IMAGINÁRIO E IDEOLOGIA:
As Ilusões nas Representações Cotidianas e no Pensamento Complexo
Nildo Viana*
A história da
consciência humana é marcada por um conjunto de mudanças que só podem ser
compreendidas se inseridas no interior da história das sociedades humanas. A
consciência pode ser entendida, tal como no pensamento de Marx, como “real” ou
“ilusória”. O nosso foco aqui será aquilo que Marx denominou “representações
ilusórias” da realidade, o que, obviamente, nos faz remeter às “representações
reais”, pois a discussão de uma gera a necessidade, inevitavelmente, de abordar
a outra. A discussão sobre as ilusões numa sociedade em que essas predominam na
mente humana é algo fundamental e que remete à questão das suas raízes sociais,
ou seja, ao processo de constituição social das ilusões. O objetivo aqui, no
entanto, é apenas observar as relações entre duas formas fundamentais de
ilusões, o imaginário e a ideologia, no sentido de perceber o processo de
transformar de uma em outra e assim avançar na compreensão desse fenômeno
onipresente na sociedade contemporânea.
A história da
consciência humana é, no fundo, uma história de ilusões. As ilusões sempre
existiram, mas sob formas e por razões distintas. A palavra ilusão tem vários
sentidos, tal como “esperanças improváveis”, mas aqui utilizamos no sentido de
distorção da realidade, uma consciência falsa, equivocada, da realidade. Assim,
a consciência pode ser ilusória ou verdadeira, o que significa que pode
expressar a realidade tal como ela é ou distorcer a mesma.
A história das
ilusões começa com os mitos antigos e chega até os dias de hoje sob a forma de
ciência, filosofia, etc. O mito enquanto forma de explicação do mundo se revela
ilusório, assim como as explicações do mito também podem e na maioria das vezes
são ilusórias (VIANA, 2011). Contudo, as raízes das ilusões em geral são
variadas, embora a determinação fundamental, no caso da nossa sociedade, seja
social. Nas sociedades simples, o que temos são relações dos seres humanos com
o meio ambiente marcadas pela dependência e por uma cultura ainda demasiadamente
marcada por formas de reflexão cuja movimento de retorno a si mesmo do ser
pensante é realizado sob forma não consciente, sendo mais uma projeção
irrefletida. Com a emergência da sociedades de classes e a separação entre
trabalho manual e intelectual, os pensadores originários, os filósofos,
avançaram no sentido de pensar este retorno a si mesmo de forma consciente.
Quando Protágoras lança a máxima “o homem é a medida de todas as coisas”
(PLATÃO, 1977), marca uma revolução no pensamento humano.
Na sociedade
escravista, contudo, se há um avanço da consciência humana, ela sofre outras
limitações antes inexistentes. A formação dos indivíduos especializados no
trabalho intelectual, graças à exploração do trabalho escravo, permite ampliar
as reflexões sobre o mundo e ampliar a consciência humana, inclusive devido ao
maior domínio dos seres humanos sobre a natureza com o desenvolvimento das
forças produtivas, mas cria um novo obstáculo: a divisão da sociedade em
classes e as subdivisões derivadas ou subordinadas a ela gera modos de vida
distintos, interesses, valores, sentimentos, também distintos. Se nas
sociedades simples havia uma cultura única e homogênea, se todos acreditavam no
mesmo mito, nas sociedades de classes a divisão social promove formas de consciência
distintas.
As
representações ilusórias passam a ter como principal determinação não mais a
dependência em relação à natureza e sim a divisão social do trabalho que
expressa a existência de diferentes e antagônicas classes sociais e tudo que
deriva disso. Inclusive, a divisão entre trabalho manual e intelectual faz
emergir a figura do ideólogo, ou seja, do especialista no trabalho intelectual
que produz um sistema de pensamento ilusório, o que Marx denominou ideologia.
Assim, passa a existir não somente as representações ilusórias produzidas
espontaneamente pelos indivíduos das variadas classes a partir de sua posição
na divisão social do trabalho, interesses, valores, sentimentos, etc., mas
também um tipo novo de representações ilusórias, sistemáticas e cujo produtores
são os trabalhadores intelectuais. É nesse contexto histórico que nasce a
ideologia (MARX e ENGELS, 1992).
