e após-ditadura. Estabelecida pela corrida imobiliária, a divisão econômica da população da cidade – os pobres na Zona Norte e nos morros, os ricos e remediados na Zona Sul – apareceria logicamente na zona grã-fina de Copacabana uma camada de jovens completamente desligados da tradição, isto é, já divorciados da espécie de promiscuidade social que permitira, até então, aos representantes da classe média, participar de certa maneira, em matéria de música popular, do contexto cultural da classe colocada um degrau abaixo na escala social (TINHORÃO, 1966, p. 24).

A bossa nova seguia a linha evolutiva do samba-canção[15], refinando este ao trazer uma musicalidade diferenciada, com maior complexidade técnica e estilística, uma nova forma de cantar[16]. Assim, surge a MPB erudita, mais complexa e refinada que as formas anteriores de MPB, produzida e tendo como mercado consumidor as classes superiores, ou pelo menos os seus setores que aceitam a chamada “música popular”.

João Gilberto, Tom Jobim, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli, Baden Powell, Laurindo de Almeida, Carlos Lira, Johny Alf, Vinicius de Moraes, estarão entre os principais nomes da Bossa Nova. O maior refinamento formal vinha com a mutação do conteúdo. Os pioneiros da bossa nova, oriundos das classes superiores, consideravam que o samba tinha “parado, era quadrado e só falava em barracão” (TINHORÃO, 1966, p. 27).

A constituição da bossa nova traz não apenas uma sofisticação melódica mas também uma renovação temática. Se o samba tratava da vida das classes inferiores, do “barracão”, do carnaval, da festividade, da cotidianidade, a bossa nova traz a temática da natureza (meio ambiente e paisagens urbanas brasileiras), Rio de Janeiro, musas cariocas, samba e bossa nova. Assim, a partir da noção burguesa de “bom gosto”, os novos temas são leves e com poucas referências mais fortes à sexualidade, pobreza, entre outros temas considerados pouco “elegantes”. O Rio de Janeiro aparece em músicas como Garota de Ipanema, Corcovado, Tarde em Itapuã, Rio e outras, incluindo as que tratam da mulher carioca, como no caso de Ela é Carioca, além da primeira citada. A natureza aparece em Águas de Março, Inútil Paisagem, As Cores de Abril, O Barquinho. A autorreferência musical (samba e bossa nova) aparece em Só Danço Samba, O Morro não tem Vez, Samba da Benção, Samba de uma Nota Só, Desafinado[17]. O amor romântico também aparece, mas sob a forma recatada que expressa a etiqueta burguesa. Esse é o caso de Eu Sei que vou te Amar, Onde Anda Você, Morena Flor, Turbilhão e também poderia incluir as músicas dedicadas às musas cariocas. Em síntese, o refinamento da bossa nova é formal e de conteúdo, aburguesando a MPB[18].
Mas nem só de Bossa Nova viveu a música brasileira a partir dos anos 1950. Além do samba continuar seu trajeto através de vários subgêneros, incluindo o sambolero e outros que eram anteriores, como o baião (que atingiu o auge nesse período)[19], há um processo de desenvolvimento de novidades musicais. A seresta, o baião, vários subgêneros de samba continuavam em evidência e alguns grandes sucessos populares foram Farinhada e Xote das Meninas, de Ivon Curi; Acertei no Milhar, de Jorge Veiga; Tudo Acabado e Que Será, de Dalva Oliveira; Fascinação, com Carlos Galhardo; Saudosa Maloca, de Adoniram Barbosa, que fez sucesso com os Demônios da Garoa, além dos diversos sucessos de Nélson Gonçalves, Cauby Peixoto, entre outros. Nos últimos anos da década aparece também o rock trivial com Celi Campello e outros. Havia a disputa pela Rainha da Voz, que se iniciou nas décadas anteriores, na Rádio Nacional, sendo que Dalva de Oliveira, Marlene e Emilinha Borba se destacam nessa disputa. O choro se destaca com Garoto (Anibal Augusto Sardinha).

A cena musical dos anos 1950, como já destacou Lenharo, era mais rica do que as vozes apocalípticas descreviam. Ao lado das marchinhas gritadas, sambas lascados e boleros gemidos, muitos eventos musicais dos anos 1950 apontam para a modernidade musical, e foram incorporados ao repertório mais valorizado da MPB. Consagrou-se um tipo de audiência de música popular que não chegava a romper completamente com os paradigmas de música brasileira dos anos 1930, agregando alguns gêneros musicais nordestinos, sertanejos e estrangeiros (NAPOLITANO, 2010, p. 66).

O capital comunicacional, a partir dos anos 1960, inicia uma nova era para a MPB. A bossa nova, o samba, o baião e outros gêneros e subgêneros vão paulatinamente perdendo espaço e as novidades musicais se tornam cada vez mais provisórias. A música de origem folclórica foi se tornando, historicamente, cada vez mais distante de suas origens, tanto no aspecto formal quanto de conteúdo. Essa é também a época da consolidação da juventude como grupo social e mercado consumidor. Esse novo filão do mercado consumidor começa a ser explorado e por isso não é surpresa que os títulos de muitos LPs (Long Plays) remetiam à juventude ou “mocidade”, sendo Roberto Carlos um dos cantores que recebia tal missão. Em 1962 aparece o LP do cantor Demetrius cujo título é: Demetrius Canta... Com Amor e Mocidade... (1962), no ano seguinte, Ídolo da Juventude e em 1964, No Ritmo da Chuva, que contém a música com mesmo título e seu grande sucesso. É a época de surgimento da música trivial moderna, sem as origens folclóricas que os gêneros anteriores ainda possuíam. O romantismo sentimentalista é sua principal característica e que mais tarde será renovado pela chamada Jovem Guarda, misturando esse conteúdo com uma espécie de rock degradado e infantilizado, puramente comercial, que marca uma nova fase da música trivial no Brasil. Esse tipo de música, que depois se afasta novamente do rock, e sua metamorfose constitui a maioria do que foi denominado posteriormente como “cafona” e depois “brega”. Grande parte do mercado consumidor composto pelo “público jovem” sempre consumirá música internacional, especialmente quando a produção musical nacional não é satisfatória.

