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quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

CAPITALISMO E RACISMO


CAPITALISMO E RACISMO
Nildo Viana


A questão racial vem sendo abordada sob as mais variadas perspectivas teóricas, mas poucas são as análises marxistas a seu respeito. Consideramos que a busca da compreensão do racismo remete, necessariamente, aos recursos teóricos do materialismo histórico-dialético e é este o procedimento que será adotado aqui. Por conseguinte, o estudo do racismo, sob perspectiva marxista, nos obriga a procurarmos na história e no conjunto das relações sociais a sua origem e as determinações que possibilitam sua reprodução nas sociedades capitalistas contemporâneas.
O racismo não é apenas uma ideologia. Ele é, também, um conjunto de práticas sociais. O racismo é uma prática social de discriminação racial. Essa prática discriminatória não ocorre apenas no mundo das idéias e valores, mas também no mercado de trabalho, no nível de renda, nas relações de poder, etc. Podemos dizer que é o racismo (conjunto de práticas sociais de discriminação racial) que cria a ideologia racista, ou seja, a ideologia vem a posteriori para justificar o racismo, tal como definido acima. Não é a ideologia racista que cria o racismo, mas, ao contrário, é o racismo que cria a ideologia racista. Portanto, o racismo é a “fonte” da ideologia racista. Contudo, uma vez existindo, a ideologia racista reforça o racismo. A ideologia racista, como toda ideologia, é mobilizadora, isto é, produz práticas e, desta forma, gera racismo, criando um círculo reprodutor que dificulta a compreensão de que a origem e essência deste fenômeno se encontra nas relações raciais concretas.
Mas falar em racismo pressupõe a definição do conceito de raça. A definição desse conceito é tão variada que alguns, partindo de sua definição, sustentam que existem apenas duas raças enquanto que outros afirmam que existem duzentas raças. Também já se defendeu a identidade do conceito de raça com outros conceitos, tais como: casta, classe, etc. A definição que consideramos mais correta é a que coloca que ela é expressão das diferenças físicas entre membros da espécie humana.
Entretanto, não existe nenhuma fundamentação para se afirmar que existe superioridade de uma raça sobre outra, pois estas diferenças de caracteres físicos não fornece nenhuma vantagem mental, moral ou física de uma raça sobre outra. Além disso, o desenvolvimento físico, mental e moral do ser humano é condicionado socialmente e, portanto, as diferenças só podem ser explicadas pelo seu contexto social e histórico e não por diferenças raciais.
Concordamos, portanto, com a definição de raça apresentada por John Lewis:
“Define-se uma raça como sendo um grupo que tem em comum, certo conjunto de caracteres físicos inatos e uma origem geográfica dentro de certa área. Existem três raças maiores assim definíveis – a caucasóide, a mongolóide e a negróide – além de algumas raças menores. Estas raças originaram-se quando ocorreram variações em alguma raça perdida, em diversas partes do mundo onde, durante séculos, o isolamento manteve separado os tipos resultantes. Entretanto, as raças secundárias não conservaram o menor grau de pureza” (Lewis,1968, p. 106) [1].
A partir desta definição do conceito de raça, podemos definir o que são relações raciais. Segundo Oliver Cox, as relações raciais são “o comportamento que se desenvolve entre as pessoas que estão conscientes das respectivas diferenças físicas, autênticas ou imputadas” (apud. Banton, 1979, p. 149). Entretanto, é necessário um esclarecimento sobre as diferenças físicas “imputadas”: as relações raciais possuem sua particularidade mas não estão desligadas das demais relações sociais (“econômicas”, “políticas”, culturais, etc.) e estas são, geralmente, dominadas pela visão ideológica sobre elas e isto cria a possibilidade de se imputar diferenças físicas inexistentes, pois no conjunto das relações sociais isto pode ser vantajoso para determinados grupos e indivíduos.
Portanto, precisamos descobrir sob quais relações sociais surge o racismo e que tipos de relações sociais tomam possível sua reprodução. Somente uma análise histórica poderá nos esclarecer sobre essas questões. Se analisarmos o período histórico que abrange o escravismo antigo até o século 16 não veremos nenhum caso de discriminação racial, pois, tal como colocou o antropólogo R. Linton: “Antes do século XVI não havia no mundo a consciência de raça, nem havia incentivo algum para que essa consciência surgisse” e ele acrescenta que, na antigüidade:
“Os povos clássicos conheciam apenas um grupo de tipo físico acentuadamente diferente do seu. Eram os negros nilóticos, cujo território ficava a distancia demasiado grande para que lhes dessem importância, fosse como inimigos, fosse como fontes de escravos. Portanto, a atitude clássica em relação a esse povo era neutra. De fato, os poetas gregos mostravam tendências a idealizá-los mais que aos bárbaros seus vizinhos, aos quais conheciam melhor e comumente se referiam aos nilóticos com os ‘felizes etíopes’” (Linton, 1962, p. 62-63).
Assim chegamos à conclusão de que a partir do século 16 houve uma mudança histórica que criou a necessidade do racismo e da ideologia racista[2]. Esta mudança foi a adoção da escravidão negra no novo mundo. Se a escravidão no mundo antigo não tinha nenhuma conotação racial, o mesmo não se pode dizer em relação ao “novo mundo”. Podemos dizer que, no caso especial do Brasil, mas que pode ser generalizado à todos países escravistas do continente americano, a colonização estava ligada às necessidades de acumulação primitiva de capital dos países europeus e que foi graças a ela que se formou um modo de produção escravista colonial-exportador, o que pressupõe a monocultura, a grande lavoura e o trabalho escravo[3].
A acumulação primitiva de capital produziu o modo de produção escravista colonial e o tráfico negreiro. A polêmica sobre os motivos da adoção dos trabalho escravo dos negros africanos continua viva, mas podemos concordar com a tese de que o tipo de produção implantada nos países escravistas exigia uma grande quantidade de força de trabalho não encontrada nem no local de produção nem na Europa ocidental e daí a necessidade de buscá-la na África. Segundo E. Willians:
“Com a população limitada da Europa no século XVI, os trabalhadores livres necessários para cultivar cana-de-açúcar, tabaco e algodão no novo mundo, não podiam ser fornecidos em quantidades adequadas para permitir a produção em grande escala. A escravidão foi necessária por causa disso e para conseguir escravos os europeus recorreram primeiro aos aborígenes e depois à Africa” (Willians, 1975, p. 10).
Portanto, é com o desenvolvimento das sociedades européias no período de transição ao capitalismo e a sua expansão comercial e colonial que se cria uma nova situação histórica que altera o caráter das relações raciais criando e consolidando o racismo. É a adoção do trabalho escravo dos negros e o tráfico negreiro que torna necessário uma ideologia que justifique essa prática social de discriminação racial. Os dominadores europeus não só sentiam necessidade de justificar para si mesmos as condições sub-humanas e a exploração sistemática efetuada por eles sobre os escravos negros como também procuravam, sem muito sucesso, inculcar isto nos escravos para facilitar sua dominação.
A ideologia da superioridade racial atravessou duas fases:
“As primeiras tentativas para racionalizar o domínio europeu baseavam-se em sanções sobrenaturais. Como os europeus eram cristãos e a maioria dos povos dominados não o era, parecia natural que o Deus todo-poderoso dos cristãos recompensasse seu próprio povo. Os proprietários de escravos negros podiam mesmo justificar a prática da escravatura por uma passagem do antigo testamento, na qual os filhos de Ham era condenados a ser ‘cortadores de lenha e tiradores de água’. Essas sanções sobrenaturais, porém, cedo começaram a perder sua força e os brancos procuraram racionalizações naturalistas. A teoria da evolução e da sobrevivência dos mais aptos era o instrumento que precisavam”(Linton, 1962, p. 64).
O darwinismo surge como o mais eficiente fundamento da ideologia racista. O seu evolucionismo com base na “luta pela vida, “sobrevivência dos mais aptos” e na “herança dos caracteres adquiridos” servia para justificar a escravidão negra no Novo Mundo. Geralmente se aceita a diferenciação entre o darwinismo original – utilizado apenas na esfera da biologia – e o darwinismo social – que é a aplicação da “teoria” biológica da seleção natural à sociedade. A razão dessa diferenciação se encontra, segundo seus defensores, no próprio Darwin, que aplicaria suas teses apenas ao mundo dos seres vivos, “biológico” e não ao mundo social, humano. Isto, entretanto, não é verdade. Se isto não ficou claro em A Origem das Espécies, em A Descendência do Homem ficou evidente, pois neste livro ele aplicava suas teorias às sociedade humanas, inclusive utilizando-se das teses malthusianas. O próprio Darwin, como ficou demonstrado em seu diário de bordo publicado sob o título Viagem de um Naturalista ao Redor do Beagle (Darwin, 1979; Darwin, 1974) Darwin, 1981), assumia posições claramente racistas[4]. Entretanto, Darwin apenas foi um dos ideólogos que procuraram, intencionalmente ou não, justificar a nova situação social. Posteriormente, surgiram muitos outros que, baseando-se nele ou não, buscaram fundamentar “cientificamente” a ideologia racista, tais como Gobineau, Lapouge, etc.
