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quinta-feira, 15 de março de 2018

Nietzsche, Vontade de Potência e Irracionalismo



Nietzsche, Vontade de Potência e Irracionalismo

Nildo Viana*

Resumo:
O artigo apresenta as ideias fundamentais de Nietzsche, reconstituindo o seu pensamento como uma totalidade coerente, apesar da falta de sistematicidade, que é oriunda de sua filosofia. O texto aponta para a hipótese de que sua concepção é irracionalista e que a ideia fundamental de toda sua filosofia e que fornece coerência ao seu pensamento é a da “vontade de potência”, o que é complementado com algumas considerações críticas sobre o se pensamento.
Palavras-chave: irracionalismo, Nietzsche, vontade de poder.

Abstract:
The article presents the ideas basic of Nietzsche, reconstituting its thought as a coherent totality, although the lack of systematic organization, that is deriving of its philosophy. The text points with respect to the hypothesis of that its conception is irrationalist and that the basic idea of all its philosophy and that supplies coherence to its thought is of the “will of power”, what is complemented with some critical considerations on if the thought.
Key-words: irrationalism, Nietzsche, will of power.

A filosofia de Nietzsche é uma das mais difíceis de compreensão. Isto é derivado tanto de sua forma de exposição (aforismos, por exemplo), quanto pelas diversas mudanças ocorridas em seu pensamento e da falta de clareza típico das especulações filosóficas, o que é reforçado pela diversidade de interpretações de sua obra. Para alguns, Nietzsche é o precursor do nazismo; para outros, é um autor próximo ao anarquismo. Hoje, ele é resgatado pelo pós-estruturalismo. Outras interpretações existem e muitas vezes antagônicas.
Partimos de uma perspectiva determinada, como não poderia deixar de ser. Toda interpretação parte de uma determinada perspectiva. O nosso ponto de partida é a perspectiva geral que possuímos aliada a uma determinada forma de leitura derivada desta perspectiva. Porém, a forma como compreendemos a perspectiva é bem diferente daquela apresentada por Nietzsche com seu perspectivismo (Viana, 2007a; Viana, 2007b), que discutiremos adiante.
Assim, analisaremos a obra de Nietzsche buscando compreender a sua essência e o seu processo de formação. Não se trata, como diversos comentaristas fizeram, de comentar suas diversas obras cronologicamente. Este procedimento, além de ser pouco didático para o leitor e pouco claro, talvez revelando não compreensão da totalidade do pensamento do autor em questão, é muito pouco útil para apresentar a concepção de um pensador, gerando, inclusive, diversas repetições. Pretendemos aqui sintetizar em poucas páginas os elementos fundamentais de seu pensamento. As repetições, no entanto, ocorrerão, já que o pensamento de Nietzsche é bastante circular, voltando sempre ao mesmo ponto. Mas não somente devido a isso, já que a repetição está presente em toda sua obra, juntamente com a falta de uma maior organização do pensamento deste filósofo, o que faz ele ir e voltar ao mesmo tema e problema, retomar e ir adiante retomando mais uma vez.
Sendo assim, não apresentaremos, como alguns fazem, o seu pensamento em três fases (Marton, 1993) e sim expor suas idéias fundamentais, tomando como fundamental a sua última fase, e, as obras das demais fases são percebidas como forma rudimentar de algumas teses desenvolvidas ali ou problemas que não recebiam ainda a solução posterior. Em tal processo – por questão de espaço, que limita a possibilidade de uma análise mais extensa da obra deste filósofo –, alguns temas relativamente importantes no conjunto do pensamento de Nietzsche e outros diversos sem grande importância terão que ser deixados de lado. Neste sentido, nossa leitura parte da concepção de que a obra de Nietzsche forma um todo coerente, embora sua coerência seja sui generis, isto é, marcada pela falta de sistematicidade e organização, oriunda de sua própria filosofia, tal como colocaremos no decorrer deste texto.
A Vontade de Potência
A base da filosofia nietzschiana é o irracionalismo. Apesar de alguns contestarem esta interpretação, o conjunto da obra deste filósofo e suas teses fundamentais apontam para isso. O ponto de partida de Nietzsche é a crítica da metafísica, identificado com o platonismo e outras expressões filosóficas que partem da razão como elemento fundamental da reflexão filosófica. A chamada primeira fase de seu pensamento expressa um filósofo iniciante buscando na filosofia e cultura existentes manifestar suas idéias ainda em elaboração. A ligação com Richard Wagner, a influência de Kant e principalmente Schopenhauer, expressam esta procura. A fase da procura é desdobrada na fase seguinte, marcada pela influência positivista e pela preocupação metodológica. No entanto, não se deve iludir com tal influência. Nietzsche não era um positivista neste período, como alguns dizem, pois era apenas um pensador que, durante sua busca, teve influências que, no entanto, não eram a forma do seu pensamento e sim uma apropriação indecisa e eclética. A terceira fase é a fase da síntese e organização do seu pensamento, embora de forma pouco organizada e sistemática, ao contrário de outros sistemas filosóficos produzidos por outros filósofos[1]. Os aforismos são não apenas exemplo de estilo, mas de produto de uma determinada perspectiva.
A grande questão para o pensamento de Nietzsche e que é a base de sua construção filosófica é a chamada “vontade de potência”. A origem da concepção nietzschiana de vontade de potência remonta sua visão da Grécia antiga. A oposição entre o dionisíaco e o socrático está na base de sua formulação de vontade de potência. Nietzsche parte da crítica de Sócrates e da filosofia grega posterior a ele, socrática, tal como em Platão e Aristóteles, colocando que este filósofo iniciou a longa carreira da metafísica e originou a separação entre pensamento e vida. Neste sentido, Sócrates e Platão são “pseudo-gregos” ou “antigregos”.
Essa irreverência de considerar os grandes sábios como tipos de decadência nasce em mim precisamente num caso em que o preconceito letrado e iletrado se opõem com maior força: reconheci em Sócrates e em Platão sintomas de decadência, instrumentos da decomposição grega, pseudo-gregos, anti-gregos (Nietzsche, 1984a, p. 18).