O romantismo sentimentalista vai se manifestar em outros gêneros, como o bolero, que já marcava presença diretamente desde os anos 1940 e sob forma indireta no sambolero. Nelson Gonçalves, Carlos Alberto, Waldick Soriano e, posteriormente, Nelson Ned e Altemar Dutra conseguiram uma grande vendagem e popularidade nesse período. O capital fonográfico produzia em série cantores de romantismo sentimentalista. A gravadora Odeon é um exemplo disso:

As pesquisas de mercado da Odeon e o controle dos índices de venda de suas concorrentes, acusaram, num certo momento, uma ocorrência que poderia servir aos interesses da gravadora: Nélson Gonçalves, cognominado “o cantor romântico do Brasil” e, segundo consta, o maior vendedor de discos do país, estava saturando o mercado com uma inflação de lançamentos e suas vendas começavam a cair. A Odeon detectou que o artista estava cansando não só o ouvido como também o bolso de seu público porque sua (dele, artista) gravadora, a RCA Victor, por inabilidade, visando maiores lucros, lançava um disco atrás do outro. Ele atingia então, como até hoje atinge (é considerado um dos artistas de público mais fiel) principalmente as chamadas classes “B” e “C”, tendo penetração nos cabarés de todo o país (grandes consumidores de determinados tipos de cantores que exploram músicas românticas) (JAMBEIRO, 1975, p. 10).

Jambeiro mostra como a Odeon procurou um cantor para ser concorrente de Nélson Gonçalves e o escolhido foi Altemar Dutra. Ele foi contratado e inserido no grupo Trio Irakitan e, depois foi preparado para cantar músicas românticas, além de preparar cuidadosamente um repertório e o lançamento. Através de uma estratégia de vendagem para as lojas de discos, conseguiu uma forte venda antecipada. “A gravadora visava, com isso, assegurar o sucesso do seu disco”, pois “quando uma loja compra muitos exemplares de um mesmo disco, instrui seus vendedores para que forcem a venda daquele produto de qualquer forma” (JAMBEIRO, 1975, p. 12). A estratégia funcionou e Altemar Dutra se tornou um dos grandes nomes da Odeon.

Assim, a bossa nova assumia o papel de MPB erudita e o resto da produção musical era fundamentalmente a MPB trivial. Esse processo mostrava uma divisão na subesfera musical, que se consolidou nessa época. A estratificação da produção musical da MPB, que revela uma divisão interna do nacional-popular, uma concepção musical elitista para as classes superiores e uma concepção musical superficial para as classes inferiores, gerava também uma estratificação do mercado consumidor, dividido igualmente por classes sociais. No interior dessa estratificação do mercado consumidor, existe a subdivisão. Na MPB erudita, a bossa nova começa a encontrar suas primeiras dificuldades, pois enquanto era exportada para o exterior e mantinha um público elitizado, mas pequeno, com alto poder aquisitivo, surgiam tendências no seu interior, como a sua versão nacionalista (que ficou mais popular através de Carlos Lyra e sua música A Influência do Jazz) e sua versão mais “popular”, que tinha em Elis Regina e o programa de TV, “O Fino da Bossa”, sua expressão mais conhecida, bem como através de Wilson Simonal, um sucesso musical e na TV até 1971.

Uma terceira forma de produção musical emergiria nos anos 1960: a canção de protesto. A sua origem remonta ao CPC (Centro Popular de Cultura), da UNE (União Nacional dos Estudantes) e influências de intelectuais e tendências da época, como o PCB (Partido Comunista Brasileiro), ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), universidades, etc. Esse é o momento em que há um aumento da população universitária e uma situação insegura dos estudantes em relação ao futuro profissional. A situação do país, a força do populismo e do nacionalismo (e, em certos meios, do PCB e seu suposto “marxismo”), também contribuíam para a renovação musical dos setores mais intelectualizados. É nesse contexto que emerge as primeiras manifestações musicais que depois culminarão com o que ficou conhecido como “canção de protesto”. Carlos Lyra, ex-bossanovista, Edu Lobo (ganhador de dois festivais de MPB nos anos 1960), Geraldo Vandré, Nara Leão, entre diversos outros, são os representantes da nova forma de produção musical. O seu momento de consolidação é em 1964, após o Golpe Militar, quando Nara Leão lança o álbum Opinião de Nara, na qual a letra da música opinião dizia: “Podem me prender, podem me bater/Podem até deixar-me sem comer/Que eu não mudo de opinião”.

O representante que ficou mais conhecido para as gerações posteriores foi Geraldo Vandré, com suas músicas Disparada e principalmente Para Não Dizer que Não Falei das Flores. A canção de protesto não era um gênero musical e por isso o foco é no “protesto”. Da perspectiva formal, a canção de protesto nasce como uma versão mais popular e politizada da bossa nova, mas depois se aproxima dos gêneros de origem folclórica, visando se aproximar do “povo”.

Verificado afinal que todas essas tentativas de integração com o povo se revelavam impossíveis, uma vez que os músicos e compositores da classe média insistiam em obter a comunhão cultural a partir da autoritária aceitação do estilo bossa nova (o que se tornava uma barreira instransponível), os artistas representantes das camadas mais elevadas resolveram abandonar tais tipos de experiências, e passaram à procura de um resultado musical mais diretamente ligado à realidade da própria classe (TINHORÃO, 1991, p. 242-243)[20].