Mas se a origem histórica do racismo não é motivo de muita polêmica, o mesmo não ocorre a respeito do que torna possível a reprodução da ideologia racista em nossa época. Existem aqueles que dizem que a ideologia racista sobrevive devido à “herança cultural” enquanto outros sustentam que ela permanece devido à “dominação branca”. Consideramos que para saber por qual motivo a ideologia racista se reproduz nas sociedades contemporâneas é necessário, inicialmente, compreender seu processo de produção e reprodução. Toda ideologia possui uma base real que ela apresenta de forma invertida (Marx & Engels, 1991). Portanto, só pode existir uma ideologia racista existindo uma base real que lhe dê sustentação. A base real da ideologia racista só pode ser o racismo, tal como o definimos anteriormente. O racismo cria a ideologia racista e esta justifica-o e incentiva sua reprodução.
Entretanto, o racismo da época escravista é diferente do racismo da época contemporânea. Explicar esta diferença é o primeiro passo para compreender a permanência da ideologia racista nos dias de hoje. Para compreendermos a situação do negro nas sociedades capitalistas contemporâneas é preciso ver que em todas as sociedades escravistas coloniais a abolição da escravidão significou apenas o fim do cativeiro e do trabalho forçado, ou seja, mudou-se apenas o seu status de escravo para homem livre. Mas qual passou a ser a situação social desse “homem livre”? Quais são as possibilidades da população negra de se reproduzir em igualdade de condições com as outras camadas da população?
Em todas as sociedades em que houve o fim do trabalho escravo (como, por exemplo, o Brasil e os Estados Unidos) a integração do negro nas sociedades pós-escravistas se deu da mesma forma: em uma situação subalterna e de marginalização social. As sociedades escravistas coloniais apresentavam o escravo negro como sendo a “base” da “pirâmide social” em nível de vida. As condições precárias de vida dos escravos negros, a principal classe explorada do modo de produção escravista colonial, quase não era compartilhada por outras camadas sociais. As sociedades pós-escravistas alteram a forma da divisão de classes mas a conserva[5], ou seja, surgem novas relações de classes mas continua existindo classes sociais e aqueles que pertenciam às classes exploradas no modo de produção anterior tendem a pertencer às classes exploradas do novo modo de produção.
A divisão da sociedade em classes no escravismo colonial era, ao mesmo tempo, uma divisão racial, já que os escravos eram negros e o senhores de escravos eram brancos. Nas sociedades pós-escravistas, os negros deixam de pertencer a uma única classe e se dividem entre as diversas classes que compõem a sociedade capitalista. Entretanto, a maioria esmagadora dos negros passam a compor as classes exploradas da sociedade capitalista, tais como o proletariado, o campesinato, o lumpemproletariado, etc., que também possuem condições precárias de vida e, assim sendo, os negros continuam, em matéria de nível de vida, formando, juntamente com os componentes brancos das classes exploradas, a “base da pirâmide social”.
Por conseguinte, as condições de vida da população negra criava a possibilidade de interpretar tal situação como “natural”, ou seja, como produto não de uma determinada situação social mas sim de uma condição natural: a raça. John Lewis nos chamou a atenção sobre esse mesmo assunto:
“É preciso também que se compreenda que quando as pessoas são destituídas de seus direitos, consideradas inferiores, forçadas a viver em más condições e tratadas como animais, elas desenvolverão muitas qualidades más. Então, aqueles que as exploram apontarão as conseqüências do tratamento que lhes dão como razão para mantê-las numa posição de degradação e inferioridade. Privamos as pessoas de instrução e depois queixamo-nos de que são analfabetas. Fazemos delas o que são, depois indagamos como se pode esperar que as recebamos em nossas casa em igualdade de condições” (Lewis, 1969, p. 116).
O modo de produção capitalista condiciona o conjunto das relações sociais e instaura uma verdadeira sociabilidade capitalista. Esta tem como uma de suas principais características a competição social, expressa na busca de status, ascensão social, etc. Isto tudo produz uma forma também específica de mentalidade: a mentalidade burguesa. Esta reproduz, no plano das idéias, a sociabilidade capitalista[6]. Este fato acaba provocando uma rivalidade interna nas classes exploradas.
Segundo Baran e Sweezy:
“O resultado claro disso tudo é que cada grupo de status tem a necessidade psicológica enraizada de compensar os sentimentos de inferioridade e inveja para com aqueles que estão acima, na escala social, pelos sentimentos de superioridade e desprezo em relação aqueles que se acham abaixo. Sucede, pois, que um grupo especial de párias no fundo da estratificação social, funciona como uma espécie de pára-raios par as frustrações e hostilidade de todos os grupos em posição mais elevada. Pode-se dizer que a própria existência do grupo de párias é uma espécie de harmonizador e estabilizador da estrutura social – tanto mais que estes apenas desempenham seu papel passiva e resignadamente. Tal sociedade torna-se com o tempo tão completamente saturada com o preconceito racial que este mergulha no nível do subconsciente, convertendo-se numa parte da ‘natureza humana’ de seus membros” (Baran & Sweezy, 1978, p. 264-265).
As sociedades capitalistas contemporâneas são formadas por classes sociais antagônicas e vivem em uma permanente guerra civil oculta. Por conseguinte, é necessário reconhecer que a ideologia racista também se fundamenta nas contradições do capitalismo, ou seja, na luta de classes. A estratégia do “dividir para conquistar” é adotada eficazmente pela classe dominante desde que Maquiavel escreveu O Príncipe. Isto assume um caráter mais visível no capitalismo contemporâneo que se caracteriza pelo incentivo à competição em todas as esferas da vida social. Vejamos um exemplo. Os trabalhadores são obrigados, devido a existência do exército industrial de reserva, a competir pelo emprego. Isto cria conflitos internos na classe trabalhadora e a preferência dos empregadores pelo trabalhador branco provoca conflitos raciais que ofuscam as verdadeiras determinações do desemprego e dos baixos salários – que é a dinâmica do modo de produção capitalista – e assim amortece a luta de classes.
A sociedade capitalista vive constantes crises cíclicas. Nós sabemos que toda crise apresenta a necessidade de sua solução. A classe revolucionária e a classe dominante precisam fundamentar teórica ou ideologicamente a ação política necessária para se concretizar a “solução” proposta. A solução da classe revolucionária é a revolução social e a da classe dominante é a contra-revolução. Ambas passam a combater um inimigo. A diferença está em que o inimigo apontado pela classe revolucionária é real e o apontado pela classe dominante é imaginário. Toda crise traz insegurança e por isso as classes exploradas buscam descobrir os “responsáveis” ou as determinações que a provoca. A classe dominante busca ocultar o seu papel no processo – que é o de conservar as relações sociais em crise e que geram a crise – e inventa o inimigo imaginário, que é responsabilizado pela crise. Assim, o inimigo real inventa um inimigo imaginário[7].
A invenção de um inimigo imaginário é uma forma de deslocar o conflito de classe para um conflito nacional, racial, religioso, etc. O inimigo real (a classe dominante) cria sua ausência e, ao mesmo tempo, a presença de um inimigo imaginário (por exemplo: os judeus na Alemanha nazista, as “bruxas” na inquisição, os comunistas no golpe de estado de 64 no Brasil, os “agentes do imperialismo”, "contra-revolucionários” ou “inimigos do povo” no capitalismo de estado da URSS, Leste Europeu, China, etc.). A invenção de um inimigo imaginário estrangeiro tem como objetivo criar ou fortalecer a identidade nacional, mas somente porque ela está dilacerada internamente pelos seus conflitos de classes, ou seja, busca-se transformar a contradição interna em externa e com isso “aboli-la” (tal como no caso argentino da guerra das Malvinas).
A concentração do mal em um inimigo imaginário reconstrói a identidade coletiva perdida. Assim, um partido burguês pode apresentar como “inimigo do povo” o atual governo no burguês e com isso ofuscar a visão do verdadeiro inimigo e aparecer como a alternativa que restauraria o equilíbrio social. Contudo, não devemos pensar que a classe dominante faça isso de forma planejada e consciente, embora muitas vezes isto ocorra, tal como no exemplo de Hitler. Uma afirmação dele deixa isto claro:
“Em geral, a arte de todos os verdadeiros chefes do povo de todos os tempos consiste em concentrar a atenção do povo em um único adversário, em não deixar dispersar-se... A arte de sugerir ao povo que os inimigos mais diferentes pertençam à mesma categoria é de um grande chefe... É preciso sempre colocar na mesma pilha uma pluralidade de adversários os mais variados” (apud. Agacinski, 1991, p.136-137).