Isto significou uma decadência da filosofia. O filósofo-legislador, aquele que manifestava a vida ativa e o pensamento afirmativo, o filósofo pré-socrático, é substituído pelo filósofo metafísico. O primeiro realizava a crítica de todos os valores estabelecidos e era um criador de novos valores, enquanto que o metafísico passou a enquadrar a vida e opor a ela valores considerados superiores. Sócrates – o mais sábio dos tagarelas, segundo Nietzsche – é o fundador da metafísica, pois ele foi o responsável pela separação entre a essência e a aparência, a verdade e a falsidade, o inteligível e o sensível.
Assim, surge o filósofo metafísico em oposição ao filósofo dionisíaco e trágico que o antecedeu. O trágico, ligado a vida, é substituído pelo metafísico, o pensamento separado da vida. Surge uma era da razão, no qual os valores superiores passam a ser o Verdadeiro, o Belo, o Bem, entre outros. A concepção anterior, expressa na tragédia grega, revela a unidade da vida e da morte, pensamento e vida. Para Nietzsche, “em todos os tempos os sábios fizeram o mesmo juízo da vida: ela não vale nada” (Nietzsche, 1984a, p. 17). Sócrates, que pertencia ao populacho, era feio, e a feiúra é o sinal de uma evolução descendente, tal como os criminólogos dizem que o tipo criminoso é feio (Nietzsche, 1984a). Assim, o pensamento socrático e metafísico, doravante hegemônico, substitui a unidade de pensamento e vida presente na visão de mundo dionisíaca e realiza a decadência da filosofia, e isto vai ter continuidade no platonismo.
A partir da oposição entre homem teórico e homem trágico, Nietzsche considera toda a filosofia grega posterior, identificada por ele com o platonismo, como manifestação da metafísica e do predomínio do primeiro sobre o segundo. Daí sua crítica e negação da metafísica. Porém, o cristianismo também passa a ser alvo do filósofo e, no entanto, não significa nada mais do que a continuação da metafísica, segundo sua concepção. Para Nietzsche, o cristianismo é um platonismo popular, ou, em outras palavras, um platonismo de escravos. A relação entre cristianismo e moral dos escravos é um dos pontos básicos da filosofia nietzschiana:
A rebelião dos escravos na moral começou quando o ódio começou a produzir valores, o ódio que tinha a contentar-se com uma vingança imaginária. Enquanto toda a moral aristocrática nasce de uma triunfante afirmação de si mesma, a moral dos escravos opõe um ‘não’ a tudo o que não é seu; este ‘não’ é o seu ato criador. Esta mudança total do ponto de vista é a própria do ódio: a moral dos escravos necessitou sempre de estimulantes externos para entrar em ação; a sua ação é uma reação. O contrário acontece na moral aristocrática: opera e cresce espontaneamente e não procura o seu antípoda senão para se afirmar a si mesma com maior alegria; o seu conceito negativo ‘baixo’, ‘vulgar’, ‘mau’, não é senão um pálido contraste e muito tardio, se se comparar com o seu conceito fundamental impregnado de vida e de paixão, ‘nós os aristocratas, nós os bons, os formosos, os felizes’. Quando o sistema aristocrático erra e peca contra a realidade, está numa esfera que desconhece e desdenha, é a esfera do povo baixo. Mas por muito que falseie a imagem percebida, este costume de orgulhoso desdém e de superioridade, não é tanto como a desfiguração violenta que o rancor e o ódio, põem na imagem do adversário. No desdém aristocrático há muita negligencia e descuido, muita alegria íntima e pessoal, para que o objeto possa transformar-se numa caricatura, num mostro (Nietzsche, 1990, p. 28-29).
A moral dos escravos surge do ódio e esta é a origem do cristianismo. Os fracos querem um dia ser fortes. Um dia chegará o seu reino, afirma Nietzsche, e eles humildemente o chamam de “o Reino de Deus”.  Segundo Nietzsche, “por cima da porta do paraíso cristão da ‘bem-aventurança eterna’ poder-se-ia escrever com maior razão: ‘também a mim o ódio eterno me criou’ (...)” (Nietzsche, 1990, p. 38).
O que a metafísica da filosofia e a moral dos escravos produziram foi uma perversão dos instintos. Os valores cristãos são valores de escravos. Ela se forma a partir de uma moral do ressentimento. Esta moral do ressentimento tem como pilares a culpabilização do outro pela própria fraqueza, o sentimento de culpa e o ideal ascético (aliás, é aqui que muitos irão ver semelhanças entre a filosofia nietzschiana e a psicanálise) (Nietzsche, 1990).
Na minha Genealogia da Moral apresentei, pela primeira vez, psicologicamente, a idéia de contraste entre uma moral nobre e uma moral de ressentimento, a última nascida do ‘não’ respeito da primeira: é a moral judaico-cristã por inteiro. Para poder dizer ‘não’ em resposta a tudo o que representa o movimento ascendente da vida, o bem nascido, o poder, a beleza, a afirmação de si sobre a terra, foi preciso que o instinto de ressentimento convertido em gênio, inventasse ‘outro’ mundo, por onde aquela ‘afirmação’ da vida nos aparecesse como o mal, como a coisa reprovável em si (Nietzsche, 2000b, p. 38).
Em oposição a esta decadência da filosofia e ao domínio da metafísica, Nietzsche contrapõe a vontade de potência. A vontade de potência é um dos termos fundamentais da filosofia nietzschiana, mas é um dos menos compreendidos e um dos menos abordados por alguns dos especialistas em seu pensamento. É na vontade de potência que reside a base da concepção nietzschiana da filosofia e de sua crítica da metafísica e do cristianismo, bem como de sua concepção perspectivista e seu imoralismo, tal como colocaremos adiante.