O processo de
desenvolvimento da história da humanidade foi, desde esse momento, marcado pela
produção e reprodução de ilusões, seja sob uma ou outra forma, a forma simples
ou a forma complexa. A forma complexa é o reino da ideologia, dos especialistas
no trabalho intelectual que geram verdadeiros sistemas de pensamento, sob a
forma de filosofia, teologia, ciência, etc. e a forma simples é o que
posteriormente esse pensamento complexo denominou “senso comum”, “cultura
popular”, “saber popular”, “conhecimento cotidiano”, “representações sociais”,
entre outros nomes. E sobre essas formas de consciência se produziu
interpretações e explicações, na maioria das vezes, ilusórias. Nesse caso,
trata-se de ilusões produzidas sobre outras ilusões. Um verdadeiro mundo
ilusório passa a reinar absoluto nas sociedades de classes e na sociedade
capitalista. Sem dúvida, assim como a filosofia nascente proporcionou certos
avanços no plano da consciência humana, os desdobramentos posteriores também,
em muitos casos, também possibilitou outros avanços, mas que, no entanto, ainda
não conseguiram uma superação da primazia da ilusão no pensamento humano. E além
da inversão da realidade realizada de forma sistemática pela ideologia e pelas
representações cotidianas ilusórias, há também um mundo de ilusões que realiza
uma mediação da interpretação dessas mesmas ilusões.
O Conceito de Ideologia
Após essa
contextualização histórica, é importante esclarecer os conceitos de ideologia e
representações cotidianas ilusórias, ou imaginário, para podermos avançar na
discussão sobre a relação entre estas duas formas de consciência. A palavra
ideologia tem vários significados, sendo polissêmica. Ela pode ser compreendida
como “ciência das ideias”, tal como a definiu Destutt de Tracy (CHAUÍ, 1992);
como “visão de mundo” (GRAMSCI, 1989); entre outros significados. Essas são
concepções ideológicas de ideologia. E por ideologia se entenda o conceito
elaborado por Marx e mal interpretado (e muitas vezes interpretado
ideologicamente) pelos seus intérpretes.
A ideologia, na
concepção de Marx, é uma falsa consciência sistematizada, um sistema de
pensamento ilusório. O caráter sistemático da ideologia é seu traço distintivo
do imaginário, ou seja, das representações cotidianas ilusórias. Marx
identifica o nascimento da ideologia com a divisão entre trabalho manual e
intelectual, com o surgimento da figura do ideólogo e com a autonomização do
mundo das ideias por parte dos pensadores, dos especialistas na produção
cultural. A crítica que Marx efetiva aos ideólogos é aquela aos filósofos
idealistas neohegelianos, que produziam verdadeiros sistemas a partir da obra
de Hegel e contra ele. Marx não abordava a ilusão dos escravos, dos servos, dos
operários, dos guerreiros, burocratas, etc. O conceito de ideologia, por
conseguinte, remete aos seus produtores, os ideólogos e estes são os
trabalhadores intelectuais (cientistas, filósofos, teólogos).
Se a ideologia é
um sistema de pensamento ilusório, ela não é a única forma de manifestação de
ilusões. Devido à divisão social do trabalho e tudo que deriva disso, bem como
do processo de exploração e dominação que constitui tal divisão, há um processo
constante de produção de ilusões. Tanto os indivíduos das classes exploradas
quanto os indivíduos das classes dominantes produzem ilusões, mas sob forma não
sistemática. Cabe aos ideólogos, ou, tal como em casos raros, a alguns
indivíduos destas classes que conseguem, apesar da sua posição na divisão
social do trabalho, tempo para criar sistemas de pensamento, a produção de uma
falsa consciência sistematizada. Em Marx, essa oposição existe desde a sua
crítica das ideologias filosóficas em A
Ideologia Alemã (MARX e ENGELS, 1992) até sua crítica das ideologias
científicas, a economia política, em O
Capital (MARX, 1988). Marx afirmou que as “concepções cotidianas” dos
agentes do processo de produção eram sistematizadas e transformadas em ciência
pelos economistas políticos. Vamos retornar a isso mais adiante.
