Páginas Especiais

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A Literatura Crítico-Progressiva de Lima Barreto


A Literatura Crítico-Progressiva de Lima Barreto

Nildo Viana

O presente texto visa analisar o processo de construção literária de Lima Barreto, apresentando a hipótese de que este autor, em várias obras suas, utiliza um método crítico-progressivo. Iremos buscar realizar a demonstração da veracidade desta hipótese através da análise de dois contos de Lima Barreto, a saber: A Cartomancia e O Triste Fim de Policarpo Quaresma.

Antes de fazermos isso iremos realizar alguns apontamentos teórico-metodológicos preliminares, que serão complementados no decorrer da análise das obras literárias em questão. Segundo Lucien Goldmann (Goldmann, 1979; Goldmann, 1976; Goldmann, 1989), uma obra literária é sempre expressão de uma visão de mundo de uma determinada classe social. Para este autor, a tese da biografia do autor como principal elemento explicativo de um texto literário, tal como proposta por Hippolitte Taine (Taine, 1992), é equivocada. O que importa numa análise sociológica da literatura é descobrir a visão de mundo do autor, que, ainda segundo ele, corresponde a uma determinada classe social. A biografia não explica a obra literária, pois, se assim fosse, seria necessário explicar como Balzac, um legitimista (partidário da aristocracia), desenvolveu em sua obra uma visão de mundo nitidamente burguesa, isto é, seria necessário explicar como um indivíduo que possui uma determinada posição de classe (aristocracia) e ideologia política apresenta uma visão de mundo que corresponde à outra classe (burguesia).

Por não explicar tal fato, tal hipótese da biografia como elemento explicativo da obra literária se vê desmentida. Porém, neste ponto discordamos de Goldmann, pois a obra literária é produzida pelos indivíduos e, portanto, mesmo em sua concepção, é preciso explicar como o indivíduo veicula uma ou outra visão de mundo. A resposta a esta questão, no nosso ponto de vista, se encontra no processo histórico de vida do indivíduo, o que nos remete ao problema da biografia do autor. Entretanto, tal observação não significa adotar um “determinismo biográfico”, pois o indivíduo se envolve num conjunto complexo de relações sociais e não realiza um controle consciente e intencional sobre todo o processo de construção literária. O que queremos deixar claro aqui é que cada indivíduo veicula uma mentalidade em sua obra literária que correspondente aos interesses de uma ou outra classe social, mas a explicação das razões pelas quais veicula uma ou outra mentalidade decorre de seu processo histórico de vida.

Cada classe social, no interior de sua mentalidade, possui uma certa consciência das relações sociais e tal consciência varia de uma para outra classe. Cada classe social possui o que Lucien Goldmann denomina “consciência possível”, ou seja, um limite máximo a qual não pode superar. Esta visão se manifesta sobre os mais corriqueiros e pequenos fatos da vida cotidiana. Segundo Goldmann, e também outros autores, a perspectiva do proletariado (Marx, 1988; Lukács, 1989; Korsch, 1977; Viana, 1997; Viana, 2001), ou seja, da classe operária, possui a vantagem de ser desmistificadora, de romper com as ilusões e falsas representações sobre a realidade social. Por conseguinte, o autor que apresenta esta perspectiva possui uma possibilidade maior de criar uma obra literária desmistificadora. A literatura é uma reconstituição do real realizada a partir da perspectiva de quem escreve o texto. A reconstituição literária do real – seja este um fenômeno histórico, uma relação social contemporânea ou uma ideologia – pode ser crítica ou apologética. Ela será crítica quando expressar a perspectiva de uma classe revolucionária e será apologética quando expressar a perspectiva da classe conservadora em uma determinada sociedade. É possível, entretanto, que haja um caráter crítico sobre determinado aspecto do social que não seja expressão da perspectiva da classe revolucionária, mas esta crítica é limitada, pois se limita ao “moralismo” ou a questões superficiais. A perspectiva de um autor, em uma sociedade de classes, é, por extensão, a perspectiva de uma classe.

Resta saber qual classe o autor realiza a expressão literária e isto só poder ser reconhecido ao se descobrir qual é a sua posição diante da sociedade, o que é derivado de seu processo histórico de vida.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma: Uma Crítica ao Nacionalismo

Lima Barreto, o autor em questão, era anarquista e assumia uma posição de negação da sociedade e isto é facilmente observado em suas obras. Lima Barreto, em O Triste Fim de Policarpo Quaresma (1991) expõe as várias contradições da sociedade de sua época. Vê-se, ao longo do seu livro, a descrição de conflitos sociais que vão desde a questão da mulher até a questão agrária. Um texto tão rico em análise da sociedade, mesclado com poesia e humor, apresenta um aspecto fundamental: a crítica ao nacionalismo. A reconstrução literária da idéia de nacionalismo efetuada por Lima Barreto é colocada num plano histórico-concreto – o que significa que há, simultaneamente, uma reconstituição literária das contradições da sociedade brasileira daquela época – e assume um caráter crítico e realista. Procuraremos demonstrar que nesta obra de Lima Barreto existe uma reconstituição literária desmistificadora da ideologia nacionalista.

Lima Barreto, logo no início do livro, descreve a defesa que Policarpo Quaresma – personagem central do livro – fazia da modinha e suas estantes cheias de livros de autores nacionais ou sobre o Brasil. Demonstra, assim, seu caráter nacionalista e afirma que “Policarpo era patriota”, pois “desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o por inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor, o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa”. Vê-se, portanto, que Lima Barreto caracteriza Quaresma como um nacionalista convicto e relaciona o patriotismo com o carreirismo político e administrativo, bem como aponta seu caráter fetichista (“o patriotismo o fez pensar”...). Continuando nessa linha crítica, ele liga ironicamente guerra e pátria, ao dizer que Policarpo não podendo ir para o exército tentou a administração e no ramo militar, pois “era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo que é bem o hálito da pátria”.

Policarpo Quaresma representa um autêntico nacionalista que, entre outras coisas, chegava a ponto de pedir a adoção do Tupi-Guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro. Posteriormente, passou a se interessar pela terra e “então pensou que foram vão aqueles seus desejos de reformas capitais nas instituições e costumes: o que era principal à grandeza da pátria estremecida, era uma forte base agrícola, um culto pelo solo ubérrimo, para alicerçar fortemente todos os outros destinos que ela tinha de preencher”. É neste momento que acontece a transição do interesse de Policarpo da questão puramente cultural à questão política, embora, ainda lhe parecesse estranho o interesse pela política que via na região onde passara a morar. A sua preocupação era com a terra e com o exemplo que haveria de dar à nação, colaborando com a formação de uma “forte base agrícola”, através do seu sítio.

A personagem Olga ao visitar Policarpo começa a observar a miséria da roça e pergunta ao empregado do sítio de seu padrinho por que ele não planta no seu sítio e Felizardo, o empregado, responde “a terra não é nossa... e frumiga?... nós não ‘tem’ ferramenta... isso é bom para italiano ou ‘alamão’, que governo dá tudo... governo não gosta de nós...” Nesta passagem, Lima Barreto coloca com muita clareza a situação daqueles que estão sem acesso aos meios de produção, desvendando, assim, a máscara da sociedade de classes e revelando a situação do trabalhador rural sem acesso a terra e aos demais meios de produção. Mas não se limita a isso, pois a sentença o “governo não gosta de nós” traz um significado: o governo, ou o estado, não “gosta” daqueles que não tem os meios de produção, ou seja, o estado defende os interesses da classe dominante que detém os meios de produção. Coloca-se, então, a contradição entre a “idéia” de pátria e a pátria real. O próprio Policarpo Quaresma, na narração de Lima Barreto, ao negar o pedido de um político da região e com isso receber uma intimação municipal absurda, esboçou a compreensão desta contradição como nos mostra esta passagem: “a luz se lhe fez no pensamento... aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestarlhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as”.

Assim, Policarpo compreende que a miséria da população não é “natural” e sim um problema criado socialmente. Mas Policarpo não abandonava o patriotismo, apenas o fazia mudar de forma. Depois de uma nova perseguição política, “Quaresma veio a recordar-se do seu Tupi, do seu folk-lore, das modinhas, das suas tentativas agrícolas – tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil”, pois “era preciso trabalhos maiores, mais profundos; torna-se necessário refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, Sully e Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levantando o cultivador... então sim! O celeiro surgiria e a pátria seria feliz”.

Os defensores da pátria, os militares, tornam-se os objetos da crítica de Lima Barreto: a maioria é apresentada como defensora de seus interesses pessoais e a minoria é apresentada como adepta “desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento de regímem normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura fonética e eleito calçados com sapatos de sola de borracha!...”

Essa é uma crítica à relação forçada entre “ordem e progresso” e ao positivismo como um todo, que era a ideologia dos militares da época. Os militares, os “defensores da pátria” esperavam realizar os seus anseios com a revolta da Esquadra, atrás de seus mesquinhos interesses pessoais e “essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e nas posições que o estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e habilitações para ocupá-las; além disso, o governo, precisando de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações”.

Ora, se os defensores da pátria defendem, na realidade, seus interesses pessoais, então a pátria é apenas um mecanismo para manter a ordem e conquistar o servilismo das classes exploradas. Além disso, se observa aqui a revelação de uma das funções do estado para manter a dominação de classe: criar um conjunto de funcionários que passam a depender do estado e por isso irão defendê-lo, ou seja, cria a burocracia, classe auxiliar da burguesia. A burocracia possui seus interesses particulares, entre os quais o de se reproduzir aumentando o seu espaço no estado, criando novos cargos e departamentos, tal como havia colocado Selznick (apud Tragtenberg, 1990).

