DEMOCRACIA BURGUESA, ELEIÇÕES E VOTO NULO
Nildo Viana
A sociedade burguesa é marcada pela luta de classes e
por isto faz emergir uma instituição que busca reproduzir as relações de
produção dominantes - capitalistas - e isto significa reproduzir a própria luta
de classes entre burguesia e proletariado. Isto parece contraditório, mas não
é, pois reproduzir as lutas de classes significa reproduzir as classes sociais
existentes e suas relações e é de interesse da classe dominante realizar esta
reprodução. Em outras palavras, reproduzir a sociedade capitalista significa
reproduzir a luta de classes e vice-versa e realizar a reprodução da sociedade
existente é do interesse da classe dominante. A classe capitalista busca
reproduzir as relações de produção capitalistas e para isso utiliza as
instituições burguesas, onde se destaca o estado capitalista e a democracia
burguesa. O proletariado deve, pois, se posicionar diante destas instituições e
assim deve se colocar diante da questão das eleições a partir de sua
perspectiva, que é a do voto nulo. Por conseguinte, para discutir a questão da
estratégia do movimento operário diante da questão da democracia burguesa é
preciso discutir o voto nulo e sua razão de ser. E para isto é preciso discutir
a questão das lutas de classes diante das instituições burguesas,
principalmente do estado capitalista e da democracia burguesa.
Retomando a discussão sobre a luta de classes,
podemos dizer que a burguesia tem interesse em reproduzir a luta de classes. O
proletariado também tem interesse em reproduzi-la, pois é através dela que
ocorre a passagem da consciência contraditória de classe para a consciência
revolucionária de classe e é onde se produz a autogestão das lutas operárias,
ou seja, o “embrião” da sociedade comunista.
Ora, se a reprodução da luta de classes é de
interesse tanto da burguesia quanto do proletariado, então como se pode falar
de “antagonismo de classes” e de luta ou oposição entre elas? Na verdade, o que
diferencia estas duas classes nesta questão, e aí reside um antagonismo, está
na forma como buscam reproduzir a luta de classes. O interesse da burguesia é
realizar um amortecimento das lutas de classes, ou seja, uma reprodução
amortecida da luta de classes cujo objetivo é impossibilitar qualquer ruptura ou
brecha revolucionária. O interesse do proletariado é realizar uma radicalização
e generalização das lutas de classes, ou seja, uma reprodução radicalizada e
generalizada das lutas de classes visando possibilitar a superação do
capitalismo e instauração da autogestão.
Entretanto, é preciso deixar claro o que se entende
aqui por “luta de classes”. Para os ideólogos da burguesia e suas classes
auxiliares (incluindo a pseudo-esquerda) só existe luta de classes quando há
violência física, disputa eleitoral, brigas partidárias, guerrilhas, tentativas
de conquista do poder estatal, etc. Sem dúvida, as lutas de classes estão
presentes nestes acontecimentos, mas não se limitam a isto e, o que é mais
importante, não são nestes acontecimentos que se revela o caráter mais radical
e fundamental da luta de classes.
O núcleo fundamental da luta de classes ocorre na
produção. Trata-se da luta em torno do mais-valor. Posteriormente, esta luta
ocorre na esfera do mercado, onde se dá a realização do mais-valor. Daí a luta de
classes se espalha para as demais relações sociais, atingindo as instituições
burguesas (escolas, igrejas, etc.), a cultura, o cotidiano, etc. Por isso, a
burguesia precisa amortecê-la para continuar existindo.
Como a burguesia faz isto? A resposta é, tal como
colocamos no início, criando uma instituição que busca amortecer a luta de
classes. Esta instituição é o Estado Capitalista. Ele busca realizar este
amortecimento sob diversas formas, onde se destaca a repressão (polícia,
exército), a intervenção na ordem produtiva (controle fiscal e monetário,
impostos, empresas estatais, investimentos, subsídios, etc.), a produção de
ideologias (escolas, universidades, meios de comunicação, etc.), entre
outros.