O conceito de
ideologia remete, portanto, a um sistema de pensamento ilusório. Nesse sentido,
as obras de Aristóteles, Platão, Hegel, Durkheim, Weber, Locke, Baumann,
Giddens, entre milhares de outras, são produtos ideológicos. A ideologia, no
entanto, sendo um sistema de pensamento, não só tem um conteúdo ilusório, ou
seja, inverte a realidade, mas também possui uma forma. Trata-se de um sistema
de pensamento e o seu caráter sistemático lhe fornece suas características
formais. As ideologias são uma totalidade, um conjunto de ideias que se
estruturam sistematicamente, constituindo construtos, falsos conceitos (VIANA,
2007), que são interrelacionados com diversos outros, produzindo assim um
sistema construtal (VIANA, 2012; VIANA, 2007). As
ideologias produzem um conjunto de construtos organizados sistematicamente Não
será possível apontar aqui as diversas características da ideologia, mas o
fundamental é entender que se trata de uma forma de consciência ilusória da
realidade e sua distinção em relação às outras formas de consciência ilusória é
o seu caráter sistemático, formando um conjunto organizado de construtos.
Representações Cotidianas e Imaginário
A ideologia
surge com as sociedades de classes. É nesse contexto que surge diversos
sistemas de pensamento (que vão ganhando maior sistematicidade com o decorrer
do processo histórico e da acumulação de ideologias, e o platonismo e
aristotelismo são algumas de suas primeiras formas de manifestação, já com um
certo grau elevado de sistematização, principalmente no caso de Aristóteles). O
mito é uma concepção da realidade relativamente organizada e coerente, mas que
não se constitui ainda como um sistema. A ideologia é produção dos ideólogos,
dos especialistas no trabalho intelectual. E aqueles que não são ideólogos?
Eles desenvolvem sua consciência da realidade e o fazem sob diversas formas,
com diversos conteúdos. Se a ideologia assume a forma de ciência, filosofia,
teologia, as demais formas de consciência são o que denominamos representações
cotidianas, o que outros chamam de “senso comum”, “conhecimento cotidiano”,
“representações sociais”, etc.
A ideia de senso
comum é produto da ideologia, ou, mais especificamente, da ciência (VIANA,
2008). A constituição da nova forma dominante de ideologia, a ciência, a partir
da ascensão da burguesia e sua conquista do aparato estatal com as revoluções
burguesas, em confronto com as ideias disseminadas na sociedade sob a forma de
socialismo utópico, anarquismo, marxismo, produz a necessidade de separar ambas
as formas de pensamento e a desqualificação da cultura popular, influenciadas
por tais concepções. A razão disso é muito simples: o que surge espontaneamente
são as representações cotidianas (“senso comum”) e é somente quando emerge uma
forma de pensamento complexo é que a distinção se torna possível. O antecessor
mais antigo dessa oposição entre pensamento complexo e representações
cotidianas se encontra em Platão (1974), que realizou a distinção entre doxa e logos, opinião e razão, ou, mais precisamente, o mundo das
opiniões, daqueles que confundem as sombras da realidade com ela mesma, e
aqueles que enxergam as luzes, os que saíram do mundo das sombras e chegaram ao
mundo das luzes, os filósofos.
A oposição
platônica entre doxa e logos e, posteriormente, entre ciência e
senso comum, expressam a autoilusão dos ideólogos cujo elemento fundamental em
sua distinção é opor o verdadeiro e o falso. A filosofia ou a ciência seriam o
saber verdadeiro, a doxa ou o senso
comum seriam o saber falso. Com a mudança histórica e social, as interpretações
do senso comum se alteram, alguns ideólogos até o colocam como sendo um saber
verdadeiro (VIANA, 2008). Contudo, o que nos interessa aqui é o fato de que
as representações cotidianas antecedem o pensamento complexo, as representações
complexas da realidade. Mas quando estas últimas surgem, elas buscam se
distinguir das representações cotidianas. Sem dúvida, ambas as formas de
representação existem, porém, o que diferencia uma da outra não é o caráter
verdadeiro de uma e o caráter falso de outra. As ideologias são, por essência,
falsas. As representações cotidianas, no entanto, podem ser falsas ou
verdadeiras, ou como diz Marx, “reais ou ilusórias” (MARX e ENGELS, 1992). No
entanto, afirmar que todas as ideologias são falsas não quer dizer que todas as
representações complexas sejam falsas. A ideologia é um pensamento complexo,
mas além da ideologia existe a teoria (VIANA, 2007; VIANA,
2012). A teoria, ao contrário da ideologia, é uma expressão da realidade, consciência
correta da realidade, para usar expressão do jovem Lukács (1989). Essa
concepção de teoria como expressão da realidade em contraposição à ideologia
como falsa consciência tem suas origens em Hegel (GOMBIM, 1972) e se manifesta
em Marx[1]
e posteriormente em Korsch (1977), sem, no entanto, promover uma elaboração
mais estruturada sobre isso.
