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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

A Literatura Crítico-Progressiva de Lima Barreto


A Literatura Crítico-Progressiva de Lima Barreto

Nildo Viana

O presente texto visa analisar o processo de construção literária de Lima Barreto, apresentando a hipótese de que este autor, em várias obras suas, utiliza um método crítico-progressivo. Iremos buscar realizar a demonstração da veracidade desta hipótese através da análise de dois contos de Lima Barreto, a saber: A Cartomancia e O Triste Fim de Policarpo Quaresma.

Antes de fazermos isso iremos realizar alguns apontamentos teórico-metodológicos preliminares, que serão complementados no decorrer da análise das obras literárias em questão. Segundo Lucien Goldmann (Goldmann, 1979; Goldmann, 1976; Goldmann, 1989), uma obra literária é sempre expressão de uma visão de mundo de uma determinada classe social. Para este autor, a tese da biografia do autor como principal elemento explicativo de um texto literário, tal como proposta por Hippolitte Taine (Taine, 1992), é equivocada. O que importa numa análise sociológica da literatura é descobrir a visão de mundo do autor, que, ainda segundo ele, corresponde a uma determinada classe social. A biografia não explica a obra literária, pois, se assim fosse, seria necessário explicar como Balzac, um legitimista (partidário da aristocracia), desenvolveu em sua obra uma visão de mundo nitidamente burguesa, isto é, seria necessário explicar como um indivíduo que possui uma determinada posição de classe (aristocracia) e ideologia política apresenta uma visão de mundo que corresponde à outra classe (burguesia).

Por não explicar tal fato, tal hipótese da biografia como elemento explicativo da obra literária se vê desmentida. Porém, neste ponto discordamos de Goldmann, pois a obra literária é produzida pelos indivíduos e, portanto, mesmo em sua concepção, é preciso explicar como o indivíduo veicula uma ou outra visão de mundo. A resposta a esta questão, no nosso ponto de vista, se encontra no processo histórico de vida do indivíduo, o que nos remete ao problema da biografia do autor. Entretanto, tal observação não significa adotar um “determinismo biográfico”, pois o indivíduo se envolve num conjunto complexo de relações sociais e não realiza um controle consciente e intencional sobre todo o processo de construção literária. O que queremos deixar claro aqui é que cada indivíduo veicula uma mentalidade em sua obra literária que correspondente aos interesses de uma ou outra classe social, mas a explicação das razões pelas quais veicula uma ou outra mentalidade decorre de seu processo histórico de vida.

Cada classe social, no interior de sua mentalidade, possui uma certa consciência das relações sociais e tal consciência varia de uma para outra classe. Cada classe social possui o que Lucien Goldmann denomina “consciência possível”, ou seja, um limite máximo a qual não pode superar. Esta visão se manifesta sobre os mais corriqueiros e pequenos fatos da vida cotidiana. Segundo Goldmann, e também outros autores, a perspectiva do proletariado (Marx, 1988; Lukács, 1989; Korsch, 1977; Viana, 1997; Viana, 2001), ou seja, da classe operária, possui a vantagem de ser desmistificadora, de romper com as ilusões e falsas representações sobre a realidade social. Por conseguinte, o autor que apresenta esta perspectiva possui uma possibilidade maior de criar uma obra literária desmistificadora. A literatura é uma reconstituição do real realizada a partir da perspectiva de quem escreve o texto. A reconstituição literária do real – seja este um fenômeno histórico, uma relação social contemporânea ou uma ideologia – pode ser crítica ou apologética. Ela será crítica quando expressar a perspectiva de uma classe revolucionária e será apologética quando expressar a perspectiva da classe conservadora em uma determinada sociedade. É possível, entretanto, que haja um caráter crítico sobre determinado aspecto do social que não seja expressão da perspectiva da classe revolucionária, mas esta crítica é limitada, pois se limita ao “moralismo” ou a questões superficiais. A perspectiva de um autor, em uma sociedade de classes, é, por extensão, a perspectiva de uma classe.

