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terça-feira, 29 de setembro de 2020

ESTADO E VIOLÊNCIA ESTATAL

 


ESTADO E VIOLÊNCIA ESTATAL

 

Nildo Viana

 

O Estado é tido por muitos como algo “público”, emanação do “povo”, ou então como árbitro neutro na sociedade civil. No entanto, essa interpretação do significado do Estado é falsa e isso é amplamente reconhecido desde Marx e outros pensadores. O Estado, em geral, é uma relação de dominação de classe, ou seja, uma instituição pela qual a classe dominante efetiva o processo de controle sobre o conjunto da sociedade (VIANA, 2015). Na sociedade capitalista, essa relação de dominação é mediada pela classe burocrática, pois o Estado assume a forma de um aparato burocrático de controle da sociedade civil. E uma das formas como o Estado capitalista – e não só ele, pois isso ocorre também nas formas anteriores do Estado nas demais sociedades classistas – efetiva esse processo de controle é através da violência. Analisar a violência estatal é nosso objetivo no presente texto.

Antes de tratar disso é necessário, no entanto, esclarecer o que entendemos por violência. Consideramos que violência é uma relação social na qual um indivíduo ou grupo impõe algo a outro indivíduo ou grupo contra sua vontade ou natureza (VIANA, 1999; 2001; 2002a; 2002b; 2014). A violência, nesse caso, não tem a amplitude que alguns autores atribuem, que inclui até explosões na natureza (o que significa confundir explosão, força, etc., com violência), sendo um fenômeno social. Assim, é uma relação social e não inclui fenômenos naturais. Essa relação social coloca, frente a frente, indivíduos e coletividades (ou “grupos”, no sentido amplo, ou seja, englobando classes, grupos sociais diversos, organizações) entre outras formas de coletividade), no qual uma parte (indivíduo, coletividade) impõe algo a outro indivíduo ou coletividade algo que é contra sua vontade ou natureza.

Assim, é importante entender que se trata de imposição. A imposição aponta para a ideia de compulsoriedade, ou seja, um indivíduo impõe algo, obriga o outro indivíduo, contra sua vontade ou natureza. Quando essa imposição é contra a vontade dos indivíduos, ela é não-consentida, e quando é contra a natureza é consentida. A violência consentida é geralmente imperceptível, invisível. Assim, se a classe senhorial constrange os indivíduos à escravidão, trata-se de violência perceptível, pois contra a vontade dos escravos, não-consentida. Quando a classe capitalista constrange um operário ao trabalho assalariado e determinada jornada de trabalho, trata-se de uma violência consentida, pois é contra sua natureza, mas não contra sua vontade, já que os indivíduos da classe operária aceitam esse processo.

Nesse sentido, é importante a percepção de Max Weber, segundo a qual o Estado possui “o monopólio do uso legítimo da força” (1978), ou seja, o aparato estatal possui o monopólio do uso da violência física. E não apenas isso, mas ele também é a “violência concentrada e organizada da sociedade” (MARX, 1988, p. 370). Porém, não é apenas em relação à violência física que o aparato estatal tem legitimidade, mas sob várias outras formas. No entanto, focalizaremos, no presente texto, apenas a violência física, ou seja, quando o Estado exerce violência física contra indivíduos e coletividades.

Estado e Violência Estatal

O Estado capitalista é uma organização burocrática, a maior da sociedade capitalista. Trata-se de um enorme aparato burocrático que, por sua vez, se estrutura em diversos outros aparatos burocráticos. Um aparato, aqui, significa um conjunto de organizações burocráticas. Assim, o aparato estatal tem seu aparato central, composto pelo aparato governamental, aparato legislativo, aparato judiciário e aparato repressivo (forças armadas, forças policiais, órgãos de investigação e segurança, etc.) e aparatos voltados para funções específicas (aparato educacional, aparato comunicacional, etc.). Desta forma, o aparato educacional possui, geralmente, tal como se vê na maioria dos países, um Ministério da Educação, que, por sua vez, coordena instituições de ensino (universidades, escolas técnicas, etc.), órgãos de financiamento e controle (conselhos estatais, como, no caso brasileiro a CAPES e CNPq)[1], entre outras organizações burocráticas vinculadas ao referido Ministério.

O estado capitalista tem a função geral de efetivar a reprodução das relações de produção capitalistas e para isso regulariza não somente essas relações, mas também o conjunto das relações sociais. Para efetivar isso, ele exerce várias funções específicas, gerando um aparato específico voltado para isto. Uma das funções específicas do aparato estatal é a repressiva. Para tanto, ele gera um aparato repressivo. O aparato repressivo conta com o exército, as forças policiais e os órgãos especializados de investigação e segurança. É o aparato repressivo o responsável pelo exercício da violência física, que é o nosso foco de análise. Porém, o uso do aparato repressivo é complexo. Ele usa a violência física de forma mais ampla em alguns casos, momentos, formas estatais. O Estado nazista, por exemplo, usa a violência física de forma muito mais ampla e generalizada, enquanto que o Estado liberal-democrático ou o integracionista, o fazem de forma menos intensa e extensa. Porém, o Estado liberal-democrático, em momentos de ascensão e radicalização do movimento operário, usa de forma mais intensa e extensa a violência estatal. Por outro lado, existe uma violência seletiva em relação a certos setores da sociedade. Isso é obvio no caso dos criminosos, mas também se efetiva com maior força e regularidade em relação às classes inferiores, movimentos populares, movimento operário e, no interior desses, os indivíduos e organizações revolucionárias, à população negra (em alguns países), manifestações de rua, etc. Porém, é preciso entender que a repressão não é apenas violência física, embora, geralmente se manifesta dessa forma.