Marx não
elaborou nenhuma teoria das diversas formas de representações de modo
aprofundado. Mas fica claro em A
Ideologia Alemã e em O Capital,
que ele concebia a existência de um pensamento complexo, a ideologia e a
teoria, e formas de pensamento não complexas. O pensamento complexo pode ser
verdadeiro (teoria ou outro termo para expressar isso, que varia em Marx) ou
falso (ideologia), assim como as representações podem ser “reais” ou
“ilusórias” (MARX e ENGELS, 1992). Em O
Capital ele coloca que a ideologia dos economistas políticos significa, na
verdade, a sistematização das representações cotidianas (ele usa a expressão
“concepções cotidianas”) dos agentes do processo de produção (capitalistas,
gerentes, proletários). No entanto, Marx dedicou análises mais aprofundadas às
ideologias, contra a qual surge a teoria, ou seja, o marxismo, e à realidade
concreta e não aprofundou suas reflexões sobre as representações cotidianas.
As
representações cotidianas podem ser definidas como o conjunto das ideias ou
concepções que as pessoas produzem na sua vida cotidiana, reproduzindo sua
estrutura: a simplicidade, regularidade e naturalidade (VIANA, 2008). Aqui nos
interessa o seu aspecto que lhe distingue do pensamento complexo: a
simplicidade. As representações cotidianas são produzidas por todos aqueles que
não são especialistas no trabalho intelectual e por estes também quando se
trata de questões fora de sua formação especializada[2]
ou no conjunto do seu pensamento antes de tornarem-se trabalhadores
intelectuais especializados. Elas fornecem explicações simples da realidade.
Não possuem a complexidade, a coerência e sistematização (ou articulação, no
caso da teoria) do pensamento complexo. Seu conteúdo concreto, no entanto, ao
contrário do que algumas concepções ideológicas afirmam, pode ser falso ou
verdadeiro e não apenas falso ou apenas verdadeiro (VIANA, 2008). Obviamente
que seu conteúdo verdadeiro possui limites, pois falta-lhe estruturação e
aprofundamento. As representações cotidianas verdadeiras são mais raras, estão
geralmente ligadas a ascensão das lutas das classes exploradas e muitas vezes
se mesclam com outras formas de pensamento. Elas não conseguem possuir a
estruturação, articulação, aprofundamento e complexidade da teoria.
Contudo, o nosso
interesse fundamental não são as representações cotidianas em geral e sim o
imaginário, as representações cotidianas falsas, ilusórias. Desta forma, o
conceito de imaginário expressa as representações cotidianas ilusórias, ou
seja, carrega em si todas as características das representações cotidianas e
tem como elemento distintivo o seu caráter ilusório e por isso se aproxima da
ideologia. O imaginário compartilha com a ideologia o seu conteúdo ilusório,
embora se distinga dela por sua simplicidade em comparação com a complexidade
do pensamento ideológico. O seu conteúdo falso é mais facilmente criticado e
percebido do que no caso das ideologias. O imaginário e a ideologia são formas
de consciência ilusória, naturalizam o que é histórico e social, invertem a
realidade. No entanto, o que temos aqui são semelhanças e diferenças entre
imaginário e ideologia. É importante analisar as relações concretas entre ambas
as formas de consciência ilusória, pois na realidade concreta elas convivem e
se influenciam reciprocamente. A partir de agora analisaremos tal relação, que
pode ocorrer sob duas formas principais, a saber: a passagem do imaginário para
a ideologia e o inverso, a passagem da ideologia para o imaginário. Vamos
abordar as duas formas, mas focalizaremos o último caso, já que é este o menos
tratado geralmente.
Do Simples ao Complexo: A Produção de
Ideologia
A produção da
ideologia tem como ponto de partida as relações sociais concretas e as
representações cotidianas ilusórias produzidas na sociedade, bem como os
valores, sentimentos, interesses, das classes sociais existentes. O imaginário,
portanto, é uma das fontes das ideologias. Marx expressou isso muito bem ao
dizer que os economistas sistematizam as concepções cotidianas dos agentes do
processo de produção, dando-lhe o caráter científico, sistemático. A
transformação do imaginário em ideologia pressupõe aqueles que irão realizar
tal processo, os ideólogos, bem como o processo de sistematização das
representações cotidianas.