O que é a vontade de potência? Este termo, como alguns já colocaram, é geralmente mal interpretado. Devido à concepção de Descartes, segundo a qual a vontade é uma faculdade, muitos (Karl Jaspers, Martim Heidegger) interpretaram equivocadamente este conceito nietzschiano (Moura, 2005). O próprio Nietzsche fez questão de distinguir sua concepção e a concepção cartesiana (Nietzsche, 2004). Para Nietzsche, a vontade de potência não é uma faculdade, não é produto da consciência. A consciência foi transformada em algo em si que, no fundo, não existe. A filosofia passou a buscar um mundo-verdade, criando e evocando um valor sublime que não passa de uma criação de uma ficção útil ao seu criador. Assim, Nietzsche busca destruir as bases desta concepção metafísica, e questiona também a idéia de causa e o mecanicismo. Nietzsche também contesta o hedonismo ao colocar que o homem não busca o prazer e não se esquiva do desprazer. Em substituição a tudo isso, Nietzsche irá erguer um novo edifício ideológico que terá como base a vontade de potência.
A vontade de potência não é a mesma coisa que luta pela sobrevivência. Aqui reside um dos motivos da crítica de Nietzsche a Darwin. Darwin postula algumas teses que entrarão em desacordo com a filosofia nietzschiana. Para Darwin, distinguindo-se de Lamarck, o meio cumpre um papel fundamental no processo da evolução (Viana, 2003). Nietzsche irá questionar a “influência das circunstâncias exteriores”, bem como o papel do que é útil ser preservado. Além disso, para Nietzsche, não são os mais aptos que sobrevivem, pois estes são uma minoria que é suplantada pela maioria dos menos aptos. A crítica nietzschiana de Darwin tem sua razão de ser a sua própria definição de vontade de potência. Para ele, o organismo não luta pela vida, simplesmente, não busca a mera sobrevivência. Ele quer mais. É este querer mais que é a base da vontade de potência. Ele fornece um exemplo que ajuda a entender sua concepção:
Tomemos o caso mais simples, o da nutrição primitiva: o protoplasma estende seus pseudópodes para buscar algo que lhe resista; – não porque tenha fome, mas para pôr em ação sua vontade de potência. Depois tenta suplantar esse algo, apropriá-lo, incorporá-lo. O que chamamos nutrição é simplesmente a conseqüência, a aplicação dessa vontade primitiva de tornar-se mais forte (Nietzsche, 2004, p. 265).
Assim, notamos a diferença entre a concepção nietzschiana e a darwinista, pois apesar das semelhanças, inclusive conseqüências convergentes, tal como na idéia da luta pela sobrevivência e a sobrevivência dos mais aptos que pode, tal como na doutrina da vontade de potência, resultar na defesa dos fortes contra os fracos, o que se pode perceber em certos momentos na obra nietzschiana, as bases das duas concepções são bem diferentes.
O desprazer pode ser tanto um estímulo para superar obstáculos quanto pode, no caso do esgotamento, ser um processo que representa a diminuição e enfraquecimento da vontade de potência. O desprazer, portanto, ao contrário do que pensa a filosofia hedonista, pode tanto fortalecer como enfraquecer a vontade de potência. O prazer, da mesma forma, pode também executar os dois papéis. Para Nietzsche, existem duas espécies de prazer. A primeira espécie é a do adormecer. Os seres esgotados querem justamente a primeira espécie, querem o repouso, a paz, a tranqüilidade. Este é o ideal de felicidade das religiões e das filosofias niilistas, e é a preferência dos fracos. Ao contrário, “os ricos e os vivos querem a vitória, os adversários suplantados, o transbordar do sentimento de potência sobre domínios novos” (Nietzsche, 2004, p. 265). Segundo Nietzsche, as funções sadias de um organismo apontam todas para a luta pelo crescimento dos sentimentos de potência.
O homem não aspira à felicidade, como coloca a psicologia, também amplamente criticada por Nietzsche. Assim, Nietzsche diz que a planta não aspira à felicidade e as árvores em uma floresta não lutam entre si pela felicidade e sim pela potência. Daí o seu postulado fundamental:
Meu postulado – é necessário recolocar o agente na ação, depois que o retiraram de uma forma abstrata, tendo sido a ação assim esvaziada de seu conteúdo; é necessário retomar na ação o objeto da ação, o ‘escopo’, a ‘intenção’, o ‘fim’ após tê-los retirado de forma superficial, tendo sido a ação destarte esvaziada de seu conteúdo; todos os ‘escopos’, todos os ‘fins’, todos os ‘sentidos’, não são mais que meios de expressão e metamorfose de uma única vontade, inerente a tudo que acontece, a vontade de potência; ter fins, escopos, intenções, numa palavra querer, equivale a querer tornar-se mais forte, querer crescer – e querer também os meios para isso: o instinto mais geral e mais profundo em toda ação, na prática, obedecemos sempre à sua ordem, porque nós somos essa ordem (Nietzsche, 2004, p. 268).
A vontade de potência é um pathos que gera um devir e uma ação. A vontade de potência é sempre a busca de “ser mais”. É o desejo de tornar-ser mais forte, é “desejo de se apropriar, de se tornar senhor, de aumentar, de se converter em mais forte” (Nietzsche, 2004). É um constante superar a si mesmo (Nietzsche, 1984). Porém, pode se perguntar, isto ocorre na esfera individual? Sendo assim, não haveria uma luta de todos contra todos? Já que a vontade de potência não é uma característica apenas do ser humano, mas um princípio vital de todos os organismos e seres vivos, então a natureza não seria palco de uma eterna e infinita luta entre os seres existentes? Segundo Nietzsche: na natureza, existe uma diversidade de quanta de forças em ação, que tem como essência exercer a potência sobre outras quanta de forças. A vida é vontade de acumular força, nenhuma quer tão-somente conservar-se, mas sim ampliar-se. A vida aspira a um máximo de potência, aspirando a um excedente de potências. Assim, para Nietzsche, a vontade de potência é a busca de mais força.
Irracionalismo e Crítica da Metafísica
 A base da concepção nietzschiana é a idéia de vontade de potência. A crítica que ele faz ao racionalismo e a metafísica tem sua origem em tal idéia. Já colocamos alguns elementos desta tese. É por partir da idéia de uma “vontade de potência” que ele irá recuperar o que pode ser chamado “visão dionisíaca do mundo”[2]. É por isso que o mundo grego e sua tragédia serão abordados em várias obras de Nietzsche. A base do irracionalismo nietzschiano reside na vontade de potência.