Desta forma, a canção de protesto, no início bossanovista, se torna formalmente eclética. A sua diferença em relação à MPB erudita e também da trivial, era mais as temáticas. Assim, ao invés de saudar a natureza, o Rio de Janeiro, entre outros temas bossanovistas, e ao invés de chorar o amor perdido, assuntos cotidianos e banais, o humor sem graça[21], como nas diversas formas de música trivial, a canção de protesto tematizava o povo, a pobreza, a exploração, a divisão de classes, a sociedade brasileira e seus problemas. A canção de protesto ainda necessita de uma análise de conjunto e mais profunda, inclusive mostrando suas fases e diferenças internas. O protesto da canção, no entanto, revela um conjunto de influências da época e que os compositores não tinham uma grande formação política, o que remete à velha questão colocada por Marx (1982): “quem educa os educadores”? Os compositores e cantores da canção de protesto eram educados na hegemonia burguesa da época ou pelas forças progressistas, desde o trabalhismo e o populismo, até o stalinismo e outras formas de pseudomarxismo. Isso mostra as debilidades da concepção política, bem como na compreensão da relação entre política e arte/musica. A crítica social nas letras, na maioria dos casos, é limitada. Muitas se limitam ao realismo, enquanto que algumas apontam para uma concepção mais ampla de luta de classes e possibilidade de transformação social. Isso pode ser visto na comparação das músicas compostas por Edu Lobo e Vinicius de Moraes (Canção da Terra) e Celso Roldão Vieira (Sem Deus, Com a Família):


Canção da Terra
Sem Deus, Com a Família

Olorum bererê 
Olorum bererê 
Olorum ici beobá 
Olorum bererê 
Olorum bererê 
Olorum ici beobá 

Avê meu pai 
O teu filho morreu 
Avê meu pai 
O teu filho morreu 

Sem ter nação para viver 
Sem ter um chão para plantar 
Sem ter amor para colher 
Sem ter voz livre pra cantar 
É, meu pai morreu 
É, meu pai morreu 

Salve meu Pai, o teu filho nasceu 
Salve meu Pai, o teu filho nasceu 

E preciso ter força para amar 
E o amor é uma luta que se ganha 
É preciso ter terra prá morar 
E o trabalho que é teu, ser teu 
Só teu, de mais ninguém 
Só teu, de mais ninguém 

Salve meu Pai, teu filho cresceu 
Salve meu Pai, teu filho cresceu 

E muito mais é preciso é não deixar 
Que amanhã por amor possas esquecer 
Que quem manda na terra tudo quer 
E nem o que é teu bem vai querer dar 
Por bem, não vai, não vai 
Por bem, não vai, não vai 

Salve meu Pai, o teu filho viveu 
Salve meu Pai, o teu filho viveu 

Olorum bererê 
Olorum bererê 
Olorum ici beobá

Sapato de pobre é tamanco
A vida não tem solução
Morada de rico é palácio
E casa de pobre é barracão

Quem é pobre, sempre sofre
Vive sempre a trabalhar
Mas eu sofro só de dia
De noite eu vivo pra sambar

A mulher do branco é esposa
E a esposa do preto é mulher
Mas minha mulher é só minha
A do branco eu não sei se só dele é

Preto vive atormentado
Mal tem tempo pra rezar
Mas o preto é mais que branco
Pra mãe d'água Iemanjá

A terra do dono é só dele
Ali ninguém pode mandar
Mas se eu não pegar na enxada
Não tem ninguém para plantar

Eu semeio e trato o milho
E a colheita é do senhor
Mas o dia da igualdade
Tá chegando, seu doutor


Assim, apesar de uma certa criticidade, especialmente em alguns casos mais expressivos, ela ficou bem aquém do que poderia se esperar no plano político. No plano formal, a passagem do bossanovismo ao ecletismo não melhorou muito a situação, pois significou uma concessão formal ser maior originalidade e criatividade, inclusive a partir de uma percepção limitada da cultura da época, na qual a juventude pendia para o rock e não para os gêneros mais tradicionais, que ficava por conta do público adulto, com menor potencial de radicalização política. A canção de protesto vai aparentemente se tornar hegemônica com o endurecimento do regime militar, mas o que ocorreu foi o aumento de músicas que realizavam crítica social, inclusive por aqueles que não pretendiam fazer isso, tal como os tropicalistas. O significado histórico da canção de protesto foi a tentativa de fazer explicita e intencionalmente uma música engajada que visava intervir na realidade ao lado das classes inferiores, apesar de suas ambiguidades. O seu significado musical foi criar uma nova estratificação na produção e consumo musical, que, na falta de um termo melhor, podemos chamar de semierudito, pois rompe com a MPB erudita no plano temático e, em menor grau, formal, e também com a música trivial, especialmente no plano temático. Esse caminho será retomado pelo tropicalismo, mas sob outra forma, como colocaremos adiante.

Nesse contexto, o capital comunicacional dominava a produção musical e o nacional-popular (MPB), já estava consolidado. A televisão completou esse processo com os programas televisivos (“O Fino da Bossa”, depois apenas “O Fino”, apresentado por Elis Regina/Jair Rodrigues; “Divino Maravilhoso”, apresentado por Caetano Veloso e Gilberto Gil; “A Jovem Guarda”, apresentado por Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa[22]) e os Festivais de MPB. Inclusive alguns pensam que o surgimento da MPB ocorre em 1965, com o 1º Festival Nacional da Música Popular Brasileira, que seria o momento de surgimento do nome e da sigla MPB. O nome surgiu muito antes disso, Mário de Andrade já a havia utilizado em 1928 e este é o título de um capítulo do livro Pequena História da Música, de 1944 (ANDRADE, 1987). Em 1947, Oneyda Alvarenga (1982) publica um livro com este título, com homenagem a Mário de Andrade e reconhecendo que trata mais de música folclórica, sendo apenas no último capítulo que aborda música popular urbana. A sigla pode ter surgido com os festivais, mas o significado disso é praticamente nulo. Os festivais de MPB apenas consolidaram a subesfera musical e forneceram mais elementos para a consolidação do nacional-popular por ser transmitido nacionalmente pela TV, homogeneizando ainda mais o público.