Isso é mais
compreensível ao recordamos um fenômeno determinado e suas interpretações. Se
os indivíduos observam o aparecimento do sol e seu desaparecimento no
horizonte, então pode criar a representação ilusória de que ele se move. Se
isso é sistematizado, torna-se ideologia. Aristóteles foi o primeiro a dar esse
passo e Cláudius Ptolomeu aprofundou e deu forma ideológica para essa
concepção. Se já na Grécia antiga existiam aqueles que discordavam, como
Aristarco de Samos, a concepção dominante era a que povoava o imaginário e,
posteriormente, as ideologias dominantes, até chegar a Galileu e Bruno, quando
foram refutadas de forma mais estruturada e abriu caminho para sua superação.
Contudo, essas duas posições não surgiram apenas da passagem das representações
cotidianas para o pensamento complexo, mas também dos interesses, valores,
processos sociais existentes em sua época.
O processo de
produção da ideologia, no entanto, emerge a partir de uma fonte de inspiração
que lhe é anterior e, por conseguinte, o imaginário é uma de suas
determinações. Sem dúvida, numa época dominada pelas ideologias, a constituição
de novas ideologias se faz a partir do desenvolvimento, reformulação, mescla,
das já existentes, mas para o caso do ideólogo como indivíduo, ele primeiro se
formou no mundo das representações cotidianas, do imaginário que é dominante,
para inclusive se adequar, convencer, escolher, determinada ideologia anterior
para produzir a sua própria[3].
A produção de ideologias, portanto, é marcada por um processo progressivo de
passagem do imaginário, as ilusões simplistas, para o pensamento complexo do
mundo ideológico, as ilusões sistematizadas.
Do Complexo ao Simples: A Produção de
Ideologemas
O processo de
constituição do imaginário é distinto. Sem dúvida, as representações
cotidianas, ilusórias ou verdadeiras, antecedem o pensamento complexo, tanto na
história da humanidade quanto na história dos indivíduos. Ninguém nasce
filósofo, cientista ou teólogo. Contudo, em certo momento da história da
humanidade, emerge a ideologia e essa para a influenciar as representações
cotidianas, de forma mais ou menos intensa, abarcando um número maior ou menor
de pessoas, dependendo da época e sociedade. A questão é que, com a sociedade
capitalista, esse processo adquire contornos específicos, por diversos motivos,
tal como a emergência da ciência enquanto forma dominante de ideologia
dominante (superando a supremacia da filosofia e da teologia, que sofrem um
processo de marginalização ou subordinação à forma dominante) e sua expansão
para domínios especializados e conjunto de atividades sociais, popularização,
processo de racionalização e burocratização da sociedade como um todo. É neste
contexto que vamos abordar a questão da passagem das ilusões complexificadas,
da ideologia, para as ilusões simplistas.
Marx não abordou
esse processo e poucos foram os que se atentaram para isso. Sem dúvida, isso
vai ocorrer com maior incidência num certo momento histórico, que é em
determinado nível de desenvolvimento da sociedade capitalista. Esse processo
possui diversas determinações. Sem dúvida, a própria consolidação da ciência é
uma precondição para isso. O seu domínio temático, ou seja, os temas e
fenômenos que abarca também são fundamentais. Dentre as ciências, as que mais
exercem influência na população são as humanas, especialmente a psicologia, que
apresenta uma explicação dos comportamentos individuais numa sociedade
individualista. Em menor grau, as demais ciências humanas, tal como a
geografia, sociologia, ciência política, etc., influenciam as representações
cotidianas na sociedade capitalista. Isso começa no século 19, especialmente
com uma certa influência da psicologia, sociologia, e de outras formas de
pensamento complexo, como o marxismo, a filosofia, etc. Entre as ciências
naturais, a biologia, especialmente a ideologia darwinista, acaba tendo um
maior impacto na sociedade, tanto por causa do domínio temático quanto por seu
caráter político que se opunha ao pensamento religioso e, ainda, por sua
influência nas ciências humanas nascentes.