Assim, Lima Barreto desfaz a ideologia da pátria. Essas considerações lembram a do anarquista José Oiticica que disse que o “patriotismo, sentimento natural, é pelo estado convertido em elemento psicológico de obediência para fins egoístas, para manutenção da ordem, para repressão violenta e brutal dos famintos e desafortunados” (Oiticica, 1963).

Policarpo Quaresma se decepciona com o Marechal Floriano Peixoto, com a guerra contra os “revoltosos”, etc. Para ele, “a sociedade e a vida pareceram-lhe cousas horrorosas, e imaginou que do exemplo delas vinha os crimes que aquela punia, castigava e procurava restringir. Eram negras e desesperadas, as suas idéias; muitas vezes julgou que delirava”.

Assim, a ideologia da pátria que já havia sido denunciada pelo narrador onisciente que era Lima Barreto passa a ser desmascarado pelo personagem principal, Policarpo Quaresma, que chegou a conclusão de que “a pátria que quisera ter é um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física nem a moral, nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato era a do tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati” e continuava, “e, bem pensado, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a pátria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia a menos, sem base, por um deus ou uma deusa cujo império se esvaía? Não sabia que essa idéia nascera da amplificação da crendice dos povos greco-romanos de que os ancestrais mortos continuariam a viver como sombras e era preciso alimentá-los para que eles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Coulanges... Lembrou-se de que essa noção nada é para os Menenanã, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa idéia como que fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas próprias ambições...”

Assim, Lima Barreto coloca o nacionalismo como uma criação histórica e que serve a determinados interesses, avançando mais em um romance do que o anarquista José Oiticica em seu escrito político, pois este diz que o patriotismo é um “sentimento natural” que o estado utiliza para seus fins egoístas. O patriotismo ou nacionalismo não é um sentimento natural e sim um produto do desenvolvimento histórico e que serve aos interesses de quem detém o poder. Para Lima Barreto, o nacionalismo não é um “sentimento natural”, mas sim uma idéia criada historicamente e utilizada pelos “conquistadores” que se utilizam também das nossas fraquezas psicológicas.

A reconstituição literária do nacionalismo realizada por Lima Barreto assume um caráter nitidamente crítico e desmistificador. A crítica ao nacionalismo ocorre desde o início através do narrador e atinge o ponto culminante quando Policarpo Quaresma reconhece seu engano e se conscientiza de que a pátria é uma ficção. O final apresenta a unidade de pensamento do narrador e Policarpo, realizada através do desenvolvimento da consciência deste último, que ocorreu por intermédio de sua experiência própria e demonstra a completa superação da ideologia pelo segundo. Portanto, a reconstituição literária de Lima Barreto se caracteriza por ser uma crítica radical ao nacionalismo, que vai se desenvolvendo progressivamente no interior da narrativa.

A Cartomancia, Segundo Lima Barreto

Apresentaremos agora uma análise do conto A Cartomante, de Lima Barreto (1993). Os objetivos que nos propomos são os seguintes: em primeiro lugar, desejamos descobrir como Lima Barreto representa a cartomante, ou seja, o que significa uma cartomante para Lima Barreto; em segundo lugar, buscamos descobrir como Lima Barreto explica a necessidade de busca de auxílio de uma cartomante por parte de um indivíduo.

Partindo do referencial teórico anteriormente estabelecido, apresentamos as seguintes hipóteses a respeito do conto A Cartomante de Lima Barreto: a primeira hipótese é a de que o autor expressa uma visão desmistificadora do fenômeno do misticismo, o que significa dizer que ele possui uma perspectiva correspondente a do proletariado. Tal desmistificação ocorre através da contestação da eficácia da cartomante, pois uma cartomante é procurada devido à suposta eficácia que ela possuiria para resolver os problemas daqueles que a procuram.

A segunda hipótese é de que a origem da necessidade de busca de auxílio de uma cartomante se encontra nas condições precárias de vida da personagem central (que está desempregado, sem dinheiro, dependendo da boa vontade alheia e sendo sustentado por sua esposa), pois isto gera a necessidade de busca de uma explicação para suas derrotas consecutivas e tal explicação surge a partir não de um procedimento racional e sim místico, tal como o antropólogo Evans-Pritchard (1979) colocou em seu estudo sobre os Azande, no qual afirma que o azar se torna a explicação dos infortúnios, mesmo os mais corriqueiros, tal como um tropeço, que o indivíduo julga ser produto de feitiçaria de outro membro de sua tribo.

Portanto, o infortúnio cria a necessidade de sua explicação e isto se dá através da noção de bruxaria, feitiçaria, azar, etc. Isto também tem o efeito do indivíduo se sentir aliviado e colocar a culpa em outro que não ele próprio, justificando sua situação por qualquer motivo externo a ele e criando miticamente um “culpado” para os seus males. Cria-se assim, a concentração do mal em um indivíduo, tal como faz o pensamento mítico (Agacinsky, 1991). Por fim, este procedimento fornece, ao indivíduo que se encontra nesta situação, a esperança de superá-la, pois basta desfazer a feitiçaria e tudo voltará a ser como antes e o sentimento de impotência diante da situação atual é substituído pela esperança, que, entretanto, é depositada em uma terceira pessoa, aquela que irá desfazer o feitiço (feiticeiro, cartomante, etc.).

A terceira e última hipótese é de que Lima Barreto busca desenvolver neste pequeno conto o mesmo procedimento que realizou em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, a saber: realiza um procedimento narrativo caracterizado pelo desenvolvimento da autoconsciência do personagem central que passa da ilusão a uma percepção crítica da realidade, sendo que, no caso de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, trata-se de uma crítica à idéia de pátria, ou, em outras palavras, utiliza um método de construção crítico-progressivo.

Neste texto, Lima Barreto realiza a crítica da idéia de pátria através do desenvolvimento da autoconsciência da personagem central, tal como colocamos anteriormente. O narrador apresenta um desenvolvimento do personagem a fim de que sua autoconscientização sirva para a conscientização do leitor. Trata-se de um método crítico-progressivo, no qual a crítica vai sendo construída progressivamente durante a narrativa através da autoconsciência do personagem central.

Tal como colocou W. Benjamin, a narração sempre se orienta para um interesse prático e sempre carrega consigo uma utilidade. Esta narração “pode consistir ora numa lição de moral, ora numa indicação prática, ora num ditado ou norma de vida — em qualquer caso o narrador é um homem que dá conselhos ao ouvinte” (Benjamin, 1983, p. 59).

Portanto, a partir destas hipóteses iremos analisar o referido conto de Lima Barreto e confirmá-las ou não. O texto de Lima Barreto possui algumas passagens que são ilustrativas de sua construção literária: sua narração apresenta diversas afirmações que deixam claro seus objetivos e procedimentos.

Segundo Lima Barreto, “não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer coisa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom pistolão, toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante”.

A narração continua através da demonstração da visão que a personagem possuía de sua situação – que é nitidamente uma explicação mística – e também a saída encontrada diante desta constatação: “A certeza, porém, de que todas as suas infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era ‘coisa feita’, havia de haver por força quem a desfizesse” ; “(...) já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto-mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã”.

Lima Barreto narra a decisão da personagem e da esperança adquirida em tal procedimento: “Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida”; “o mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria a casa...”; “pelo caminho tudo lhe sorria”. Lima Barreto encerra sua narrativa apresentando sua mensagem através do processo de desenvolvimento da consciência de sua personagem central:

“Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: ‘Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda a espécie de feitiçaria, principalmente a africana, etc.’"; “não quis outra; era aquela...”; “Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu para a casa de Madame Dadá”; “entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito”; “O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa. Era sua mulher”.

Tais afirmações confirmam a nossa segunda hipótese, que é a de que a origem da necessidade de busca de auxílio de uma cartomante se encontra nas condições precárias de vida do personagem central, pois sua situação, tal como visto pelo trecho acima citado, é precária, marcada pelo desemprego, pela falta de dinheiro, pela “má sorte”, pela miséria. Também, em partes não citadas do texto, se vê que ele vive na dependência da boa vontade dos amigos que lhe emprestam dinheiro e da esposa que sustenta a casa com “sua costura”.

Isto tudo gera a necessidade de busca de uma explicação para suas derrotas consecutivas e tal explicação se encontra na “coisa feita” ou no “trabalho” feito por algum especialista em mandinga, ou seja, aqui se vê que a feitiçaria se torna a explicação dos infortúnios, que é produto de alguém que não gosta dele. Uma das conseqüências disto é o fato do indivíduo se sentir aliviado e colocar a culpa em outro, no caso o seu cunhado, que seria o “responsável pela mandinga” e assim ele justifica sua situação por um motivo externo a ele e cria miticamente um “culpado” para os seus males, reproduzindo assim uma das características do pensamento mítico.

Além disso, este procedimento fornece a esperança ao personagem de superar esta situação, pois basta desfazer a feitiçaria para voltar aos bons tempos. O sentimento de impotência diante das suas condições desfavoráveis de vida é substituído pela esperança em superar os obstáculos e conquistar dias melhores, mas que depende de uma terceira pessoa, no caso, a cartomante. Também se confirma, se lembrarmos que o personagem descobre que a cartomante é sua própria esposa — o que significa que se trata de uma profissão tão suspeita que era necessário escondê-la do marido – a hipótese segundo a qual o procedimento narrativo de Lima Barreto se caracteriza pelo desenvolvimento da autoconsciência da personagem central, pois este assim como Policarpo Quaresma, em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, acaba percebendo que estava se entregando a uma fé cega e absurda, ou seja, se decepciona e descobre que estava enganado, o que significa um processo de conscientização da personagem. Assim, Lima Barreto critica o misticismo através do desenvolvimento da autoconsciência da personagem central.