Nas primeiras etapas do capitalismo ficou demonstrado
que a ação estatal era muito frágil para sustentar a ordem capitalista. Isto
provocou a necessidade de reforçar sua ação e criar outros mecanismos (mais ou
menos “não-estatais”) para realizar o amortecimento das lutas de classes. O
acirramento das lutas de classes no início do século 20 provocou estas
mudanças. Quais foram elas? Em primeiro lugar, o crescimento da intervenção
estatal não só na ordem produtiva (o chamado keynesianismo), mas no conjunto
das relações sociais, onde se destaca a organização estatal da democracia
representativa; em segundo lugar, na expansão da “sociedade civil organizada”,
caracterizada por ser constituída por um conjunto de instituições privadas que
realizam uma mediação burocrática entre estado e sociedade.
Até a segunda guerra mundial, a democracia
representativa não possuía os mecanismos de defesa que passou a possuir no
pós-guerra e que se caracterizam por um conjunto de regras jurídicas e de
limites que buscam impedir o surgimento de brechas revolucionárias no seu interior.
As regras jurídicas são expressas na legislação eleitoral e partidária que
buscam reforçar o processo de burocratização e corrupção dos partidos políticos
e impossibilitar a ascensão dos pequenos partidos.
Os limites sociais se encontram no predomínio da
riqueza, da propaganda de massas, na ideologia e mentalidade burguesas, na
sociabilidade capitalista, etc. A disputa eleitoral, principalmente nos grandes
centros urbanos, passou a ser amplamente decidida pelo grau de riqueza dos
candidatos ou partidos. Isto, sem dúvida, reforça a supremacia burguesa na
esfera eleitoral. A propaganda de massas, que é dependente dos recursos
financeiros do candidato e/ou do partido, é um veículo indispensável no
processo eleitoral. Além disso, o processo eleitoral não ocorre numa “sociedade
de iguais” e sim de pessoas com desiguais recursos financeiros, acesso às
informações, etc., e que é marcada por uma dominação de classe, onde a classe
dominante impõe às demais classes (não sem luta e sem oposição das classes exploradas,
mesmo que marginalizada) a sua ideologia, a sua mentalidade, a sua
sociabilidade.
Desta forma, há uma reprodução da dominação burguesa
no processo eleitoral e até mesmo nos partidos políticos de “esquerda”. Aliás,
estes, juntamente com outras instituições privadas, fazem parte da sociedade
civil organizada que funcionam sob a lógica da burocratização e mercantilização
das relações sociais.
Contudo, o processo eleitoral não serve como
amortecedor das lutas de classes apenas através do incentivo que ele executa a
burocratização, mercantilização e corrupção de partidos, instituições,
associações, movimentos sociais e indivíduos. Ele tem uma outra finalidade que
é a legitimação do estado capitalista.
Sem dúvida, esta é uma finalidade ideológica. A
partir destas observações podemos concluir que a democracia burguesa provoca
efeitos diversos, tais como a corrupção de grupos, organizações e indivíduos e
a legitimação do estado.
Ocorre, porém, que a luta de classes perpassa todas
as etapas deste processo. Mas as classes exploradas ocupa um papel marginal em
todas elas. Em apenas uma esfera as
classes exploradas conseguem manter uma posição de classe independente e
influente sob grande parte da população. Que esfera é esta? É a do papel
legitimador das eleições.
Isto ocorre sob duas formas: em primeiro lugar, sob a
forma espontânea executada por indivíduos pertencentes às classes exploradas,
através do abstencionismo e do voto nulo; em segundo lugar, sob a forma
voluntária executada por grupos políticos anarquistas, autonomistas e marxistas
autogestionários. A primeira forma é individual e espontânea, enquanto que a
segunda se revela coletiva (de um grupo) e voluntária. Acontece que o seu caráter coletivo ultrapassa
o simples fato de ser levado a cabo por um grupo, este não se contenta em
decidir pelo abstencionismo ou pelo voto nulo, pois busca alargar essa decisão
consciente a uma parcela cada vez mais vasta da população.
Portanto, aqui temos dois pontos para discutir. Um
ponto se encontra no fato de que cabe esclarecer como a democracia
representativa e o processo eleitoral legitimam o estado capitalista e, por
conseguinte, a sociedade capitalista como um todo. O segundo ponto refere-se à
ação da esquerda revolucionária no sentido de corroer essa legitimação e
fortalecer o processo de autonomização das classes exploradas.