Nesse contexto, não apenas o capital radiofônico e fonográfico tinha o poderoso apoio do capital televisivo, reforçando a popularidade e vendas, mas também havia uma competição na subesfera musical, na qual as diversas tendências disputam o reconhecimento do círculo interno (que incluía o reconhecimento mútuo, o do público mais intelectualizado e dos críticos, com sua concretização mais ampla nos Festivais de MPB), do círculo externo (perceptível pelas vendagens, paradas de sucesso, audiência de programas de TV e rádio)[23]. O capital comunicacional nesse momento envolvia um grande número de meios e manifestações, tal como as revistas vendidas em bancas sobre ídolos e fofocas, inclusive explicitando a competição, como se vê na capa da Revista Fatos e Fotos, apresentando Os Mutantes e Caetano Veloso e se referindo sobre a “Guerra dos Ídolos” no Festival de MPB:



Assim, é possível dizer que o processo de consolidação da MPB ocorre entre os anos 1950 até meados da década de 1960. O momento seguinte é a constituição do endurecimento do regime militar, da crise mundial e ascensão do movimento estudantil em diversos países, o reaparecimento do movimento operário no bloco imperialista, a contracultura, etc., o que teve impacto no Brasil, reforçando a crítica através da música[24] e o uso da televisão como meio de divulgação da produção musical.

Um dos aspectos que, parece-me, não foram ainda devidamente examinados é o das alterações do comportamento musical que vem sofrendo o movimento da BN [Bossa Nova – NV] desde que passou a ter um contato mais amplo com o público, via TV, ou seja, via o maior meio de comunicação de massa dos tempos modernos (pesquisas realizadas pelo IBOPE, no ano passado [1965 – NV], revelaram que em São Paulo existem mais de 600 000 unidades familiares com aparelhos de TV, o que dá à Televisão, considerada a média de 3 assistentes por aparelho, uma “tiragem” diária de 1 milhão e oitocentos mil pessoas) (CAMPOS, 1986, p. 53).

Assim, o capital televisivo realiza um reforço fundamental ao trabalho já realizado pelo capital fonográfico e seus auxiliares, o capital radiofônico e o editorial[25]. A sociedade brasileira nunca se tornou uma “sociedade de consumo” tal como no caso dos países imperialistas (EUA e Europa), mas aumentou o consumo desde os anos 1950 e o desenvolvimentismo, inclusive o consumo cultural. O capital comunicacional, no Brasil, demorou um pouco mais para conseguir se estruturar, especialmente os setores mais modernos (como a TV), mas teve um paulatino incremento a partir dos anos 1950 e, principalmente, depois dos anos 1960.

A MPB Pós-1970

Com a bossa nova, música trivial dividida em diversas variedades (tal como a jovem guarda), canção de protesto, temos a consolidação da MPB. A música nacional-popular tem apenas um processo de desenvolvimento nos anos seguintes, com o tropicalismo (fenômeno de curta duração), novos compositores e intérpretes em destaque. O tropicalismo foi um movimento artístico orquestrado principalmente por Caetano Veloso e Gilberto Gil, que, no plano da MPB, pretendia fazer uma “revolução”. No fundo, a ideia seria defender a autonomia da arte, mais especificamente da música, e criar um enriquecimento formal, tal como no caso da MPB erudita, e, diferentemente desta, ter maior popularidade e vínculo com a cultura mercantil, e, por conseguinte, um público maior do que as classes superiores. Essa foi a ideia de “geleia geral”, unindo elementos de MPB trivial e MPB erudita, aceitando influência do rock e da cultura mercantil em geral. O caráter crítico de algumas composições tropicalistas foram muito mais produtos da época e do contexto marcado por uma ditadura militar do que pela intenção dos autores, mais propensos a defender a arte pela arte (VIANA, 2007a).

Nesse sentido, o tropicalismo pode ser considerado uma segunda tendência semierudita, cuja união entre a música erudita e a trivial ocorria a partir da perspectiva da autonomia da arte e da necessidade do retorno financeiro, atingindo também o grande público. O tropicalismo emerge exatamente no momento que o capital comunicacional havia se consolidado e inclusive era tematizado por suas músicas. A união entre o erudito e o trivial ocorria com primazia numa perspectiva esteticista e no interesse em conquistar espaço hegemônico na subesfera musical e circuito comercial, atingindo tanto o círculo interno (locus da MPB erudita) quanto externo (locus do capital comunicacional). A canção de protesto, diferentemente, buscou unir – e em certo momento desistiu ao abandonar a bossa nova – o erudito e as classes inferiores, tentando recuperar sua produção musical mais genuína e não a música trivial.

Nos anos 1970, há uma grande expansão da música trivial, oriunda da seresta e Jovem Guarda e do romantismo sentimentalista e um conjunto de cantores e cantoras vão conseguir relativo sucesso, como Odair José, Amado Batista, Wanderley Cardoso, Perla, Carmem Silva, entre dezenas de outros, ao lado de alguns remanescentes do passado, como Roberto Carlos e outros. Os anos 1970 serão marcados por uma convivência da música trivial e de alguns representantes da MPB do passado (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque) e novos nomes como Raul Seixas, Rita Lee, Guilherme Arantes, Belchior, Tim Maia, Milton Nascimento, Novos Baianos, e, mais para o final da década, José Ramalho, Alceu Valença, Raimundo Fagner, Djavan, Beto Guedes, entre inúmeros outros. Essa dinâmica prossegue nos anos 1980, mas emerge e vai se tornando cada vez mais forte, o novo rock brasileiro, tendo uma parte de rock trivial e outra de rock semierudito, crítico, bem como alguns que ficariam num estágio “intermediário”. Assim, o rock trivial surge com Magazine, Blitz, Abshynto, Grafite, Ritchie, Sempre Livre, entre outras e bandas e cantores semieruditos como A Cor do Som, 14 Bis, Lulu Santos, RPM, Legião Urbana, Titãs, Ira, Plebe Rude, etc. A hegemonia do rock constrangeu até os considerados grandes nomes da MPB gravarem algumas músicas neste gênero (Gilberto Gil, Caetano Veloso, Djavan, Fagner, etc.)[26]. Até meados dos anos 1990 o rock semierudito ainda consegue um espaço considerável e muitas bandas e cantores dão continuidade por alguns anos, com destaque para os Engenheiros do Hawaii e Biquíni Cavadão, sendo que o rock trivial vai paulatinamente ganhando espaço e retomando a hegemonia, com Skank, Mamonas Assassinas, Jota Quest e outras bandas.

