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terça-feira, 29 de setembro de 2020

ESTADO E VIOLÊNCIA ESTATAL

 


ESTADO E VIOLÊNCIA ESTATAL

 

Nildo Viana

 

O Estado é tido por muitos como algo “público”, emanação do “povo”, ou então como árbitro neutro na sociedade civil. No entanto, essa interpretação do significado do Estado é falsa e isso é amplamente reconhecido desde Marx e outros pensadores. O Estado, em geral, é uma relação de dominação de classe, ou seja, uma instituição pela qual a classe dominante efetiva o processo de controle sobre o conjunto da sociedade (VIANA, 2015). Na sociedade capitalista, essa relação de dominação é mediada pela classe burocrática, pois o Estado assume a forma de um aparato burocrático de controle da sociedade civil. E uma das formas como o Estado capitalista – e não só ele, pois isso ocorre também nas formas anteriores do Estado nas demais sociedades classistas – efetiva esse processo de controle é através da violência. Analisar a violência estatal é nosso objetivo no presente texto.

Antes de tratar disso é necessário, no entanto, esclarecer o que entendemos por violência. Consideramos que violência é uma relação social na qual um indivíduo ou grupo impõe algo a outro indivíduo ou grupo contra sua vontade ou natureza (VIANA, 1999; 2001; 2002a; 2002b; 2014). A violência, nesse caso, não tem a amplitude que alguns autores atribuem, que inclui até explosões na natureza (o que significa confundir explosão, força, etc., com violência), sendo um fenômeno social. Assim, é uma relação social e não inclui fenômenos naturais. Essa relação social coloca, frente a frente, indivíduos e coletividades (ou “grupos”, no sentido amplo, ou seja, englobando classes, grupos sociais diversos, organizações) entre outras formas de coletividade), no qual uma parte (indivíduo, coletividade) impõe algo a outro indivíduo ou coletividade algo que é contra sua vontade ou natureza.

Assim, é importante entender que se trata de imposição. A imposição aponta para a ideia de compulsoriedade, ou seja, um indivíduo impõe algo, obriga o outro indivíduo, contra sua vontade ou natureza. Quando essa imposição é contra a vontade dos indivíduos, ela é não-consentida, e quando é contra a natureza é consentida. A violência consentida é geralmente imperceptível, invisível. Assim, se a classe senhorial constrange os indivíduos à escravidão, trata-se de violência perceptível, pois contra a vontade dos escravos, não-consentida. Quando a classe capitalista constrange um operário ao trabalho assalariado e determinada jornada de trabalho, trata-se de uma violência consentida, pois é contra sua natureza, mas não contra sua vontade, já que os indivíduos da classe operária aceitam esse processo.

Nesse sentido, é importante a percepção de Max Weber, segundo a qual o Estado possui “o monopólio do uso legítimo da força” (1978), ou seja, o aparato estatal possui o monopólio do uso da violência física. E não apenas isso, mas ele também é a “violência concentrada e organizada da sociedade” (MARX, 1988, p. 370). Porém, não é apenas em relação à violência física que o aparato estatal tem legitimidade, mas sob várias outras formas. No entanto, focalizaremos, no presente texto, apenas a violência física, ou seja, quando o Estado exerce violência física contra indivíduos e coletividades.

Estado e Violência Estatal

O Estado capitalista é uma organização burocrática, a maior da sociedade capitalista. Trata-se de um enorme aparato burocrático que, por sua vez, se estrutura em diversos outros aparatos burocráticos. Um aparato, aqui, significa um conjunto de organizações burocráticas. Assim, o aparato estatal tem seu aparato central, composto pelo aparato governamental, aparato legislativo, aparato judiciário e aparato repressivo (forças armadas, forças policiais, órgãos de investigação e segurança, etc.) e aparatos voltados para funções específicas (aparato educacional, aparato comunicacional, etc.). Desta forma, o aparato educacional possui, geralmente, tal como se vê na maioria dos países, um Ministério da Educação, que, por sua vez, coordena instituições de ensino (universidades, escolas técnicas, etc.), órgãos de financiamento e controle (conselhos estatais, como, no caso brasileiro a CAPES e CNPq)[1], entre outras organizações burocráticas vinculadas ao referido Ministério.

O estado capitalista tem a função geral de efetivar a reprodução das relações de produção capitalistas e para isso regulariza não somente essas relações, mas também o conjunto das relações sociais. Para efetivar isso, ele exerce várias funções específicas, gerando um aparato específico voltado para isto. Uma das funções específicas do aparato estatal é a repressiva. Para tanto, ele gera um aparato repressivo. O aparato repressivo conta com o exército, as forças policiais e os órgãos especializados de investigação e segurança. É o aparato repressivo o responsável pelo exercício da violência física, que é o nosso foco de análise. Porém, o uso do aparato repressivo é complexo. Ele usa a violência física de forma mais ampla em alguns casos, momentos, formas estatais. O Estado nazista, por exemplo, usa a violência física de forma muito mais ampla e generalizada, enquanto que o Estado liberal-democrático ou o integracionista, o fazem de forma menos intensa e extensa. Porém, o Estado liberal-democrático, em momentos de ascensão e radicalização do movimento operário, usa de forma mais intensa e extensa a violência estatal. Por outro lado, existe uma violência seletiva em relação a certos setores da sociedade. Isso é obvio no caso dos criminosos, mas também se efetiva com maior força e regularidade em relação às classes inferiores, movimentos populares, movimento operário e, no interior desses, os indivíduos e organizações revolucionárias, à população negra (em alguns países), manifestações de rua, etc. Porém, é preciso entender que a repressão não é apenas violência física, embora, geralmente se manifesta dessa forma.

Assim, a repressão estatal sob a forma de violência física é mais constante e regular nos regimes ditatoriais, sendo que nos regimes democráticos ocorre um processo de secundarização, sendo menos constante e atuando com mais força em casos esporádicos, em comparação com os regimes ditatoriais. A hegemonia, a legitimação, a cooptação, entre outros processos, geralmente são suficientes, nos regimes democráticos, para evitar revoltas, lutas radicalizadas e tentativas de revoluções. Porém, tais acontecimentos explodem, muitas vezes de forma inesperada, em tais regimes, o que promove um aumento da violência estatal com o uso da força física dos seus aparatos repressivos (exército, polícia, etc.). No entanto, mesmo que secundarizado, no sentido geral, a violência física é exercida cotidianamente pelo aparato estatal, embora voltada mais para certos setores da sociedade (criminosos, setores mais pobres da população, grupos vulneráveis, e, em certos países, setores da população negra, etc.).

O uso da violência física por parte do aparato estatal nos regimes ditatoriais assume várias formas, dependendo de sua situação, da correlação de forças, do seu momento, entre outras determinações. Os regimes militares tendem a usar a violência física mais intensivamente no início e no seu fim, pois são os momentos em que a resistência é maior e, por conseguinte, a repressão é mais necessária e dura. A situação do país e a correlação de forças também pode efetivar alterações no uso da violência física. A violência física é utilizada maciçamente contra os elementos recalcitrantes, como defensores da democracia, indivíduos rebeldes por mais variados motivos, movimentos populares, movimento operário, organizações revolucionárias ou organizações políticas insurrecionalistas (que se dizem “revolucionárias”, mas, no fundo, apontam apenas para a tomada do poder estatal, tal como o bolchevismo). A ditadura militar no Brasil, bem como em diversas outras experiências na América Latina e outros países, efetivou esse processo de uso da violência física e outras formas de repressão (censura, exílio, etc.) contra vastos setores da sociedade. Assim, artistas foram exilados, mas muitos foram atingidos diretamente por violência física, tal como aqueles que foram torturados. O exemplo clássico é o do cantor Geraldo Vandré, um dos nomes da “canção de protesto”, mas também até mesmo o conservador Amado Batista, cantor brega que na época foi torturado, segundo seu próprio depoimento, por ser livreiro e vender “livros subversivos”[2]. Diversos outros indivíduos, artistas, intelectuais, ativistas, sofrem violência física, sob a forma de tortura, espancamento, assassinato, etc. No caso argentino, na ditadura de Pinochet, o número de desaparecidos mostra o alto grau de uso da violência física.