As idéias de estado representativo e de democracia
representativa são legitimadoras por si mesmas. Por detrás delas se encontra a
ideologia da representação. O “poder do estado emana do povo” é uma frase
ideológica que convence os incautos. A ideologia da representação afirma que o
estado, a democracia, os partidos políticos, os políticos profissionais,
representam o povo.
Mas o estado, a democracia, os partidos, etc., não
são “coisas” e sim instituições. Toda instituição é composta por relações
sociais entre indivíduos. Estes
indivíduos que se relacionam nestas instituições podem ser divididos em
dirigentes e dirigidos. Tanto uns quanto os outros possuem seus interesses
próprios e suas ações sociais são determinadas por estes interesses.
Os interesses da burocracia estatal são, entre
outros, reproduzir as relações de produção capitalistas, expandir as atividades
estatais, etc. A burocracia estatal luta pela manutenção do modo de produção
capitalista pelo simples motivo que é o de sua existência depender desta
manutenção, sem capitalismo não há burocracia estatal tal como a conhecemos. Os
rendimentos da burocracia estatal são parte do mais-valor global extraído do
proletariado e os recursos financeiros do estado, bem como tais rendimentos,
entram sob, principalmente, a forma de impostos. Outro interesse seu é expandir
as atividades estatais, pois isto significa a expansão da própria burocracia
estatal e também um crescimento da sua influência e poder. Isto revela algo
comum a todas as frações da burocracia (estatal, partidária, privada, sindical,
etc.): o seu caráter conservador.
A burocracia partidária segue a mesma lógica e por
isso ela busca reproduzir os seus meios de existência: o estado capitalista, a
democracia burguesa, o sistema partidário, além de expandir suas atividades
através de cargos públicos adquiridos vai processo eleitoral ou coligação
partidária. Isto é válido também para os partidos políticos “ditos” de esquerda.
Portanto, vê-se que não há nenhuma representação.
Para que os partidos e candidatos representassem as classes exploradas seria
necessário que o poder de decisão ficasse nas mãos destas e não daqueles.
O processo eleitoral também legitima o estado
capitalista e a democracia burguesa através da disputa partidária e do direito
ao voto. A disputa partidária e do direito ao voto. A disputa partidária
permite a participação (controlada) de todos os partidos (todos os conseguem
atender a legislação partidária e as exigências sociais e eleitorais), até os
“comunistas” (que, obviamente, ao atender todas as exigências legais,
eleitorais e sociais, foram “domesticados”). O direito ao voto permite que todo
cidadão possa escolher livremente o seu representante. Este é um cidadão
abstrato, pois a idéia de cidadão mascara as inúmeras diferenças sociais,
culturais, individuais e de classe e o fato inquestionável de que a “escolha”
não é nem um pouco “livre”.
Abandonemos a ideologia da legitimação do estado
capitalista e retomemos o processo de luta de classes. A esquerda
revolucionária propõe o abstencionismo e/ou o voto nulo. A razão é simples:
quanto maior for o número de abstenções e/ou de voto nulo, maior será a perda
de legitimidade do estado capitalista e da democracia burguesa. O efeito disso
é o enfraquecimento da hegemonia burguesa e da influência do reformismo
(pseudo-esquerda) sobre as classes exploradas. Isto aumenta a possibilidade de
autonomização das classes exploradas, e para uma ligação mais “orgânica” entre
elas e a esquerda revolucionária.
O abstencionismo e o voto nulo, entretanto, são
questionados pela pseudo-esquerda que argumenta que o parlamentarismo pode ser
usado “de forma revolucionária” (bolchevistas) ou de “conquistar melhorias para
a população” (reformistas). Além disso, existe um outro argumento contra o
abstencionismo: o perigo fascista.
Vejamos cada uma destas colocações. Em primeiro
lugar, a utilização do parlamentarismo “de forma revolucionária” nunca foi
realizada concretamente. Mesmo os partidos altamente centralizados que
conseguem controlar os seus parlamentares nunca conseguiram tal feito. Usar o
parlamento como “tribuna” de discurso “revolucionário” não possui eficácia
política, pelo menos num sentido revolucionário, pois quem houve tal discurso
não são as classes exploradas, que, felizmente, não estão no parlamento. Tal
prática política serve apenas para legitimar ainda mais a democracia
representativa, esta forma de dominação burguesa.