Isto também confirma a nossa primeira hipótese, que é a de que o autor expressa uma visão desmistificadora do fenômeno do misticismo, o que é a mesma coisa que dizer que sua perspectiva é equivalente a do proletariado. Tal desmistificação ocorre através da contestação da eficácia da cartomante e do exercício escondido de suas “capacidades”. Além disso, se observa uma dialética em que a miséria da personagem central cria a cartomante, sua esposa, e esta se propõe, falsamente, a solucionar os problemas gerados pela miséria alheia, ou seja, é a miséria que cria a cartomante e ao mesmo tempo o que a sustenta. A cartomante é produto da miséria própria e vive da miséria alheia. A miséria financeira, por sua vez, gera a miséria psíquica, no caso da personagem central. A miséria se reproduz de forma ampliada, partindo da esfera financeira até chegar na esfera mental. Por fim, observamos que este conto de Lima Barreto apresenta uma visão desmistificadora da cartomancia ao revelar a causa e a falsidade de sua prática. Lima Barreto apresenta uma crítica desta prática sob a forma de linguagem literária e assim envia sua mensagem, dá o seu conselho, como diria Benjamin.

Considerações Finais

As duas obras aqui trabalhadas de Lima Barreto se desenvolvem segundo o método de construção crítico-progressivo. Policarpo Quaresma e o marido desempregado (que foi despersonalizado devido ao desemprego, por isso Lima Barreto nem sequer lhe atribuiu um nome) são indivíduos iludidos e que rompem com suas ilusões no desenvolvimento da narrativa. O processo de ilusão aparece como natural, sendo a “atmosfera natural” da vida cotidiana, tal como coloca Kosik (1986), expressando o mundo das representações cotidianas. O processo de superação das ilusões ocorre com a luta do personagem para realizar seu sonho ilusório e ao efetivar tal luta ele acaba descobrindo o seu verdadeiro caráter. O patriota começa a perceber que se fiou numa ilusão e o mesmo ocorre com o marido desempregado, quando se deparam com as relações sociais concretas que produzem o patriotismo e a cartomancia.

A conscientização do personagem é narrada e assim se coloca o leitor num processo semelhante de desenvolvimento da consciência, levando-o a superar as mesmas ilusões que os personagens superam e atingirem o mesmo nível de consciência que o autor-narrador, numa espécie de dialética ascendente de matriz hegeliana. Um método crítico-progressivo de construção literária, oriundo da perspectiva de classe assumida por Lima Barreto, que só pode ser compreendido em toda sua complexidade a partir das leituras das obras deste autor aliadas a uma visão de seu posicionamento político e perspectiva de classe, o que explica sua adoção deste método de construção literária.

Referências Bibliográficas

AGACINSKY, Silviane. O Poder do Mito. Filosofia Política. N o 6, Porto Alegre, 1991.

BENJAMIN, Walter. O Narrador. In: Textos Escolhidos. Col. Os Pensadores. 2a edição, São Paulo, Abril Cultural, 1983.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Bruxaria, Oráculos e Magia. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

GOLDMANN, L. Et. al. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Mandacaru, 1989.

GOLDMANN, L. Sociologia do Romance. 3ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

GOLDMANN, Lucien. Dialética e Cultura. 2ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 4ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986.

LIMA BARRETO, A. H. A Cartomante. São Paulo: Ática, 1993.

LIMA BARRETO, A. H. O Triste Fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática, 1991.

LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Rio de Janeiro, Elfos, 1989.

MARX, Karl. O Capital. Vol. 1. 3a edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988.

OITICICA, José. A Organização Militar. In: LEUENROTH, Edgar (org.). Anarquismo, Roteiro de Libertação Social. Rio de Janeiro, Mundo Livre, 1963.

TAINE, H. Filosofia da Arte na Itália. São Paulo: Educ/Imaginário, 1992.

TRAGTENBERG, Maurício. Sobre Educação, Política e Sindicalismo. 2ª edição, São Paulo, Cortez, 1990.

VIANA, Nildo. A Consciência da História. Goiânia, Edições Combate, 1997.

VIANA, Nildo. Escritos Metodológicos de Marx. Goiânia, Edições Germinal, 2001.

_______________________

Artigo publicado originalmente na Revista Possibilidades. Ano 01 no 01, Jun./Set. 2004.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Proletariado e Dialética


Proletariado e Dialética

Nildo Viana

A relação entre dialética e proletariado é bastante complexa. Na verdade, a formação e desenvolvimento de uma classe social é acompanhada pelo desenvolvimento de sua consciência e de suas formas culturais complexas. No caso das classes revolucionárias, a sua formação e desenvolvimento é acompanhada pela formação e desenvolvimento de sua consciência de classe concreta e passagem para a consciência de classe revolucionária, o que implica, em determinados contextos, na constituição de representantes intelectuais que produzem pensamento complexo (ciência, filosofia, teologia, teoria), que expressa seus interesses de classe. A burguesia, ao se formar e desenvolver, vai produzindo suas representações, concepções, criando os seus representantes intelectuais, que vão dando forma a um pensamento complexo que expressa seus interesses, e assim forma toda uma cultura burguesa que vai se tornando cada vez mais forte até se tornar hegemônica. Devido suas necessidades de luta contra a classe dominante anterior, a burguesia acaba tendo que assumir uma posição cultural crítica e que, por isso, atinge o auge de momentos de verdade que pode assumir a consciência burguesa, tal como se revela na filosofia de Hegel e em menor grau em outras concepções filosóficas (iluminismo, etc.).

Porém, há uma diferença essencial entre burguesia e proletariado, pois a primeira é uma classe proprietária que vai se fortalecendo paulatinamente com a expansão do capital (ou seja, surge e se desenvolve "economicamente", tendo, portanto, uma força crescente no plano da produção material e por isso logo se fortalece também no plano da produção cultural, antes de tomar o poder estatal). O proletariado, ao se formar e desenvolver, também produz suas representações e representantes intelectuais e estes dão forma a um pensamento complexo e busca fortalecer o mesmo, mas, por não ser uma classe proprietária e que não tem como se consolidar na esfera da produção antes da revolução social, então tem limites nesse processo. No caso do proletariado, não é na propriedade que se encontra a possibilidade da emancipação (e esse é o erro de todos os cooperativistas, solidaristas, "utópicos" e demais "românticos", que pensam na aquisição de propriedade para fortalecer o proletariado, inclusive esquecendo a força devastadora do capital e do Estado e da hegemonia cultural burguesa), mesmo porque a sociedade que se encontra em seu projeto emancipatório não é fundada na propriedade e sim na autogestão generalizada, o que pressupõe domínio dos seres humanos associados sobre o meio ambiente e as forças criadas por eles próprios, tal como as organizações, a produção, etc. A gênese do capitalismo foi encontrada no movimento do capital, a gênese do comunismo se encontra no processo de autoemancipação, na práxis - atividade teleológica consciente.

Assim, essa gênese do comunismo não é apenas idealismo voluntarista, onde basta leitura e raciocínio para aderir a tal práxis. Esta práxis tem raízes concretas, só é possível a partir de determinadas relações sociais concretas e isto é que permite a emergência de uma classe revolucionária com essa potencialidade, o proletariado. Esta potencialidade tem que se desenvolver e realizar. Este desenvolvimento seria espontâneo e desembocaria facilmente na realização do comunismo (e aqui é onde alguns autonomistas tropeçam, inclusive passando por cima de toda uma ampla gama de experiências históricas) desde que não houvesse uma classe antagônica com enorme poder para tentar frear e impedir o desencadeamento da revolução proletária e um conjunto de classes auxiliares para lhe ajudar nesse processo. Assim, o proletariado tem a potencialidade e a tendência de realizar o comunismo e, por conseguinte, de desenvolver uma consciência revolucionária, muito mais radical e profunda do que toda a produção cultural burguesa, incluindo as suas produções mais elevadas, historicamente falando. É interesse de classe do proletariado chegar à verdade, realizar a transformação social e descobrir todos os véus que cobrem a realidade.

Porém, isso também não brota automaticamente. Não é um processo imediato. Por dois motivos principais: a burguesia e suas classes auxiliares produziram milhares de representações e ideologias que ofuscam uma consciência correta da realidade e ainda a sociabilidade capitalista, cotidianidade e interesses imediatos dificultam uma radicalização dos indivíduos proletários. A classe dominante criou inúmeros obstáculos intelectuais para o avanço da consciência humana, tais como ideologias, crenças (na ciência e cientificidade, por exemplo), métodos, disciplinas, ilusões (estatísticas, entre outras), que são obstáculos a serem superados. Por isso, um dos elementos fundamentais para a emancipação humana é a luta cultural contra tudo isso. Aos indivíduos proletários em sua maioria, faltam as ferramentas intelectuais, bem como informações, tempo, etc., para poder desenvolver sua consciência revolucionária e efetivar uma luta cultural poderosa que possa destruir a cultura burguesa. No entanto, a partir de certo momento histórico, alguns indivíduos proletários e indivíduos de outras classes que se identificam com o proletariado (seus interesses históricos de emancipação e não com indivíduos reais de carne e osso que podem, e muitas vezes são, ser conservadores). Esses indivíduos, seja por condição de classe ou por condições pessoais excepcionais, possuem acesso a informação, tempo, ferramentas intelectuais, etc., e por isso podem produzir uma consciência revolucionária e desenvolver uma luta cultural a favor da emancipação humana.