É por isso que Nietzsche irá questionar a verdade, a metafísica, a religião. Elas seriam nada mais que ilusões. Ou, em suas palavras, “aparências úteis”. Sua crítica da verdade é bastante ampla e já realizamos alguns apontamentos sobre ela. “Todas as hipóteses do mecanicismo, a matéria, o átomo, a pressão, o choque não são fatos em si, mas interpretações com auxílio de ficções psíquicas” (Nietzsche, 2004, p. 259). Mas o seu fundamento reside na idéia de que a vontade de potência é o princípio vital determinante e que a realidade é um caos. Ela é, tal como já foi colocado, um processo de forças em luta para adquirir mais força.
Em sua crítica à lógica aristotélica, ele desenvolve alguns aspectos de sua concepção da realidade. O princípio da não-contradição é o aspecto basilar de toda e qualquer demonstração. Este princípio, no entanto, afirma algo sobre a realidade, o que pressupõe um conhecimento deste por outro meio, e assim tal princípio quer dizer que não podemos atribuir princípios contrários à realidade. No entanto, também pode significar que não devemos atribuir princípios contrários à realidade. No primeiro caso, os axiomas lógicos correspondem à realidade; no segundo caso, são medidas para criar o conceito de realidade como se fosse coisa real, de acordo com sua utilidade. “Ora, para poder afirmar a primeira, impunha-se, como já indiquei, o prévio conhecimento do ser – o que, em absoluto, não é o caso. O princípio não contém, portanto, um critério de verdade, mas um imperativo ao tema do que deve passar por verdadeiro” (Nietzsche, 2004, p. 239). Assim, a lógica aristotélica é reduzida a uma construção ficcional e útil, nada mais do que isso.
A verdade, por conseguinte, é também uma ficção útil. Não se trata de buscar uma nova verdade, pois ela é tão-somente disfarce da vontade de potência.
A reflexão nietzschiana sobre a ciência, quando confrontada com a problemática da arte em seus primeiros escritos, tem como tema central uma crítica da verdade. O mesmo acontece quando a relação é estabelecida com a moral. Em Nietzsche, a crítica nunca é uma teoria do conhecimento que tenha por objetivo denunciar os pseudoconhecimentos, suas ilusões, seus erros e estabelecer as condições de possibilidade da verdade, o ideal do conhecimento verdadeiro. A novidade e a importância do projeto nietzschiano em todas as fases de sua realização é a crítica, não dos maus usos do conhecimento, mas do próprio ideal de verdade; é a questão, não da verdade ou falsidade de um conhecimento, mas do valor que se atribui à verdade, ou da verdade como valor superior; é a negação da prevalência da verdade sobre a falsidade (Machado, 2002, p. 51).
Para Nietzsche, o conceito é uma criação de algo igual em coisas desiguais, tal como no exemplo da folha. O conceito de folha é algo impensável. Só se pode pensar em tal conceito abolindo as diferenças individuais existentes. É um processo no qual se deixa de lado o que é distintivo e cria-se uma igualação inexistente na realidade. A verdade, assim, é uma criação de um conjunto de construções que se tornam, após longo uso, canônicas, obrigatórias. “as verdades são ilusões, das quais se esqueceu o que são (...)” (Nietzsche, 1991, p. 34). A sua definição de verdade lhe retira qualquer caráter de valor superior:
A ‘verdade’ não é, conseqüentemente, algo que exista e que devamos encontrar e descobrir – mas algo que é preciso criar, que dá seu nome a uma operação, melhor ainda, à vontade de alcançar uma vitória, vontade que, por si mesma, é sem finalidade: introduzir a verdade é um processus in infinitum, uma determinação ativa – e não a manifestação na consciência de algo que seja em si fixo e determinado. É uma palavra para a ‘vontade de potência’ (Nietzsche, 2004, p. 245).
Se não existe uma verdade ou a verdade, se ela é apenas uma ficção útil, um meio que se utiliza para manifestar a vontade de potência, então como se percebe as formas de conceber o mundo, a realidade? Ao lado da concepção da realidade como um encontro de forças caóticas buscando ficar ainda mais fortes e da crítica da verdade, temos o complemento que é a concepção nietzschiana das interpretações, o chamado perspectivismo.
A consciência produz uma imagem subjetiva do mundo. Este é o perspectivismo da consciência. O homem, e não só ele, constrói, partindo de si mesmo, um mundo. Este mundo construído, é assim feito por cada um de acordo com sua vontade de potência. Todo corpo específico aspira a tornar-se mais forte e repelir o que impede sua expansão. Ele se choca, assim, com os outros corpos que possuem a mesma aspiração. Neste processo, ele acaba por criar um arranjo com outros corpos que são semelhantes e realizam uma conspiração para conquistar a potência. As teses do perspectivismo podem ser assim resumidas:
1) As categorias pelas quais todo o conhecimento é possível são constructa, ficções úteis, à primeira vista, ao serviço de uma fundamental força de autopreservação ou vontade de viver.
2) Existe algo como coisa em si que é referido sob várias denominações – caos, quantidade pura, diferença absoluta, devir contínuo, etc. – a que não há acesso direto e é sempre ‘traduzível’ em formas subjetivas ou, mais corretamente, interpretadas.
3) Toda perspectiva é interpretação e ficção reguladora.
4) As ficções reguladoras, categorias, não serão usadas num programa de inversão dos valores, isto é de seu uso pela ‘grande razão’, como instrumentos de objetivação e sistematização, mas seu uso visará sobretudo a descoberta da singularidade e a constituição de complexidades não abstratas (Marques, 2003, p. 71).
Embora a interpretação de Marques referente à Nietzsche seja excessivamente racionalista e a forma de exposição acima tenha, devido a isso, elementos questionáveis, podemos dizer que temos um resumo útil do significado do perspectivismo nietzschiano. Realmente, para Nietzsche, as categorias e o conhecimento são ficções úteis e reguladoras que estão a serviço da vontade de potência, elemento que Marques coloca posteriormente em sua análise em substituição a autopreservação e vontade de viver. A realidade é o caos e é interpretada a partir de uma perspectiva, que é uma ficção reguladora criado por um corpo ou, no caso dos seres humanos, por um indivíduo (que pode, como vimos, realizar “arranjos” com outros indivíduos a partir de determinadas semelhanças). A perspectiva ideal visa não constituir leis ou sistemas e sim descobrir singularidades e complexidades não-abstratas.