Uma das determinações desse processo é que os regimes ditatoriais geralmente não possuem legitimidade e, por conseguinte, a repressão ganha uma primazia nas ações estatais. A violência física é, nesses casos, uma ameaça constante que se materializa com relativa facilidade e isso atinge até integrantes do poder em suas disputas. O exemplo clássico aqui são os regimes ditatoriais do capitalismo estatal, especialmente a antiga União Soviética na época do stalinismo. Stálin e seus aliados foram responsáveis pela eliminação física de todo o comitê central do Partido Bolchevique da época de Lênin, sendo que o último a sucumbir foi Leon Trotsky, em 1940, no distante México.

Nos regimes democráticos esses processos são menos constantes e regulares. No entanto, eles existem. A repressão violenta de manifestações de rua é exemplar nesse caso. Um caso concreto ajuda a perceber esse processo:

Uma onda de protestos referentes ao aumento do preço das passagens de ônibus vem ocorrendo no Brasil. Em Goiânia, houve cinco manifestações e em outras cidades já aconteceram várias. Destes vários protestos e movimentos, dois se destacaram, o do dia 28 de maio em Goiânia e o do dia 13 de junho em São Paulo, principalmente pela força do protesto e pela violência policial. Os manifestantes, principalmente estudantes secundaristas e universitários, foram acusados de vandalismo, terrorismo. As imagens na imprensa e na internet mostram a violência e truculência da polícia militar. Isso não gerou nenhuma reação por parte dos governos, da imprensa, de diversos setores da população. [...]. O que ocorreu em Goiânia no dia 28 de maio foi uma reação natural e extremamente legítima por parte daqueles que protestavam, bem como no caso de São Paulo no dia 13 de junho. [...]. Portanto, há uma violência cotidiana em nossa sociedade e no transporte coletivo e a reação é de se esperar e ela ocorreu sob a forma de manifestação legítima. No entanto, a resposta dos governantes foi a violência brutal e truculenta da polícia que agrediu e prendeu aleatoriamente qualquer indivíduo que estivesse no protesto. As cenas não deixam dúvidas e a truculência não provocou nenhuma reação por parte do resto da sociedade. A violência cotidiana no transporte, que atinge um ápice com o aumento da passagem, gera protesto que, por sua vez, gera a violência estatal sob forma brutal. A violência cotidiana é banalizada, ninguém se espanta com ela. A violência policial também é banalizada, até quando comete excessos e age com virulência[3].

Esse acontecimento, no qual a violência física foi utilizada amplamente pelas forças policiais e a truculência deixou vários feridos, ocorreu num regime democrático, durante o governo de um partido progressista (“de esquerda”), o Partido dos Trabalhadores, e cuja presidente da República, Dilma Rousseff, tinha 65% de popularidade (pessoas que consideravam seu governo “bom” ou “ótimo”, em março e caiu para 30% em junho após essas primeiras manifestações)[4] e seu partido tinha controle sobre centrais sindicais, setores ativistas dos movimentos sociais, ONGs, etc. Este é apenas um entre milhares de exemplos de uso da violência física por parte do aparato estatal contra manifestações de rua, sem falar no uso cotidiano contra os setores mais pobres da população.

A violência física efetivada pelo Estado é parte de uma de suas funções específicas, a repressão, e isto está na própria gênese da sociedade capitalista. Basta recordar a abordagem de Marx do que ele denominou “sistema colonial” para ver que o Estado absolutista exercia violência física não apenas internamente e nas guerras, mas através do colonialismo.

Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se então, mais ou menos em ordem cronológica, a saber pela Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, em fins do século XVII, são resumidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida pública, no moderno sistema tributário e no sistema protecionista. Esses métodos baseiam-se, em parte, sobre a mais brutal violência, por exemplo, o sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista e para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica (MARX, 1988, p. 370).

Nesse sentido, o uso da violência física, legítima ou ilegítima, é uma característica do aparato estatal e inseparável de sua função repressora. O Estado é violento por natureza. A violência física é apenas a parte visível desse processo. O Estado capitalista usa várias formas de violência e a física é uma das mais utilizadas e a história do capitalismo mostra isso abundantemente, desde a época do surgimento dessa forma de sociedade. E isso pode se intensificar em determinados momentos, tais como em alguns regimes de acumulação e formas estatais[5]. Porém, a violência física efetivada pelo aparato estatal pode se tornar mortal. Esse é o aspecto que trataremos a seguir.

 

O Estado Mortal

O aparato estatal não apenas usa ampla violência física contra os indivíduos, grupos, organizações, recalcitrantes, seja qual for suas motivações (criminosas, políticas, revoltas, etc.), mas pode usá-la de forma mortal. Aqui temos o caso do aparato estatal chegar ao extremo de promover a violência física mortal, provocando a morte de várias pessoas. E isso pode ser realizado tanto em regimes democráticos quanto em regimes ditatoriais. O Estado é, muitas vezes, mortal, independentemente de sua forma ou quem está no governo.

Devemos recordar que isso ocorre normalmente no Estado democrático. Basta recordar a violência truculenta contra manifestações de rua, movimentos grevistas, entre outros, para observar que, em muitos destes casos, vítimas fatais ocorrem. Alguns casos históricos famosos são suficientes para demonstrar isso, tal como a morte de Carlo Giuliani, vítima de tiros de policiais italianos, mas são apenas aqueles casos que tiveram ressonância social. Embora o assassinato seja considerado crime, a morte de manifestantes e outros em embates com as forças policiais não gera criminalização dos agentes do Estado. Isso é explicado pelo caráter “legítimo” da violência estatal, tal como apontado por Max Weber, mas muitas vezes se torna ilegítimo, o que ocorre quando a população se revolta e/ou a corrente predominante de opinião é contrária a tal acontecimento.

Porém, existem casos que o Estado democrático pode ser mortal legitimamente sem nenhuma grande preocupação. É nesse sentido que podemos falar de violência física mortal legítima por parte do aparato estatal. Esse é o caso, por exemplo, dos estados nos EUA que adotaram a pena de morte. A pena de morte é regularizada por leis, instituídas democraticamente, seja pelos supostos “representantes” da população, seja por plebiscito ou qualquer outra forma, e por isso é “legítima”. Sem dúvida, existem os opositores e os argumentos contrários, bem como os acontecimentos que demonstram os riscos de erro jurídico na condenação (pessoas que são condenadas e assassinadas pelo Estado e depois se descobre que eram inocentes). A pena de morte, no fundo, significa não só a legitimação do Estado mortal, mas também a possibilidade de um dos crimes mais graves e condenados possa ser executado pelo aparato estatal.

O Estado democrático é mortal e isso se manifesta não apenas nessas situações. Várias outras situações promovem o processo de morte de indivíduos via ação estatal, através da violência física. Um desses casos é a violência policial cotidiana, um efeito colateral do aparato policial. Os valores, a situação social, o treinamento, a competição social, a corrupção, personalidade autoritária, as concepções e doutrinas aprendidas no aparato policial, são determinações do uso de violência física mortal (como objetivo ou como consequência indesejada para efetivar outros objetivos) (VIANA, 2011). Assim, numa sociedade marcada por valores axiológicos, competição social, luta por ascensão social, riqueza, poder, etc., indivíduos que possuem o porte legal de armas, a função de reprimir a criminalidade, o treinamento policial, a frustração das condições precárias de vida, bem como uma grande parte com personalidade autoritária, desequilíbrio psíquico e/ou grande ambição, então a violência de indivíduos policiais, a corrupção e a formação de grupos de extermínio, torna-se um efeito colateral de grande probabilidade.

O policial está envolvido nestas relações sociais e as reproduz. A sua origem social, geralmente dos setores mais pobres da população, e os seus baixos salários, juntamente com outras determinações, colocam-no em uma situação desvantajosa na competição social. Isto sem falar que sua situação de vida precária pode produzir constantes conflitos familiares. Ele passa a ter a necessidade psíquica de compensar isto. Além disso, cria-se uma situação de insatisfação que o torna agressivo e reforça suas tendências autoritárias e, em certos casos, a corrupção e busca de dinheiro sob forma ilícita. Esta é a principal fonte da violência policial e, como se pode observar, há um entrelaçamento entre todas as suas causas e que envolvem o conjunto das relações sociais (VIANA, 2011).