A partir de 1990 o regime de acumulação integral-subordinado vai sendo instaurado no Brasil, com a ascensão da reestruturação produtiva e neoliberalismo, a partir do governo Collor e seus sucessores, até os dias de hoje. Nesse contexto, a MPB entra em decadência, sendo que o domínio passa a ser da música trivial e de uma cultura mercantil cada vez mais provisória e descartável. A MPB trivial aparece triunfante e a MPB erudita e semierudita ficam extremamente enfraquecidas, com poucas exceções. A produção de melhor qualidade passa a ser acessível a círculos mais restritos, regionais, municipais e via meios de comunicação alternativos (internet e shows), pois o capital comunicacional privilegia a cultura mercantil e descartável para renovar mais rapidamente o consumo. A MPB se torna tão empobrecida em matéria de conteúdo e forma que os grandes sucessos dos anos 1990 conta com músicas como Segure o Tchan (É o Tchan) e coisas semelhantes. A música sertaneja ocupa um espaço no mercado consumidor e por isso foi e continua sendo alvo de críticas de outros setores da MPB. A letra abaixo é uma crítica e sátira de Chico César (2005) às duplas sertanejas:


Odeio Rodeio
Chico César

Odeio rodeio e sinto um certo nojo
Quando um sertanejo começa a tocar
Eu sei que é preconceito,
Mas ninguém é perfeito
Me deixem desabafar

A calça apertada, a loura suada, aquele poeirão
A dupla cantando e um louco gritando “segura peão”

Me tira a calma, me fere a alma, me corta o coração
Se é luxo ou é lixo, quem sabe é bicho que sofre o esporão

É bom pro mercado de disco e de gado, laranja e trator
Mas quem corta a cana não pega na grana, não vê nem a cor
Respeito Barretos, Franca, Rio Preto e todo o interior
Mas não sou texano, a ninguém engano, não me engane, amor


A televisão supera o rádio como principal meio de divulgação musical em matéria de impacto. O aperfeiçoamento técnico dos aparelhos televisivos[27], tornam a imagem e a performance (e a aparência dos cantores e principalmente das cantoras e dançarinas, etc.) cada vez mais importante para os sucessos populares nos estratos inferiores do mercado consumidor. A hipermercantilização dessa fase do capitalismo convive com a descartabilidade e a pouca preocupação com qualidade, seja formal ou de conteúdo, tornando os meios de comunicação cada vez mais meios de reprodução da mediocridade artística.

Considerações Finais

O nosso objetivo era discutir o significado da MPB e observar aspectos de sua evolução histórica. O elemento fundamental era entender o conceito de MPB. O capital comunicacional produziu uma estratificação do mercado consumidor de música popular. Esse processo, por sua vez, gera certas formas de classificação musical comandada, muitas vezes, pelas preferências pessoais. Assim, a idiopatia no processo de definição da MPB deve ser afastada. A MPB é um fenômeno social e a concepção pessoal é muitas vezes arbitrária ao desconhecer o seu caráter social. Para os adeptos da MPB erudita, ela se reduziria ao que é considerado música de “boa qualidade”, gerando uma concepção elitista de MPB.

Contudo, a conceituação é um processo diferenciado da avaliação. A discussão sobre “qualidade” de determinada música, gênero, cantor, etc., é algo que não serve para a elaboração de um conceito de MPB. A questão valorativa acaba se manifestando até no léxico utilizado para realizar a classificação musical. Adorno (1983), por exemplo, inicia a divisão entre música séria e ligeira. Os termos são problemáticos e a qualificação do que é sério e ligeiro também. A música séria, para Adorno, é a clássica, o que outros concordarão, especialmente aqueles que dizem que estão no campo da “esquerda”[28]. A distinção entre música clássica, música ligeira e música popular é outra questão problemática (CARVALHO, 1976). A distinção entre música “clássica”, cujo termo seria necessário discutir, mas não é nosso objetivo aqui, e música popular, expressa uma real divisão de classe. O uso dos termos “sério” e “ligeiro” apenas revela uma posição ligada à divisão anterior.

A música popular é algo mais rico do que isso. O capital comunicacional vai gerar uma música trivial (que é semelhante ao que é chamado “ligeiro”), um setor da música popular. Antes dela já existia a música folclórica e ao lado dela existe uma música popular erudita e semierudita, que dificilmente poderiam ser chamadas de “ligeira”. A música folclórica vai sendo destruída pela modernização capitalista, mesmo quando é recuperada pelo capital comunicacional que a esteriliza para adaptá-la ao processo de produção e mercado consumidor. Em seu lugar, ao lado do processo social que se desenvolve (urbanização, mutação cultural, influência da música veiculada pelo capital comunicacional, etc.) emerge a música popular, já não tão presa às suas raízes. A música popular pode ou não se transformar em nacional-popular e, uma vez isso ocorrendo, no caso brasileiro, passa a se chamar MPB. Essa não tem uma parte que é “séria” e outra “ligeira” e sim uma produção erudita, semierudita e trivial.