Dentro desta luta, está o próprio desenvolvimento de novas ferramentas intelectuais, distintas e antagônicas às produzidas pela burguesia e suas classes auxiliares, possibilitando uma práxis revolucionária. É assim que surge os representantes intelectuais do proletariado e suas formas mais desenvolvidas de consciência (marxismo, anarquismo) e suas ferramentas intelectuais (materialismo histórico-dialético), que não surge como algo pronto e acabado, mas que tem algumas expressões mais desenvolvidas e elaboradas, tal como a dialética em Marx. Esse processo é o mesmo que Marx colocou entre a união do "coração" (proletariado) e a "cabeça" (filosofia), embora seja necessário a crítica da filosofia, assim como da ciência, devido seus vínculos indissolúveis e íntimos com a sociedade burguesa, mas hoje podemos, inclusive devido ao caráter inacabado destas ferramentas, substituir a filosofia e a ciência pela teoria.

Uma vez que o proletariado é uma força revolucionária potencial e existem centellhas de cultura revolucionária, então é necessário realizar a fusão entre ambos, e este é o papel da luta cultural, que é um reforço da luta espontânea do proletariado no sentido de sua emancipação. A dialética, portanto, é produto da existência e luta do proletariado. Sua elaboração se deu principalmente através da obra de Karl Marx - e, de forma independente, por Dietzgen, como disse o próprio Marx (e foi esquecido devido ao leninismo e acusação de idealismo atribuído a ele), e posteriormente teve desenvolvimentos em Labriola, Korsch, Lukács, etc.

A dialética desenvolvida por Marx não foi produto apenas dos estudos filosóficos deste, de sua erudição e conhecimento sobre a filosofia hegeliana, feuerbachiana, etc., bem como da economia política inglesa e socialismo romântico francês. Se assim fosse, todos que conhecessem a filosofia hegeliana teriam produzido a dialética materialista ou todos os eruditos como Marx (ou seja, que conheciam a economia política inglesa e o socialismo francês) teriam feito o mesmo. Isso só foi possível porque em Marx houve a fusão entre o "coração" e a "cabeça", sendo primeiro o motor do segundo, como já dizia Feuerbach. Devido seu processo histórico e singular de vida, Marx se tornou um revolucionário intimamente ligado ao proletariado e por isso pode produzir ideias revolucionárias. A sua erudição, também parte de seu processo histórico de vida particular, lhe permitiu manifestar os sentimentos, valores, interesses históricos, do proletariado, de forma aprofundada e altamente elaborada, como poucos depois se aproximariam.

Não se trata de genialidade e sim processos de vida que promovem uma síntese singular que expressa algo mais profundo, sendo que inúmeros outros, antes, durante e depois também contribuíram, de forma mais ou menos profunda e mesmo os menos profundos contribuíram com Marx ao alertar, tocar em questões não percebidas, etc. Isto quer dizer que o momento histórico (veja o papel da Comuna de Paris na produção de Marx), as lutas do proletariado, etc., são fundamentais, e que isso, aliado a quem realmente tem uma posição revolucionária-proletária (o que pressupõe valores, sentimentos, etc.), como era o caso de Marx, permitiu a elaboração da dialética materialista.

Nenhum indivíduo, por mais "estudioso", "pesquisador", dominar técnicas, métodos, etc. se torna um elaborador de uma teoria revolucionária, é preciso mais que isso, o fundamental, no fundo, encontra-se na mentalidade de tal indivíduo, incluindo seus valores, sentimentos, interesses, etc., e é isso que permite, inclusive, se superar, entender sua própria situação histórica e social, os limites impostos, sua própria história, etc. Claro que em grau maior ou menor, depedendo do indivíduo e de sua situação. Porém, a questão fundamental é o compromisso com a emancipação humana que tem muito mais a ver com valores e sentimentos do que com domínio racional, embora esse atue sobre aqueles e também seja fundamental. Assim, é possível que pelo estudo e pesquisa alguém chegue a se tornar revolucionário, mas isso somente se os seus valores e sentimentos não obliterarem isso, se já tiver pelo menos uma fagulha de sentimentos e valores humanistas, etc. Finalizando: a elaboração da dialética materialista é possível por uma síntese entre determinado indíviduo com determinado projeto de vida e interesses de classe do proletariado na emancipação humana.

Isso explica a relação entre dialética e proletariado. Também explica que ninguém "escolhe" a dialética arbitrariamente. Para escolhê-la tem que haver um conjunto de determinações (determinados interesses, valores, sentimentos, etc.) e dentre estas determinações, informações e saber sobre o que realmente a dialética é (saber distinguir a dialética marxista da positivista de Engels e do leninismo), do que realmente Marx produziu e significou, de sua distinção em relação ao leninismo e derivados, bem como em relação à social-democracia. Pois muitas pessoas que apontam para a emancipação humana de forma verdadeira e sincera, por falta de informações e deformações do marxismo, podem muito bem chegar a condená-lo e evitá-lo (esse, infelizmente, é o caso de anarquistas, que, devido a isso e a um apego excessivo a determinadas ideias em detrimento de um projeto emancipatório, buscam "alternativas" metodológicas e de análise do capitalismo em relação a Marx). Ou seja, é necessário a fusão entre "cabeça" e "coração", isoladamente, nenhum dos dois chega a uma posição revolucionária. Por isso, alguns tendem para a dialética, mas se não a conhecessem ou possuem uma imagem negativa dela (ou equivocada, a dialética positivista), então a abandonam).

Antes devo esclarecer que para utilizar o método dialético é necessário partir da perspectiva do proletariado (o que remete à questão dos valores, sentimentos, etc., acima aludidos). A questão é que partindo de outra perspectiva (valores, sentimentos, etc., que não os correspondentes ao proletariado, ou seja, ao projeto de emancipação humana) é possível deformar a dialética (veja o bolchevismo) ou mesmo remetendo a uma compreensão mais ou menos adequada da mesma, não usar adequadamente na análise, pois outras determinações estarão atuando (valores, sentimentos, etc., ou seja, a própria perspectiva, bem como falta de informações sobre o fenômeno analisado, etc.). Então, o que ocorre geralmente é que quando se parte de outra perspectiva, se chega a uma compreensão equivocada do método, a um uso problemático, dele, etc., ou seja, o resultado sempre tende a ser diferente. A importância do método não é "científica" ou meramente instrumental, é teórico-política e só existe para quem parte da perspectiva do proletariado. Por isso a dialética é, como coloca Korsch, "crítico-revolucionária", ou não é...

Posts Relacionados:

Método Dialético e Prática Política

Engels e a Dialética

O Marxismo de Sylvia Pankhurst

Karl Marx: Comunismo e Autogestão Social

VIDA E MORTE DO LENINISMO

sábado, 29 de janeiro de 2011

Octávio Ianni: Crise dos Paradigmas e Crise do Marxismo


OCTÁVIO IANNI:
CRISE DOS PARADIGMAS E CRISE DO MARXISMO *


NILDO VIANA

Octávio Ianni é um dos cientistas sociais que mais tem colaborado com o estudo do que vem sendo chamado de “crise dos paradigmas das ciências” e da “crise do marxismo”. Este é, sem dúvida, dois dos maiores debates das ciências sociais na atualidade. Por isso, eles devem ser objeto de uma ampla reflexão teórica e a contribuição de Ianni deve ser analisada à luz de outras concepções teóricas.

As teses de Ianni apontam para a seguinte causa da crise dos paradigmas: as mudanças históricas ocorridas não se apresentam tais como os seguidores do pensamento clássico - o marxismo, em especial - esperavam. Estes não analisaram de forma “inteligente” os desenvolvimentos do mundo contemporâneo e continuaram utilizando conceitos e interpretações criadas para analisar certo período histórico que já se transformou e por isso precisa de novas categorias e teorias para explicá-lo. Portanto, as ciências sociais se encontram diante de novas realidades, de novos objetos. Conceitos como Estado-Nação, Imperialismo, Dependência, Bloco de Poder, são, entre outros, questionados.

As mudanças históricas e, conseqüentemente, a necessidade de elaboração de novos conceitos são por demais evidentes para que possamos questioná-las. Entretanto, consideramos esta análise incompleta e a solução encontrada insatisfatória. As ciências sociais devem então analisar esta nova realidade social e explicá-la. Porém, considerar de que trata apenas de uma “nova realidade” e não observar as mudanças que isto provoca naqueles que buscam explicá-la é uma análise “objetivista”. Não podemos tratar as críticas efetuadas por Marx, Lukács, Korsch, entre outros, à separação metafísica entre “sujeito” e “objeto”. Aliás, até estes conceitos são questionáveis, mas não trataremos disto aqui. Qual é o objeto de estudo dos cientistas sociais? É a realidade social. Esta, entretanto, envolve o sujeito que busca conhecê-la, inclusive os cientistas sociais. A realidade social não é homogênea e os diversos componentes da sociedade a observam de acordo com o seu ponto de vista. Portanto, se o “objeto do conhecimento” é um só, os sujeitos são múltiplos. Se a sociedade se transforma, aqueles que buscam conhecê-la também se transformam. É por isso que numa mesma época surgem diferentes interpretações da sociedade. Na mesma época em que surgia a sociologia de Weber aparecia a psicanálise de Freud. Porém, a teoria da religião de Weber é completamente diferente da de Freud.

Em uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas, a sua autoconsciência se manifesta de forma diferente dependendo de ponto de vista que se utiliza para analisá-la.