Os grupos de extermínio são a face mais visível deste efeito colateral do aparato policial. Assim, a violência física mortal se manifesta em diversos casos. Na sociedade brasileira, tais grupos atuam, com mais força nas grandes capitais (VIANA, 2020)[6] e muitas vezes são encobertos ou protegidos por outros setores da sociedade vinculados a eles. Esse caso difere da pena de morte outras formas de assassinato via Estado, pois aqui se trata de violência física mortal ilegítima. Os homicídios efetivados pelo aparato estatal são legítimos, agora os que são efeitos colaterais e realizados fora do âmbito legal, são ilegítimos.

A violência física mortal por parte do aparato estatal ocorre de forma direcionada, sendo que em épocas de ascensão e radicalização da luta de classes, se direciona para os militantes revolucionários, ativistas em geral, indivíduos das classes inferiores empenhados na luta, etc. Um caso que teve repercussão foi o Argentino. Além do que ocorreu durante o regime militar nesse país, com os seus inúmeros “desaparecidos”, a forte repressão que ocorreu com as lutas de classes no início dos anos 2000 mostrou a face violenta e mortal do aparato estatal argentino, tal como se viu, entre outros casos, no massacre de Avellaneda em 2002 (BRAGA, 2020)[7].

Por fim, há uma outra forma que o aparato estatal usa amplamente a violência física mortal de forma legítima, mas que ocorre tanto em Estados democráticos quanto em Estados ditatoriais. Trata-se do fenômeno da guerra. Aqui emerge uma manifestação do fenômeno da violência internacional, que é efetivada pelos Estados-Nações no âmbito das relações internacionais. O aparato estatal ao declarar guerra, declara, simultaneamente, a morte de milhares de pessoas (isso é variável dependendo de qual guerra se trata, de quem são os países beligerantes, quantos países estão envolvidos, a diferença de força entre eles, etc.). Por exemplo, na Primeira Guerra Mundial morreram, segundo alguns, 10 milhões de pessoas, e, segundo outros, 22 milhões. A Segunda Guerra Mundial conseguiu aumentar esse número de mortos. Os governos norte-americanos decretaram a morte de milhares de pessoas em suas diversas guerras (Afeganistão, Vietnam, Iraque, etc.). O estado democrático dos Estados Unidos usou a violência física mortal legítima e assim provocou a morte de milhares de pessoas de outros países em suas diversas guerras e, como consequência, de seu próprio país. Assim, de acordo com os interesses nacionais (no fundo, interesse da classe capitalista do país), se declara guerra e a morte de milhares (em alguns casos, milhões) de pessoas, soldados de ambos os lados, além da população civil, seja em conflitos interimperialistas, seja em invasões imperialistas (que, após a Segunda Guerra Mundial, se tornou rotineiro no caso dos Estados Unidos, e, secundariamente, da antiga União Soviética e seu capitalismo estatal, embora, nesse caso, não se trata de um Estado democrático e sim ditatorial).

Esses, no entanto, são casos comuns no Estado democrático. Porém, quando assume a forma ditatorial, isso se amplia consideravelmente. O Estado ditatorial efetiva o extermínio de opositores em geral, tal como se pode ver no caso brasileiro e argentino e já citamos isso anteriormente. O regime militar no Brasil executou um grande número de pessoas, desde guerrilheiros à ativistas e até mesmo setores que simplesmente defendia a “democracia” ou resistia ao autocratismo. Somente na Guerrilha do Araguaia os números oficiais apontam para 59 “desaparecidos” (CORRÊA, 2013). Os “desaparecidos” na Argentina foram em torno de 9 mil pessoas de acordo com dados oficiais e em torno de 30 mil segundo dados de setores da sociedade civil.

Em alguns casos, a violência física mortal pode ser massiva. O caso do Estado nazista mostra justamente um processo de violência física mortal massiva que foi direcionada para alguns setores da sociedade, especialmente os judeus. Estima-se que foram mais de 6 milhões de judeus assassinados pelo governo nazista, bem como milhares (alguns colocam milhões) de outros setores, como comunistas, dissidentes, homossexuais, ciganos, etc. O Holocausto dizimou milhões de pessoas na Alemanha, mas também durante a guerra, tanto por parte de alemães que sucumbiram no conflito bélico, quanto seus adversários (há estimativa de que só soldados da URSS tenham sido mais de um milhão). O caso dos países de capitalismo estatal, o falso “socialismo real”, não é diferente. O caso do stalinismo é apenas o mais conhecido, mas a violência física mortal pelo Khmer Vermelho que efetivou o “genocídio cambojano”, que significou a morte de quase dois milhões de pessoas (cerca de 25% da população) é pouco conhecido. A violência física mortal (entre outras formas de violência) era efetiva contra todos os opositores (internos e externos) de forma ampla e constante.

Aqui entra um elemento que é a falta de legitimidade dessa violência sistemática do aparato estatal em regimes ditatoriais. É por isso que se busca – não só nos regimes ditatoriais, mas que ganham maior força e importância nesse caso – criar uma legitimação ideológica e/ou doutrinária e uma das formas para se efetivar isso é criar um inimigo imaginário. Para entender isso, precisamos compreender o conceito de inimigo imaginário e os seus usos. O inimigo imaginário é um setor da sociedade ou uma coletividade que é identificado, por outro setor da sociedade (embora isso seja efetivado predominantemente pela classe dominante, geralmente pelo aparato estatal), como “inimigo”. Um conjunto de mecanismos são constituídos para gerar o inimigo imaginário.

Desta forma, a invenção de um inimigo imaginário é uma forma de deslocar o conflito de classe para um outro tipo de conflito (nacional, racial, religioso, etc.). Neste contexto, ocorre um processo de criação de ausência e presença: o inimigo real cria sua ausência e, simultaneamente, a presença de um inimigo imaginário. Este foi o caso que ocorreu com os judeus, na Alemanha nazista; as “bruxas”, na inquisição; os comunistas no golpe de estado de 64 no Brasil; os “inimigos do povo” no capitalismo estatal russo, etc. Esta é a mesma lógica que ocorre quando a classe dominante inventa um inimigo imaginário estrangeiro, já que assim fortalece a identidade nacional quando esta se encontra dilacerada internamente pelos seus conflitos de classes. A estratégia neste caso, tal como ocorreu no caso da Guerra das Malvinas, decretada pelo governo argentino contra a Inglaterra, é transformar a contradição interna em externa e desta forma apagá-la das consciências e substituí-la por uma ilusão mobilizadora. A identidade coletiva perdida é restaurada com a concentração do mal em um inimigo imaginário [...] (VIANA, 2007).

Assim, o Estado não apenas possui o monopólio do uso legítimo da violência, como é o principal praticamente da violência física mortal. Ele exerce a violência física mortal legítima esporadicamente nos regimes democráticos e de forma mais regular quando ela é ilegítima, bem como exerce a violência física mortal legítima e ilegítima regularmente nos regimes ditatoriais. Em ambos os casos, o aparato estatal exerce violência física não-mortal, legítima e ilegítima, constantemente para garantir a reprodução das relações de produção capitalistas e relações sociais derivadas regularizadas juridicamente. Essa é apenas mais uma de suas ações no interior do conjunto da repressão estatal, que, por sua vez, é apenas uma função específica que se junta à diversas outras e todas apontam para sua função geral de reprodução do capitalismo.

Considerações Finais

Apresentamos, sinteticamente, a questão da violência estatal sob sua forma de violência física e desenvolvemos um pouco mais uma reflexão sobre o seu caráter mortal, responsável pela morte de milhões de pessoas. Não trouxemos nenhuma novidade. Basta recordar a abordagem de Marx do que ele denominou “sistema colonial” para ver que o Estado absolutista exercia violência física mortal não apenas internamente e nas guerras, mas através do colonialismo (MARX, 1988).