Esse processo de diferenciação na MPB tem raízes sociais concretas e não simples classificação arbitrária. Bourdieu (2007) já separava o campo da produção erudita e o da indústria cultural, o que é útil apesar de problemático. A produção erudita, segundo Bourdieu, é o dos especialistas do campo e para eles mesmos e o campo da indústria cultural é para o grande público. No fundo, a produção erudita é a realizada para os integrantes de uma determinada esfera social e meios intelectualizados, ou seja, a burguesia e suas classes auxiliares[29]. A produção trivial é para o grande público, ou seja, as classes inferiores. Isso cria diferença de qualidade, preço, temas, etc. Contudo, há algo além dessa divisão, cuja origem remonta Adorno e a divisão entre o sério e o ligeiro. Existe uma produção popular que não é trivial, embora também não seja erudita. Bem como existe uma produção semierudita, que o público não é delimitado pela classe social e sim pela mentalidade e perspectiva política.

Nesse sentido, a MPB é a música nacional-popular, um produto do capital comunicacional. Claro que o capital comunicacional não produz música, quem realiza a produção musical são os cantores e compositores, bandas, etc. Nesse caso, eles produzem obras de arte, músicas, mas o caráter nacional-popular quem produz é o capital comunicacional. O capital comunicacional, no entanto, ao contrário do que pensava Adorno, é permeado por contradições e por isso não produz apenas arte trivial (VIANA, 2007b). É por isso que a MPB, a música nacional-popular do Brasil, pode ser subdividida em erudita, semierudita e trivial. Os elitistas vão querer reservar o nome MPB para apenas para o que aqui chamamos “erudito”, passando por cima de inúmeras dificuldades[30]. Os verbalistas vão classificar como MPB aquilo que se autodefine como tal, entre outras falsas definições de música popular brasileira.

Em síntese, a música popular brasileira perde seu ar de mistério quando é analisada a partir das relações sociais concretas e de seu processo de evolução, o que é possível quando se parte do materialismo histórico e do método dialético como bases teórico-metodológicas. O segredo da MPB é o capital comunicacional e o segredo das classificações e supostas definições apresentadas remete aos definidores e classificadores, com seus valores, interesses, concepções, idiopatias, etc. A MPB é a música nacional-popular brasileira, cujo embrião aparece na música folclórica e especialmente na música urbana (samba, maxixe, etc.), sendo que se torna cada vez mais popular e com o desenvolvimento do capital comunicacional, vai se tornando nacional-popular. Mas a música nacional-popular brasileira se desenvolve numa sociedade dividida em classes e por isso também será marcada pela divisão, que expressamos através dos termos erudito, semierudito e trivial. No entanto, a MPB é bem mais complexa e precisa de novas pesquisas para ser melhor compreendida, inclusive em seus aspectos particulares, em seus momentos históricos, entre diversos outros elementos. O que aqui apresentamos foi uma definição e discussão conceitual ao lado de uma breve abordagem de sua evolução histórica, elemento fundamental para compreender o conceito apresentado. Esse foi um ponto de partida e outras obras devem desenvolver o que aqui foi apresentado e assim cumprimos com o objetivo que nos propomos.





Referências

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BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Obras Escolhidas, vol. 1, São Paulo, Brasiliense, 1987.

BOURDIEU, Pierre. A Distinção. Porto Alegre: Zouk, 2007.

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CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e Outras Bossas. 4a edição, São Paulo, Perspectiva, 1986.

CARVALHO, Mário Vieira. A Música e a Luta Ideológica. Lisboa: Estampa, 1976.