Resta saber qual classe o autor realiza a expressão literária e isto só poder ser reconhecido ao se descobrir qual é a sua posição diante da sociedade, o que é derivado de seu processo histórico de vida.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma: Uma Crítica ao Nacionalismo

Lima Barreto, o autor em questão, era anarquista e assumia uma posição de negação da sociedade e isto é facilmente observado em suas obras. Lima Barreto, em O Triste Fim de Policarpo Quaresma (1991) expõe as várias contradições da sociedade de sua época. Vê-se, ao longo do seu livro, a descrição de conflitos sociais que vão desde a questão da mulher até a questão agrária. Um texto tão rico em análise da sociedade, mesclado com poesia e humor, apresenta um aspecto fundamental: a crítica ao nacionalismo. A reconstrução literária da idéia de nacionalismo efetuada por Lima Barreto é colocada num plano histórico-concreto – o que significa que há, simultaneamente, uma reconstituição literária das contradições da sociedade brasileira daquela época – e assume um caráter crítico e realista. Procuraremos demonstrar que nesta obra de Lima Barreto existe uma reconstituição literária desmistificadora da ideologia nacionalista.

Lima Barreto, logo no início do livro, descreve a defesa que Policarpo Quaresma – personagem central do livro – fazia da modinha e suas estantes cheias de livros de autores nacionais ou sobre o Brasil. Demonstra, assim, seu caráter nacionalista e afirma que “Policarpo era patriota”, pois “desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da pátria tomou-o por inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor, o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa”. Vê-se, portanto, que Lima Barreto caracteriza Quaresma como um nacionalista convicto e relaciona o patriotismo com o carreirismo político e administrativo, bem como aponta seu caráter fetichista (“o patriotismo o fez pensar”...). Continuando nessa linha crítica, ele liga ironicamente guerra e pátria, ao dizer que Policarpo não podendo ir para o exército tentou a administração e no ramo militar, pois “era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos, de papelada inçada de quilos de pólvora, de nomes de fuzis e termos técnicos de artilharia, aspirava diariamente aquele hálito de guerra, de bravura, de vitória, de triunfo que é bem o hálito da pátria”.

Policarpo Quaresma representa um autêntico nacionalista que, entre outras coisas, chegava a ponto de pedir a adoção do Tupi-Guarani como língua oficial e nacional do povo brasileiro. Posteriormente, passou a se interessar pela terra e “então pensou que foram vão aqueles seus desejos de reformas capitais nas instituições e costumes: o que era principal à grandeza da pátria estremecida, era uma forte base agrícola, um culto pelo solo ubérrimo, para alicerçar fortemente todos os outros destinos que ela tinha de preencher”. É neste momento que acontece a transição do interesse de Policarpo da questão puramente cultural à questão política, embora, ainda lhe parecesse estranho o interesse pela política que via na região onde passara a morar. A sua preocupação era com a terra e com o exemplo que haveria de dar à nação, colaborando com a formação de uma “forte base agrícola”, através do seu sítio.

A personagem Olga ao visitar Policarpo começa a observar a miséria da roça e pergunta ao empregado do sítio de seu padrinho por que ele não planta no seu sítio e Felizardo, o empregado, responde “a terra não é nossa... e frumiga?... nós não ‘tem’ ferramenta... isso é bom para italiano ou ‘alamão’, que governo dá tudo... governo não gosta de nós...” Nesta passagem, Lima Barreto coloca com muita clareza a situação daqueles que estão sem acesso aos meios de produção, desvendando, assim, a máscara da sociedade de classes e revelando a situação do trabalhador rural sem acesso a terra e aos demais meios de produção. Mas não se limita a isso, pois a sentença o “governo não gosta de nós” traz um significado: o governo, ou o estado, não “gosta” daqueles que não tem os meios de produção, ou seja, o estado defende os interesses da classe dominante que detém os meios de produção. Coloca-se, então, a contradição entre a “idéia” de pátria e a pátria real. O próprio Policarpo Quaresma, na narração de Lima Barreto, ao negar o pedido de um político da região e com isso receber uma intimação municipal absurda, esboçou a compreensão desta contradição como nos mostra esta passagem: “a luz se lhe fez no pensamento... aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações, crestarlhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as”.