Outros elementos precisariam ser abordados, tais como as determinações desse processo, as suas mutações com o desenvolvimento tecnológico e dos regimes de acumulação, entre outros elementos. Sem dúvida, a violência física estatal no século 19 usava recursos tecnológicos “primitivos” diante do que ocorre atualmente, assim como as tarefas políticas e econômicas da burguesia em cada regime de acumulação aponta para formas diferenciadas de seu exercício. Por outro lado, para entender a violência estatal física é preciso entender as outras formas de violência exercida por essa instituição, bem como a violência existente na sociedade civil, a começar pela mais elementar e fundamental de todas, a violência laboral (VIANA, 2001). Esses aspectos, no entanto, podem ser abordados em outra oportunidade.

O fundamental é ter consciência de que o Estado possui o monopólio do uso legítimo da violência e exerce uma ampla violência física contra opositores, obstáculos, setores da população marginalizados e dissidentes e de outros países, e muitas vezes chega ao ponto máximo que é o homicídio, o assassinato. Sem dúvida, muitos recusariam estes termos, colocando como “pesados”, mas é apenas a verdade nua e crua, que serviria para deslegitimar o aparato estatal e por isso a legitimação jurídica ao lado da doutrinária e ideológica, apontam para evitar tal terminologia. A violência física mortal é apenas a forma mais extrema de violência estatal, que possui inúmeras outras formas de manifestação.

Assim, ao invés de uma máquina burocrática e militar de violência, é necessário constituir uma sociedade que não necessite de tal instituição e muitos menos de violência física. E isso só pode ocorrer através de uma ampla luta que deve gerar indivíduos e formas de consciência que atinjam um nível de racionalidade que permita a autogestão da sociedade e assim encerrar esse período da história da humanidade marcada pela violência. E quem ousar lutar por isso deve saber que poderá ser mais uma vítima da violência estatal, assim como tantos outros. Porém, esse é o único caminho possível para quem quer a libertação humana, pois o resto é ser conivente ou omisso com o exercício generalizado da violência e todas as suas consequências.

 

Referências

 

CORRÊA, Carlos Hugo Studart. Em Algum Lugar das Selvas Amazônicas. A Memória dos Guerrilheiros do Araguaia (1966-1974). Tese de Doutorado. Brasília: UnB, 2013.

 

MARX, Karl. O Capital. Vol. 2, 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

 

BRAGA, Lisandro. Repressão Estatal e Capital Comunicacional. A Criminalização do Movimento de Desempregados na Argentina (1996-2002). Jundiaí: Paco, 2020.

 

VIANA, Nildo. A criminalização dos movimentos sociais. Revista Espaço Acadêmico. Vol. 17, num. 202, Março de 2018.

 

VIANA, Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil. 2ª edição, São Paulo: Ar editora, 2014.

VIANA, Nildo. A Invenção do Inimigo Imaginário. Antítese. Revista de Marxismo e Cultura Socialista. Ano 02, num. 04, Outubro de 2007.

 

VIANA, Nildo. As Raízes da Violência Policial. In: https://informecritica.blogspot.com/2011/04/as-raizes-da-violencia-policial.html Acesso em: 20/04/2011.

 

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

 

VIANA, Nildo. Inspeção do Trabalho e Violência nas Relações de Trabalho. ln: DAL ROSSO, Sadi; SILVA, José Fernando; LIMA, Ricardo. (orgs.). Violência e Trabalho no Brasil. Goiânia: Editora UFG, 2001.

 

VIANA, Nildo. Os Grupos de Extermínio em Goiânia: In: PEIXOTO, Maria Angélica (org.). Entrevistas de Nildo Viana. Reflexões Críticas sobre o Cotidiano, a Cultura e a Sociedade. Goiânia: Edições Redelp, 2020.

 

VIANA, Nildo. Violência e Escola. In: VIEIRA, Renato; VIANA, Nildo (orgs.). Educação, Cultura e Sociedade. Abordagens Críticas da Escola. Goiânia: Edições Germinal, 2002a.

 

VIANA, Nildo. Violência Urbana: A Cidade como Espaço Gerador de Violência. Goiânia, Edições Germinal, 2002b.

 

VIANA, Nildo. Violência, Conflito e Controle. In: SANTOS, Sales e outros (orgs.). 50 Anos Depois. Relações Raciais e Grupos Socialmente Segregados. Brasília: MNDH, 1999.

 

WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

 

WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 1978.

 

 



[1] CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

[5] Não poderemos efetivar uma análise desse processo no decorrer da história do capitalismo (e muito menos no caso das formas estatais pré-capitalistas). Porém, o uso da violência física pelo aparato estatal varia em intensidade e extensão dependendo da forma estatal e de sua dinâmica de desenvolvimento. O caso do Estado neoliberal apontado pelo sociólogo Löic Wacquant (2001), que seria, segundo ele, um “Estado penal” já é suficiente para ter uma noção dessas mutações.

[6] “Existem informações sobre existência de grupos de extermínio em praticamente todas as grandes cidades do país, com maior incidência nas regiões norte e nordeste. Porém, em algumas grandes cidades, como é o caso de Goiânia, isso nunca foi algo de grande preocupação ou evidência. Contudo, cada vez mais se torna perceptível sua existência em nossa capital. A existência de grupo de extermínio em Goiás significa, por um lado, uma ampliação do processo social de degradação humana, que é marcada pela mercantilização, desmoralização, desvaloração da vida humana e aumento da violência de grupos organizados, crescimento de ações semifascistas; e, por outro lado, que o Estado e a sociedade civil estão marcados pela passividade, onde o poder estatal se omite, pois teria amplas condições de desmantelar tais grupos, mas o que é impedido por seus interesses e vínculos com o mesmo, e a população por falta de auto-organização, pressão, cobrança do poder estatal, ações variadas para pôr fim a esta situação. Agora, também significa que a criminalidade avança no espaço das instituições estatais, sendo que o sistema policial fica cada vez mais submetido à lógica da sociedade capitalista, onde o dinheiro passa a ser o “Deus dos deuses” e o resto passa a ser apenas o resto” (VIANA, 2020, p. 201).

[7] O livro de Braga (2020) aponta para uma análise profunda desse processo, envolvendo não só a questão da repressão, mas analisando os discursos que tentam justificar e legitimar esse processo, especialmente o do capital comunicacional. A respeito da questão da criminalização e incriminação no que se refere aos movimentos sociais é possível consultar também Viana (2018).

domingo, 27 de setembro de 2020

SEMINÁRIO DO NPM: Arte e Luta cultural

 



XI SEMINÁRIO DO NPM/UEG-URUAÇU: ARTE E LUTA CULTURAL.

Mais Informações: https://npm-ueguruacu.wixsite.com/npmueg/

Com transmissão pelo Youtube.

Link para palestra de abertura:

https://youtu.be/RY6aDuSJ-fY



A Arte como ela é: Um breve comentário sobre A Arquitetura da Destruição

 



A ARTE COMO ELA É

Um breve comentário sobre “A Arquitetura da Destruição”.

 

Nildo Viana

 

O documentário “Arquitetura da Destruição” (Peter Cohen, Suécia, 1992) possui vários méritos, embora possua também alguns problemas. O documentário apresenta alguns aspectos interessantes para discutir a questão da relação arte e sociedade. Assim, a percepção da “arte nazista” como produto de uma sociedade e de artistas envolvidas nesta e no que se tornou hegemônico no seu interior é um dos pontos altos do documentário. Da mesma forma, o documentário permite ver a relação entre arte e propaganda, a arte e pseudorracismo, entre outros elementos. O uso do cinema, nova arquitetura, entre outras formas de arte, para legitimar e fortalecer o regime nazista é apresentado e pode ser analisado criticamente, contribuindo com a compreensão da relação entre arte e sociedade durante o nazismo na Alemanha.

 

Em síntese, o documentário mostra a arte sob o nazismo e como se tornou hegemônica e repassou mensagens nazistas, antissemitas, apesar de deixar a desejar em sua forma e conteúdo. O documentário possui problemas, tais como o maniqueísmo e individualismo implícito, que é perceptível ao evitar apresentar as determinações sociais do nazismo.