A partir do momento que a ideologia burguesa triunfa e as classes exploradas aceitam a luta contra o inimigo imaginário personificado e este é destruído, vê-se que isto não significava a destruição da verdadeira fonte da contradição e da crise. Daí surge a necessidade de criar novos “inimigos imaginários” para serem objeto de ataque quando as contradições se acirrarem novamente. É isto que possibilita a produção de “inimigos imaginários potenciais”. Quando se toma necessário para a reprodução capitalista, ou seja, quando a crise se instala, busca-se sua destruição para evitar o acirramento da luta de classes e possibilidade de revolução social.
Da perspectiva da classe revolucionária é um equivoco buscar a destruição de um inimigo (real ou imaginário) personificado em indivíduos reais (burgueses, negros, brancos, judeus, católicos, liberais, fascistas, etc.) ou em um indivíduo particular (o presidente da república, o líder do partido fascista, o chefe da igreja conservadora, etc.), pois isto significa destruir a imagem e não as relações sociais que engendram as classes sociais antagônicas, a exploração, a alienação, etc., e, portanto, o inimigo real que busca conservar estas relações[8]. A destruição de pessoas que sustentam determinadas relações sociais não significa a destruição destas, pois elas poderão se reproduzir e, assim, produzir novas pessoas para sustentá-las. Além disso, isto apenas reforçaria a ideologia dominante, porque o inimigo real é uma classe social que deve sua existência à determinadas relações de produção e a abolição destas (e, conseqüentemente, da classe dominante) não pode ser realizada com o extermínio de indivíduos reais.
Os “inimigos imaginários potenciais” são aqueles grupos diferenciados já existentes na sociedade. Estes podem ser os negros, os estrangeiros, os judeus, os comunistas, etc. Portanto, a luta de classes no capitalismo engendra, através da ação da burguesia, a reprodução do racismo por quatro motivos fundamentais; a) a classe dominante busca, em sua luta contra o proletariado, dividir a classe trabalhadora jogando uma parte dela contra a outra, utilizando-se de suas diferenciações e, entre estas, a diferenciação racial; b) para ofuscar a visão dos conflitos de classes ela busca desviar a atenção para outros tipos de conflitos, tal como o conflito racial; c) para evitar sua identificação com as relações sociais opressoras e em crise, ela busca responsabilizar certas camadas sociais por esta situação, sendo a população negra uma dessas camadas; d) quando as contradições se acirram e ameaçam transformar a guerra civil oculta em guerra civil aberta torna-se necessário, para a classe dominante, concentrar “o mal” em uma camada social especifica e a população negra (assim, como os judeus. os “comunistas”, os homossexuais, etc.) é uma reserva potencial que pode ser utilizada. Além disso, o racismo pode ser reforçado por motivos conjunturais:
“Em 1935, a maior parte dos americanos caracterizava os japoneses como ‘progressistas’, ‘inteligentes’, e ‘industriosos’. Sete anos mais tarde, esses adjetivos cederam lugar a ‘astutos’ e ‘traiçoeiros’. Quando se precisava de trabalhadores chineses na Califórnia, eles eram ‘frugais’, ‘sóbrios’ e ‘respeitadores da lei’, ao passo que, quando se defendia a lei da exclusão, passaram a ser ‘imundos’, ‘repugnantes’, ‘inassimiláveis’, ‘dominados pelo espírito de clã’ e ‘perigosos’ ” (Kluckhon, 1972, p. 132.).
Assim, dependendo da conjuntura, se reforça ou enfraquece os preconceitos e o racismo. A necessidade de força de trabalho pode beneficiar, momentaneamente, imigrantes, estrangeiros, etc., e o seu excesso pode provocar o efeito contrário.
Portanto, estas são as determinações do racismo e da ideologia racista. Mas elas são reforçadas pela “herança cultural” dos tempos da escravidão. Acontece que a tese de que a ideologia racista se reproduz exclusivamente devido à “herança cultural” é simplesmente ideológica. A herança cultural só se sustenta devido às condições reais de vida da população negra e aos conflitos sociais acima citados, pois assim são produzidas “comprovações empíricas” que lhe fornece uma certa credibilidade na esfera das representações cotidianas. Caso contrário, a luta secular dos negros seria suficiente para aboli-la. A herança cultural, na falta de uma “base real” que lhe dê sustentação, desapareceria com o passar do tempo. A tese da “dominação branca”, por sua vez, é apenas uma ideologia racista invertida. Desconhecer as condições históricas concretas que produziram o racismo e possibilitam sua reprodução apresentando-o como resultado da “dominação branca” é dar nova fundamentação ideológica ao racismo. Nesse caso, passa-se a colocar a questão apenas em termos de luta de raças. Tal tese apresenta as seguintes dificuldades: a) o que explica, se o problema é unicamente racial, a dominação branca sobre os negros a não ser sua “superioridade racial”? b) a luta dos negros passa a ser exclusivamente contra os brancos e a solução só seria possível com o aniquilamento dos últimos ou então com a substituição da “dominação branca” pela “dominação negra”, o que significa apenas a mudança da “raça dominante” e não a abolição do racismo; c) ao se colocar os brancos como o inimigo a ser combatido, troca-se inimigo real – a classe dominante que busca conservar as relações de produção capitalistas e as condições de produção e reprodução do racismo – por um inimigo imaginário, caindo numa eterna luta inútil, pois não vai à “raiz’ do problema e por isso ele continua sem solução; e d) reforça-se, assim, a ideologia racista, já que os brancos se sentirão ofendidos por serem tomados como “inimigos” e isto pode gerar antipatias e, conseqüentemente, perdas de aliados potenciais. Com isso se presta um bom serviço a estratégia burguesa do “dividir para conquistar”.
É claro que o racismo do oprimido tem fundamentos diferentes do racismo do opressor. O racismo do oprimido é uma resposta equivocada que alguns negros dão à sua situação de opressão e à necessidade de superá-la. É uma posição política equivocada e que não leva à nenhum resultado positivo, embora seja desculpável para aqueles que compreendem o fenômeno. Acontece que são poucos os que compreendem este fenômeno e sua existência é um retrocesso para o movimento de libertação dos negros.
A base real da ideologia racista, como já dissemos, é o racismo praticado nas sociedades capitalistas contemporâneas. A afirmação de um antropólogo sobre esta questão é extremamente correta: “a discriminação ‘racial’ é, sem nenhuma dúvida, apenas parte do problema mais geral da discriminação social” (Kluckhon, 1972, p. 134). A condição social serve de “naturalização” da “inferioridade” racial. Assim a “inferioridade” social possibilita, juntamente com outros fatores, a ideologia da inferioridade racial.
Na ideologia, esta relação aparece invertida: é a “inferioridade” racial que causa a “inferioridade” social. No entanto, não podemos a partir disto chegar a conclusão simplista de que não existe “discriminação racial”, pois a discriminação social se utiliza das diferenças físicas para se realizar de forma especifica e direcionada a uma parte da população: a negra.
A superação do racismo só pode ser realizada com a concomitante superação do modo de produção capitalista e a implantação do modo de produção comunista. Portanto, o movimento negro deve articular sua luta especifica – anti-racista – com a luta geral das classes exploradas – anti-capitalista. Existe uma unidade entre a luta anti-racista e a luta anti-capitalista. Esta unidade se encontra no fato de ser impossível superar o racismo sem a superação do capitalismo.
Entretanto, a abolição do capitalismo não gera, automaticamente, a abolição do racismo. A superação do racismo só ocorrerá num quadro de transformações sociais que rompam com as relações raciais desiguais produzidas pelo modo de produção capitalista. Acontece que a superação do capitalismo ocorre num processo complexo e contraditório que não elimina imediata e automaticamente as formas capitalistas de regularização das relações sociais, tal como a ideologia racista. E esta, uma vez existindo e se reproduzindo durante o período revolucionário, poderá incentivar a permanência de relações raciais desiguais e, assim, ameaçar a própria construção de uma sociedade autogerida, devido aos conflitos sociais provocados por esta situação. Por isso, torna-se necessário articular a estratégia específica do movimento negro com a estratégia global do movimento operário.
A estratégia específica do movimento negro é aquela que marca a luta desse movimento contra o racismo. Isto inclui desde lutas imediatas como a denúncia do racismo, a luta por uma legislação anti-racista, a crítica das ideologias racistas, a busca de mudanças nas relações raciais nos movimentos sociais, etc., até à outras mais a longo prazo tal como a constituição de relações raciais igualitárias no conjunto da sociedade, e a instauração da autogestão social, sua condição de possibilidade. É principalmente, mas não unicamente, uma luta cultural que se inicia na atual sociedade e só termina com o fim completo do racismo na sociedade comunista já constituída.