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[1] É por isso que o samba e o rock brasileiro ganham, nas lojas de discos (desde o vinil até o CD), um espaço próprio, pois são gêneros mais facilmente identificáveis, enquanto que as músicas brasileiras de difícil identificação aparecem unidas com o rótulo MPB.
[2] Antes disso, as músicas não eram gravadas e por isso muitas se perderam historicamente. Antes do século 19, o termo “moda” era usado “tanto em Portugal quanto no Brasil, era uma maneira geral de designar as canções populares” (SANDRONI, 2001, p. 41), ou seja, a música folclórica. A partir do século 19, com a reprodutibilidade tecnológica – expressão que retoma Walter Benjamim, que usava a expressão “reprodutibilidade técnica” – da música, a música folclórica, no Brasil, vai se tornando, cada vez mais, MPB e perdendo suas raízes folclóricas.
[3] Folclore é um termo pouco compreendido. Etimologicamente, já que é a união folk (povo) e lore (saber), significaria saber popular. O termo é um tanto quanto limitado e não dá conta do real significado da palavra. Uma definição que julgamos mais adequada é entender o folclore como tradição comunitária. Retomando a definição de tradição de Ginsberg (1966), que seria a soma de todas as ideias, hábitos e costumes de uma população e que seria transmitida de geração em geração. Essa população teria uma forte ligação com o passado, com relações afetivas, familiares. Nas sociedades pré-capitalistas ou no mundo rural, a tradição tem a força de uma convicção, marcando a formação da mentalidade dos indivíduos (VIANA, 2015). O folclore seria, portanto, uma cultura tradicional de determinada população, delimitada no tempo e no espaço, e, sendo assim, não sendo nacional e sim comunitária.
[4] O capital fonográfico era predominantemente estrangeiro, norte-americano, enquanto que o capital radiofônico era brasileiro. No entanto, o capital fonográfico busca seguir o gosto popular e era servido por profissionais brasileiros e influência da burguesia ascendente no Brasil.
[5] Um relato jornalístico da época fornece uma ideia da situação: “quando vi a antena plantada a um canto do jardim – uma simples vara de bambu com uns fios ligeiramente instalados – e sobretudo quando penetrei no quarto de operações, e pude examinar os toscos objetos que completavam o dispositivo, não pude deixar de sorrir por dentro. Não era possível aquela caranguejola, feita com bambu, alguns metros de fio de cobre e um fone de aparelho comum, desse resultado sério” (apud. CABRAL, 1996, p. 10).
[6] Assim como a modinha, outra manifestação musical de origem folclórica. A obra de Lima Barreto, O Triste Fim de Policarpo Quaresma (2011), é rica em mostrar aspectos culturais da sociedade brasileira daquela época, tanto preconceito em relação à modinha pelas classes superiores e urbanizadas, quanto a tentativa de seu resgate pelos arautos do nacionalismo, como o próprio Policarpo Quaresma, personagem principal.
[7] O samba era o principal gênero musical do período, mas havia outras músicas folclóricas que eram gravadas, como marchinhas, maxixe, modinhas, etc.
[8] A subesfera musical é uma subdivisão no interior das esferas sociais, que expressam a divisão capitalista do trabalho intelectual (VIANA, 2015), sendo uma das subesferas da esfera artística.
[9] Havia outros incentivos para a reprodução tecnológica musical, como, por exemplo, o cinema e os programas de rádio, que, no entanto, não poderemos abordar no presente trabalho, por questão de espaço. Mas, de qualquer forma, é preciso entender que o cinema terá um significado importante para a produção musical, pois alguns filmes vão promover um reconhecimento da mesma e incentivar sua popularidade, inclusive no exterior, tal como aconteceu com o caso de Carmem Miranda. Os programas de rádio são mais antigos e permanentes na história do nascimento da MPB, alguns ganhando destaque e sendo outro incentivo para a produção e popularização da MPB.
[10] “Até a década de 1950, o público já sabia em novembro quais eram as músicas lançadas para o carnaval. Nas noites de Natal, com as famílias reunidas, o fundo musical, geralmente, eram os lançamentos para o carnaval. Parecia que, naquela época do ano, o público estava predisposto a comprar discos, do que se valiam as gravadoras para atendê-lo” (CABRAL, 1996, p. 47). Na verdade, o capital fonográfico não “atendia” à predisposição do público e sim criava tal predisposição com sua produção, divulgação e criação de um hábito de consumo em determinado período do ano.
[11] Eduardo Souto e Osvaldo Santiago lançam Hino a João Pessoa; Lamartine Babo lança a marchinha O Barbado foi-se (alusão a Washington Luiz); e até a música caipira reproduz esse processo coma Zico Dias e Ferrinho, cantando Revolução Getúlio Vargas, para citar apenas três exemplos de dezenas de músicas do período.
[12] “Foi só nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo de nacionalidade” (VIANNA, 1995, p. 111).
[13] “O ritmo do baião nordestino, transformado em gênero de música popular urbana a partir de meados da década de 40, graças ao trabalho de estilização do acordeonista pernambucano Luís Gonzaga e do advogado cearense Humberto Teixeira [...] tem sua origem num tipo de batida denominado exatamente de baião” (TINHORÃO, 1991, p. 219).
[14] A constituição social do gosto musical (VIANA, 2014) é um elemento fundamental para entender a história da música popular e, nesse contexto, é necessário entender os distintos gostos nas classes sociais (VIANA, 2014; BOURDIEU, 2007).
[15] Quando Caetano Veloso afirma que o tropicalismo retoma a linha evolutiva de João Gilberto, um dos grandes representantes da bossa nova, apontava para a continuidade e a mudança que o movimento tropicalista pretendia realizar (VIANA, 2007a).
[16] “Os criadores da bossa nova invocariam para justificar o seu movimento: música anticontrastante (cool jazz), integração da voz do cantor na orquestra (‘ambas se integram e se conciliam, sem apresentarem elementos de contraste’, na definição do musicólogo Brasil Rocha Brito), melodia não diatônica e esquematização rítmica, representada pelo abastardamento da batida tradicional do samba, através do estabelecimento de uma correspondência com as configurações rítmicas da estrutura melódica (impressão de birritmia conhecida por violão gago)” (TINHORÃO, 1966, p. 36).
[17] A única concessão temática da bossa nova era o samba, do qual derivava, mas por tomar esse elemento das classes inferiores para ter caráter “brasileiro” e fundi-lo com o jazz, para criar uma “brasilidade” com “qualidade”, ou seja, através do seu aburguesamento.
[18] Apesar de algumas músicas serem realmente de qualidade (no aspecto formal), o descompromisso social e político é visível e algumas músicas beiram ao ridículo por sua falta de profundidade e sentido, como se vê em O Pato (que não deve ser confundida com a música infantil de Toquinho, pois trata-se da música de João Gilberto).
[19] “Uma das figuras mais populares da década dos 50 foi Luís Gonzaga, e até hoje ouvimos suas músicas com saudade e admiração. Sua associação com Humberto Teixeira produziu obras que se popularizaram extraordinariamente, e foi coroado solenemente como ‘o rei do baião’.” (MARIZ, 1985, p. 117)