Assim, a própria existência é perspectivista, essencialmente interpretativa. É possível pensar diferente, pois o espírito humano, durante tal análise, partirá de sua perspectiva e unicamente dela, o que significa negar as demais perspectivas. Isto é exemplificado na metáfora: “só podemos ver com nossos olhos” (Nietzsche, 2006, p. 251). Assim, o mundo é palco de uma infinidade de interpretações. A realidade é o caos e as interpretações dela também.
Crítica da Moral e Imoralismo
Assim como a razão, a ciência, a idéia de verdade, a moral também é analisada por Nietzsche como sendo manifestação da vontade de potência. Nietzsche começa por demolir a concepção de moral a partir de sua genealogia e etimologia. A palavra bom deriva, em toda as línguas, de uma mesma mutação de sentido. Ela, em sua origem, significava nobreza e distinção. Assim, a palavra bom revela a matriz principal segundo a qual os nobres se consideravam superiores. Também significou o “puro”, ariano, “de cabelos loiros”, etc. Nietzsche questiona se o anarquismo, o socialismo e a tendência para a Comuna, “não são essencialmente senão um monstruoso efeito de atavismo, de tal modo que a raça dos conquistadores e senhores, a raça ariana esteja a caminho de sucumbir por completo?” (Nietzsche, 1990, p. 23). No fundo, segundo Nietzsche, a palavra bom pode ser derivada de “guerreiro” e bonus seria o homem de luta. Em alemão, gut significaria der Goettlhich, isto é, “divino”. Nietzsche afasta a possível contradição que haveria entre o guerreiro e o divino:
Se a transformação do conceito político da proeminência num conceito psicológico é a regra, não constitui uma exceção o que a casta mais elevada forma ao mesmo tempo da casta sacerdotal e prefira um título que designe as suas funções. Deste modo a oposição ‘puro’ e ‘impuro’ serviu primeiramente para distinguir as castas e ali se desenvolveu mais tarde uma diferença entre ‘bom’ e ‘mau’ num sentido já não limitado à casta. Evitemos atribuir à idéia de ‘puro’ e ‘impuro’ um sentido demasiado rigoroso, demasiado lato, e menos ainda um sentido simbólico. A palavra ‘puro’ designa simplesmente ‘um homem que se lava’, que se abstém de certos alimentos insalubres, que não coabita com as mulheres sujas da plebe e que tem horror ao sangue e nada mais (Nietzsche, 1990, p. 23-24).
Além disso, a aristocracia sacerdotal tende a espiritualizar as oposições de valores, tal como esta entre puro e impuro. No entanto, as castas começam a invejar-se mutuamente e querer o domínio. A aristocracia guerreira e a aristocracia sacerdotal passam a disputar o poder. A aristocracia guerreira valoriza a musculatura, a saúde, enquanto que a aristocracia sacerdotal é o contrário. A classe sacerdotal é a mais maligna, pois é a mais impotente e isto faz crescer nela um ódio monstruoso, sinistro, intelectual e venenoso. É desta classe que nasce os maiores vingativos da história. O exemplo mais notável é o dos judeus. 
Os judeus vingaram-se dos seus dominadores por uma radical mudança dos valores morais, isto é, com uma vingança essencialmente espiritual. Só um povo de sacerdotes podia obrar assim. Os judeus, com uma lógica formidável, atiraram por terra a aristocrática equação dos valores ‘bom’, ‘nobre’, ‘poderoso’, ‘formoso’, ‘feliz’, ‘amado de Deus’. E, com o encarniçamento do ódio afirmaram: ‘só os desgraçados são bons; os pobres, os impotentes, os pequenos, sãos os bons; os que sofrem, os necessitados, os enfermos, sãos os piedosos, são os benditos de Deus; só a eles pertencerá a bem-aventurança; pelo contrário, vós, que sois nobres e poderosos, sereis por toda a eternidade os maus, os cruéis, os cobiçosos, os insaciáveis, os ímpios, os réprobos, os malditos, os condenados...’ Todos sabem quem foi que recolheu a herança destas apreciações judaicas... E recordo aqui o que noutro lugar (Para além do Bem e do Mal) disse: que com os judeus começou a emancipação dos escravos na moral, esta emancipação que tem já vinte séculos de história e que já hoje perdemos de vista por ter triunfado completamente (Nietzsche, 1990, p. 25-26).
O ódio judaico, transmutador de todos os valores, gerou um “amor novo”. Da mais sublime e profunda forma de ódio surge a mais sublime forma de amor. Jesus de Nazaré era a sedução mais irresistível que levaria aos valores judaicos.  Assim, graças aos judeus, triunfou a moral do povo, dos escravos, do populacho, do rebanho. A moral aristocrática foi derrotada pela moral dos escravos. A moral fundada na auto-afirmação é substituída pela moral negativa. A moral dos escravos diz não a tudo que não é seu, ao contrário da moral aristocrática, que realiza um crescimento espontâneo e só tardiamente irá criar o conceito negativo de “baixo”, “vulgar”, “mau”, em contraste com a moral dos escravos.
O mau dos aristocratas é distinto do mau dos escravos. O maligno para os escravos rancorosos é a idéia original, fundadora, a base formadora da moral dos escravos. O mau para os aristocratas é uma criação posterior, um acessório, algo complementar. A moral dos escravos é, portanto, uma moral do ressentimento e é daí que aparecem suas noções de bom e mau. A culpabilização do outro é uma das fontes da moral do ressentimento, a moral dos escravos.