Para que a construção de uma nova sociedade, baseada em relações raciais igualitárias, se concretize, é necessário romper com a reprodução do racismo no movimento operário e demais movimentos sociais. Sabemos que mesmo os militantes de organizações “ditas” revolucionárias e dos mais variados movimentos sociais (estudantil, urbanos, etc.) introjetam a mentalidade burguesa e aspectos da ideologia dominante e as reproduzem em sua prática social. Entre estes aspectos da ideologia burguesa que tais militantes reproduzem estão o racismo, o sexismo, etc. Isto se toma possível por causa da pressão das “idéias dominantes” e da sociabilidade capitalista. O movimento negro deve, então, buscar a realização de uma revolução cultural anti-racista desde já, no interior dos movimentos sociais, e deve permanecer realizando este trabalho cultural até mesmo no período de consolidação da sociedade autogerida para combater a “herança cultural” e, assim, evitar retrocesso, já que outros obstáculos estarão atuando simultaneamente e em conjunto podem dificultar a emancipação humana.
Podemos dizer, para concluir, que a razão de ser do movimento negro é a luta contra o racismo e, conseqüentemente, contra o capitalismo. Ele não deve se “anular” diante do movimento operário mas sim se articular com ele buscando a constituição de uma sociedade sem classes e com relação raciais igualitárias.


 Referências Bibliográficas


Agacinski, Silviane. O Poder do Mito. Filosofia Política. Nº 6, Porto Alegre, L&PM, 1991.
Banton, Michael. A Idéia de Raça. Lisboa, Edições 70, 1979.
Baran, Paul & Sweezy, Paul. Capitalismo Monopolista. 3a edicao, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
Camilo Torres, João Camilo. Estratificação Social no Brasil. São Paulo, Difel, 1965.
Darwin, Charles. A Origem das Espécies. São Paulo, Hemus; 1979.
Darwin, Charles. A Origem do Homem e a Seleção Sexual. São Paulo, Hemus, 1974.
Darwin, Charles. Viagem de Um Naturalista ao Redor do Beagle. São Paulo, Abril Cultural, 1981.
Furtado, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo, Nacional.
Hirst, Paul. Evolução Social e Categorias Sociológicas. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.
Holanda, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 21a edicao, Rio de Janeiro, José Olimpio, 1990.
Kluckhon, Clide. Antropologia: Um Espelho para o Homem. Belo Horizonte, Itatiaia, 1972.
Lewis, John. O Homem e a Evolução. Rio de Janeiro, Zahar, 1968.
Linton, Ralph. O Homem: Uma Introdução à Antropologia. 4a edição, São Paulo, Martins Fontes, 1962.
Luxemburgo, Rosa. O Que Quer a Liga Spartacus? In: Luxemburgo, Rosa. A Revolução Russa. Petrópolis, Vozes, 1991, p. 103).
Marco, Nélio. O Que é Darwinismo. São Paulo, Brasiliense, 1987.
Marx, Karl & Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). 8a edicao, São Paulo, Hucitec, 1991.
Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 21a edição, São Paulo, Brasiliense, 1989
Viana, Nildo. Darwinismo e Ideologia. Pós- Revista Brasiliense de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Ano V, 2001.
Viana, Nildo. Universo Psíquico e Reprodução do Capital. In: Quinet, Antonio e outros. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
Willians, Eric. Capitalismo e Escravidão. Rio de Janeiro, Americana, 1975.
Publicado em VIANA, Nildo. Capitalismo e Racismo. Revista Ruptura. Goiânia, Ano 2, No 3, p. 07-17, Dezembro de 1994.
Republicado em: SANTOS, Cleito Pereira dos e VIANA, Nildo (orgs.). Capitalismo e Questão Racial. Rio de Janeiro: Corifeu, 2009.



[1] Faz-se necessário ressaltar que focalizaremos, neste texto, o conflito racial entre negros e brancos, embora haja elementos teóricos e referências generalizáveis a todos os conflitos raciais.
[2] Segundo Sérgio Buarque de Holanda, os escravos negros em Portugal eram vítimas do racismo, mas este era muito mais brando do que o que surgiu posteriormente e persiste até hoje. Além disso, ele não era acompanhado por uma ideologia que o justificasse (cf. Holanda, 1990).
[3] Cf. Prado Júnior  (1989); Furtado (1979).
[4] Para uma crítica ao darwinismo, cf.: Viana (2001); Marco (1987); Hirst (1977); Lewis (1969); Banton ()
[5] Para o caso do Brasil, cf. Camilo Torres (1965); para o caso dos EUA, cf. Baran & Sweezy (1978).
[6] Sobre mentalidade burguesa e sociabilidade capitalista, cf. Viana (2002).
[7] Alguns apontamenos interessantes sobre a criação do inimigo imaginário, apesar das deficiências da análise que “desconhece” a luta de classes como determinação fundamental do fenômeno, são apresentadas por: Agacinski (1991).
[8] “A revolução proletária não precisa do terror para realizar seus fins, ela odeia e abomina o assassinato. Ela não precisa desses meios de luta porque não combate indivíduos, mas instituições, porque não entra na arena cheia de ilusões ingênuas que, perdidas, levariam a uma vingança sangrenta” (Luxemburgo, 1991, p. 103).

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Método Dialético e a Questão da Mulher



Método Dialético e a Questão da Mulher
Nildo Viana

Publicado originalmente em: VIANA, Nildo (org.). A Questão da Mulher. Trabalho, Opressão e Violência. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2006.

Na história do pensamento ocidental, principalmente com a ascensão e consolidação da sociedade moderna, a questão da mulher foi abordada sob as mais variadas perspectivas. O presente artigo busca resgatar o tratamento sobre a questão da mulher a partir da perspectiva dialética. As razões disto serão explicitadas mais adiante.
Antes de entrarmos na questão da relação entre método dialético e questão da mulher, devemos esclarecer alguns problemas preliminares. A primeira questão que se poderia colocar (seria melhor dizer “objeção”) a este artigo é a seguinte: qual é a contribuição que alguém do sexo masculino pode dar para a compreensão de um problema do sexo feminino? Em primeiro lugar, o problema da mulher não é um problema só da mulher, pois ele também é um problema do homem. A questão da mulher nos remete à relação mulheres-homens e, portanto, ambos os sexos estão envolvidos nesta relação e, se tal relação é problemática, este é um problema de ambos.
Ocorre, porém, que esta relação é marcada pela opressão de um sexo sobre o outro, ou, mais exatamente, pela opressão da mulher pelo homem. Daí se pode duvidar de que um membro do grupo opressor pode colaborar com a luta ou com a realização dos objetivos do grupo oprimido. Este é um questionamento importante e que deve ser feito. Mas nunca é demais lembrar que este tipo de questionamento teve como condição de possibilidade o surgimento do pensamento marxista, cujo primeiro representante foi Karl Marx, um homem, e não uma mulher. Obviamente, Marx afirmou que numa relação social marcada pela dominação, o dominante possui uma perspectiva limitada e que cabe ao dominado desenvolver uma consciência correta da realidade. Existem, para os membros da classe dominante, obstáculos ao desenvolvimento de uma consciência correta da realidade. Os representantes ideológicos da burguesia possuem “limites intransponíveis” ao desenvolvimento de sua consciência. Para se desenvolver uma consciência correta da realidade é necessário, portanto, partir da perspectiva do proletariado (Marx, 1988; Viana, 1998).
Foi esta concepção que permitiu se colocar nos dias de hoje o problema da consciência e sua relação com os grupos sociais opressores e oprimidos e, mais particularmente, na concepção feminista recente segundo a qual é o ponto de vista da mulher que permite desenvolver a consciência da opressão feminina[1]. Sem dúvida, a perspectiva da mulher neste caso deve ser considerada fundamental mas isto quer dizer que um homem não pode contribuir com o desenvolvimento deste processo?
Esta é uma questão complexa. O fato do pensamento marxista ter criado as condições de possibilidade desta visão feminista já é um ponto contrário a esta conclusão. Mas o aprofundamento da teoria de Marx poderá trazer novos elementos que contribuirão com a busca de resposta a esta questão. Segundo Marx, existe a perspectiva burguesa e a perspectiva do proletariado e é somente partindo-se desta última perspectiva é que se pode desenvolver uma consciência correta da realidade. Ocorre, porém, que partir da perspectiva do proletariado não significa partir do ponto de vista de um indivíduo proletário e sim da classe proletária.
O que significa isto? Significa que se deve partir do ponto de vista de classe do proletariado e não dos indivíduos concretos que compõem a classe. Mas como ter acesso a este ponto de vista? Duas respostas foram dadas a esta questão. A resposta leninista é a de que são os intelectuais revolucionários provenientes da pequena burguesia que – por terem acesso à ciência – desenvolvem este ponto de vista e depois o introjetam no proletariado. Outra resposta (Rosa Luxemburgo, Korsch, Pannekoek, Mattick, etc.) retoma a idéia de Marx segundo a qual é na luta de classes que o proletariado desenvolve sua consciência revolucionária, independentemente dos intelectuais[2].