[20] Esse processo era realizado conscientemente, como se pode ver nessa afirmação: “porém, onde a contradição se revelaria mais evidente, no plano da música popular, seria na tentativa do estabelecimento de parcerias com criadores das camadas mais baixas do povo, e que foi promovida em 1961 por Carlos Lira e seu parceiro e teórico da bossa nova nacionalista Nélson Lins e Barros (1920-1966). Levados ao apartamento que Nélson repartia com Carlos Lira, na Rua Francisco Sá, em Copacabana, os compositores Cartola, Nélson Cavaquinho e Zé Kéti foram convidados a mostrar sua ignorada produção diante do excitado interesse dos dois compositores de bossa nova. Comovidos com a candidez dos visitantes, Nélson Lins e Barros e Carlos Lira não se limitavam durante as conversas a gravar em fita as músicas que iam sendo cantadas, mas ainda serviam com prodigalidade rodadas de cachaça e cerveja, compradas especialmente no bar mais próximo para atender ao gosto pouco refinado dos representantes do povo” (TINHORÃO, 1991, p. 239).
[21] Roberto Carlos poderia inclusive ser coroado como o rei do humor sem graça, o único reinado que ele merecia de fato, com sua transformação do rock em banalidade infantil, tal como se vê em Pega Ladrão, Splish Splash, O Calhambeque.
[22] O programa da Jovem Guarda foi precedido pelo programa Celly e Tony em Hi-Fi, na Rede Record, no ar durante dois anos (1958-1959). Celly Campelo precedeu a Jovem Guarda com a importação do Rock para o Brasil, com os sucessos Banho de Lua e Estúpido Cúpido, mas na época desta abandonou a carreira.
[23] Esse seria um tema importante para a discussão obre a MPB. A competição na subesfera musical se torna mais forte a partir dos anos 1960 e prossegue pelos anos 1970, mas também a luta de classes se revela em várias disputas no seu interior. A polêmica entre Wilson Batista e Noel Rosa é um exemplo que ao lado da disputa dos anos 1960 nos festivais e entre os grupos concorrentes, o debate musical entre Raul Seixas e Belchior, são alguns exemplos tanto de sua manifestação nas relações sociais e nas próprias letras das músicas.
[24] Isso provoca a confusão na análise da produção musical do período. Alguns confundem e colocam Chico Buarque como sendo integrante da Canção de Protesto (MARIZ, 1985), entre outros, bem como alguns atribuem ao movimento tropicalista um caráter revolucionário (no sentido político) que ele não tinha. A crítica na música, nesse contexto, é uma pressão externa e não uma dinâmica interna, seja do cantor e compositor, seja de um movimento artístico, etc. A canção de protesto tem uma gênese anterior ao golpe militar e se estrutura como uma proposta musical com características e integrantes próprios e os demais que, nesse contexto, fizeram músicas relativamente críticas, não pertencem ao movimento. Esse tipo de confusão é, infelizmente, muito comum na pesquisa musical.
[25] O capital radiofônico era ainda mais importante para a divulgação musical, pois sua audiência era extremamente elevada, devido sua facilidade de uso (inclusive no trabalho e diversos horários e momentos da vida cotidiana, como era o costume da época e que perdurou por muito tempo depois, até os computadores se tornarem concorrentes). Inclusive não é demais lembrar que nessa época os canais de televisão não ficavam no ar 24 horas, ao contrário das emissoras de rádio, bem como não eram na quantidade que existe hoje. Alguns canais, variando de acordo com a época, cidade, etc. começavam a transmitir apenas pela tarde, ou a partir do meio dia, entre outros horários. Com o passar do tempo, a TV foi ampliando seu horário de transmissão até generalizar o período de 24 horas. O capital editorial foi se desenvolvendo concomitantemente com o televisivo e ganhou um número cada vez maior de revistas especializadas em celebridades da TV e música, reforçando a divulgação musical.
[26] O capital comunicacional no Brasil tentou testar algumas alternativas ao rock, inclusive, usando rockeiros para tal propósito. A primeira tentativa foi de uma retomada da bossa nova (e vários encerraram seu período roqueiro gravando músicas de bossa nova). Assim, um conjunto de cantores iniciou a gravação de músicas no gênero, sem maior sucesso, e alguns exemplos foram Lulu Santos (Leva outro Papo); Lobão (Chorando no Campo); Guilherme Arantes (Coisas do Brasil), Cazuza (Faz Parte do Meu Show), Supla (Green Hair) e a última tentativa parece ter sido Rita Lee cantar Beatles unido com bossa nova. No entanto, a tentativa fracassou e assim, a partir dos anos 1990, o rock trivial passou a primeiro plano e os modismos representados por Axé, Pagode, entre outros, de baixa qualidade, tanto no nível formal quanto de conteúdo. Mesmo nos anos 1980, além da manutenção de uma MPB erudita, também a trivial se mantinha com o que geralmente se denominou, a partir desse período, como “música brega”, a começar pela chamada “sertaneja”, uma adaptação urbanizada e empobrecida em conteúdo da música caipira. Inclusive é nesse momento que tal música conheceu maior ascendência em Goiânia, convivendo ao lado do rock, e que se criou a lenda da “capital sertaneja”, sendo que nem a música caipira tinha força na cidade antes disso.
[27] A tela plasma é lançada no final dos anos 1990, entre outras novidades. A TV em cores se generaliza nos anos 1980 e daí por diante, as inovações tecnológicas, bem como ampliação de opções em matéria de canais e programas, se desenvolvem progressivamente.
[28] Aqui nós temos uma questão musical e outra política. Na verdade, a suposta “esquerda” é apenas uma oposição no interior do capitalismo do bloco progressista e que, portanto, não rompe com o capitalismo, apenas busca reformá-lo. Aliás, não é sem motivo que grande parte dos representantes do bloco progressista reproduz valores, concepções, sentimentos, dominantes na sociedade burguesa. Isso se reproduz no caso da música. A música clássica, de origem burguesa, é supervalorada e a música popular (folclórica ou nacional-popular) desvalorada.
[29] Essa “intelectualização”, no entanto, é mais formal que real, na maioria dos casos. Em muitos casos é apenas busca de distinção, como já dizia Bourdieu (2007).
[30] A primeira dificuldade está no fato de que o que eles defendem como sendo MPB aponta para a inclusão do samba, que é popular e pode ser trivial, já que a bossa nova, o seu modelo exemplar, é um samba-jazz. Outra dificuldade é a gravação por parte de cantores que eles consideravam de MPB de diversas músicas que não seriam MPB. Isso sem falar em músicas qualificadas como MPB de baixa qualidade e o problema da inclusão do rock e outros gêneros (inclusive para aqueles que são elitistas e afirmam que a MPB é um “gênero”), se são um gênero e como poderia depois acrescentar outros gêneros distintos no seu interior, entre inúmeros outros exemplos. Um mar de contradições que mostram apenas idiopatia e valores elitistas ao invés de análise profunda da realidade concreta.

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Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo. O Mistério da MPB. In: SOUZA, Erisvaldo. (Org.). Música e Sociedade no Brasil. Uma Análise Crítica do Fenômeno Musical. Curitiba: Prismas, 2018.


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