A “propaganda revolucionária” que os partidos “ditos”
revolucionários fazem se refere sempre à questões secundárias e “abstratas”,
tais como o “imperialismo”, o “grande capital”, a “corrupção”, contra o
presidente (do tipo: fora Collor, fora FHC...), etc., e nunca questões
fundamentais para o desenvolvimento da consciência revolucionária do
proletariado, tais como a produção de mais-valor, os métodos secundários de
exploração capitalista, a necessidade de auto-organização dos trabalhadores, a
fonte capitalista da exploração e opressão das mulheres, negros, crianças,
idosos, etc. Em outras palavras, eles repetem as mesmas estratégias burguesas
eleitoralistas, pedindo votos, fazendo propaganda de massas despolitizada e sem
nenhum vínculo educativo, reproduzindo o culto à autoridade, etc.
Quanto ao discurso socialdemocrata de melhorias
sociais concretas, o que ele revela é sua posição política reformista, que quer
“reformar para permanecer”, ou seja, quer manter a exploração capitalista e
suas consequências e para amortecer a luta de classes faz “propostas concretas”
para melhorar a educação, as condições urbanas, etc. Busca-se, assim, por
exemplo, reformar a educação sem questionar o seu caráter burguês, o que
significa, no final das contas, um direitismo esclarecido. Sem dúvida, quando
uma prefeitura socialdemocrata asfalta as ruas da periferia, isto é uma
“atividade concreta”, mas cabe a quem quer transformar as relações sociais
distinguir o caráter de cada “atividade concreta”, ou seja, se ela contribui
para o processo de libertação dos trabalhadores ou não.
Esta visão limitada revela tão-somente que a socialdemocracia
se transformou em um direitismo esclarecido, que tem um nível de consciência
muito restrito, não ultrapassando o que Marx denominou “limites intransponíveis
da consciência burguesa”, ou seja, eles não conseguem ultrapassar os marcos da
sociedade capitalista. O seu discurso da irresponsabilidade dos esquerdistas em
propor voto nulo ou abstenção é apenas uma amostra de sua “irresponsabilidade”
muito mais profunda, pois se impedimos vitórias socialdemocratas e,
consequentemente, “atividades concretas” (do tipo “bolsa escola”, asfalto,
“educação pública e gratuita”, etc.) que beneficiam os “mais pobres”, também
impedimos a corrupção de muitos indivíduos e a nossa própria e, além disso, a socialdemocracia
reforça e legitima esta sociedade que é responsável pela fome, miséria,
problemas psíquicos, solidão, infelicidade, etc., de milhões de pessoas, ou
seja, uma “irresponsabilidade” muito mais profunda... A indignação socialdemocrata
contra o abstencionismo e/ou o voto nulo revela tão-somente sua adaptação ao
mundo capitalista e sua corrupção, enquanto que nossa indignação contra a socialdemocracia
é a legítima indignação com aqueles que em troca de migalhas salariais,
políticas estatais reformistas e outras “atividades concretas” que não provocam
nenhuma mudança substancial preferem abrir mão de uma luta cultural que sirva
ao desenvolvimento da consciência das classes exploradas e de ações que visam
criar condições para uma efetiva transformação social, e por detrás disto se
encontra não apenas uma consciência burguesa limitada, mas também, nos
subterrâneos de suas mentes, interesses mesquinhos de caráter individual.
Isto não quer dizer que, para a esquerda
revolucionária, tanto faz se o que existe é uma democracia ou uma ditadura
burguesa? Claro que não, pois é preferível o regime democrático burguês, apesar
dele trazer, partindo da perspectiva revolucionária, vantagens e desvantagens
(sendo a principal desvantagem a corrupção que ele realiza em diversos setores
da sociedade).
Os
autonomistas italianos deram uma resposta satisfatória a este respeito:
Libertar as vanguardas da ilusão
eleitoralista é ainda uma de nossas tarefas. Evidentemente que é preciso
afirmar com particular nitidez que a manutenção do compromisso democrático não
lhes pode ser indiferente. Concretamente, não é indiferente impedir hoje uma
inclinação do parlamento à direita, para que, precisamente, exista a
possibilidade de uma reconstrução do movimento e da expressão política. Mas
isto implica que participemos diretamente da competição eleitoral? Pode-se
dizer que os sindicatos não têm um papel decisivo nos equilíbrios democráticos,
mesmo ao nível institucional agindo no ‘exterior’? O campo decisivo não se
situa noutro lado, mesmo do ponto de vista da democracia? E não é esse ‘outro’
terreno que é especificamente o nosso, pelo menos até que a nossa força seja de
tal ordem que nos constranja a preocupar-nos com a gestão das instituições,
hipótese que, presumo, nos emprenharíamos em transformá-las visivelmente? (ROSSANDA,
1993, p. 24-25).