A nosso ver, esta segunda posição é a mais condizente com a concepção de Marx e, independentemente disto, está de acordo com a realidade. Portanto, o proletariado possui, inicialmente, uma consciência de classe contraditória que com o processo de luta de classes se torna consciência revolucionária. Mas o processo de luta de classes não ocorre como numa evolução unilinear, pois é marcada por avanços e recuos, por diferenças religiosas, nacionais, culturais, etc., e é por isso que alguns indivíduos podem desenvolver esta consciência antes que o conjunto da classe o faça. Sem dúvida, são os indivíduos pertencentes ao proletariado que possuem as condições favoráveis para desenvolver esta consciência, mas isto não significa que indivíduos de outras classes estão impossibilitados de desenvolvê-la, embora a possibilidade seja bem menor neste caso. Novamente o caso de Marx é exemplar: ele não era proletário e conseguiu desenvolver uma mentalidade correspondente aos interesses de classe do proletariado. Isto pode ocorrer devido um conjunto de fatores relacionados ao processo histórico de vida de um indivíduo, que o joga de um ou outro lado da luta de classes.
Podemos dizer que o mesmo ocorre com a questão da opressão da mulher. Esta opressão é mais visível pelas próprias mulheres mas isto não impede que alguns homens possam ter uma visão desta opressão. Isto dependerá, também, do processo histórico de vida deste indivíduo do sexo masculino. De qualquer forma, resta ainda estabelecer qual ponto de vista – o do proletariado ou o da mulher – é mais adequado para se compreender a sociedade e suas contradições (de classe, de sexo, de raça, de nação, etc.).
A resposta a esta última questão já entra diretamente no tema do método dialético em sua relação com a questão da mulher. Mas consideramos que as colocações anteriores já permitem concluir que é possível a um indivíduo do sexo masculino contribuir com o desenvolvimento do pensamento feminista. Aliás, colocar esta questão, pouco discutida nos meios feministas, já é uma contribuição.
Mas, antes de entrar na questão central do presente artigo, é preciso explicitar como uma mulher desenvolve sua “consciência de sexo”[3]. O proletariado desenvolve sua consciência de classe na luta de classes e, poder-se-ia dizer, por analogia, que a mulher desenvolve sua consciência feminina na “luta de sexos”. Tal conclusão seria enganosa, por vários motivos. Em primeiro lugar, não existe algo como “a mulher”, ou seja, uma unidade de posição social que unificaria o conjunto de mulheres. As mulheres estão distribuídas em classes sociais, culturas, profissões, regiões, etc., diferentes e, embora tenham algo em comum, que explicitaremos mais adiante, a unificação das mulheres não se dá graças a um confronto social com os homens, pois esta possibilidade nem sequer existe. Sem dúvida, existe uma condição feminina e esta é a base para a unificação das mulheres mas ela não é equivalente à condição de classe e, por conseguinte, sua unificação ocorre por outros meios.
Em segundo lugar, falar em “guerra dos sexos” significa reduzir a questão da opressão feminina a uma oposição entre mulher e homem, desligando as relações homem-mulher[4] do conjunto das demais relações sociais, o que poderia provocar a idéia maniqueísta de que a opressão feminina tem como causa a maldade inata do sexo masculino.
O desenvolvimento de uma consciência feminina e a unificação das mulheres ocorre tendo uma base diferente da que ocorre no caso do proletariado. O ponto de partida, neste caso, não é a condição de classe e sim a condição feminina. Existe uma diferença substancial aí. A condição de classe possui uma característica específica: existe, de acordo com a teoria marxista[5], uma relação necessária entre as classes sociais. Só existe capital (burguesia) havendo trabalho assalariado (proletariado) e vice-versa. Mas esta relação necessária é marcada pela dominação e exploração e, por conseguinte, pela luta. A base da condição feminina não é a mesma, pois, em primeiro lugar, ela se altera historicamente, pelo menos em alguns de seus aspectos.
Mas qual é a base da condição feminina? O que todas as mulheres têm em comum? A resposta mais usual e comum é: suas características físicas. Sem dúvida, todas as mulheres possuem um organismo semelhante. Hoje em dia se busca desconsiderar tal fato. Uma espécie de “culturalismo” e “sociologismo” busca apagar a importância das diferenças físicas. Isto, na verdade, apenas reflete a influência que o pensamento ocidental (de orientação nitidamente sexista) exerce sobre o pensamento feminista, pois a pretensão de “dominar a natureza”, eleger a razão como o caminho para o desenvolvimento humano e separar corpo e alma através da instauração da primazia da alma sobre o corpo, são características típicas do pensamento ocidental moderno, que remonta, em alguns de seus aspectos, ao cristianismo e à filosofia grega. O movimento ecológico denunciou esta separação arbitrária entre o ser humano e a natureza, mas mesmo assim tal ideologia continua sendo dominante.
Entretanto, o ser humano mantém uma unidade com a natureza, tanto externa quanto interna. Por mais que o ser humano se julgue acima da natureza, ele não pode escapar de suas necessidades naturais (comer, beber, amar, dormir, etc.), o que significa que ele deve admitir suas determinações naturais. Isto vale tanto para os homens quanto para as mulheres. Portanto, existem semelhanças físicas fundamentais entre mulheres e homens, pois eles são membros de uma mesma espécie, a espécie humana. Mas dentro desta semelhança reside a diferença. Trata-se das diferenças sexuais, que, contudo possuem efeitos que ultrapassam o âmbito restrito das relações sexuais e atingem o mundo das relações sociais. As diferenças sexuais atingem direta e imediatamente as relações sexuais entre mulheres e homens e, de uma forma menos direta, as relações sociais entre os sexos.
No primeiro caso, temos a questão da sexualidade e, no segundo caso, o conjunto das relações sociais entre os sexos, tais como as relações familiares, políticas, culturais, etc. Sem dúvida, existe uma influência recíproca entre estes dois tipos de relações. Ocorre, porém, que a corporeidade exerce uma influência sobre ambas. Esta influência sobre as relações sexuais é por demais evidente, mas como a corporeidade feminina influencia suas relações sociais? É aqui que reside a polêmica. A nosso ver, ao contrário da concepção mais comum existente no pensamento feminista, é necessário reconhecer que aspectos da corporeidade feminina e de sua evolução vital exercem uma influência nas suas relações sociais, tais como sua força física, a gravidez, a menstruação, a menopausa, etc. Isto ocorre, tomando como exemplo a gravidez, pelo fato de que a mulher, não pode executar trabalhos pesados quando está grávida e isso influencia sua relação com o mundo da produção dos bens necessários para a reprodução da sociedade. Numa sociedade simples, isto provoca a divisão sexual do trabalho e, numa sociedade capitalista, pode gerar uma legislação específica para a mulher, tal como a licença maternidade. Além disso, tais questões assumem importância na vida cotidiana das mulheres, o que significa que derivado de sua corporeidade surgem problemas específicos da mulher. Mas o fundamental é que isto significa algo em comum entre as mulheres, gerando uma identificação coletiva, e graças a isto os homens produzem uma visão (e ação) tendo por base esta identificação, que se vê reforçada. Entretanto, estas características físicas comuns podem ser vistas e concebidas de forma diferente. Sem dúvida, esta visão é “constituída” socialmente mas possui uma base real, que é uma característica realmente existente. Se não existissem tais características, não existiria visão sobre elas. Portanto, o que é constituído socialmente é uma determinada visão das características femininas e não elas mesmas, tal como alguns pretendem.
O que isto tudo quer dizer? Em primeiro lugar, isto quer dizer que entre homens e mulheres existem dois tipos de relações: as sexuais e as sociais. As relações sexuais são as relações instauradas entre um indivíduo do sexo feminino e um indivíduo do sexo masculino no que se refere ao relacionamento exclusivamente sexual, o que não exclui, evidentemente, a troca de parceiros sexuais e a convivência de um relacionamento “fixo” (tal como no caso do casamento monogâmico) com relações não-fixas (“extraconjugais” ou “adultério”) ou, ainda, relações não-individuais, tal como a poligamia. Estas relações sexuais entre os sexos exercem uma influência sobre o conjunto das demais relações sociais[6]. Sem dúvida, existe uma influência recíproca entre ambas. As relações sexuais criam, em grande parte dos casos, uma identidade de interesses sociais e isto se reflete nas demais relações sociais, bem como este tipo de relacionamento íntimo, geralmente proporciona uma influência maior de um indivíduo sobre o outro. É devido a este fato que pode surgir as teses do “poder de bastidores” da mulher, que, sem participar diretamente das disputas políticas, acaba influenciando os rumos da vida política. Entretanto, as relações sociais entre os sexos exercem uma influência bem mais forte sobre suas relações sexuais. O padrão dominante de beleza, as formas do erotismo, o caráter individual, a moral sexual, etc., são determinadas pelo conjunto das relações sociais e isto condiciona as relações sexuais.
Mas o que é fundamental ressaltar aqui é o fato de que a corporeidade não é algo que pode ser descartado na análise sexual e no estudo da questão da mulher. É preciso reconhecer que existe uma unidade entre as mulheres e que esta unidade só pode se fundamentar na condição feminina. A condição feminina, por sua vez, tem como uma de suas principais características a corporeidade feminina.