A moral dos escravos também manifesta a questão da má consciência. O esquecimento é mais do que geralmente se pensa, é um poder ativo, uma faculdade moderadora, é uma proteção que permite a realização das demais funções, tal como governar. O esquecimento é uma força, expressão de robusta saúde. No entanto, há também a memória, que permite um equilíbrio com o esquecimento. O homem é um fazedor de promessas e precisa ser educado, necessita de disciplina, e isto está na origem da responsabilidade. Este processo educacional é a moralização dos costumes. Mas o homem livre, aquele que pode fazer promessas, seria autônomo e supermoral. Mas a consciência rompe com esta autonomia e além da moralidade. Antes do cristianismo, fazer sofrer o outro causava um enorme prazer, era uma “verdadeira festa”. “Ver sofrer, alegra; fazer sofrer, alegra mais ainda” (Nietzsche, 1990, p. 55).
Estas reflexões não são para levar água ao moinho do pessimismo, antes pelo contrário, e tanto que naquele tempo em que a humanidade se não envergonhava ainda da sua crueldade, a vida sobre a Terra era mais serena e feliz do que nesta época de pessimismo. O sombrio da abóboda celeste cresceu em proporção da vergonha que o homem experimentou à vista de outro homem. O olhar pessimista e fatigado, a desconfiança no enigma da vida, a glacial negação ditada pelo enfado, não são os sinais característicos daquela infância da humanidade; pelo contrário, verdadeiras plantas dos pântanos necessitavam que se formasse o pântano, em que haviam de viver; refiro-me ao doentio moralismo que ensinou o homem a envergonhar-se de todos os seus instintos. Na sua porfia por ser converter em anjo (para não empregarmos uma palavra mais dura), o homem conseguiu esta fraqueza do estomago e esta linguagem mentirosa, que lhe tornam insípida e dolorosa a vida (...) (Nietzsche, 1990, p. 55-56).
A crueldade não foi extinta, apenas se revestiu com novas cores, se espiritualizou. A origem da “má consciência” (remorso, “sentimento de culpa”) foi resultado do movimento histórico que engendrou uma transformação contra a qual não se poderia lutar. A organização das aves de rapina, de uma raça de conquistadores e senhores, que exercia uma tirania, através de um estado primitivo que funcionava como uma máquina sangrenta e desapiedada. A origem do sentimento de culpa pode ser encontrada na consciência de ter uma dívida para com a divindade. Este sentimento não cessou crescer e com a evolução do conceito humano de Deus até chegar ao Deus cristão, a mais alta expressão do divino, fortaleceu cada vez mais. O homem interioriza a consciência da dívida com seu credor, Deus.  Assim, o homem passa a torturar-se a si mesmo. Assim, o torturado é vítima de sua própria obrigação para com Deus, o instrumento da tortura. Essa crueldade psíquica de se achar culpado revela uma espécie de demência da vontade.
O terceiro elemento da moral dos escravos é o ideal ascético. Os artistas, os sacerdotes, os filósofos, são propensos ao ascetismo? O ideal ascético está presente nos filósofos de forma mais exemplar. Eles consideram necessário se libertar das obrigações, dos deveres, dos cuidados, da desordem, do ruído. Eles defendem as três palavras mágicas do ascetismo: pobreza, humildade e castidade. “O filósofo distingue-se em evitar três coisas brilhantes e ruidosas: a glória, os príncipes e as mulheres” (Nietzsche, 1990, p. 98). “O artista sabe quão prejudicial é o comércio com a mulher nos dias de grande tensão de espírito e preocupação intelectual” (Nietzsche, 1990, p. 99). A renúncia radical expressa pelo ascetismo contribui com o desenvolvimento de uma espiritualidade superior e é, ao mesmo tempo, sua conseqüência.
A finalidade do ideal ascético, no entanto, é mais clara no sacerdote do que no artista ou no filósofo.  O sacerdote é o representante do espírito sério. “O sacerdote tirou do seu ideal ascético não só a sua fé, mas também a sua vontade, o seu poder, o seu interesse” (Nietzsche, 1990, p. 104). Esta espécie inimiga da vida é contraditória, mas deve ser a própria vida que cria, por algum interesse, este tipo contraditório. Porém, esta negação da vida é aparente. O ascetismo tem sua origem em um instinto profilático de uma vida em estado de degeneração. A vida procura se conservar sob todas as formas possíveis. Ela inventa sempre novos artifícios e o ascetismo é um destes artifícios. O sacerdote é a encarnação da luta pela sobrevivência, garantidor da vida. Ele conserva a vida dos defeituosos, extraviados, enfermos, desgraçados. Não são os maus o maior perigo para a humanidade e sim os doentes. “Os desgraçados, os vencidos, os impotentes, os fracos são os que minam a vida e envenenam e destroem a nossa confiança” (Nietzsche, 1990, p. 109). É deste terreno que brota a erva venenosa, de onde nasce a conjuração dos doentes contra os robustos e os triunfantes. É de onde brotam o ódio e o rancor. Esses incuráveis monopolizam a virtude e se declaram os únicos bons. Entre eles, muitos vingativos, clamando por justiça e usando a máscara de juízes.
Veja-se o que se passa no recôndito de todas as famílias, de todas as corporações e comunidades; por toda a parte a luta dos doentes contra os sãos; uma luta quase sempre secreta. Cita de pós envenenados, de alfinetes, de semblantes astutamente resignados e às vezes revestidos de uma hipócrita ‘nobre indignação’. Até nos sacrossantos domínios da ciência, se houvem os ladridos destes cães doentes, o raivoso rancor, o espírito de mentira destes nobres fariseus (por exemplo, aquele berlinense apóstolo da vingança, Eugenio Duhring), o charlatão-mor destes reinos, incluindo entre os seus amigos os antigos semitas). Há nestes homens rancorosos, nestes degenerados, uma sede de vingança subterrânea, insaciável, inesgotável contra os bons, engenhosa em máscaras e pretextos. Quando alcançarão o triunfo sublime e definitivo desta vingança? Indubitavelmente quando conseguirem infundir na consciência dos felizes a sua própria miséria (Nietzsche, 1990, p. 110-111).