Portanto, o conhecimento da sociedade é muito mais dependente do ponto de vista da classe que se utiliza dele do que de uma “metodologia científica”. A classe social que tem interesse em revelar as contradições da sociedade capitalista é o proletariado e por isso qualquer análise que separe “sujeito” e “objeto” é ideológica.

Se a sociedade capitalista está se transformando, aqueles que buscam interpretá-la também estão mudando. As classes sociais estão se transformando (o campesinato, por exemplo, está se extinguindo na Europa Ocidental, como demonstrou Hobsbawm) e aqueles que representam seus pontos de vista também. Deparamos-nos com novos problemas e precisamos de novos conceitos e teorias para explicá-los. Nós, os cientistas sociais, estamos envolvidos nestas mudanças históricas, mas a abordagem de Octávio Ianni coloca apenas a mudança de “objetos”. Isto significa voltar ao velho e desgastado positivismo. Tornamo-nos, num passe de mágica, neutros e acima de contradições sociais? A própria ênfase colocada na mudança de objeto por Ianni já demonstra um ponto de vista e uma concepção teórica e política. Trata-se de uma reflexão acadêmica - que considera a academia como o observatório privilegiado para estudar a sociedade - que expressa o “ópio dos intelectuais”, lembrando ironicamente as palavras de Raymond Aron.

Além disso, as mudanças históricas não são tão grandes para colocar em questão conceitos como capitalismo, imperialismo, estado-nação, etc. Aliás, sem estes conceitos é impossível analisar a realidade contemporânea. Tais teses abrem caminha para a volta do irracionalismo. O imperialismo muda de forma, mas mantém o seu conteúdo. O estado-nação pode se transformar em “estado continental”, devido à formação dos blocos econômicos, mas continua sendo “estado”.

Deixemos de lado essas reflexões “metodológicas” e passemos para a análise histórico-concreta das causas da crise dos paradigmas nas ciências sociais. A nova configuração do capitalismo mundial representada pela rearticulação da divisão internacional do trabalho, formação de blocos econômicos, a crise do capitalismo de estado da URSS, Leste Europeu, avanço do neoliberalismo, etc., inaugura uma época de desvalorização progressiva das ciências sociais. A nova política do estado capitalista caracteriza-se pelo recuo na área da política social e do controle social, ou seja, no que poderíamos chamar de “ciências sociais aplicadas”. Essa desvalorização real e institucional é acompanhada por sua desvalorização ideológica, tal como demonstra as ideologias do “fim da história”, da “crise dos paradigmas”, da “pós-modernidade”, etc.

A partir dessas considerações, devemos colocar que o marxismo é o método que pode explicar o desenvolvimento histórico do capitalismo e suas perspectivas. Aqui cabe a pergunta: e a crise do marxismo? Na verdade, o “paradigma” que os ideólogos da crise visam é, essencialmente, o marxismo. Basta lermos Maffesoli, para entendermos isto. Octávio Ianni diz que não podemos confundir crise do marxismo e crise do leste europeu, pois o pensamento marxista continua fecundo, independentemente de sua aplicação por partidos políticos ou governos. Resta saber de qual “marxismo” se está falando. Tanto o “marxismo acadêmico - o marxismo mutilado e domesticado pela academia, portanto, despolitizado - quanto o “marxismo” ligado à formação e/ou consolidação do capitalismo de estado da URSS, China, Cuba, Albânia e Leste Europeu - o leninismo, stalinismo, maoísmo, etc., estão em crise.

As tentativas do “marxismo” em analisar as “novas realidades”, segundo Octávio Ianni, não tiveram a capacidade de absorvê-lo. O marxismo convive com um “impasse” gerado tanto pelo economicismo quanto pelo politicismo. Acontece que Ianni se esquece que, de um lado, caiu-se no politicismo e no economicismo, mas de outro lado, caiu-se no “culturalismo”, no “sociologismo”, ou em qualquer outro tipo de particularismo autônomo. Aliás, está e a impressão que temos ao ler o último livro de Ianni, A Sociedade Global, que cede aos encantos do “sociologismo” enquanto que a realidade econômica e política (as transformações do capitalismo mundial, as classes sociais na nova realidade mundial, etc.) são relegadas à vagas considerações secundárias. O marxismo como concepção política revolucionária sempre esteve marginalizado tanto nas acadêmicas quanto nos partidos políticos. Tanto em uns quanto em outros, o que existia era um marxismo adaptado e deformado por necessidades estranhas aos da classe social que ele busca representar: o proletariado. Daí conclui-se que o marxismo autêntico é o marxismo marginal, ou seja, aquele que esteve à margem das academias e dos partidos políticos. Logo, o que está em crise são as deformações do marxismo, pois o marxismo autêntico continua sobrevivendo nos subterrâneos da sociedade capitalista.

Disso tudo concluímos que a crise dos paradigmas é provocada não somente pela mudança de “objetos de estudos”, mas principalmente pelas mudanças históricas que criam “novos objetos” e novos interesses e necessidades no estudo da sociedade e, ainda, “novos sujeitos” - no caso, os cientistas sociais - para analisar estas novas realidades. Quanto à crise do marxismo, ela simplesmente não existe, pois o que está em crise são as deformações do marxismo. O marxismo autêntico continua não só vivo e atuante como também explicando as mudanças históricas e as ideologias contemporâneas, inclusive àquelas as quais Octávio Ianni sucumbiu.
____________________
Artigo publicado originalmente como:
VIANA, Nildo. O Marxismo na Contra-Corrente da História. Jornal Diário da Manhã, Goiânia, p. 23 - 23, 13 dez. 1992.

***********************
Posts Relacionados:

Vida e Morte do Leninismo

O Marxismo de Sylvia Pankhurst

Marx Está Superado?

Outros




sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

A Internet e as Rebeliões Populares no Mundo Àrabe


A Internet e as Rebeliões Populares no Mundo Àrabe

Nildo Viana

A chamada "Revolução de Jasmin", uma rebelião popular na Tunísia, marca um processo de radicalização das lutas de classes neste país e mostra um novo elemento que deve acompanhar as lutas sociais em nossa época, a internet e as redes sociais como meios de articulação e difusão, o que rompe com o monopólio das informações através das emissoras de rádio e televisão e alcança uma rapidez muito maior do que as formas mais independentes de comunicação (cartas, por exemplo) e com maior impacto (através do telefone é possível informar, mas via internet é possível mostrar imagens, fotos, vídeos, textos, etc.). A difusão da rebelião popular por outros países àrabes tem como inspiração as lutas sociais na Tunísia e a internet tem papel importante no processo de divulgação dos acontecimentos neste país, o que contribui com sua difusão.

As tentativas de revolução social sempre foram inspiradoras de movimentos análogos em outros países, desde as do início do século 20 (A Revolução Russa de 1917 inspirou movimentos análogos em diversos outros países, como Alemanha, Hungria, Itália, etc., incluindo a ideia dos "sovietes", os conselhos operários, como forma de auto-organização dos trabalhadores). O mesmo ocorreu posteriormente, principalmente no caso das lutas sociais do final dos anos 1960. Hoje, essa inspiração tende a se tornar mais rápida e precisa graças à internet, pois a desinformação e falta de precisão no que realmente ocorria serviu para a criação de toda uma mistificação da revolução russa ao unir bolchevismo e conselhos operários, que, na verdade, eram contraditórios.

Assim, as lutas sociais na Tunísia, o que vem se estendendo para outros países, ganharam destaque na imprensa mundial pelo papel desempenhado pela internet, especialmente o Facebook e as redes sociais. A reportagem de Taíssa Stivanin informa que 25% dos tunisianos possuem conta no facebook (clique aqui) e tendo em vista que se trata de um país de capitalismo subordinado e que grande parte da população vive na pobreza, então é algo significativo, embora não abarque toda a população do país. A rebelião popular se espalha para diversos países, tal como o Iêmen (clique aqui) e algumas reportagens colocam o papel da juventude, dos desempregados (lumpemproletariado) e da suposta "classe média" (certamente setores das classes auxiliares da burguesia, como intelectualidade, e das classes subordinadas com melhor nível de renda) e principalmente da internet nesse processo (clique aqui).

A grande novidade da Revolução de Jasmin, como vem sendo chamado a rebelião tunisiana, é justamente o papel da internet e das redes sociais enquanto instrumento de articulação e difusão do movimento contestador. Isto, obviamente terá conseqüências, entre elas a censura sobre este meio de comunicação, o que já vem ocorrendo. Segundo Taíssa Stivanin, "As autoridades logo perceberam o perigo que representava a Internet, e suspenderam o Twitter e Facebook".

Obviamente que as bases sociais das lutas sociais na Tunísia e demais países, tal como os governos autoritários (alguns ditatoriais e quase "vitalícios"), o desemprego, etc., em países de capitalismo subordinado, sob domínio do neoimperialismo, são o fundamental, mas as condições semelhantes nestes países também produz uma tendência comum que o processo de difusão de informação das lutas reforça, ampliando a capacidade de expansão das lutas sociais. Claro que entre os países africanos, a situação da Tunísia é bem melhor do que o de muitos outros países, o que torna a base social da revolta mais forte na Africa do Norte.