Retomamos aqui, então, a questão da condição feminina. O que distingue as mulheres dos homens são as suas características físicas, mas não só isso, e isto tem repercussão, como vimos anteriormente, sobre o conjunto das relações sociais. A mulher, tal como o homem, é um ser sexual e, ao mesmo tempo, um ser social. A dimensão sexual da condição feminina já foi, em grandes linhas, aqui enfatizada e agora cabe enfatizar sua dimensão social e posteriormente devemos observar como estas duas dimensões se relacionam.
A mulher só pode existir no interior de uma sociedade. O mesmo ocorre com o homem. Ambos só conseguem sobreviver e realizar suas potencialidades no interior de uma associação com outros seres humanos. A linguagem, a consciência, o trabalho, a afetividade, etc., só podem se desenvolver no interior de uma associação. Entretanto, em cada tipo de sociedade existe um modo de produção, uma mentalidade, uma sociabilidade, etc., que se diferencia de outros tipos de sociedade. Isto é verdadeiro tanto no plano histórico quanto no plano espacial. No plano histórico, podemos dizer que a sociedade feudal é radicalmente diferente da sociedade capitalista, e no plano espacial, que as sociedades indígenas são radicalmente diferentes desta mesma sociedade. Portanto, a condição social das mulheres varia historicamente e por isso o aspecto social da condição feminina pode parecer uma sombra que se movimenta sempre que a realidade social se transforma. Neste sentido, não se poderia falar de condição feminina acima dos períodos históricos e dos contextos sociais.
Ocorre, porém, que junto com a mudança ocorre a permanência. A partir do surgimento das sociedades de classes a situação social da mulher (e isto inclui, obviamente, sua relação com o homem) sofreu diversas mudanças mas manteve um elemento comum: a opressão. É por que existe a opressão da mulher que se pode falar em questão da mulher. Mas é preciso definir o que é opressão, para não cairmos na eterna indefinição dos ideólogos que buscam encaixar todos os fenômenos num só rótulo sem fundamentar e explicar o sentido das palavras utilizadas. A opressão é uma relação social entre opressores e oprimidos, onde o opressor realiza a repressão do oprimido. Em outras palavras, a opressão é uma relação social de repressão, onde o oprimido se vê impossibilitado de efetivar um conjunto de atividades. Desta forma, aqui se encontra uma repressão que é ao mesmo tempo uma coerção: o oprimido ao se ver impossibilitado de efetivar determinadas atividades devido a repressão passa a ser coagido a realizar outras atividades. A opressão não ocorre, porém, sem nenhum motivo. A opressão existe para manter a dominação de classe. É por isto que a opressão das mulheres (e não só das mulheres, como também das crianças e de outros segmentos sociais) surge com as sociedades classistas.
Qual é o interesse da classe dominante em manter a opressão da mulher? A resposta a esta questão será fornecida mais adiante. Por enquanto nos limitaremos a reconhecer que a condição feminina tem como fundamento, nas sociedades de classes, as características físicas da mulher e a opressão. Desta forma, superamos a idéia de que a opressão da mulher é produto da “maldade inata” do homem ou de um maquiavelismo consciente e intencional deste. A opressão da mulher também atinge o homem e a repressão/coerção da mulher também provoca uma repressão/coerção do homem, embora, sem dúvida, bem mais confortável e que abrange um quantum menor de atividades, sem falar que estas atividades masculinas são muito mais determinantes da vida social e valoradas socialmente do que as atividades femininas. Por conseguinte, a opressão dos homens é bem menor do que a opressão das mulheres e, além disso, os homens usufruem de diversas vantagens da opressão feminina (embora isto possua uma variação dependendo da classe social em questão). Entretanto, a mera constatação deste fato não deve encerrar o assunto, pois não se pode dizer que é o homem que oprime a mulher (assim como não se pode dizer que é o adulto que oprime as crianças e os idosos) deixando de lado as demais relações sociais. Por conseguinte, é um equívoco tratar das relações mulher-homem num isolamento fantástico (onde se cria uma fantasiosa “guerra dos sexos”) e também tratar da opressão da mulher sem levar em conta sua especificidade (posição que gera uma compreensão limitada do fenômeno ao se esquecer que o homem é o meio pelo qual se manifesta concretamente esta opressão mas não sua razão de ser). A nosso ver, somente o método dialético pode dar uma solução satisfatória a esta questão.
Mas, antes de tratarmos da contribuição do método dialético à compreensão da questão da mulher, devemos encerrar nossas observações sobre a condição feminina e consciência coletiva das mulheres. O proletariado desenvolve sua consciência de classe na sua luta contra a burguesia mas as mulheres não podem desenvolver sua consciência feminina na luta contra os homens, pois a opressão feminina tem outra razão de ser e se manifesta de forma diferente. Considerar que são os homens os inimigos a serem combatidos significa se iludir com a aparência. A consciência feminina se desenvolve a partir da visão da opressão mas ela pode se estagnar se não conseguir superar a visão da aparência, que significa confundir o veículo imediato da opressão, o homem, com a própria opressão.
Aqui se coloca uma velha questão: a luta das mulheres deve se subordinar (e se “anular”) à luta operária, que combate a determinação fundamental (“causa”) da opressão feminina, e não sua manifestação imediata, ou a luta das mulheres deve ser autônoma e independente de qualquer outra luta social? A nosso ver, como colocaremos mais adiante, a luta das mulheres não pode ser autônoma e independente das demais lutas sociais, mas também não pode ser subordinada ou apagada diante da luta operária. Na verdade, deve haver uma articulação na busca da libertação da mulher com a busca da transformação social que lhe possibilita realizar plenamente. A plena libertação da mulher só pode ocorrer no bojo de uma ampla transformação social. Esta articulação significa unir reivindicações imediatas com reivindicações à longo prazo, reivindicações específicas com reivindicações globais. É bastante esclarecedor o fato de que as mulheres que pertencem às classes privilegiadas tendem a autonomizar a luta das mulheres e fazer reivindicações imediatistas e específicas enquanto que as mulheres pertencentes às classes exploradas tendem a articular suas reivindicações com as do movimento operário e outros setores oprimidos[7].
Desta forma, observamos que a questão da mulher é também uma questão do homem e que a determinação fundamental da opressão da mulher não é a maldade inata e nem o maquiavelismo do homem. A partir disto podemos concluir que a consciência da opressão da mulher pode surgir com mais facilidade nos indivíduos do sexo feminino mas isto não quer dizer que tal consciência esteja impossibilitada para os indivíduos do sexo masculino. Dependendo do processo histórico de vida destes indivíduos do sexo masculino, da sua situação de classe, da sua mentalidade, etc., alguns destes indivíduos podem contribuir com a compreensão da opressão feminina e com o processo de libertação da mulher.
Como o método dialético aborda a questão da mulher? O que  foi dito anteriormente já apresenta alguns elementos desta abordagem. A partir de agora iremos aprofundar esta abordagem. Como é amplamente reconhecido, o método dialético parte do ponto de vista da totalidade[8]. Portanto, é somente partindo de uma compreensão da sociedade enquanto totalidade é que se pode desenvolver uma consciência correta da realidade social.
Mas como este método permite compreender questões particulares, tal como a questão da mulher? O método dialético possibilita, a partir da visão do todo, a compreensão de suas partes componentes. A sociedade é uma totalidade composta pelo seu modo de produção dominante, os modos de produção subordinados e as formas de regularização, que é onde se constituem as classes sociais e as relações entre elas, bem como as demais relações sociais derivadas daí. O elemento particular a ser analisado é considerado uma parte do todo que possui uma singularidade, uma especificidade, que é oriunda de sua forma de inserção na totalidade[9].
Portanto, a grande questão é delimitar como a mulher se insere no conjunto das relações sociais. Mas não se pode pensar que esta inserção ocorra da mesma forma em todas as sociedades. Em sociedades diferentes existem relações sociais diferentes. Neste sentido, podemos dizer que a opressão da mulher assume formas específicas em sociedades específicas. Por conseguinte, o método dialético apresenta duas visões da opressão: a) uma mais genérica, abrangendo os elementos comuns existentes em todas as formas de opressão da mulher em todos os tipos de sociedade nos quais tal opressão existiu; b) uma visão concreta da opressão feminina em uma sociedade determinada, onde se vê a forma como esta opressão ocorre e pressupõe a pesquisa concreta desta sociedade.
A opressão feminina surge nas sociedades de classes[10]. É com o surgimento das classes sociais que o modo de produção se torna um modo de relação de classes e se cria um conjunto de formas de regularização das relações sociais para controlar a luta de classes e possibilitar a reprodução da dominação de classe. O estado é a principal forma de regularização das relações mas convive com outras formas, tais como a cultura, a moral, a sociabilidade, etc. Existe, em cada modo de produção específico, uma forma específica de regularização das relações sexuais e sociais entre os sexos.