O sacerdote ao pregar o amor ao próximo reforça o instinto da vontade de potência. O cristianismo primitivo se fundava em associações para proteger os pobres, sociedades de ajuda mútua, etc. Os doentes possuem o instinto de se organizar em rebanho. O sacerdote os organiza tendo por base este instinto. Os fracos buscam se unir, os fortes se separar. Os fracos se unem por prazer, os fortes para uma ação comum mesmo que isto lhes contrariem. A ciência moderna se revela o melhor auxiliar do ideal ascético, por isso seria vão buscar nela um antídoto para tal doença. O ideal ascético foi purificado, espiritualizado, polido.
A moral, portanto, é sinal da decadência. Nietzsche, ao negar a moral produz um imoralismo. A crítica da moral que se vê em diversas obras de Nietzsche, e que se manifesta principalmente como crítica do cristianismo (Nietzsche, 2004b; Nietzsche, 2000a; Nietzsche, 2000b), busca revelar suas origens nas classes inferiores. A moral e os seus valores considerados “superiores” são negados e em seu lugar Nietzsche propõe a transmutação de todos os valores. Isso significa abandonar a moral e os valores que ela prega, tal como o amor ao próximo, e em seu lugar instaurar o imoralismo, a recusa da moral enquanto valor e novos valores, os do homem nobre, ou melhor, o do super-homem.
A idéia de super-homem é o desfecho final da filosofia nietzschiana. O super-homem é aquele que está além do bem e do mal (Nietzsche, 2000b), é o que assume a vontade de potência e busca realizá-la abandonando qualquer moral. O homem superior nega a moral do populacho e decreta a morte de Deus. Quando se diz “somos todos iguais perante a Deus”, ele retruca: Deus está morto. Quando se diz: “somos todos iguais diante do populacho”, ele retruca: “perante o populacho não queremos ser iguais” (Nietzsche, 1984b, p. 217). A idéia de super-homem é a idéia da aristocracia que não se envergonha de si, de seu poder, de sua vontade de potência, que não quer a paz, mas a guerra. Assim, o imoralismo abre espaço para a defesa do super-homem, o homem além do bem e do mal, que exerce conscientemente sua vontade de potência. Assim falava Nietzsche.
Considerações finais
A obra de Nietzsche é extensa, apresentando uma diversidade de livros. Porém, tal obra é perpassada pela mesma idéia chave que é a da vontade de potência. A base de toda a filosofia nietzschiana é a vontade de potência. Sem dúvida, poderíamos colocar que os problemas psíquicos deste pensador tenha sido a fonte de sua filosofia, mas isto apenas explicaria a motivação de tal filosofia, mas não suas teses fundamentais, seus desdobramentos, suas limitações. A loucura pode explicar Nietzsche e a motivação de sua filosofia, mas não é suficiente para a sua análise enquanto filosofia.
A vontade de potência, idéia chave de Nietzsche, é uma cosmologia que não tem nenhuma fundamentação além das próprias palavras do pensador que a produziu. Sem dúvida, em certo sentido, existem elementos na realidade que coincidem com a tese nietzschiana. Porém, enquanto doutrina universal da vida, a concepção de Nietzsche se revela infundada e muito pobre. Trata-se de mera especulação que não dá conta da realidade que busca expressar. E é com base nesta filosofia especulativa da vida que ele irá produzir sua concepção irracionalista e imoralista.
O irracionalismo nietzschiano possui dois problemas fundamentais. O primeiro é a sua recusa da verdade, que é em si uma contradição. Ao afirmar que não existe a verdade e ela sendo apenas manifestação de uma ficção útil, então o seu postulado não é verdadeiro, é tão fictício quanto qualquer outro postulado. Poder-se-ia dizer que isto não é uma contradição, pois é uma confirmação do seu postulado, a da inexistência da verdade. Assim como todas as demais pretensas verdades, a idéia nietzschiana é uma ficção útil e nada mais. Porém, aqui se mantém a tese da veracidade do seu ponto de partida.
A idéia nietzschiana da inexistência da verdade seria verdadeira, ou seja, isto é uma contradição insolúvel. Também é possível se argumentar, em defesa de Nietzsche, que ele condena a lógica aristotélica e o postulado da não-contradição. Sem dúvida, mas isto não anula a contradição de seu discurso e que dizer que não pode haver contradição na realidade é uma coisa, e dizer que não pode haver contradição no discurso é outra coisa. Caso pudesse haver contradição nos discursos, a comunicação humana estaria inviabilizada. Nietzsche cai em contradição e isso mostra a fragilidade de suas bases filosóficas.
Mas a idéia de ficção útil deve atingir também o seu postulado de vontade de potência. Se a idéia de uma “vontade de potência” é uma ficção útil, então ela não é verdade e logo não pode ser base para a existência de diversas outras ficções. Sendo assim, o seu discurso é autofágico, destrói a si mesmo. Ao mesmo tempo é revelador, no sentido de que ele mostra que ele criou ficções úteis para ele, de acordo com a vontade de potência que ele, enquanto indivíduo, possuía, para justificar e legitimar o seu irracionalismo e imoralismo.
O segundo problema fundamental da filosofia nietzschiana é a sua teoria da realidade como caos de forças em busca de mais força, que não é comprovada em lugar algum, combinada com a recusa do conceito. Não se pode dizer “a folha”. Sem dúvida, Nietzsche comete o equívoco de considerar uma palavra qualquer com um conceito, o que significa desconhecer a diferença entre linguagem comum e linguagem complexa (científica, filosófica, etc.)[3]. Mas deixando isto de lado e partindo para sua afirmação, ela tem como postulado fundamental a diferença absoluta entre os seres. Tal diferença absoluta é apenas uma invenção nietzschiana. As folhas, concretas, são diferentes, sem dúvida. Porém, não possuem apenas diferenças. Também possuem semelhanças. É devido a estas semelhanças que se torna possível chamar de folha um conjunto de folhas diferentes. Os macacos são seres singulares, diferentes, mas que possuem semelhanças e por isso podemos qualificá-los como macacos.
Além disso, Nietzsche cai em nova contradição, pois, ao declarar a impossibilidade do conceito, ele demonstra que sua própria filosofia é uma impossibilidade, pois os termos que ele utiliza e generalizações que realiza através deles, tal como moral, aristocracia, escravos, vontade de potência, judeus, mulheres, bem, mal, perspectiva, etc., é exatamente o processo de igualação que ele havia criticado. A realidade não é o caos. Este suposto caos é uma atribuição que Nietzsche lhe dá.