 

Apesar disso, o documentário é interessante não só para mostra a relação entre arte e nazismo e vários outros elementos derivados, mas também permite realizar reflexões sobre a arte em geral. A arte nazista e sua hegemonia pode ser comparada com a arte contemporânea e sua hegemonia, pois ambas manifestam valores, concepções e sentimentos correspondentes aos interesses da classe dominante, inclusive as de orientação progressista.  A diferença acaba sendo de grau, como se pode notar o mesmo período nos EUA, com artistas e obras artísticas, Pato Donald, filmes, super-heróis e heróis todos são mobilizados em torno do americanismo. E isso revela também algo comum no discurso artístico e científico, segundo a qual a parcialidade é condenada, mas sempre a dos outros e nunca a própria, que aparece, para defensores da neutralidade científica e autonomia da arte, como “normais”, “naturais”, embora tão parciais quanto as demais.

 

A forma mais exagerada de um fenômeno permite perceber suas manifestações mais amenas e moderadas, e seu vínculo com a reprodução social. A relação nazismo e arte permite observar a relação mais geral entre arte e sociedade burguesa em momentos de maior estabilidade política e social, cumprindo a mesma função: reproduzir as relações sociais existentes.

 

O problema se encontra no processo de naturalização, onde tudo se torna natural, inclusive a arte e os valores ligados a ela, desde a arte pela arte até a forma e a técnica como critérios de avaliação da qualidade da obra artística. A arte é um produto social e histórico e, em uma sociedade fundada na dominação e na exploração, reproduz os interesses da classe dominante, seja de forma mais explícita, como no caso da arte nazista, seja na forma mais implícita, como os filmes hollywoodianos e dos serviços de streaming contemporâneos.

 

Assim, o documentário contribui para percebermos a importância da des-naturalização para a luta pela transformação social, sair da imanência e atingir a transcendência, perceber a historicidade da sociedade e da arte, bem como que nós mesmos somos produtos sociais e históricos e precisamos realizar um esforço enorme para ter consciência disso e agir contra isso.


Assista "A Arquitetura da Destruição" abaixo ou clique para assistir no youtube:





quinta-feira, 17 de setembro de 2020

CRÍTICA À RAZÃO NEOPOPULISTA

 



CRÍTICA À RAZÃO NEOPOPULISTA

 

Nildo Viana

 

Afirmamos, em texto anterior [Crítica à Razão Tecnicista], que há um dilema na sociedade contemporânea. Efetivamos uma breve crítica à razão tecnicista em sua versão neoliberal. Ao lado da razão tecnicista emerge a razão neopopulista. A razão tecnicista se fundamenta no discurso técnico, no fatalismo, na necessidade imperiosa do cálculo mercantil, a razão neopopulista, por sua vez, se fundamenta no discurso demagógico, no possibilismo e no democratismo. A razão neopopulista entra em competição com a razão tecnicista. E a opção passa a ser entre essas duas formas de racionalidade política e nos meios intelectualizados ganha força a razão neopopulista.

A emergência do neopopulismo remete às mutações históricas da sociedade capitalista. A crise dos partidos de esquerda, que se iniciou com a ascensão do neoliberalismo e queda do muro de Berlim, embora tenha sido esboçada antes, desde a Glasnost e Perestroika, na antiga URSS, gerou um novo revisionismo de alguns, um abandono do leninismo e da social-democracia por outros, e a submissão de muitos ao “neoliberalismo progressista”, como discurso supostamente de esquerda. Isso foi se desenvolvendo a nível mundial, mas, no Brasil e no capitalismo subordinado, já existia um neopopulismo em vigor através do Partido dos Trabalhadores.

O antigo populismo era uma ação de setores do bloco dominante que tentava ganhar popularidade e realizar o que se chamou de “política de massas”. Era uma forma de afastar as classes inferiores da influência do bloco progressista (esquerda) e do bloco revolucionário (anticapitalismo). Essa forma de populismo se espalhou pela América Latina e teve seus representantes no Brasil, como Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”.

A partir da redemocratização no Brasil e em outros países, emerge um neopopulismo. Esse neopopulismo também visa aglutinar as classes inferiores e outros setores da sociedade para conquistar vitórias eleitorais e para isso aponta para promessas irrealizáveis, tais como um “capitalismo humanizado”, com elementos de “estado integracionista” (do “bem-estar social”). Nesse contexto, ocorre a chamada “crise do marxismo” (na verdade, crise do pseudomarxismo), atingindo tanto os resquícios da social-democracia quanto o bolchevismo em suas variadas tendências, bem como a força e financiamento do capitalismo estatal deixa de existir. Assim, alguns setores assumem o seu reformismo (ainda sem se definirem como social-democratas e buscando em Gramsci e outras figuras um respaldo supostamente não reformista) e o que ainda se dizia social-democracia ou fica ainda mais moderado ou se mantém apenas discursivamente. Entre as tendências do PT – Partido dos Trabalhadores – ocorre esse processo com cada vez mais força a partir de 1989. O PT se torna, assim, neopopulista, reunindo discurso social-democrata (e era apenas discurso), propostas irrealizáveis (“capitalismo humanizado”) e apelos aos trabalhadores para ganhar retorno eleitoral.

O neopopulismo é uma ação política que visa conquistar a adesão, o apoio e o voto da população através da demagogia, do democratismo e do possibilismo. A demagogia, elemento constitutivo do neopopulismo, é um discurso voltado para agradar, manipular e iludir os apoiadores, aderentes e população em geral e para isso lança mão de vários recursos, tais como promessas irrealizáveis, apelos sentimentais, assistencialismo, etc. O democratismo, no neopopulismo, pode ser considerado um chavão e uma concepção:

O democratismo como termo-chave é apenas um uso, geralmente retórico e oportunista, de uma concepção de igualdade abstratificada para defender algum interesse. Assim, se alguém quer um posto ou um cargo, pode apelar para a desigualdade para justificar sua reivindicação (e condenar a meritocracia como reprodutora da desigualdade). Da mesma forma, se alguém consegue uma vaga por causa da política de ação afirmativa, pode lançar mão do problema da desigualdade e injustiça para justificar sua conquista. No caso do discurso sobre outros e não sobre si mesmo, o democratismo, mesmo sem usar a palavra, acaba servindo como suporte para discursos populistas por parte de intelectuais, políticos profissionais, artistas, visando conquistar popularidade ou determinado “público-alvo”. Como concepção, o democratismo é defendido através da justificativa da igualdade. O princípio democrático da decisão da maioria é complementado pelo princípio da igualdade abstratificada, fora do conjunto das relações sociais concretas. Se existem grupos, indivíduos, desiguais, cabe defender a igualdade, geralmente através do Estado, para superar a desigualdade. Esta concepção, comum nas representações cotidianas, é reproduzida sob forma mais desenvolvida através de determinadas doutrinas políticas, como liberalismo progressista (a versão atual do liberalismo democrático), social-democracia, etc. Alguns defendem tais teses apelando para o marxismo, mas em clara contradição com o mesmo. O marxismo nunca defendeu “igualdade” dentro do capitalismo e muito menos um igualitarismo formal ou qualquer concepção que retire as questões políticas e sociais do interior das relações sociais da sociedade capitalista (MARQUES, 2017, p. 22-23).