As formas de regularização das relações sexuais entre os sexos se fundamentam na necessidade do modo de produção dominante em se reproduzir, o que significa reproduzir a existência das duas classes sociais fundamentais constituídas neste modo de produção: a classe exploradora e a classe explorada. Isto significa, ao mesmo tempo, reproduzir a dominação de classe e o seu resultado: a exploração. A regularização das relações sexuais é uma necessidade para a classe dominante, pois somente assim ela pode garantir a manutenção da transmissão da propriedade privada no interior da classe proprietária. O casamento e a monogamia hipócrita são alguns dos meios utilizados para regularizar as relações sexuais. O direito, o costume, a moral, etc., são os meios de repressão utilizados para evitar o comportamento “divergente”. O papel reprodutivo da mulher torna-a a parte mais visada e vigiada nesta relação. Este é um dos principais motivos da repressão da mulher na esfera da chamada “vida pública” e sua coerção ao chamado “mundo doméstico” e também da repressão sexual da mulher.
Aqui vemos um entrelaçamento entre as relações sexuais e as relações de classe. A necessidade do controle sobre a mulher cria o predomínio do homem na família. Assim surge a figura do pai ou “chefe” da família. Aí se encontra uma das principais fontes da opressão feminina. Mas vemos também o entrelaçamento entre as relações sexuais e sociais entre os sexos, pois, como vimos, a regularização das relações sexuais interfere nas relações sociais entre os sexos, criando não só um comportamento sexual padronizado como também a repressão da mulher de certas atividades e sua coerção em outras. Cabe observar, também, que as diferenças sexuais entre homens e mulheres não podem ser descartadas em uma análise das relações entre os sexos, caso contrário, o que se fará não é uma análise e sim uma descrição destas relações.
Portanto, há um condicionamento das relações sociais entre os sexos pelas relações sexuais regularizadas. Da necessidade de regularizar as relações sexuais entre os sexos surge a necessidade de regularizar suas relações sociais. Portanto, toda discussão que parte da analogia entre, de um lado, a relação homem-mulher e, de outro, natureza/cultura ou público/privado, parte de uma incompreensão da importância da sexualidade para a reprodução social. As relações sexuais entre os sexos são, também, relações sociais, mas existem relações especificamente sociais e há uma ação recíproca entre estes dois tipos de relações. Até aqui vimos como as formas de regularização das relações sexuais interferem nas relações sociais entre os sexos e a partir de agora focalizaremos estas últimas e como estas interferem naquelas.
As relações sociais entre os sexos sofrem uma alteração radical com o surgimento das classes sociais. A divisão sexual e etária do trabalho é substituída pela divisão social do trabalho. Esta divisão social do trabalho surge a partir da divisão sexual do trabalho mas não se trata de uma evolução natural e sim algo proporcionado pelas novas relações sociais que se instauram entre os seres humanos. A partir do desenvolvimento das forças produtivas e do crescimento populacional que lhe acompanha, desenvolve-se a produção mercantil simples e desencadeia-se o sedentarismo, a busca de meios de produção e, conseqüentemente, a luta pelo espaço territorial. Neste novo contexto histórico, as guerras inter-tribais deixam de envolver toda a tribo, pois a especialização do trabalho impossibilita que determinados membros (agricultores, pastores, etc.) participem dela e faz surgir os guerreiros, recrutados entre os indivíduos masculinos, devido suas condições físicas.
Surge assim a casta do guerreiros. Os prisioneiros de guerra eram mortos mas, posteriormente, foram escravizados. Desta forma, surge a classe dos senhores de escravos e a classe dos escravos. A mulher passa a ser integrante de uma ou outra classe, dependendo da tribo da qual faz parte. É neste momento histórico que surge a opressão feminina. As formas de regularização das relações sexuais e sociais entre os sexos visam reproduzir as relações de produção dominantes. A propriedade privada individual se fundamenta na sua transmissão através da herança, que significa a transferência de propriedade determinada pelas relações de parentesco[11]. Por isto, as relações sexuais, por serem meios definidores de quem serão os herdeiros, deveriam ser regularizadas e as mulheres, que, devido a um processo histórico determinado, não constituíram a gênese da classe dominante, significam uma ameaça de subversão da transmissão da propriedade e por isso deviam ser oprimidas. Sem dúvida, esta opressão atingia às mulheres de todas as classes sociais na sociedade escravista[12], bem como nas demais sociedades classistas, mas com forma e intensidade diferentes, pois as mulheres pertencentes às classes exploradas sofriam uma opressão muito maior. Por qual motivo a opressão da mulher pertencente às classes exploradas é maior? Pelo simples motivo de que a repressão e coerção das mulheres ser maior devido ao próprio pertencimento de classe, pois a opressão de classe (conseqüência da dominação e exploração) se soma com a opressão de sexo.
A divisão social do trabalho instaurada pelas sociedades classistas cria a distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo. O trabalho produtivo se volta para a reprodução dos bens necessários para a reprodução da sociedade. O trabalho improdutivo é voltado para criar as condições de reprodução do modo de produção. O trabalho produtivo é executado pelas classes exploradas e o trabalho improdutivo pelas demais classes sociais existentes. Entretanto, em determinadas sociedades classistas, ocorre uma divisão no interior da própria classe explorada, onde os indivíduos do sexo masculino se dedicam exclusivamente ao trabalho produtivo e as mulheres ao trabalho improdutivo (doméstico, que é um trabalho socialmente necessário). Desta forma, cria-se uma repressão da mulher do trabalho produtivo e uma coerção ao trabalho doméstico, que permite a reprodução da força de trabalho. No interior da classe dominante, em determinadas sociedades, também há uma divisão semelhante, embora, muitas vezes, as mulheres destas classes sofrem um processo de repressão maior e de repercussão menor, tal como no caso da ociosidade. Essa divisão do trabalho entre os sexos no interior das classes sociais é produto das necessidades de reprodução das relações de produção dominantes que gera a necessidade de opressão da mulher.
O espaço conquistado pela mulher varia de acordo com a sociedade e com o momento histórico. O grau de  opressão não é invariável historicamente. Isto ocorre pelo fato de que em cada modo de produção (ou em cada período histórico de seu desenvolvimento) as necessidades sociais se alteram e, independentemente disto, existe a resistência feminina, pois onde há opressão há resistência. Esta resistência, aliás, produz novos motivos para a opressão.
O lugar da mulher na sociedade é, em parte, pré-determinado por sua família, que, por sua vez, tem sua forma de existência determinada pela sua classe social. As relações familiares predeterminam a situação social da mulher tanto mais quanto maior for a sua opressão, pois sua coerção ao mundo familiar acompanha sua repressão do mundo extra-familiar, o que aumenta sua dependência em relação à família. A luta das mulheres permitiu para o sexo feminino algumas atividades que não lhes seriam concedidas gratuitamente, mas sempre se buscou impedir que elas ultrapassassem certos limites. Elas mesmas, às vezes, introjetam e se impõe tais limites, de diversas formas, desde o discurso da “incapacidade” até outros, mas que tem fundamentos reais, tais como o seu processo específico de socialização através da família ¾ e no capitalismo, através da escola também. As atividades artísticas e religiosas, eram, na Grécia Antiga, exercidas por algumas mulheres (Massey, 1988), o que significava que sua coerção não a encerrava apenas no espaço doméstico. O papel das mulheres nestas atividades, bem como a forma como a ideologia dominante a considera, varia historicamente.
Entretanto, as mulheres, ao contrário do que diz a ideologia dominante, não são passivas e a sua resistência marca a instituição de novos conflitos sociais. Essa luta das mulheres se manifesta tanto na vida cotidiana quanto na esfera considerada “pública” (espaço do poder político, do estado) embora a forma e o grau com que ela ocorre também varie historicamente.
Se existem conflitos, então existe a necessidade de se controlar tais conflitos. As formas de regularização das relações sociais atingem o conjunto das relações sociais, inclusive as relações sociais entre os sexos. O seu caráter conflituoso, por sua vez, tende a reforçar a intensificação da regularização. As necessidades sociais e a correlação de forças em determinado período histórico determinam o maior ou menor grau de opressão.
A coerção da mulher ao trabalho doméstico proporciona a criação de laços de dependência desta em relação ao homem. O destino social da mulher passa a ser condicionado pelo determinado tipo de relação que ela tem com o homem (e também a qual classe social ele pertence). Isto interfere nas relações sexuais entre os sexos, onde casamento, por exemplo, pode servir como meio de ascensão social, troca da dependência do pai pelo marido, etc., que cria um determinado tipo de comportamento por parte da mulher e do homem.