Assim, Policarpo compreende que a miséria da população não é “natural” e sim um problema criado socialmente. Mas Policarpo não abandonava o patriotismo, apenas o fazia mudar de forma. Depois de uma nova perseguição política, “Quaresma veio a recordar-se do seu Tupi, do seu folk-lore, das modinhas, das suas tentativas agrícolas – tudo isso lhe pareceu insignificante, pueril, infantil”, pois “era preciso trabalhos maiores, mais profundos; torna-se necessário refazer a administração. Imaginava um governo forte, respeitado, inteligente, removendo todos esses óbices, esses entraves, Sully e Henrique IV, espalhando sábias leis agrárias, levantando o cultivador... então sim! O celeiro surgiria e a pátria seria feliz”.

Os defensores da pátria, os militares, tornam-se os objetos da crítica de Lima Barreto: a maioria é apresentada como defensora de seus interesses pessoais e a minoria é apresentada como adepta “desse nefasto e hipócrita positivismo, um pedantismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da ordem, condição necessária, lá diz ele, ao progresso e também ao advento de regímem normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com fanhosas músicas de cornetins e versos detestáveis, o paraíso enfim, com inscrições em escritura fonética e eleito calçados com sapatos de sola de borracha!...”

Essa é uma crítica à relação forçada entre “ordem e progresso” e ao positivismo como um todo, que era a ideologia dos militares da época. Os militares, os “defensores da pátria” esperavam realizar os seus anseios com a revolta da Esquadra, atrás de seus mesquinhos interesses pessoais e “essas secretas esperanças eram mais gerais do que se pode supor. Nós vivemos do governo e a revolta representava uma confusão nos empregos, nas honrarias e nas posições que o estado espalha. Os suspeitos abririam vagas e as dedicações supririam os títulos e habilitações para ocupá-las; além disso, o governo, precisando de simpatias e homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações”.

Ora, se os defensores da pátria defendem, na realidade, seus interesses pessoais, então a pátria é apenas um mecanismo para manter a ordem e conquistar o servilismo das classes exploradas. Além disso, se observa aqui a revelação de uma das funções do estado para manter a dominação de classe: criar um conjunto de funcionários que passam a depender do estado e por isso irão defendê-lo, ou seja, cria a burocracia, classe auxiliar da burguesia. A burocracia possui seus interesses particulares, entre os quais o de se reproduzir aumentando o seu espaço no estado, criando novos cargos e departamentos, tal como havia colocado Selznick (apud Tragtenberg, 1990).

Assim, Lima Barreto desfaz a ideologia da pátria. Essas considerações lembram a do anarquista José Oiticica que disse que o “patriotismo, sentimento natural, é pelo estado convertido em elemento psicológico de obediência para fins egoístas, para manutenção da ordem, para repressão violenta e brutal dos famintos e desafortunados” (Oiticica, 1963).

Policarpo Quaresma se decepciona com o Marechal Floriano Peixoto, com a guerra contra os “revoltosos”, etc. Para ele, “a sociedade e a vida pareceram-lhe cousas horrorosas, e imaginou que do exemplo delas vinha os crimes que aquela punia, castigava e procurava restringir. Eram negras e desesperadas, as suas idéias; muitas vezes julgou que delirava”.

Assim, a ideologia da pátria que já havia sido denunciada pelo narrador onisciente que era Lima Barreto passa a ser desmascarado pelo personagem principal, Policarpo Quaresma, que chegou a conclusão de que “a pátria que quisera ter é um mito; era um fantasma criado por ele no silêncio do seu gabinete. Nem a física nem a moral, nem a política que julgava existir, havia. A que existia de fato era a do tenente Antonino, a do doutor Campos, a do homem do Itamarati” e continuava, “e, bem pensado, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a pátria? Não teria levado toda a sua vida norteado por uma ilusão, por uma idéia a menos, sem base, por um deus ou uma deusa cujo império se esvaía? Não sabia que essa idéia nascera da amplificação da crendice dos povos greco-romanos de que os ancestrais mortos continuariam a viver como sombras e era preciso alimentá-los para que eles não perseguissem os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Coulanges... Lembrou-se de que essa noção nada é para os Menenanã, para tantas pessoas... Pareceu-lhe que essa idéia como que fora explorada pelos conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviências psicológicas, no intuito de servir às suas próprias ambições...”