Uma última característica do neopopulismo é o “possibilismo”. No fundo, esse elemento é mais um pressuposto do que uma ideia ou concepção, pois se a razão tecnicista é fatalista e pessimista, a razão neopopulista deve ser possibilista e otimista. Ambas expressam os interesses da classe capitalista no geral, mas apontam para divergências na sociedade, expressando sob formas diferentes o interesse geral do capital e acrescentando alguns interesses particulares de frações do capital e outros setores das classes superiores. A razão tecnicista pode ser retratada como um médico oferecendo um remédio amargo (geralmente ineficaz para a população, mas lucrativo para o capital) e a razão neopopulista como os “doutores da alegria” oferecendo um show pirotécnico (muito circo e pouco pão, o que, obviamente, é igualmente ineficaz para a população, mas lucrativo para o capital e para os ilusionistas que o materializam). Assim, o discurso neopopulista afirma que é possível aumentar o salário mínimo em meio a uma grave crise, que é possível abolir o sexismo e racismo no interior do capitalismo, que não existe problema nenhum em relação ao envelhecimento populacional, etc. Ou seja, embora geralmente não apresenta nenhuma proposta concreta e desenvolvida de solução dos problemas, aponta para a sua solução, desde que os neopopulistas estejam no governo. E assim temos um fenômeno derivado, que é a figura do “líder” ou dos “democratas” como a solução, o que mostra voluntarismo e que ao invés de projetos políticos e soluções econômicas o que se apresentam são os indivíduos que seriam a solução. Assim, muitas vezes buscam criar “figuras carismáticas”, mas também podem partir, devido ao democratismo, colocar o “povo” ou setores da população como aqueles que supostamente devem decidir ou teriam primazia na decisão. Assim, geralmente se nega a existência dos problemas reais, atribuindo-os geralmente aos indivíduos no governo, o que serve para justificar a recusa das suas soluções (no nível discursivo, pois, uma vez no poder, efetivam as mesmas políticas, como floreios e disfarces) sem apontar nenhuma alternativa, além da troca dos tecnicistas pelos neopopulistas.

O exemplo clássico de neopopulismo, no Brasil, é o PT, que passou de uma versão neopopulista com discurso social-democrata para uma versão neoliberal, ao assumir o governo (VIANA, 2016). Porém, esse processo de emergência de uma razão neopopulista se espalhou para outros setores da sociedade. A versão neoliberal do liberalismo democrático também se torna cada vez mais próxima de uma nova forma de neopopulismo. Após a estabilização do regime de acumulação integral emerge a hegemonia quase que absoluta do neoliberalismo e, junto com esse, há o aumento da taxa de lucro, estabilização financeira através de políticas monetaristas de contenção da inflação, ajustes fiscais, entre outras, que chega ao Brasil com o Governo Itamar Franco e se mantém nos Governos de Fernando Henrique Cardoso. Nos Estados Unidos, um novo populismo liberal emerge com a ideia de políticas segmentares (para segmentos da população, como jovens, mulheres, etc.), o que acompanha responsabilização da sociedade civil e expansão de ONGs (Organizações Não-Governamentais), bem como em harmonia com o paradigma subjetivista (VIANA, 2019) e a ideia de fragmentação, pluralismo, entre outras. Nesse contexto, emergem as políticas de “ações afirmativas” e de “identidades” e o discurso da “inclusão”.

A era de consolidação e estabilização do regime de acumulação integral permitiu um setor dos políticos profissionais e da burguesia norte-americana efetivar um discurso que era uma mescla de neoliberalismo e neopopulismo. Trata-se, no entanto, de um neopopulismo mitigado e específico, pois a situação dos Estados Unidos é diferente e por isso ele se volta mais para segmentos populacionais. Esse neopopulismo mitigado aproximou os representantes do liberalismo democrático travestido em neoliberalismo progressista e setores mais democráticos da burguesia estadunidense e do raquítico bloco progressista deste país (supostamente “social-democratas” e até alguns que são chamados de “socialistas”), bem como os novos setores microrreformistas ligados aos movimentos sociais. Nancy Fraser sintetizou isso da seguinte forma:

Nos EUA, o neoliberalismo progressista é uma aliança entre, de um lado, correntes majoritárias dos novos movimentos sociais (feminismo, antirracismo, multiculturalismo e direitos LGBT) e, do outro lado, um setor de negócios baseado em serviços com alto poder “simbólico” (Wall Street, o Vale do Silício e Hollywood). Nesta aliança, as forças progressistas se unem às forças do capitalismo cognitivo, especialmente à “financeirização”. Embora involuntariamente, o primeiro oferece ao segundo o carisma que lhe falta. Ideais como diversidade e empoderamento, que poderiam em princípio servir a diferentes fins, hoje dão brilho a políticas que destruíram a indústria e tudo aquilo que antes fazia parte da vida da classe média (FRASER, 2019).

O neopopulismo petista já é mais generalizado e generalista, em que pese também tenha apostado no apoio de segmentos populacionais para se manter no poder. Porém, a manutenção no poder do PT requeria o apoio de burocracias da sociedade civil (partidárias, englobando os partidos aliados, e sindicais, os sindicatos e centrais sindicais aparelhadas por ele e seus aliados), além de setores dos movimentos sociais (setores do movimento feminino, negro, homossexual, etc.). De qualquer forma, seja o neopopulismo mitigado, seja o neopopulismo generalizado, ambos seguem a razão neopopulista.

A razão neopopulista neoliberal, ao contrário da razão tecnicista neoliberal, aponta para a velha prática do populismo de buscar efetivar uma “política de massas” através de muitas promessas e poucas realizações, oferecer migalhas em troca de apoio, mas também inovando no sentido de unir esses elementos com políticas segmentares e democratismo. As políticas segmentares (de “identidade”) oferecem um igualitarismo e democratismo seletivo e distinto tanto das políticas universalistas e generalistas do Estado integracionista (mais conhecido como do “bem-estar social” ou keynesiano) anterior ao neoliberal, quanto às propostas social-democratas. A razão neopopulista emerge a partir do democratismo e de uma defesa de uma falsa equiparação dos segmentos sociais mais ativistas no conjunto da sociedade. Assim, as políticas segmentares não resolvem o problema da população negra, das mulheres, etc., mas oferece espaços institucionais (cargos e cooptação, e os cooptados, geralmente “líderes” em organizações e grupos, geram apoios de parcelas mais amplas), ênfase cultural (mudanças discursivas como o “politicamente correto”, etc.) e legislação uniformizante com elementos de “discriminação positiva”.

Se a razão tecnicista traz o meritocratismo, a razão neopopulista traz o democratismo. Um fala “empreendedorismo” e o outro fala “empoderamento”. Os tecnicistas tratam de números e resultados, os neopopulistas falam de empatia e representatividade. No fundo, a razão tecnicista e a razão neopopulista são uma versão da divisão estabelecida pelos filmes norte-americanos entre o “bom e o mau policial”. Ambos possuem os mesmos objetivos e servem ao capital, mas o fazem de forma diferente. A diferença é que elas brigam entre si e envolvem a população em suas disputas pelo poder.

Assim, sob o paradigma subjetivista, além da modalidade tecnicista e meritocrática do setor mais rígido do neoliberalismo e da burguesia, emerge a versão mais leve que é a modalidade neopopulista que aponta para o democratismo e discursos correlatados (representatividade, empoderamento, etc.). E tudo continua como antes, estejam tecnicistas ou neopopulistas no poder.

A razão neopopulista acaba se espalhando pela sociedade e sai do campo das disputas políticas institucionais (governos, partidos, eleições) e acaba entrando na vida cotidiana, tal como nas redes sociais. O neopopulismo acaba se tornando até um “estilo de vida” para algumas pessoas. Emerge a triste figura dos intelectuais populistas, aqueles que querem agradar a todos em troca de curtidas no facebook, aplausos e outros elementos de vantagem pessoal. A intelectualidade, em sua maioria, aderiu ao “neopopulismo intelectual”. O compromisso com a verdade (no caso dos marxistas) ou com a ciência, a defesa da neutralidade (no caso dos positivistas e derivados) e do rigor analítico (por parte dos mais críticos) é substituída pelo o discurso subjetivista e até mesmo bizarrices como “lugar de fala”. Alguns passam a reproduzir discursos nos meios oligopolistas de comunicação e redes sociais e passam a se preocupar mais com a popularidade do que com a verdade.