O papel da internet na revolta popular na Tunísia é apenas um sinal de sua potencialidade de uso comunicacional subversivo, e os protestos no Egito, Jordânia, etc., não são desencadeados com base nas notícias veiculadas pelos meios oligopolistas de comunicação. Da "Revolução de Jasmin" (Tunísia) à "Revolução das Rosas" (Iêmen) é possível perceber que as revoltas populares ganham com o uso comunicacional da internet, e a ampliação do seu potencial subversivo é de fundamental importância, inclusive para passarem de revoltas com nome de revolução para verdadeiras revoluções sociais, que não apenas derrubam governos, mas abolem o estado de coisas existente em sua totalidade e instaura novas relações sociais e radicalmente diferentes em seu lugar.

Posts Relacionados:




Informe e Crítica

A Era da Aventura no Mundo dos Quadrinhos

A Era da Aventura no Mundo dos Quadrinhos

Nildo Viana

A história das histórias em quadrinhos é marcada por uma periodização pouco questionada e que coloca o período de 1929-1939 (Gubern, 1979; Anselmo, 1975) como sendo a “época dos heróis”, da “aventura” ou da “explosão dos quadrinhos” – que para uns marca a década de 30 (Bibe-Luyten, 1987) enquanto que, para outros, dura até 1937 (Renard, 1981; Baron-Carvais, 1989) ou até 1949 (Marny, 1979). Na verdade, trata-se de um período das HQ que marca o surgimento de um novo gênero, a aventura e, ao mesmo tempo, um novo papel para elas. O novo papel das HQ se inicia em 1929 e manteve sua hegemonia até 1960 e, depois dos abalos desta década, torna a ser predominante a partir da década de 70 até a atualidade, nos primeiros anos do século 21. O gênero aventura surge em 1929 e é a primeira expressão deste novo papel, que, no entanto, passa a ser transmitido por outros gêneros e é por isso que o mundo dos heróis perde sua hegemonia em torno de 1938, quando a supremacia passa a ser da superaventura (Viana, 2002).

O gênero da aventura vem substituir as histórias em quadrinhos com desenhos caricaturais e histórias cômicas, infantis e/ou familiares que predominam até o final da década de 20. O gênero aventura marca uma mudança formal e de conteúdo. A mudança formal é caracterizada pela substituição dos desenhos caricaturais por desenhos realistas e a mudança de conteúdo, à qual nos deteremos mais adiante, substitui os temas familiares, infantis e cômicos pela tematização da aventura. Segundo Gubern,

“Neste período da adolescência de uma arte, os comics poderiam ser considerados em conjunto como produtos culturais cândidos e com um registro temático notavelmente limitado. Enquanto prolongações da caricatura e da anedota gráfica, não haviam ousado ainda abordar a épica aventureira, já implantada no cinema e que desfrutava de longa tradição na narrativa popular” (Gubern, 1979, p. 91).

O novo gênero traz um desenho realista que é necessário com a renovação temática ocorrida. A caricatura combina com a comicidade, bem como também se harmoniza com a simplicidade das histórias familiares e infantis e seus poucos personagens. Mas, no novo gênero, a comicidade é substituída pela seriedade e isto o torna incompatível com a caricatura. O crescimento do número de personagens, os ambientes em que se desenrolam as aventuras, os atributos físicos típicos dos heróis e vilões, entre outros elementos, promovem a necessidade de um desenho realista.

Por conseguinte, é fundamental compreender a renovação temática do gênero aventura, pois é isto que lhe caracteriza e provoca a renovação formal. Sendo assim, iremos, inicialmente, buscar compreender o gênero aventura e, posteriormente, o seu processo histórico de constituição.

O Gênero Aventura

O novo gênero de HQ pode ser resumido em duas palavras: aventura e herói. Ocorre uma transição, já aludida anteriormente, do ambiente da história, que se amplia e deixa de ser meramente familiar e cômica.

“Durante as primeiras décadas de existência, a história aos quadradinhos, como se hesitasse em dedicar-se a aspectos sérios, limitou-se a uma função cômica. Ainda próxima da caricatura, põe em cena personagens e animais caricaturais e fá-los evoluir em quadros estilizados. É o caso de Blondie e da Família Illico” (Marny, 1970, p. 122).

A HQ surge como tira de jornais e isto lhe provoca uma limitação, pois o espaço para o desenrolar dos quadrinhos é muito limitado. A histórias deveriam ser curtas. O surgimento do gênero aventura ocorre dentro dos mesmos limites, mas já anunciando a autonomização dos quadrinhos em relação aos jornais e revistas, abrindo caminho para os futuros álbuns e revistas em quadrinhos. A solução encontrada foi a seriação das histórias, isto é, a cada dia aparecia, no jornal, um trecho da história. Isto ocorre devido ao fato de que a aventura é uma narrativa seqüencial longa no qual o herói deve cumprir uma missão. O caráter seqüencial e longo da narrativa aventureira promove a necessidade de seriação e, posteriormente, de autonomização das HQ através do lançamento das revistas em quadrinhos. Os Comics Books surgem apenas em 1937, já na fase final da proeminência do gênero aventura e com a ascensão do gênero superaventura.

Portanto, o herói é uma figura fundamental no gênero aventura, pois é ele que deve cumprir a missão que fornece a dinâmica e sentido da história. A sociedade capitalista provoca uma valoração cada vez maior do indivíduo. Desde a economia política clássica de Adam Smith e David Ricardo, passando pela filosofia de Stirner, até chegar ao mundo fictício de Robinson Crusoé e ao mundo do romance, o individualismo é uma das idéias-força da ideologia dominante e das construções fictícias da classe dominante. Lucien Goldmann afirma que o romance se caracteriza pela transposição da vida cotidiana fundada numa sociedade individualista e mercantil para o mundo fictício (Goldmann, 1990). A aventura também realiza esta transposição do individualismo para o mundo da ficção e esta é uma de suas características fundamentais.

No entanto, no mundo dos quadrinhos antes do gênero aventura, a supremacia do indivíduo não era tão visível, apesar de algumas exceções, cujo motivo se encontra no público-alvo deste reino da fantasia: a criança. Sem dúvida, alguns adultos se interessavam pelas “bandas desenhadas” e a juventude era um grupo etário em formação que também era atraída por estas histórias, mas é somente com o gênero aventura que o indivíduo, na figura do herói, assume papel proeminente.

Isto se deve às condições históricas que engendraram o novo gênero, das quais trataremos mais adiante, mas um elemento fundamental para a emergência do herói como figura proeminente nas HQ foi a ampliação do público-alvo e, simultaneamente, o novo papel social das HQ. A crise de 1929 traz a necessidade de um indivíduo forte, resistente, um verdadeiro “herói”. O herói dos quadrinhos, pela sua própria existência, é o veículo desta mensagem:

“O mundo onde tem de combater é pois um campo fechado onde se batem o bem e o mal, a luz e as trevas, como no princípio dos tempos. O herói é o campeão do bem, o restaurador da ordem, por vezes até o ‘polícia’ do cosmos. Contra ele, bem podem desencadear-se as forças do mal e da treva; acaba por sair vencedor, visto que os deuses não podem permitir que o excesso triunfe, pois assim o cosmos arruinar-se-ia. Os deuses não podem aceitar nem a desordem nem a injustiça. Os homens também não. O que explica a veneração quase sagrada com que rodeamos o heróis: tem à sua volta como que uma auréola de divindade. Os homens têm necessidade interior de heróis” (Marny, 1970, p. 123).

Este trecho de Marny revela uma das características da aventura: o maniqueísmo, isto é, a oposição entre o bem e o mal. Esta característica está presente em todas as aventuras, sendo o seu motor. Esta raiz mitológica da aventura dos quadrinhos tem sua razão de ser pelos limites da consciência burguesa, que nunca pode revelar tudo, apenas apresenta o conflito mas não suas determinações sociais e a forma de se evitar isto é apelando para o maniqueísmo, a oposição entre o bem e o mal, e não a oposição entre grupos sociais e seus interesses.

Outra característica apontada por Marny, no entanto, se aplica apenas ao herói conservador, e, portanto não se aplica a todos os heróis dos quadrinhos. Mas o herói conservador é amplamente dominante no mundo das HQ. Esta característica é a relação indissolúvel estabelecida entre a ordem e a justiça, o que lhe proporciona o seu caráter conservador.

A terceira característica é a “divinização do herói”, que, ao contrário do que pensa Marny, não é uma “necessidade interior dos homens” (algo natural) e sim uma necessidade socialmente constituída, produzida por aqueles que são oprimidos e não conseguem imaginar que são os próprios agentes de sua libertação e por isso jogam suas esperanças nos heróis e como estes, na realidade, são praticamente inexistentes, então o herói dos quadrinhos aparece como o seu substituto imaginário.

O maniqueísmo e a indissolubilidade entre ordem e justiça são as características conservadoras da maioria dos heróis dos quadrinhos, o que pode ser contrabalanceado pela ressignificação que pode ser feita por muitos leitores. O maniqueísmo cumpre o papel de ofuscar as relações sociais que geram as ações humanas e as autonomizam, tornando-as produtos da maldade ou bondade inatas. Embora muitas histórias proporcionem uma visão das relações sociais que engendram as ações humanas, este aspecto se revela apenas um deslize de um roteirista que deve detalhar uma determinada aventura e assim cede à força da realidade. Muitas vezes o vilão ou criminoso aparece do nada, por pura ambição pelo poder ou pela riqueza (no caso dos super-heróis é diferente, pois a necessidade de explicar a origem dos superpoderes geralmente remete ao processo de surgimento do super-herói e do supervilão), o que revela, simultaneamente, a mentalidade burguesa que busca se realizar de forma contraditória com a moral burguesa[1].