Neste sentido, as relações sociais entre os sexos também interferem nas relações sexuais. A escolha do parceiro sexual, a moral sexual, o erotismo, etc., são produzidos socialmente e estes interferem nas relações sexuais. Desta forma, observamos que há uma influência recíproca entre as relações sociais e sexuais entre os sexos. Entretanto, devemos deixar claro que as relações sexuais entre os sexos interferem nas relações sociais principalmente através de sua regularização, que é feita pela sociedade e isto significa a primazia do todo sobre a parte, pois as relações sexuais entre os sexos também são determinadas pela totalidade social.
Esta é uma visão genérica da opressão feminina, mas é preciso, em cada sociedade concreta e momento histórico, pesquisar como tal opressão (e a resistência) se manifesta efetivamente. A opressão da mulher na sociedade capitalista assume características particulares, específicas. O mundo mercantilizado, burocratizado e competitivo da sociedade capitalista produz uma forma específica de opressão feminina. Nos limitaremos aqui a fazer tais observações, pois somente a pesquisa de um período histórico concreto poderia revelar a forma capitalista da opressão feminina, o que ultrapassa as possibilidades e objetivos do presente artigo.
Mas cabe observar que muitos estudos sobre a opressão feminina sob o capitalismo já foram realizados e que, a nosso ver, confirmam o elemento genérico presente em todas as formas de opressão feminina e colocam em evidência alguns aspectos específicos desta opressão em nossa sociedade. Apesar das deficiências existentes em muitos destes estudos, é possível, a partir deles, se apresentar uma visão de conjunto sobre esta questão. Antes de encerrarmos, entretanto, devemos apresentar algumas objeções à concepção oposta, que entra em total confronto com a abordagem do método dialético. Sem dúvida, existe a opressão feminina e o homem é o veículo imediato desta opressão. Entretanto, não é possível isolar esta forma de opressão das demais relações sociais e é deste isolamento que surge a oposição entre natureza/cultura, público/privado, etc. Mas mesmo aqueles que buscam superar este “isolacionismo”, tal como é o caso de Garaudy (1982), acabam caindo no equívoco de criar outra dicotomização, desta feita entre “ordem masculina” e “ordem feminina”. Cria-se, desta forma, a identificação de certas instituições, costumes, etc., com uma “ordem masculina” e outras com uma “ordem feminina” (por exemplo, o exército e a guerra, segundo Garaudy, são uma “invenção específica do homem”). Isto cria a idéia equivocada de existência de uma “natureza masculina” e uma “natureza feminina” que seriam inatas e a-históricas[13]. O exército e a guerra, por exemplo, foram criados e exercidos pelos homens mas isto não ocorreu graças à “natureza masculina” e sim a determinadas condições sociais e não foram todos os homens que participaram (e se beneficiaram) desta criação, mas apenas alguns.
De onde vem esta ideologia? Vem da idéia de que, numa sociedade onde existe a opressão feminina, tudo que serve para conservá-la é uma “construção masculina”, dos homens. Na verdade, o que há aqui é uma superposição da opressão de sexo à dominação de classe. O exército e a guerra nacional é um interesse da classe dominante e não dos homens em geral e por isso não representa a natureza do sexo masculino e sim os interesses de uma determinada classe social. Numa sociedade onde existe opressão feminina, tudo que serve para conservá-la serve, ao mesmo tempo, para conservar esta opressão, e também a dominação de classe, que é o fundamento desta opressão. Por isso, os exemplos citados não representam uma “ordem masculina” e sim uma ordem social marcada pela dominação de classe.
Desta forma, o método dialético, ao conferir um papel fundamental à totalidade como fundamento explicativo dos elementos particulares que a compõe, permite a superação de diversos equívocos e abre novas perspectivas para ao estudo da questão da mulher.

Referências Bibliográficas

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Massey, Michael. As Mulheres na Grécia e Roma Antigas. Lisboa, Europa-América, 1988.
Mattick, Paul. Integração Capitalista e Ruptura Operária. Porto, A Regra do Jogo, 1974.
Mead, Margareth. Sexo e Temperamento. 3a edição, São Paulo, Perspetiva, 1988.
Moore, Henrietta. Antropologia y Feminismo. Madrid, Ediciones Cátedra, 1991.
Viana, Nildo. A Consciência da História. Ensaios Sobre o Materialismo Histórico-Dialético. Goiânia, Edições Combate, 1997.
Viana, Nildo. A Origem da Dominação. Revista Possibilidades. No 03, Jun./Ago. 2005b. http://www.npmueg.ubbi.com.br/possibilidades.html.
Viana, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia, Edições Germinal, 1998.
Viana, Nildo. Introdução à Sociologia. Belo Horizonte, Autêntica, 2005a.
Viana, Nildo. O Capitalismo de Estado da URSS. In: Revista Ruptura. Ano 1, No 1, Maio de 1993.




[1] Sobre isto: Gergen (1993).
[2] Cf.: entre outros textos: Lênin (1978); Luxemburgo (1995); Mattick (1974).
[3] Utilizamos a expressão “sexo” ao invés de “gênero” por considerar esta última como extremamente problemática e que traz mais problemas do que soluções. Veja uma crítica a utilização da expressão gênero em substituição a de sexo no presente, volume o artigo “Gênero e Ideologia”.
[4] Utilizamos um revezamento entre o uso do masculino e do feminino no início de expressões que utilizam o par feminino/masculino (por exemplo, relação homem-mulher revezando com relação mulher-homem) para denunciar o sexismo da linguagem que sempre coloca o masculino em primeiro lugar e o feminino como o “segundo sexo”, procedimento, aliás, realizado por muitas feministas. O revezamento tem sua razão de ser no fato de que propomos a instauração de relações igualitárias entre os sexos e que isto deve ser acompanhado por uma linguagem correspondente e isto quer dizer que não se trata de trocar a primazia do masculino pela primazia do feminino, assim como não se trata de trocar “governo masculino” por um “governo feminino”.
[5] E isto quer dizer que tal concepção não tem nada a ver com a ideologia da estratificação social, segundo a qual os “estratos sociais” são definidos por características próprias (tal como nível de renda) e não por sua relação com os demais estratos (Viana, 2005a).
[6] Colocamos “demais” relações sociais pelo fato de que as relações sexuais não deixam de ser “sociais”. Portanto, as relações sexuais são relações sociais, mas nem toda relação social é uma relação sexual. Desta forma, definimos relações sociais entre os sexos como o conjunto das relações sociais entre homens e mulheres com exceção das relações sexuais.
[7] Roger Garaudy, apesar de alguns equívocos, já havia colocado uma posição semelhante: “faz-se necessário evitar dois obstáculos simetricamente opostos: integrar pura e simplesmente a libertação das mulheres na luta de classes ou na luta dos colonizados, ou praticar uma espécie de ‘isolacionismo’ feminino, separando o movimento das mulheres das outras lutas sociais ou nacionais” (Garaudy, 1982, p. 113).
[8] Esta idéia foi desenvolvida por diversos pensadores, entre os quais se destacam George Lukács e Karel Kosik. Cf. Lukács (1989); Kosik (1989); Korsch (1977), mas cabe destacar as limitações da concepção de totalidade apresentada por estes autores, com exceção de Korsch, que não aprofunda a discussão em torno desta categoria (a concepção aqui exposta baseia-se em: Viana (1997).
[9] “O materialismo histórico-dialético apresenta uma nova concepção no estudo do particular. Não se trata da justaposição do particular com outros particulares ou com a totalidade e sim numa relação necessária e determinada. Entretanto, cabe reconhecer também que cada elemento particular que compõe a totalidade e possui sua especificidade, ou, segundo expressão mais usual, possui uma autonomia relativa (...). De onde vem tal especificidade? Vem da sua forma específica de se relacionar com o todo” (Viana, 1997, p. 102).
[10] Não discutiremos aqui a polêmica sobre a existência ou não de uma “subordinação universal da mulher”, pois, para nós, não havia opressão (“subordinação”) da mulher nas sociedades simples. Alguns estudos apresentam este posicionamento e refutam tal tese (cf. Moore, 1991; Viana, 2005b).
[11] Este é o caso, inclusive, do capitalismo de estado da antiga URSS. Lá, a reprodução da burocracia enquanto classe dominante se dava de pai para filho, pois a família era o meio de transmissão de propriedade ao formar o indivíduo para assumir determinados cargos, e isto é reforçado pelo sistema educacional, cujo acesso se dá via classe social/família. Sobre isso, cf.: Viana (1993).
[12] Isto é comprovado pelo exemplo oferecido por Atenas, na Grécia Antiga: “A lei ateniense, tal como a lei da maioria das comunidades gregas, vincava bem as diferenças entre os vários grupos de mulheres. Havia mulheres livres e escravas; havia cidadãs e metecas (não-cidadãs residentes, oriundas de outras polis); havia mulheres da classe superior e mulheres da classe inferior. Mas fosse qual fosse o grupo a que pertencessem, todas tinham uma coisa em comum: não tinham direitos políticos de qualquer espécie. Eram controladas pelos homens em todas as fases de suas vidas” (Massey, 1988, p. 17.)
[13] Uma contestação disto se encontra em Mead (1988). 

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