Assim, a união de setores do capital, da burocracia e da intelectualidade, reforçados por ativistas de ONGs e movimentos sociais, acabam sendo a base para formação de ideias problemáticas que não atacam os problemas reais e reforçam os equívocos dos políticos neopopulistas, tal como se vê recentemente na adesão de muitos intelectuais ao discurso antifascista. Quando Nancy Fraser (2019) aborda a união do Vale do Silício, Hollywood, etc., apenas mostra que existem setores do capital que apontam para esse processo de produção cultural voltado para a “diversidade”, “gênero”, etc. e que além da Unesco, temos grande parte do capital cinematográfico norte-americano e, mais recentemente, Netflix e outros serviços de streaming, gerando discursos neopopulistas e que ao invés de buscar transformação social aponta apenas para migalhas para uns e cooptação de outros. Obviamente que isso, por parte do capital, é esperado, mas a adesão e reprodução por vastos setores da intelectualidade e ativistas, já não era tão esperado. Não deixa de ser curioso que pessoas que se dizem de “esquerda” e até mesmo “revolucionários” acreditem que setores do grande capital estariam realmente buscando resolver os problemas sociais, bem como intelectuais aderirem ao neopopulismo e outros, ainda, se omitirem e se acovardarem diante de ideias equivocadas, neopopulismo, hipocrisia, manipulação, entre outros processos.

Um dos problemas dos adeptos da razão neopopulista é que, quando estão no poder, efetivam políticas neoliberais neopopulistas e quando estão na oposição atacam os tecnicistas e não propõem nada no lugar. Os demais problemas já colocamos. Mas resta o problema principal: a razão neopopulista justifica e legitima a sociedade capitalista em geral e serve ao capital ao prometer vantagens competitivas dentro do capitalismo e apresentar isso como sendo “emancipação” ou “libertação”, bem como desvia vários setores da sociedade para reivindicações meramente culturais ou legais, busca de vantagens competitivas, especifismo, etc., ao invés de uma luta por real transformação social[1]. O possibilismo acompanhado por uma recusa da realidade substituem a análise da realidade concreta e assim, a nível de política governamental, os problemas parecem não existirem, e a nível da sociedade civil, os problemas existentes parecem ser apenas uma questão cultural. A solução irrealista é mudar o governo, num caso, ou mudar o nome ou palavras utilizadas ou então forçar com um democratismo artificial no caso das instituições ou sociedade civil.

Em síntese, a razão neopopulista se apresenta como opção e alternativa à razão tecnicista, mas, em nível político institucional, não tem projeto e proposta nenhuma, a não ser as migalhas do assistencialismo limitado e as “ações afirmativas” e discursos ilusórios sobre “empoderamento”, “representatividade”, “identidade”, etc. Um paralelo interessante é ver que o empreendedorismo do discurso tecnicista tem seu equivalente neopopulista no discurso do empoderamento. No plano da sociedade civil, a razão neopopulista apenas promove divisão e enfraquecimento das lutas sociais. No fundo, a razão neopopulista é apenas o complemento que enfeita a razão tecnicista. Afinal, o mundo não é tão feio quanto pinta os tecnicistas, pois existem os neopopulistas que vão manipular e iludir a população e criar uma polarização e a ilusão de que basta mudanças culturais ou voluntarismo para resolver os problemas sociais. Assim, o indivíduo é constrangido a escolher entre quem lhe faz mal dizendo que é a única solução e o outro que lhe faz mal sorrindo e oferecendo show circense quando está no poder e, quando não está, diz que são os tecnicistas que fazem o mal e basta substitui-los por neopopulistas sem nenhuma alterativa e tudo estará resolvido.

 

Referências

 

FRASER, Nancy. A Eleição de Donald Trump e o Fim do Neoliberalismo Progressista. Disponível em: https://revolucio2080.blogspot.com/2019/10/a-eleicao-de-donald-trump-e-o-fim-do.html acesso em 31/10/2019

 

LINDGEN ALVES, J. A. Excessos do Culturalismo: Pós-Modernidade ou Americanização da Esquerda? Disponível em: https://revolucio2080.blogspot.com/2019/06/excessos-do-culturalismo-pos.html acesso em: 28/06/2019.

 

MARQUES, Carlos Henrique. Meritocracia ou Democratismo? Revista Posição. Ano 4, Vol. 4, num. 15, jul./set. 2017. Disponível em: https://redelp.net/revistas/index.php/rpo/article/view/5marquespos15/666 Acesso em: 31/12/2017.

 

VIANA, Nildo. Ascensão e Queda do PT. https://informecritica.blogspot.com/2016/03/ascensao-e-queda-do-pt.html

 

VIANA, Nildo. Hegemonia Burguesa e Renovações Hegemônicas. Curitiba: CRV, 2019.



[1] Isso se fortalece com o passar do tempo e ocorreu uma “americanização das esquerdas” na sociedade brasileira, reduzindo o bloco progressista a um semelhante da pseudoesquerda norte-americana (LINDGREN ALVES, 2019).


terça-feira, 15 de setembro de 2020

CRÍTICA À RAZÃO TECNICISTA



CRÍTICA À RAZÃO TECNICISTA

 

Nildo Viana

 

A sociedade contemporânea vive num dilema: razão tecnicista ou razão neopopulista? Porém, como já dizia o compositor Herbert Vianna, esse é “um dilema que nem o cinema pode resolver”. É uma escolha entre o inferno e o purgatório. Ou, para ser mais exato, entre o inferno com um diabo mau encarado e um inferno com um diabo sorridente, ambos furando o corpo de suas vítimas com tridentes e um dizendo “não tem outro remédio” enquanto que o outro diz “vou fazer você feliz”. Vamos analisar, brevemente, a razão tecnicista e o diabo mau encarado no presente texto e posteriormente trataremos da razão neopopulista e do diabo sorridente.

O tecnicismo tem uma longa história como termo nas ciências humanas, bem como vários significados. Aqui nos referimos ao tecnicismo contemporâneo. A sua base ideológica é o neoliberalismo inflexível dos anos 1980, cuja ideia era aumentar a exploração e a precarização com base no cálculo mercantil. O cálculo mercantil (chamado por alguns ideólogos como “cálculo racional” ou “cálculo econômico”) quantifica e determina tudo em termos calculistas, quantitativistas e individualistas. O indivíduo age racionalmente no mercado, fazendo “escolhas racionais”, que beneficiam a ele e ao conjunto da sociedade (leia-se: “economia de mercado”, ou, em termos marxistas, modo de produção capitalista). É o neoliberalismo que afirma não existir “almoço grátis” (Milton Friedman). O mercado é o Deus supremo e todos devem se curvar diante dele. O estado, nesse contexto, deve ser “mínimo” e realizar o cálculo mercantil, equilibrando suas contas e evitando o déficit orçamentário. Ele deve, portanto, “fazer o que tem que ser feito”. Isso, obviamente, está de acordo com os interesses do capital oligopolista transnacional. A conclusão óbvia disso, que pode ser cantada com um soneto de fundo e que se encerra com uma chave de ouro malthusiana, é a de que o aparato estatal deve diminuir seus gastos, especialmente com “políticas sociais”. A lei da selva mercantil deve dominar para que os leões do capital reinem absolutos.

Assim, essa razão tecnicista, pois os argumentos são técnicos e fundados no cálculo mercantil, e inspirados nos patéticos economistas neoliberais do passado e do presente, aponta não só para a diminuição dos gastos estatais com “políticas públicas”, mas também com a previdência social (o envelhecimento populacional, por exemplo, “prova” que os gastos com aposentadoria se tornam cada vez mais amplos e desproporcional em relação à força de trabalho ativa) e diversos outros elementos cuja responsabilidade é do Estado. Um aparente realismo justifica e legitima decisões políticas extremamente prejudiciais para vastos setores da sociedade. O realismo mercantil mostra a soberania do mercado sobre os seres humanos.

Nesse contexto, o descontentamento tende a ser grande, especialmente nos setores mais atingidos e nos mais empobrecidos. Assim, a classe operária, os semiburgueses (pequenos proprietários, pequenos comerciantes, rentistas), o lumpemproletariado (aqui englobando todos os desempregados e semiempregados), o campesinato, etc., são atingidos negativamente pelas políticas neoliberais inflexíveis. Alguns setores da burocracia estatal (especialmente das instituições estatais, tal como se vê no caso de universidades, hospitais públicos, etc.), a redução do emprego “público”, etc., atinge também alguns setores da burocracia e da intelectualidade.