A relação indissolúvel entre ordem e justiça complementa o maniqueísmo, pois parte do pressuposto de uma determinada harmonia e estabilidade (uma “ordem”) que, de repente, se vê ameaçada e isto significa um rompimento com a justiça. A sua origem é a maldade (uma ambição “natural”, por exemplo), independentemente se a ameaça é interna (os criminosos, no caso de Dick Tracy) ou externa (Ming, o imperador do planeta Mongo, no caso de Flash Gordon). E qual é o estatuto dessa maldade? É a busca de estabelecimento de uma ordem sem justiça, entendo por esta última a concepção burguesa de justiça, isto é, os direitos burgueses de propriedade, liberdade de ir e vir, etc.

No entanto, existem heróis que contestam esta relação indissolúvel entre ordem e justiça, tal como Zorro (espadachim) que luta contra os colonizadores espanhóis. Neste caso, a ordem está em contradição com a justiça e esta só pode ser estabelecida (ou restabelecida) com a mudança social (ou de quem detém o poder). Assim, a irrupção do “agente da desordem” não significa o aparecimento do vilão e sim do herói, que é tido, pelos representantes da ordem como um “criminoso”. No caso dos heróis conservadores, a ordem é justa e no caso dos heróis contestadores é injusta e por isso, no primeiro caso, a emergência da contestação é o crime e, no segundo, a justiça. Porém, os heróis contestadores nunca expressam uma contestação da ordem capitalista (isto só acontecerá nos anos 60, com o gênero marginal, mas que já não se pode considerar como fazendo parte do gênero aventura) e sim de sociedades pré-capitalistas, seja o despotismo feudal (Robin Hood) seja a colonização espanhola (Zorro, espadachim).

O gênero aventura se caracteriza pela aventura, uma narrativa seqüencial longa, realizada por um herói, um indivíduo com capacidades humanas extraordinárias (força física, atributos morais, etc.), que deve realizar uma missão: lutar pela justiça. Por isso Marny pode dizer que “o herói existe só para a (e pela) missão. Aborrece-se entre duas aventuras”, daí sua eterna disponibilidade, pois não depende dele nem recusar ou hesitar já que “a força superior que nele habita empurra-o fatalmente para frente” (Marny, 1970, p. 123).

A Origem dos Heróis

O ano é 1929. O país é os Estados Unidos, a maior fábrica de heróis dos quadrinhos do planeta. Tarzan é o modelo exemplar de heróis de HQ, assim como o super-homem é o modelo exemplar de super-herói. Antes de chegar aos quadrinhos, Tarzan já havia sido criado através do romance de Edgar Rice Burroughs em 1912. Já na década de 20 chegou pela primeira vez no cinema. Porém, o novo contexto histórico cria uma demanda imaginária pelos heróis por parte da população.

O processo de burocratização e mercantilização da produção das HQ já havia se iniciado em 1915 (Gubern, 1979). Este processo proporcionou uma maior profissionalização e especialização de desenhistas e roteiristas, bem como foi consolidado, cada vez mais, uma competição oligopolista no mundo das HQ com a emergência dos Syndicates, agências especializadas em fornecer matérias específicas e variadas, especialmente de entretenimento (Furlan, 1985). O desenvolvimento técnico e a influência da produção cinematográfica também contribuíram para a formação do novo gênero:

“O período que se abre em 1929 e termina com o início da Segunda Guerra Mundial constitui uma idade de ouro para o novo meio de expressão devido em parte à considerável ampliação temática produzida pela introdução da mitologia aventureira, que implicou uma notável ampliação da esfera dos seus leitores. Esta mutação processou-se debaixo da influência do naturalismo da imagem cinematográfica, que constituía então o espetáculo-rei das massas, e da do realismo próprio da ilustração dos magazines e da publicidade (cuidado com o pormenor, sombreado tridimensional, etc.). Uma nova geração de desenhistas, formados nas academias de arte e com prévia prática de ilustradores, conseguiram distanciar-se do estilo bufo e do grafismo caricaturesco a que permaneciam agarrados os comics, desligando-os da tradição da anedota gráfica em direção à da novela de aventuras, cujas dimensões e enredos obrigaram a seriar os episódios” (Gubern, 1979, p. 96).

Ao lado destas determinações, observamos a determinação fundamental do gênero aventura: a crise do regime de acumulação intensivo que culmina com a crise norte-americana de 1929. O regime de acumulação intensivo, instaurado como reação burguesa às lutas operárias que, na Europa, havia reduzido a jornada de trabalho e assustado a classe dominante com a experiência autogestionária da Comuna de Paris, vai implantar o taylorismo, o Estado liberal-democrático e o imperialismo, instaurando o capitalismo oligopolista. Este entra em crise com as novas lutas operárias, tal como as tentativas de revolução na Europa, a Revolução Russa, as crises financeiras, etc., e isto vai gerar o capitalismo de guerra, forma transitória que desemboca no capitalismo oligopolista transnacional, marcado por um novo regime de acumulação, fundado no fordismo, no Estado integracionista (de “bem estar social”) e no imperialismo deixa de privilegiar a exportação de capital-dinheiro para fortalecer a expansão transnacional (Viana, 2003).

Nos Estados Unidos, a crise de 1929 promoveu uma demanda imaginária pelo herói, do lado do público, e a necessidade de se destacar a proeminência dos norte-americanos (e também a de outros países, que também produziram seus heróis, como veremos adiante), devido ao acirramento da competição interimperialista e a ameaça de guerra. Assim, a aventura apresenta o “desejo de evasão” e de “heróis positivos” e coloca a necessidade de “novos modelos” para inspirar a ação humana (Bibe-Luyten, 1987, p. 26). A crise de 1929 produz a demanda imaginária pelo herói: “é como se os heróis envolvidos nas histórias compensassem as perturbações e a insegurança da triste realidade e todos resolvessem fugir para lugares desconhecidos” (Bibe-Luyten, 1987, p. 26).

A necessidade do herói, enquanto figura compensadora imaginária, vem acompanhada, ao lado da produção de HQ, de um tipo específico de herói: o colonizador. Isto corresponde à nova política externa norte-americana. A crise de 1929 contribuiu com a elaboração desta nova política. Os EUA a partir de Franklin Roosevelt lançam a política de “boa vizinhança”. A partir de 1920, no entanto, a presença norte-americana na América do Sul se tornou cada vez mais significativo e seu crescimento era proporcional à diminuição da presença inglesa (Schilling, 1984). Os Estados Unidos, no entanto, continua sua expansão comercial e financeira.

“A exportação de capitais subiu rapidamente e em 1929 os investimentos estrangeiros dos Estados Unidos chegaram a 14 700 milhões de dólares. Em relação a 1914, tinham quase quintuplicado. (...). A política exterior dos Estados Unidos foi de índole agressiva não só durante a Primeira Guerra Mundial, mas também depois. O imperialismo norte-americano continuou a dominar o continente americano” (Polianski & Shemiskine, 1973, p. 88).

Desta forma, os EUA passaram a se posicionar como os representantes da ordem mundial, possuindo um papel “civilizador”. O papel proeminente assumido pelo Estado capitalista neste período (keynesianismo) é a expressão de um salvador e ordenador de uma sociedade em crise (Dorfman & Jofre, 1978), que também reforça a idéia de que a ordem abalada deve ser restabelecida e, no mundo dos quadrinhos, isto cabe ao herói, o substituto do Estado, o responsável pela ordem e pela justiça. A aparência física do herói norte-americano, por si só, denuncia seu caráter axiológico:

“Em primeiro lugar, deve ter um corpo perfeito, uma musculatura impecável, tão mostrada quanto possível. E uma fisionomia aberta e simpática em que se reconhece o protótipo do americano – tal como sonha ser -, de nariz curto, maxilares quadrados (símbolo de decisão) e, por vezes, um vinco delicado no queixo. Isto corresponde de tal maneira à verdade que os criadores europeus o talharão pelo mesmo padrão. Em resumo, é do tipo ariano...” (Marny, 1970, p. 124).

Em 1929, aparece, nos EUA, Tarzan e Buck Rogers. Nos anos seguintes vão surgindo novos heróis: Príncipe Valente, Dick Tracy, Flash Gordon, Zorro (Cowboy), Mandrake, Fantasma, entre outros. Na Bélgica, George Hémy (Hergé) lança Tintin. Tarzan vai ser o modelo exemplar do herói dos quadrinhos e vai inspirar muitos outros, tal como Jim das Selvas (1933), o primeiro de uma série que contínua até os dias de hoje. Mas há um elemento em Tarzan que influencia a safra de heróis surgida no período auge do gênero aventura: a missão colonizadora. Tarzan, um nobre inglês, é o rei das selvas africanas, dos “macacos” e nativos, que se depara com civilizações antigas, exóticas, e promove a justiça e a ordem. Por detrás da máscara de “missão civilizadora”, o que temos é uma missão colonizadora.