Essa influência
aumenta após a Segunda Guerra Mundial, especialmente com o crescimento do
mercado editorial, das universidades, dos meios oligopolistas de comunicação em
geral. É nesse contexto que ocorre a primeira reflexão mais sistematizada sobre
tal fenômeno, com o estudo de Serge Moscovici (1977) sobre “as representações
sociais da psicanálise”. A escolha da psicanálise não foi gratuita, pois a sua
presença nos meios oligopolistas de comunicação e sua popularização era
evidente. Contudo, a análise de Moscovici apresenta alguns elementos
interessantes, mas em sua totalidade é insuficiente. De qualquer forma, foi um
primeiro passo para a reflexão sobre a relação entre ideologia e imaginário no
sentido da assimilação do pensamento complexo pelas representações cotidianas.
Uma característica
desse processo é a simplificação que tal assimilação promove. Essa
simplificação não significa apenas tornar simples, pois geralmente também
deforma o pensamento complexo. Assim como a ideia de Darwin foi deformada no
sentido de se acreditar que ele afirmou que o homem descende do macaco, também
as ideias de Freud e dos psicanalistas (que inclusive não é diferenciado nas
representações cotidianas, que, na maioria dos casos, desconhecem as diversas e
às vezes antagônicas concepções psicanalíticas) são simplificadas e deformadas[4].
O processo de
assimilação das ideologias pelo imaginário é realizado geralmente sob a forma
de produção de ideologemas. A palavra “ideologema” já foi utilizada em sentidos
diferentes por Bakhtin (1990) e Kristeva (1978), apesar de algumas semelhanças,
e não é nosso interesse aqui discuti-los. Entendemos ideologema sob forma
distinta, com um novo significado. Um ideologema é um fragmento de uma
ideologia, seja um construto (falso conceito) isolado, seja uma parte mais
ampla ou uma síntese simplificadora de uma determinada concepção ideológica ou,
ainda, a redução de uma ideologia a um chavão ou uma ideia-chave.
Em outras
palavras, um ideologema é uma mutação formal de uma ideologia no sentido de
promover sua simplificação e redução, transformando um fragmento da mesma em
mensagem ou elemento principal de um discurso, texto, mensagem, etc. Esse
fragmento nunca é uma ideologia em sua totalidade, pois, se assim fosse, teria
que reproduzir o conjunto de ideias que a constitui e seria complexo, o que não
só pressupõe compreensão da mesma (e esse domínio é raro em não especialistas),
como também espaço e condições para sua reprodução.
Dificilmente em
uma história em quadrinhos, num filme, numa coluna de jornal, numa poesia, para
citar alguns poucos exemplos, é possível reproduzir uma ideologia sem realizar
essa processo de simplificação que gera o ideologema. Se até mesmo os
“ideólogos passivos” (meros reprodutores) possuem dificuldades em resumir em
obras de divulgação científica ou em aulas as ideologias sem provocar uma forte
simplificação e em grande parte das vezes sua deformação, então isso é mais
difícil e comum no caso daqueles que trabalham com as representações
cotidianas.
Assim, em um
filme se pode repassar a concepção elitista de arte, reproduzindo determinada
ideologia, mas sob a forma de ideologema. A compreensão desse processo fica
mais fácil com um exemplo concreto de manifestação ideologêmica no cinema, o
nosso próximo passo.
"Teoria
Mortal": O Ideologema que Mata
O filme "Teoria Mortal" (Kill Theory, Chris Moore, EUA,
2009) tem como ponto de partida um ideologema (ou uma "teoria", tal
como é colocado no título do filme). A importância do ideologema no referido
filme faz dele um excelente caso para analisar a reprodução fílmica de
ideologemas, bem como para outros tipos de ficção. Geralmente, os ideologemas
estão embutidos no universo ficcional e não são facilmente perceptíveis, assim
como os valores, sentimentos, inconsciente, etc. Por isso o filme "Teoria
Mortal" acaba assumindo grande importância ao tomar como ponto de partida
e motivação do psicopata um ideologema. Obviamente, é apenas a motivação
consciente do psicopata, pois são seus problemas psíquicos que estão na origem
do ato, sendo o ideologema apenas uma racionalização, no sentido freudiano do
termo, e autojustificativa.
Qual ideologema é exposto no
filme? O filme inicia com a história do assassino. Ele, em suas conversas com o
psicólogo, trava um debate sobre o que o levou à prisão. Ele escalava uma
montanha com amigos e, em certa altura, teve que decidir entre salvar sua vida
cortando a corda que o ligava aos demais, o que os faria cair e morrer, ou
continuar e ser solidário, e provavelmente morrer junto com eles. Após realizar
este ato e ser preso, ele afirma que todos fazem isso. Ao ser libertado, o
psicólogo pergunta se ele ainda acredita nisso e a resposta é que não.