Claro que não podemos concordar com a totalidade das
afirmações contidas aí e nem com seus desdobramentos, mas aí se coloca,
deixando de lado sua ilusão com as “vanguardas” (o bolchevismo) e com o
“compromisso democrático”, um aspecto importante: a esquerda revolucionária não
precisa se preocupar com o regime democrático burguês, pois existem muitas
forças políticas que o defendem, bem como instituições e movimentos. Os
sindicatos, os partidos democrático-burgueses e socialdemocratas (que
infelizmente continuarão a existir, por mais que conquistemos adeptos e ela
enfraqueça), entre outros. Isto significa que não precisamos perder tempo
defendendo a democracia burguesa, mas, ao contrário, combatê-la, a não ser em
casos raros, que é o que trataremos a seguir.
E o perigo fascista? Não seria melhor apoiar as
forças reformistas para garantir a manutenção da democracia burguesa. Este é o
argumento de muitos para sustentar a tese da participação ou apoio eleitoral.
Na verdade, tal questão só se coloca quando há concretamente uma ameaça
fascista, o que só ocorre em períodos de crise do capitalismo. Quando tal ameaça
existe concretamente, a decisão sobre o apoio ou participação eleitoral depende
de uma análise da conjuntura. Somente observando a correlação de forças é que
se pode decidir qual estratégia será adotada.
Esta análise da correlação de forças ocorre em dois níveis:
o primeiro nível é o das ações das classes sociais e o segundo nível o das
forças políticas que expressam os interesses de uma ou outra classe social. O
primeiro nível é o fundamental e decisivo. Se as classes exploradas estiverem
passivas e as forças revolucionárias sem grande penetração no movimento de
massas, a estratégia pode ser apoiar, de forma independente, as forças
reformistas. Ocorre, porém, que este
apoio é temporário e é utilizado para aumentar o seu espaço político visando
fortalecer as ações autônomas das classes exploradas e caso se consiga, neste
processo, mudar a correlação de forças, deve haver uma passagem para uma
estratégia ofensiva, rompendo-se com as forças reformistas e incentivando a
revolução autogestionária.
Caso a correlação de forças seja favorável ao bloco
revolucionário, então não há necessidade de aliança com o bloco reformista e de
defesa da democracia burguesa. Cabe à esquerda revolucionária, nesta
conjuntura, buscar acirrar as lutas de classes visando a autonomização das
classes exploradas no sentido do desencadeamento do processo
revolucionário.
Quando não existe ameaça fascista, então a estratégia
é combater a democracia burguesa e o bloco dominante, juntamente com o bloco
reformista. O abstencionismo e/ou voto nulo são as armas de atuação no processo
eleitoral.
Mas não se pode utilizar a democracia burguesa para
criar uma “brecha revolucionária”? Como colocamos anteriormente, após a segunda
guerra mundial isto se tornou quase impossível. O último exemplo histórico
disso ocorreu durante a guerra civil espanhola, quando a Frente Popular
(formada por republicanos, socialdemocratas, etc.) ganhou as eleições. Tal
Frente Popular se aglutinou em torno de um programa reformista burguês que
propunha reforma agrária, reforma do ensino, etc., embora não mencionasse
propostas socialistas, havia uma cláusula que aglutinava todas as forças
populares: a anistia e reintegração ao trabalho para os presos políticos
(aproximadamente 30.000) e foi esta a condição que o POUM - Partido Operário de
Unificação Marxista, e outras facções fizeram para aderir a esta frente. Mas a
vitória da Frente Popular só foi possível devido ao fato dos anarquistas
espanhóis (CNT - Confederação Nacional do Trabalho e FAI - Federação Anárquica
Ibérica) terem evitado desencadear sua costumeira campanha pelo voto nulo que
giravam em torno de um milhão e meio de “votos perdidos”. A posição dos
anarquistas foi provocada pela cláusula da anistia e reintegração ao trabalho
dos presos políticos.