O mesmo ocorre com Flash Gordon, que combate o Imperador Ming (de aparência asiática...), do planeta Mongo, que quer conquistar o planeta Terra. Ming representa o despotismo, o poder absoluto, e Flash Gordon a democracia, a liberdade e a justiça, ao estilo burguês e norte-americano. A aparência asiática de Ming aponta para uma divisão étnica que marca uma oposição clara, entre “mocinhos e bandidos”. Buck Rogers, antecessor de Flash Gordon, Jim das Selvas e Fantasma também exercem a mesma missão colonizadora. Jim das Selvas vive suas aventuras na Malásia e Mongólia, embora também fizesse expedições à América do Sul e Birmânia. O Fantasma é mais um nobre inglês que reina nas selvas africanas, desta vez de Bengala, e luta contra o crime e pela justiça. Buck Rogers, por sua vez, viaja ao futuro para manter a ordem e a justiça, antecedendo a ameaça que a civilização burguesa-ocidental e do que aconteceria com sua derrocada, o reino da desordem e injustiça que o herói deve combater para restabelecer a harmonia. Como se vê, a maioria dos heróis norte-americanos não atuam nos EUA. As exceções se encontram naqueles que atuam no passado (os heróis do velho oeste – “Cowboys”) ou que combatem os criminosos (os “heróis policiais”). Na Europa, surge Tintin (1929), um herói ainda a meio caminho do caricatural e do desenho realista, que viaja por inúmeros países nos diversos continentes lutando pela justiça e pela ordem. A sua primeira aventura (nunca reeditada...) foi Tintin no País dos Sovietes, uma crítica ao regime capitalista estatal soviético, considerado “socialista”...

Outros tipos de heróis surgem neste período, possuindo determinações específicas e em alguns casos mesclando estilos diferentes. O herói que combate a criminalidade é um bom exemplo. Nos EUA, a emergência do “crime organizado” e o crescimento da criminalidade a partir da crise de 1929, bem como o surgimento do FBI, promove o aparecimento de toda uma safra de heróis detetives, policiais e coisas do gênero, tal como Dick Tracy (1931); Agente X-9 (1934), Rip Kirby (1946), entre outros. As aventuras policiais marcam o nascimento de um subgênero no interior do gênero aventura, fazendo emergir a figura do “herói policial”, segundo expressão de Marny, sem ter o brilho que os demais possuem por suas limitações devido sua ligação com a figura real do policial, inclusive aparência física, que, segundo alguns, encaixaria muito bem nos vilões (Marny, 1970). Outros subgêneros, expressando outros tipos de heróis, como o herói das selvas (Tarzan, Jim das Selvas, Ka-Zar, Tantor), o herói cômico (Popeye, Lucky Luke), o herói fantástico (Mandrake, Tabu – O Feiticeiro da Floresta), o herói de ficção científica (Buck Rogers, Brick Bradford, Flash Gordon), o herói-cowboy (Red Ryder, Bronco Bill – ex-Bufallo Bill Jr., Lone Ranger – O Zorro Cowboy, como ficou conhecido no Brasil) entre outros, manifestam, sob formas diferentes, as características básicas do gênero aventura. O herói cômico era uma tentativa de juntar dois gêneros, no qual a comicidade e o desenho caricatural se unia com a narrativa seqüencial e longa na qual o herói buscava cumprir a sua missão justiceira. Tintin é um passo além do cômico, pois além de seu desenho ser menos caricatural, a comicidade é relegada a segundo plano.

Considerações Finais

A ligação do herói com os interesses dominantes de sua época é parcialmente questionada por alguns (Marny, 1970), embora sem nenhuma fundamentação consistente. E o desenvolvimento histórico das HQ constituem uma prova inequívoca de tal relação, embora não seja necessariamente intencional. As mudanças históricas promovem alterações no papel das HQ. Os heróis dos quadrinhos viverão esta situação, pois a missão colonizadora foi substituída pela missão da guerra, com a passagem para o capitalismo de guerra. O envolvimento exagerado dos heróis com a Segunda Guerra Mundial apenas revela o que em período anterior não era tão facilmente visível. Neste período, além do surgimento dos super-heróis, tais como o Super-Homem e Capitão América, vemos os heróis se envolverem diretamente com a guerra, e a relação oculta se torna explícita:

“Os quadrinhos, até antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, já estavam engajados numa posição política. O Príncipe Valente luta contra os hunos, que, na gíria inglesa, queria dizer germânicos”.

"Dick Tracy e X-9 se voltam contra sabotadores e até o Tarzan, na selva africana, luta contra os soldados coloniais nazistas" (Bibe-Luyten, 1987, p. 34).

Isto não ocorreu apenas com Tarzan, Dick Tracy, Príncipe Valente e X-9, pois podemos citar inúmeros outros exemplos, tais como os de Terry e Os Piratas e Flash Gordon:

“Quando o Japão invadiu a China, Terry e seus amigos se engajaram na luta para expulsar o invasor. Em 7 de dezembro de 1941, após Pearl Harbor, Terry ingressou na Força Aérea, e seu companheiro passou a ser Flip Corkin, calcado no herói verdadeiro, Coronel Philip Cochran. Uma página dominical de Terry era tão bem escrita e definia tão bem o espírito determinado de busca da vitória, que foi incluída nos Anais do Congresso, numa segunda-feira, dia 18 de outubro de 1943” (Moya, 1996, p. 90).

“Depois de vários anos de luta Flash [Gordon] consegue por fim ‘paralisar’ Ming, que o ameaçava com o seu desintegrador. É proclamada a república! Mas eis que Zarkov capta uma notícia verdadeiramente espantosa: a guerra está a arrasar a terra. Daqui em diante é ali que a liberdade está ameaçada e os três amigos regressam ao nosso planeta para beneficiarem as nações livres com as superarmas de Mongo” (Marny, 1970, p. 168-169).

Neste período, o invisível se torna visível, e o mundo dos heróis se torna arma a serviço da propaganda de guerra, “apegados a uma militarização massiva dos respectivos personagens e a um esquematismo empobrecedor” (Gubern, 1979, p. 110). Nesta época, “nenhum herói esteve isento do fervor político”. Até mesmo um herói proletário antifascista surge neste momento:

“Neste contexto novo na história deste meio de expressão, surgiu na imprensa norte-americana o primeiro herói desenhado de filiação comunista, o proletário Pinky Rankin (pinky é equivalente de ‘vermelho’), desenhado a partir de 1942 por Dick Floyd para o diário comunista Daily Worker, como exaltação da contribuição da esquerda para a grande cruzada antifascista” (Gubern, 1979, p. 111).

Também surgiram “heróis fascistas” (o herói se presta a qualquer tipo de trabalho...), tal como Dick Fulmine, na Itália. Novos heróis norte-americanos dedicados exclusivamente à guerra também apareceram: Comando Ianque (1940), Tio Sam (1941), Falcão Negro (1941), Capitão Comando (1943). Aliás, o nome “capitão”, derivado de uma posição na hierarquia militar, será uma constante e mais uma dezena de “capitães” irão surgir nesta época, culminando com o mais famoso, O Capitão América, um super-herói.

Alguns consideram que este foi um momento de “politização” ou de “utilização política dos quadrinhos” (Gubern, 1979; Bibe-Luyten, 1987), o que é um equívoco. Na verdade, este foi um momento no qual se tornou mais explícito o caráter político das HQ, cujo papel alterou com as próprias mudanças sociais e internacionais. A guerra produz o herói guerreiro assim como a crise, a expansão imperialista e a competição interimperialista produzem o herói colonizador. A radicalização, tal como ocorre em um momento de guerra, produz uma revelação mais explícita e direta dos valores e interesses por detrás dos heróis dos quadrinhos e da ficção em geral.

Referências Bibliográficas

Anselmo, Zilda A. Histórias em Quadrinhos. Petrópolis, Vozes, 1975.

Baron-Carvais, Annie. La Historieta. México, Fondo de Cultura Económica, 1989.

Bibe-Luyten, Sônia. O Que é História em Quadrinhos. 2a edição, São Paulo, Brasiliense, 1987.

Dorfman, Ariel & Jofré, Manuel. Super-Homem e seus Amigos do Peito. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

Furlan, Cleide. HQ e os “Syndicates” Norte-Americanos. In: Bibe-Luyten, S. (org.). Histórias em Quadrinhos. Leitura Crítica. 2ª edição, Edições Paulinas, 1985

Goldmann, Lucien. Sociologia do Romance. 3ª edição, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990.

Gubern, Román. Literatura da Imagem. Rio de Janeiro, Salvat, 1979.

Marny, Jacques. Sociologia das Histórias aos Quadradinhos. Porto, Civilização, 1970.

Merton, R. Sociologia: Teoria e Estrutura. São Paulo, Mestre Jou, 1970.

Moya, Álvaro. História da História em Quadrinhos. 2ª edição, São Paulo, Brasiliense, 1996.

Polianski, F. & Shemiskine, I. História Económica dos Estados Unidos. Lisboa, Estampa, 1973.

Renard, Jean-Bruno. A Banda Desenhada. Lisboa, Presença, 1981.

Schilling, V. EUA X América Latina. As Etapas da Dominação. 2ª edição, Porto Alegre, Mercado Aberto, 1984.

Viana, N. Super-Heróis, Axiologia e Inconsciente Coletivo. In: Quinet, A. e outros. Psicanálise, Capitalismo e Cotidiano. Goiânia, Edições Germinal, 2002.

Viana, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro, Achiamé, 2003.
 
Notas:
 
[1] Esta concepção é semelhante a de Merton (1970), considera que existem indivíduos que aceitam os objetivos culturais definidos (ascensão social, por exemplo), mas não os meios aceitáveis para realizá-los (o trabalho, por exemplo), isto é, mudando a linguagem ideológica do autor por uma linguagem marxista, aceitam os valores dominantes, a mentalidade burguesa, mas não a moral burguesa que prega o trabalho e a honestidade como meios para realizá-los.

__________________
Artigo publicado originalmente em:

VIANA, Nildo. A Era da Aventura no Mundo dos Quadrinhos. Revista Eletrônica Espaço Acadêmico, Maringá/PR, v. 35, abril/2004.

Repúblicado em:

VIANA, Nildo. Heróis e Super-Heróis no Mundo dos Quadrinhos. Rio de Janeiro, Achiamé, 2005.