A cena muda radicalmente,
passando para jovens que foram para uma casa de verão para comemorar o fato de
terem terminado a graduação. Porém, logo aparece o assassino, que busca
colocá-los na mesma situação que ele teve para comprovar sua tese (ideologema)
de que todos os seres humanos lutam pela sobrevivência e, seguindo seus
instintos, podem matar até os amigos. A casa é totalmente isolada e não havia
comunicação e ele exige que eles matem uns aos outros e o sobrevivente que
restar até as 06 horas da manhã, sairá vivo, mas, se nesse horário ainda
estiver mais de um vivo, ele matará a todos. A trama do filme gira em torno
disso, mostrando as tentativas de fuga, conflitos, etc.
O ideologema em questão é
fragmento comum de várias ideologias que apontam para o determinismo biológico,
mas tem como base a ideologia darwinista e sua tese da luta pela sobrevivência
e a sobrevivência dos mais aptos[5].
A competição e a luta intraespécie é naturalizada e reforçada por essa
ideologia e pela sua vulgarização e popularização, na qual determinados
ideologemas podem ser identificados em frases, tal como "luta pela
vida", "lei do mais forte", etc.
A princípio, o ideologema
parece ser confirmado, pois os grandes amigos, que no início da noite
festejavam e o filho do dono da casa afirmou que amava a todos, logo entram em
conflito, e alguns buscam se salvar independentemente dos demais, até que, no
final, começam a entrar no jogo do assassino e tentam matar os amigos para
escapar da morte. Porém, o final do filme acaba sendo marcado por um ato de
solidariedade, o que refuta o ideologema. Nesse sentido, o filme não é
ideologêmico, pois realiza a refutação de ideologema. E ainda mostra que um
ideologema, tal como as ideologias, é mobilizador, produz ação, interfere na
realidade[6].
Considerações
finais
A sociedade
capitalista é pródiga em produzir ilusões. O capitalismo é a sociedade das
ilusões. Claro que a racionalização e a pretensa crença nos avanços da ciência
e da tecnologia, entre outros aspectos, produzem uma ilusão de superação das
ilusões. A ilusão sobre as ilusões é a mais problemática das ilusões.
Obviamente que o esforço intelectual, a pesquisa, a reflexão, são importantes
para tal superação, mas insuficientes, se não partir de uma perspectiva que
tenha como necessidade, valor, objetivo, a superação das ilusões e,
principalmente, se as relações sociais que estão na base da sociedade das
ilusões for superada. É por isso que Marx afirmou que “a exigência de superar
as ilusões sobre sua condição é a exigência de superar uma condição que
necessita de ilusões” (MARX, 1968).
Abordamos as
duas principais formas de ilusão na sociedade contemporânea, o imaginário e a
ideologia, bem como a transformação de uma em outra. Em obra anterior já
havíamos colocado uma discussão sobre essa questão (VIANA, 2008), mas sentimos
a necessidade de voltar ao assunto para esclarecer alguns aspectos que não
estavam desenvolvidos nem percebidos naquele momento, tal como a existência dos
ideologemas e este foi o foco principal de nossa análise. Para esclarecer
melhor o significado do conceito de ideologema, partimos de um exemplo de um
filme que manifestou um determinado ideologema. No caso, escolhemos um filme
que manifestava um ideologema sem, no entanto, afirmá-lo. Isso mostra uma das
possibilidades de manifestação de ideologemas na produção artística, pois ela
pode ser a posição expressa daqueles que produzem uma determinada obra
artística ou pode ser apresentada para ser refutada. O mais comum, contudo, é
que os ideologemas sejam o ponto de vista dos produtores de cultura e obras
artísticas, pois está de acordo com as representações cotidianas dominantes, as
ideias dominantes.
Enfim, o
presente texto abre um espaço para uma discussão que deve ser aprofundada e que
apenas lança uma reflexão inicial que deve ter aprofundamentos e
desdobramentos, visando ampliar a compreensão do imaginário, das ideologias e
dos ideologemas.
Referências
BAKHTIN, Mikhail. Questões
de Literatura e de Estética: A teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 1990.
CHAUÍ,
Marilena. O Que é Ideologia. 32ª
Edição, São Paulo: Brasiliense, 1992.
GOMBIM,
Richard. As Origens do Esquerdismo.
Porto: Dom Quixote, 1972.