Assim, Lima Barreto coloca o nacionalismo como uma criação histórica e que serve a determinados interesses, avançando mais em um romance do que o anarquista José Oiticica em seu escrito político, pois este diz que o patriotismo é um “sentimento natural” que o estado utiliza para seus fins egoístas. O patriotismo ou nacionalismo não é um sentimento natural e sim um produto do desenvolvimento histórico e que serve aos interesses de quem detém o poder. Para Lima Barreto, o nacionalismo não é um “sentimento natural”, mas sim uma idéia criada historicamente e utilizada pelos “conquistadores” que se utilizam também das nossas fraquezas psicológicas.

A reconstituição literária do nacionalismo realizada por Lima Barreto assume um caráter nitidamente crítico e desmistificador. A crítica ao nacionalismo ocorre desde o início através do narrador e atinge o ponto culminante quando Policarpo Quaresma reconhece seu engano e se conscientiza de que a pátria é uma ficção. O final apresenta a unidade de pensamento do narrador e Policarpo, realizada através do desenvolvimento da consciência deste último, que ocorreu por intermédio de sua experiência própria e demonstra a completa superação da ideologia pelo segundo. Portanto, a reconstituição literária de Lima Barreto se caracteriza por ser uma crítica radical ao nacionalismo, que vai se desenvolvendo progressivamente no interior da narrativa.

A Cartomancia, Segundo Lima Barreto

Apresentaremos agora uma análise do conto A Cartomante, de Lima Barreto (1993). Os objetivos que nos propomos são os seguintes: em primeiro lugar, desejamos descobrir como Lima Barreto representa a cartomante, ou seja, o que significa uma cartomante para Lima Barreto; em segundo lugar, buscamos descobrir como Lima Barreto explica a necessidade de busca de auxílio de uma cartomante por parte de um indivíduo.

Partindo do referencial teórico anteriormente estabelecido, apresentamos as seguintes hipóteses a respeito do conto A Cartomante de Lima Barreto: a primeira hipótese é a de que o autor expressa uma visão desmistificadora do fenômeno do misticismo, o que significa dizer que ele possui uma perspectiva correspondente a do proletariado. Tal desmistificação ocorre através da contestação da eficácia da cartomante, pois uma cartomante é procurada devido à suposta eficácia que ela possuiria para resolver os problemas daqueles que a procuram.

A segunda hipótese é de que a origem da necessidade de busca de auxílio de uma cartomante se encontra nas condições precárias de vida da personagem central (que está desempregado, sem dinheiro, dependendo da boa vontade alheia e sendo sustentado por sua esposa), pois isto gera a necessidade de busca de uma explicação para suas derrotas consecutivas e tal explicação surge a partir não de um procedimento racional e sim místico, tal como o antropólogo Evans-Pritchard (1979) colocou em seu estudo sobre os Azande, no qual afirma que o azar se torna a explicação dos infortúnios, mesmo os mais corriqueiros, tal como um tropeço, que o indivíduo julga ser produto de feitiçaria de outro membro de sua tribo.

Portanto, o infortúnio cria a necessidade de sua explicação e isto se dá através da noção de bruxaria, feitiçaria, azar, etc. Isto também tem o efeito do indivíduo se sentir aliviado e colocar a culpa em outro que não ele próprio, justificando sua situação por qualquer motivo externo a ele e criando miticamente um “culpado” para os seus males. Cria-se assim, a concentração do mal em um indivíduo, tal como faz o pensamento mítico (Agacinsky, 1991). Por fim, este procedimento fornece, ao indivíduo que se encontra nesta situação, a esperança de superá-la, pois basta desfazer a feitiçaria e tudo voltará a ser como antes e o sentimento de impotência diante da situação atual é substituído pela esperança, que, entretanto, é depositada em uma terceira pessoa, aquela que irá desfazer o feitiço (feiticeiro, cartomante, etc.).

A terceira e última hipótese é de que Lima Barreto busca desenvolver neste pequeno conto o mesmo procedimento que realizou em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, a saber: realiza um procedimento narrativo caracterizado pelo desenvolvimento da autoconsciência do personagem central que passa da ilusão a uma percepção crítica da realidade, sendo que, no caso de O Triste Fim de Policarpo Quaresma, trata-se de uma crítica à idéia de pátria, ou, em outras palavras, utiliza um método de construção crítico-progressivo.