A vitória eleitoral, entretanto, tirou o controle da
sociedade tanto do bloco dominante, a direita, quanto da Frente Popular, o
bloco reformista:
“O ato eleitoral e seus resultados
desencadearam uma imediata reação nas massas. Sem esperar o decreto de anistia,
elas se jogaram às prisões para libertar os insurretos de 1934. Isto aconteceu
em Valência, em Oviedo (nas Astúrias) e um pouco por toda a Espanha. A essa
libertação se seguiram greves políticas generalizadas pedindo a reintegração
imediata dos operários demitidos e o pagamento de salários atrasados. A elas se
juntaram greves de caráter mais reivindicativo, algumas longas. Os patrões
respondiam fechando as fábricas. No campo a situação tornou-se ainda mais
explosiva. Os camponeses ocupavam imediatamente as terras dos grandes
proprietários e começaram a cultivá-las. Isso aconteceu em Badajoz, Cáceres, na
Extremadura, na Andaluzia, em Castella e em Navarra. Incidentes sangrentos
verificaram-se entre trabalhadores rurais e a Guarda Civil. Os patrões
responderam não contratando homens para as colheitas, mesmo ao preço de
substanciais perdas econômicas. Ao mesmo tempo a Igreja tornou-se o alvo da ira
popular: a qualquer boato sobre uma ‘conspiração dos padres’, conventos e
igrejas eram incendiados” (ALMEIDA, 1981, p. 27-28).
Esse processo de autonomização das classes exploradas
ocorrido na Espanha, durante a Guerra Civil Espanhola e a experiência de
autogestão na Região da Catalunha durante quatro anos, até que a união entre
republicanos, fascistas e stalinistas realizaram a contra-revolução, já era uma
tendência e a vitória da Frente Popular apenas serviu como “detonador” do
processo de passagem da guerra civil oculta para guerra civil aberta.
Tudo isto, no entanto, ocorreu dentro de um contexto
histórico determinado e numa época em que as forças revolucionárias tinham
grande penetração junto às massas e a democracia burguesa ainda não tinha se
estruturado de forma tão organizada como nos dias atuais. Hoje, a participação
eleitoral dificilmente permitirá brechas revolucionárias e somente fatos
extraordinários poderiam possibilitar tal acontecimento.
Hoje a democracia burguesa funciona como um
dispositivo da “contra-revolução preventiva” denunciada por Marcuse. Para ele:
Na sociedade repressiva, destarte, até
mesmo os movimentos progressistas ameaçam transformar-se em seus opostos na
medida em que aceitam as regras do jogo. Ou, para citar um caso mais
controvertido: o exercício dos direitos políticos (tais como votar, escrever
cartas aos jornais, aos senadores, etc., as demonstrações de protesto como
renúncia a priori da
contra-violência) na sociedade de administração serve para fortalecê-la, pois
reconhece a existência de liberdades democráticas que, na realidade, mudaram o
conteúdo e perderam a eficácia. Em tais casos, a liberdade (de opinião, de
assembléia, de expressão) transforma-se em instrumento de servidão absolvedora
(MARCUSE, 1970, p. 89).
Neste contexto, devemos lutar contra a democracia
burguesa fazendo campanha pelo abstencionismo e/ou voto nulo, visando corroer a
legitimação da democracia representativa e a força do bloco reformista, além de
contribuir com a autonomização das classes exploradas. Por conseguinte, podemos
dizer que o abstencionismo e/ou o voto nulo são as estratégias da esquerda
revolucionária no que diz respeito à democracia burguesa. Busca-se, assim,
corroer a influência do bloco dominante e do bloco reformista e colaborar com o
processo de radicalização das lutas de classes, principalmente, com a
autonomização das classes exploradas.
Referências
ALMEIDA, Ângela. Revolução e Guerra Civil na Espanha. São
Paulo, Brasiliense, 1981.
MARCUSE,
Herbert. Tolerância Repressiva. In: WOLF, Robert; MOORE JR., Barrington; MARCUSE,
Herbert. Crítica da Tolerância Pura. Rio de
Janeiro, Zahar, 1970, p. 89.
ROSSANDA, Rossana. Il Manifesto e
as Eleições. Revista Ruptura, ano 1,
no 1, maio de 1993.
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