GRAMSCI,
Antonio. Concepção Dialética da História.
7ª edição, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
KRISTEVA, Júlia. Semiótica do Romance. 2ª edição, Lisboa: Arcádia, 1978.
LUKÁCS,
Georg. História e Consciência de Classe.
2ª Edição, Rio de Janeiro, Elfos, 1989.
MARX, Karl. A
Miséria da Filosofia. 2a edição, São Paulo: Global, 1989.
MARX, Karl. O Capital. 5 Vols. 3ª Edição, São Paulo:
Nova Cultural, 1988.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São
Paulo: Hucitec, 1992.
MARX, Karl. Critica de la Filosofia del Derecho de Hegel.
Notas Aclaratorias de Rodolfo Mondolfo. Buenos Aires: Ediciones Nuevas, 1968.
MOSCOVICI, Serge. A Representação Social da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
PLATÃO. A República. São Paulo: Hemus, 1974.
PLATÃO. Protágoras.
Porto Alegre: Globo, 1977.
VIANA, Nildo. A Consciência da História. Ensaios
Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. 2ª edição, Rio de Janeiro:
Achiamé, 2007.
VIANA, Nildo.
Cérebro e Ideologia. Uma Crítica ao
Determinismo Cerebral. Jundiaí: Paco Editorial, 2010.
VIANA, Nildo.
Darwin Nu. Revista Espaço Acadêmico. num. 95, Abril de 2009. Disponível
em: http://www.espacoacademico.com.br/095/95esp_viana.htm
acessado em 30 de abril de 2009.
VIANA, Nildo. Mito e Ideologia. Cronos.
Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais/UFRN, Vol. 12, num. 01, jan./jun. 2011. Disponível em: http://www.periodicos.ufrn.br/index.php/cronos/article/view/2122/pdf acessado em: 25 de abril de 2013.
VIANA, Nildo. O Que é Marxismo? Florianópolis: Bookess, 2012.
VIANA, Nildo.
Senso Comum, Representações Sociais e
Representações Cotidianas. Bauru: Edusc, 2008.
Artigo
publicado originalmente em:
VIANA,
Nildo. Imaginário e Ideologia. As Ilusões nas Representações Cotidianas e Pensamento
Complexo. Revista Espaço Livre, Vol. 08, num. 15, jan./jun. de 2013.
*Professor da Faculdade de Ciências Sociais da
Universidade Federal de Goiás e Doutor em Sociologia pela Universidade de
Brasília.
[1]
Marx, ao realizar a crítica das ideologias, produz um pensamento complexo sobre
a realidade e a isto forneceu alguns nomes, como “socialismo científico”
(utilizado poucas vezes e apenas para se contrapor ao socialismo utópico),
“ciência” (usando a palavra no sentido hegeliano e não no sentido habitual e
dominante, nem no que usamos aqui) e “teoria”. Em alguns momentos Marx
explicita que a ciência é uma ideologia. Essa frase, por exemplo, deixa
entrever o caráter ideológico da ciência e a oposição entre ela e a teoria:
“assim como os economistas são os representantes científicos da classe
burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária
(MARX, 1989, p. 118).”
[2]
Uma análise mais profunda das representações cotidianas não podem ser aqui
desenvolvida e podem ser vistas na obra Senso Comum, Representações Sociais
e Representações Cotidianas (VIANA, 2008).
[3]Claro
que aqui enfatizamos o que Marx denominou “ideólogos ativos”, os produtores de
ideologias, e não os “ideólogos passivos”, consumidores e reprodutores (MARX e
ENGELS, 1992), embora também se aplique a estes quando eles “escolhem” entre as
ideologias existentes.
[4]
Sem dúvida, esse processo também ocorre com o marxismo, ou seja, com a teoria.
A apropriação do marxismo pelas representações cotidianas é um processo de
simplificação e deformação, o que é reforçado pela produção ideológica que tem
o interesse em fazer isso para assim refutá-lo mais facilmente. Contudo, esta
relação será abordada em outro momento, dedicado ao tratamento da produção de
teoremas e da deformação do marxismo por sua simplificação.
[5] Sobre darwinismo, confira
Viana (2009).
[6] Em outra oportunidade
apresentamos uma análise mais desenvolvida sobre caráter mobilizador da
ideologia (VIANA, 2010), o que também vale para o ideologema e através dele ela
se torna ainda mais mobilizadora.
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