Neste texto, Lima Barreto realiza a crítica da idéia de pátria através do desenvolvimento da autoconsciência da personagem central, tal como colocamos anteriormente. O narrador apresenta um desenvolvimento do personagem a fim de que sua autoconscientização sirva para a conscientização do leitor. Trata-se de um método crítico-progressivo, no qual a crítica vai sendo construída progressivamente durante a narrativa através da autoconsciência do personagem central.

Tal como colocou W. Benjamin, a narração sempre se orienta para um interesse prático e sempre carrega consigo uma utilidade. Esta narração “pode consistir ora numa lição de moral, ora numa indicação prática, ora num ditado ou norma de vida — em qualquer caso o narrador é um homem que dá conselhos ao ouvinte” (Benjamin, 1983, p. 59).

Portanto, a partir destas hipóteses iremos analisar o referido conto de Lima Barreto e confirmá-las ou não. O texto de Lima Barreto possui algumas passagens que são ilustrativas de sua construção literária: sua narração apresenta diversas afirmações que deixam claro seus objetivos e procedimentos.

Segundo Lima Barreto, “não havia dúvida que naqueles atrasos e atrapalhações de sua vida alguma influência misteriosa preponderava. Era ele tentar qualquer coisa, logo tudo mudava. Esteve quase para arranjar-se na Saúde Pública; mas, assim que obteve um bom pistolão, toda a política mudou. Se jogava no bicho, era sempre o grupo seguinte ou o anterior que dava. Tudo parecia mostrar-lhe que ele não devia ir para adiante”.

A narração continua através da demonstração da visão que a personagem possuía de sua situação – que é nitidamente uma explicação mística – e também a saída encontrada diante desta constatação: “A certeza, porém, de que todas as suas infelicidades vinham de uma influência misteriosa, deu-lhe mais alento. Se era ‘coisa feita’, havia de haver por força quem a desfizesse” ; “(...) já adquirira a convicção de que aquela sua vida vinha sendo trabalhada pela mandinga de algum preto-mina, a soldo do seu cunhado Castrioto, que jamais vira com bons olhos o seu casamento com a irmã”.

Lima Barreto narra a decisão da personagem e da esperança adquirida em tal procedimento: “Ele iria a uma cartomante e havia de descobrir o que e quem atrasavam a sua vida”; “o mistério ia desfazer-se e o malefício ser cortado. A abastança voltaria a casa...”; “pelo caminho tudo lhe sorria”. Lima Barreto encerra sua narrativa apresentando sua mensagem através do processo de desenvolvimento da consciência de sua personagem central:

“Saiu, foi à venda e consultou o jornal. Havia muitos videntes, espíritas, teósofos anunciados; mas simpatizou com uma cartomante, cujo anúncio dizia assim: ‘Madame Dadá, sonâmbula, extralúcida, deita as cartas e desfaz toda a espécie de feitiçaria, principalmente a africana, etc.’"; “não quis outra; era aquela...”; “Arranjou, com o primeiro conhecido que encontrou, o dinheiro necessário, e correu para a casa de Madame Dadá”; “entrou, esperou um pouco, com o coração a lhe saltar do peito”; “O consulente saiu e ele foi afinal à presença da pitonisa. Era sua mulher”.

Tais afirmações confirmam a nossa segunda hipótese, que é a de que a origem da necessidade de busca de auxílio de uma cartomante se encontra nas condições precárias de vida do personagem central, pois sua situação, tal como visto pelo trecho acima citado, é precária, marcada pelo desemprego, pela falta de dinheiro, pela “má sorte”, pela miséria. Também, em partes não citadas do texto, se vê que ele vive na dependência da boa vontade dos amigos que lhe emprestam dinheiro e da esposa que sustenta a casa com “sua costura”.