A precarização do trabalho, o desemprego, o empobrecimento, entre outros problemas sociais, tiveram uma expansão com a emergência do neoliberalismo, bem como violência e a criminalidade tendem a aumentar nesse contexto e foi o que ocorreu. Nesse contexto, o aparato estatal deve se tornar mais repressivo e emerge a chamada “política de tolerância zero” e por isso o Estado neoliberal foi denominado “Estado penal” pelo sociólogo Löic Wacquant (2001). Porém, isso ocorreu no período de implantação dos governos neoliberais, mais inflexíveis, ou seja, no momento de formação do regime de acumulação integral (VIANA, 2009). A crise do regime de acumulação anterior e sua substituição foi um período difícil e o novo regime de acumulação, graças ao aumento da exploração com a chamada “reestruturação produtiva”, ao neoliberalismo e ao hiperimperialismo, conseguiu retomar o ritmo da acumulação de capital[1], gerando uma relativa estabilidade do capitalismo mundial nos anos 1990 até meados dos anos 2000 (e, dependendo do país, um pouco antes ou um pouco depois).

O problema é que a acumulação de capital tem uma tendência cíclica e o ciclo dos regimes de acumulação apontam para isso. A crise financeira de 2008 abriu caminho para o desencadeamento de um processo tendencial já existente no sentido da desestabilização do regime de acumulação integral. Nesse contexto, reaparecem, novamente, os adeptos do neoliberalismo inflexível, mas sob forma ainda mais exagerada e metamorfoseada como neoliberalismo discricionário, diante da desestabilização e ameaça de crise geral do capitalismo (VIANA, 2020). Esse neoliberalismo discricionário começa a ser praticado em alguns países, com as chamadas “políticas de austeridade”. Essas políticas de austeridade visam resolver o problema da acumulação de capital a partir da própria lógica deste regime, ou seja, com mais neoliberalismo (VIANA, 2020). Assim, a razão tecnicista se torna ainda mais forte e truculenta.

Os representantes desta razão tecnicista são economistas neoliberais empedernidos, capitalistas, representantes de instituições internacionais e nacionais, entre outros. No Brasil, o atual Ministro da Economia, Paulo Guedes, é um deles, embora esteja limitado por um governo de orientação conservantista[2]. Se Paulo Guedes fosse soberano em suas decisões, o caos já havia tomado conta do país, pois a razão tecnicista é reducionista e não leva em consideração os aspectos políticos, as lutas de classes, o significado do Estado, entre outros processos. A realidade é vista a partir da ótica do cálculo mercantil como se fosse a única coisa existente e importante, e, ao desconsiderar todo o resto, acaba promovendo mais problemas do que soluções, embora possa dar resultados positivos para o capital em curto prazo, mas insustentáveis a longo prazo.

A razão tecnicista neoliberal não somente desconsidera as questões humanas, como também as políticas, entre outras. Trata-se um mundo intelectual pobre e nessa pobreza, onde reina a matemática financeira, a riqueza da realidade é ofuscada, e as decisões políticas são orquestradas por um maestro bitolado. E nesse contexto, o aparato estatal, a salvaguarda do capitalismo, é enfraquecido, tornando ainda mais potencialmente explosiva uma nova crise no capitalismo.

A única ação voltada para o “social” promovida pela razão tecnicista é a responsabilização da sociedade civil e do indivíduo. Assim, coisas como “meritocracia”, “empreendedorismo”, por um lado, visando o sucesso individual, e ações como incentivo de ONGs, voluntariado e outras, como colaboração da sociedade civil para substituir o Estado e sua omissão no que se refere às políticas de assistência social e falta de ação das instituições estatais (fechadas, privatizadas, precarizadas). Os gastos estatais com a educação especial são suspensos e em seu lugar emerge a chamada “política de inclusão”. O discurso da inclusão se torna hegemônico. O que não se esclarece é que se trata de uma inclusão marginal e que são os professores que são os responsabilizados por resolver os novos problemas criados. Isso vale para todos os tipos de “inclusão”, embora ela tenha, no seu interior, uma certa “inclusão seletiva” (para cargos, por exemplo), que é uma forma de cooptação de setores de determinados grupos sociais[3] e que significa tão somente a substituição de quem ocupará determinado cargo ao invés de mudanças reais.

Assim, a razão tecnicista de orientação neoliberal promove um processo de justificação e legitimação das políticas neoliberais em sua forma mais endurecida, que é no seu período de formação e no momento de desestabilização do regime de acumulação integral, gerando um processo de aprofundamento através do neoliberalismo discricionário. Ela é expressão, nua e crua, dos interesses capitalistas e, por conseguinte, da desumanização mais intensa da sociedade burguesa. Porém, essa não é a única possibilidade e expressão do neoliberalismo. Uma outra forma é a razão neopopulista, que, no entanto, será o tema de outro artigo.

 

Referências

MARX, Karl. O Capital. 5 vols. 1, 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

 

VIANA, Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Modo de Produção Capitalista e Formas Sociais Burguesas. Curitiba: Appris, 2018.

 

VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Idéias e Letras, 2009.

 

VIANA, Nildo. Regime de Acumulação Integral e Dinâmica Histórica do Neoliberalismo. In: ALMEIDA, Felipe Mateus (org.). O Regime de Acumulação Integral. Retratos do Capitalismo Contemporâneo. Goiânia: Edições Redelp, 2020.

 

WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.



[1] Um indivíduo numa rede social e outro numa palestra virtual provaram, com seus questionamentos, que, a despeito de serem dos meios intelectualizados e com formação universitária na área de ciências humanas, não entendem o significado de “acumulação de capital” e a confundem com “concentração de renda” ou acumulação de setores do capital (determinadas empresas, por exemplo). Diante da miséria intelectual contemporânea, isso não é tão fantástico assim. Quando usamos o termo “acumulação de capital” não estamos tratando de “concentração de renda” e nem de setores do capital e sim do processo social mais geral que é do conjunto do capital e referente à taxa de lucro. Isso nada tem a ver com concentração de renda, que pode ocorrer mesmo com o decréscimo geral da acumulação de capital e que não tem o mesmo significado, pois uma coisa é “renda” e outra coisa é “capital”. Se um indivíduo ganha na loteria, ele fica rico e concentra renda, mas não capital, e isso pode ocorrer, tal como efetivamente ocorre. Isso pode ocorrer em momento de recuo da taxa de lucro ou mesmo crise de um regime de acumulação. O que ocorre, nesse caso, é apropriação de mais-dinheiro via transferência de dinheiro e não acumulação de capital (VIANA, 2018). Infelizmente, esse esclarecimento tem que ser efetivado devido a um conjunto de indivíduos presunçosos que leram poucas coisas, ou garimparam algo na internet, e já se julgam entendidos de “economia”. Sem dúvida, para entender mais profundamente o que foi aqui esclarecido (e que algumas pessoas já tem noção e não realizam tal confusão), seria necessário um processo de pesquisa mais profundo e entendimento de conceitos como renda, capital, lucro, taxa de lucro, massa de lucro, reprodução ampliada do capital, etc., que, obviamente, não poderemos apresentar aqui (cf. MARX, 1988). Podemos sintetizar o que colocamos da seguinte forma: quando a taxa de lucro aumenta, o ritmo de acumulação de capital se acelera e isso tem efeitos globais na sociedade, enquanto que quando ela entra em declínio, ocorre o processo contrário. A taxa de lucro, por sua vez, não se confunde com massa de lucro, pois expressa a porcentagem da taxa de exploração, enquanto que a massa de lucro é em termos globais, a totalidade quantitativa do lucro.

[2] O conservantismo é estatista, ao contrário do neoliberalismo. A aliança de Bolsonaro – conservantista – e Paulo Guedes – neoliberal – foi produto do oportunismo eleitoral do primeiro, que queria apoio de setores do capital e diminuir a resistência ao seu nome por parte de outros, visando ganhar a eleição. Isso gerou um regime híbrido, uma espécie de liberal-conservantismo.

[3] Não se resolve o problema dos grupos sociais, pois a inclusão é de alguns poucos indivíduos e que, uma vez incluídos, passam a ter novos interesses, que geralmente não são mais (se um dia foram, dependendo do caso) o do grupo social de origem.

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