Neste sentido, se o postulado da vontade de potência é uma filosofia especulativa da vida sem base concreta e se o irracionalismo que lhe é derivado não se sustenta, então o seu imoralismo também cai por terra, bem como os seus corolários, tal como a transmutação de todos os valores e o super-homem. A moral não é uma produção apenas dos escravos. Nietzsche forçou a história para dizer o que queria dizer. A sua tese se fundamenta na origem etimológica da palavra bom, o que não se sustenta, pois a mutação do sentido de uma palavra nunca ocorre isoladamente, o que significa que ele deveria ter analisado a mutação social e lingüística mais ampla para entender o real significado da mudança.
A falta de senso histórico em Nietzsche, apesar de tentar realizar uma genealogia e uma história natural da moral, é visível[4]. Ele nunca se dispôs a ir até a realidade concreta, preferiu se refugiar, como a filosofia em geral faz, em especulações. Sua suposição de uma classe aristocrática e de escravos não possui historicidade, não apresenta o seu momento de surgimento e nem sua superação na sociedade moderna e nas mudanças que ocorreram devido a isso. Sua concepção é a-histórica. Mas além de a-histórica, não é fundamentada, pois sua genealogia é apenas uma atribuição bastante superficial de significados a alguns poucos acontecimentos históricos selecionados por ele. O seu imoralismo se fundamenta numa crítica da moral que é limitada e que não se sustenta.
Apesar de todas estas limitações e problemas[5], a filosofia de Nietzsche tem algum valor. Sem dúvida, sua genealogia da moral serve como elemento de contribuição para uma história da moral e suas bases sociais, desde que ganhando precisão e historicidade e abandonando os preconceitos do filósofo. O mesmo se pode dizer de seu perspectivismo, que é uma contribuição para se pensar as bases do pensamento e suas fontes sociais, algo que ele não desenvolveu devido o seu apego a sua tese metafísica da diferença absoluta e da vontade de potência. Desta forma, tal como Scheler e outros filósofos, Nietzsche oferece uma certa contribuição para o que alguns chamam “sociologia do saber”, ou, mais exatamente, para uma história da consciência social.
Porém, no conjunto, a obra de Nietzsche é bastante limitada, apesar do seu sucesso. A razão de tal sucesso tendo em vistas as referidas limitações seria um outro tema para estudo, o que não nos propomos aqui. Em síntese, a filosofia de Nietzsche é uma concepção metafísica da vida que quis dar conta da totalidade das manifestações culturais e que fracassou por partir de bases equivocadas.
Bibliografia

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Nietzsche, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. São Paulo: Escala, 2006.
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Publicado originalmente em: 
VIANA, Nildo. Nietzsche: Vontade de Potência e Irracionalismo. Fragmentos de Cultura, v. 20, n. 9/10, set./out. 2010.



* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Especialista e Mestre em Filosofia; Mestre e Doutor em Sociologia/UnB. 
[1] “Rapsódico e descontínuo por temperamento, por método e por inspiração, por estranha individualização dos momentos de sua vida, Nietzsche tinha que propor-se o que havia de mais difícil para ele, a organização sistemática. Os livros que acompanham ou seguem ao Zaratustra (A Gaia Ciência, Para Além do Bem e do Mal, Genealogia da Moral, etc.) são fragmentos separados de um conjunto para o qual Nietzsche toma notas desde 1882 e que chegou ao estágio de esboço: A Transmutação de todos os Valores ou A Vontade de Potência” (Lefebvre, 1993, p. 105-106).
[2] Este é o título de uma obra de juventude de Nietzsche, no qual ele já esboçava sua concepção de vontade de potência: “A arte dionisíaca, por outro lado, repousa no jogo com a embriaguez, com o arrebatamento. São dois os poderes que principalmente elevam o homem natural ingênuo até o esquecimento de si característico da embriaguez, a pulsão da primavera (frühlingstrieb) e a bebida narcótica. Seus efeitos são simbolizados na figura Dioniso. O principium individuations é rompido em ambos os estados, o subjetivo desaparece inteiramente diante do poder irruptivo do humano-geral, do natural-universal” (Nietzsche, 2005, p. 08). Em outra obra ele diz: “sou um discípulo do filósofo Dionísio...” (Nietzsche, 1986, p. 39).
[3] Isto não deixa de ser estranho, tendo em vista sua formação em filologia, que sempre o influenciou, inclusive em sua Genealogia da Moral, no qual busca descobrir a origem da palavra bom.
[4]  “Desgraçadamente, Nietzsche não ligou sua teoria das ilusões ideológicas a uma doutrina coerente da história e da prática social. Não foi, pois, além das categorias mistificadas e já rechaçadas, há muito tempo, pelo pensamento crítico.  Quando critica largamente as teorias morais do homem e da história, quando mostra que a história não foi um idílio espiritualista, descobre o mediterrâneo. Seu pensamento retorna ao tempo de Kant e de Fichte. Não percebe as aquisições fundamentais do hegelianismo. Faz assim, inconscientemente, obra de vulgarização, algumas vezes demasiado zeloso, do imoralismo implícito na dialética histórica de Hegel. Apesar de sua audácia, não está à frente de sua época, mas atrás. Por outra parte, experimentou constantemente a tentação de isolar a ilusão ideológica. Não via claramente os fundamentos históricos e práticos da consciência e se limitava a psicofisiologia” (Lefebvre, 1993, p. 166-167).
[5] Claro que poderíamos também expor as raízes sociais do seu pensamento e suas ligações com sua época. Porém, não é objetivo do presente trabalho. Um esboço desse tipo de análise pode ser consultado e se encontra em Henri Lefebvre, que afirma que Nietzsche fez um balanço, do ponto de vista espiritual, da etapa imperialista da sociedade moderna: “porém, sua crítica não sai do imperialismo. Sua teoria da vontade de potência, seu esforço por isolar a violência pura e apresentá-la como criadora da história, faz dele, em certo sentido, um filósofo do imperialismo” (Lefebvre, 1993, p. 151).

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