Isto tudo gera a necessidade de busca de uma explicação para suas derrotas consecutivas e tal explicação se encontra na “coisa feita” ou no “trabalho” feito por algum especialista em mandinga, ou seja, aqui se vê que a feitiçaria se torna a explicação dos infortúnios, que é produto de alguém que não gosta dele. Uma das conseqüências disto é o fato do indivíduo se sentir aliviado e colocar a culpa em outro, no caso o seu cunhado, que seria o “responsável pela mandinga” e assim ele justifica sua situação por um motivo externo a ele e cria miticamente um “culpado” para os seus males, reproduzindo assim uma das características do pensamento mítico.

Além disso, este procedimento fornece a esperança ao personagem de superar esta situação, pois basta desfazer a feitiçaria para voltar aos bons tempos. O sentimento de impotência diante das suas condições desfavoráveis de vida é substituído pela esperança em superar os obstáculos e conquistar dias melhores, mas que depende de uma terceira pessoa, no caso, a cartomante. Também se confirma, se lembrarmos que o personagem descobre que a cartomante é sua própria esposa — o que significa que se trata de uma profissão tão suspeita que era necessário escondê-la do marido – a hipótese segundo a qual o procedimento narrativo de Lima Barreto se caracteriza pelo desenvolvimento da autoconsciência da personagem central, pois este assim como Policarpo Quaresma, em O Triste Fim de Policarpo Quaresma, acaba percebendo que estava se entregando a uma fé cega e absurda, ou seja, se decepciona e descobre que estava enganado, o que significa um processo de conscientização da personagem. Assim, Lima Barreto critica o misticismo através do desenvolvimento da autoconsciência da personagem central.

Isto também confirma a nossa primeira hipótese, que é a de que o autor expressa uma visão desmistificadora do fenômeno do misticismo, o que é a mesma coisa que dizer que sua perspectiva é equivalente a do proletariado. Tal desmistificação ocorre através da contestação da eficácia da cartomante e do exercício escondido de suas “capacidades”. Além disso, se observa uma dialética em que a miséria da personagem central cria a cartomante, sua esposa, e esta se propõe, falsamente, a solucionar os problemas gerados pela miséria alheia, ou seja, é a miséria que cria a cartomante e ao mesmo tempo o que a sustenta. A cartomante é produto da miséria própria e vive da miséria alheia. A miséria financeira, por sua vez, gera a miséria psíquica, no caso da personagem central. A miséria se reproduz de forma ampliada, partindo da esfera financeira até chegar na esfera mental. Por fim, observamos que este conto de Lima Barreto apresenta uma visão desmistificadora da cartomancia ao revelar a causa e a falsidade de sua prática. Lima Barreto apresenta uma crítica desta prática sob a forma de linguagem literária e assim envia sua mensagem, dá o seu conselho, como diria Benjamin.

Considerações Finais

As duas obras aqui trabalhadas de Lima Barreto se desenvolvem segundo o método de construção crítico-progressivo. Policarpo Quaresma e o marido desempregado (que foi despersonalizado devido ao desemprego, por isso Lima Barreto nem sequer lhe atribuiu um nome) são indivíduos iludidos e que rompem com suas ilusões no desenvolvimento da narrativa. O processo de ilusão aparece como natural, sendo a “atmosfera natural” da vida cotidiana, tal como coloca Kosik (1986), expressando o mundo das representações cotidianas. O processo de superação das ilusões ocorre com a luta do personagem para realizar seu sonho ilusório e ao efetivar tal luta ele acaba descobrindo o seu verdadeiro caráter. O patriota começa a perceber que se fiou numa ilusão e o mesmo ocorre com o marido desempregado, quando se deparam com as relações sociais concretas que produzem o patriotismo e a cartomancia.

A conscientização do personagem é narrada e assim se coloca o leitor num processo semelhante de desenvolvimento da consciência, levando-o a superar as mesmas ilusões que os personagens superam e atingirem o mesmo nível de consciência que o autor-narrador, numa espécie de dialética ascendente de matriz hegeliana. Um método crítico-progressivo de construção literária, oriundo da perspectiva de classe assumida por Lima Barreto, que só pode ser compreendido em toda sua complexidade a partir das leituras das obras deste autor aliadas a uma visão de seu posicionamento político e perspectiva de classe, o que explica sua adoção deste método de construção literária.

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Artigo publicado originalmente na Revista Possibilidades. Ano 01 no 01, Jun./Set. 2004.

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