Assim, a repressão estatal sob a forma de violência física é mais constante e regular nos regimes ditatoriais, sendo que nos regimes democráticos ocorre um processo de secundarização, sendo menos constante e atuando com mais força em casos esporádicos, em comparação com os regimes ditatoriais. A hegemonia, a legitimação, a cooptação, entre outros processos, geralmente são suficientes, nos regimes democráticos, para evitar revoltas, lutas radicalizadas e tentativas de revoluções. Porém, tais acontecimentos explodem, muitas vezes de forma inesperada, em tais regimes, o que promove um aumento da violência estatal com o uso da força física dos seus aparatos repressivos (exército, polícia, etc.). No entanto, mesmo que secundarizado, no sentido geral, a violência física é exercida cotidianamente pelo aparato estatal, embora voltada mais para certos setores da sociedade (criminosos, setores mais pobres da população, grupos vulneráveis, e, em certos países, setores da população negra, etc.).

O uso da violência física por parte do aparato estatal nos regimes ditatoriais assume várias formas, dependendo de sua situação, da correlação de forças, do seu momento, entre outras determinações. Os regimes militares tendem a usar a violência física mais intensivamente no início e no seu fim, pois são os momentos em que a resistência é maior e, por conseguinte, a repressão é mais necessária e dura. A situação do país e a correlação de forças também pode efetivar alterações no uso da violência física. A violência física é utilizada maciçamente contra os elementos recalcitrantes, como defensores da democracia, indivíduos rebeldes por mais variados motivos, movimentos populares, movimento operário, organizações revolucionárias ou organizações políticas insurrecionalistas (que se dizem “revolucionárias”, mas, no fundo, apontam apenas para a tomada do poder estatal, tal como o bolchevismo). A ditadura militar no Brasil, bem como em diversas outras experiências na América Latina e outros países, efetivou esse processo de uso da violência física e outras formas de repressão (censura, exílio, etc.) contra vastos setores da sociedade. Assim, artistas foram exilados, mas muitos foram atingidos diretamente por violência física, tal como aqueles que foram torturados. O exemplo clássico é o do cantor Geraldo Vandré, um dos nomes da “canção de protesto”, mas também até mesmo o conservador Amado Batista, cantor brega que na época foi torturado, segundo seu próprio depoimento, por ser livreiro e vender “livros subversivos”[2]. Diversos outros indivíduos, artistas, intelectuais, ativistas, sofrem violência física, sob a forma de tortura, espancamento, assassinato, etc. No caso argentino, na ditadura de Pinochet, o número de desaparecidos mostra o alto grau de uso da violência física.

Uma das determinações desse processo é que os regimes ditatoriais geralmente não possuem legitimidade e, por conseguinte, a repressão ganha uma primazia nas ações estatais. A violência física é, nesses casos, uma ameaça constante que se materializa com relativa facilidade e isso atinge até integrantes do poder em suas disputas. O exemplo clássico aqui são os regimes ditatoriais do capitalismo estatal, especialmente a antiga União Soviética na época do stalinismo. Stálin e seus aliados foram responsáveis pela eliminação física de todo o comitê central do Partido Bolchevique da época de Lênin, sendo que o último a sucumbir foi Leon Trotsky, em 1940, no distante México.

Nos regimes democráticos esses processos são menos constantes e regulares. No entanto, eles existem. A repressão violenta de manifestações de rua é exemplar nesse caso. Um caso concreto ajuda a perceber esse processo:

Uma onda de protestos referentes ao aumento do preço das passagens de ônibus vem ocorrendo no Brasil. Em Goiânia, houve cinco manifestações e em outras cidades já aconteceram várias. Destes vários protestos e movimentos, dois se destacaram, o do dia 28 de maio em Goiânia e o do dia 13 de junho em São Paulo, principalmente pela força do protesto e pela violência policial. Os manifestantes, principalmente estudantes secundaristas e universitários, foram acusados de vandalismo, terrorismo. As imagens na imprensa e na internet mostram a violência e truculência da polícia militar. Isso não gerou nenhuma reação por parte dos governos, da imprensa, de diversos setores da população. [...]. O que ocorreu em Goiânia no dia 28 de maio foi uma reação natural e extremamente legítima por parte daqueles que protestavam, bem como no caso de São Paulo no dia 13 de junho. [...]. Portanto, há uma violência cotidiana em nossa sociedade e no transporte coletivo e a reação é de se esperar e ela ocorreu sob a forma de manifestação legítima. No entanto, a resposta dos governantes foi a violência brutal e truculenta da polícia que agrediu e prendeu aleatoriamente qualquer indivíduo que estivesse no protesto. As cenas não deixam dúvidas e a truculência não provocou nenhuma reação por parte do resto da sociedade. A violência cotidiana no transporte, que atinge um ápice com o aumento da passagem, gera protesto que, por sua vez, gera a violência estatal sob forma brutal. A violência cotidiana é banalizada, ninguém se espanta com ela. A violência policial também é banalizada, até quando comete excessos e age com virulência[3].

Esse acontecimento, no qual a violência física foi utilizada amplamente pelas forças policiais e a truculência deixou vários feridos, ocorreu num regime democrático, durante o governo de um partido progressista (“de esquerda”), o Partido dos Trabalhadores, e cuja presidente da República, Dilma Rousseff, tinha 65% de popularidade (pessoas que consideravam seu governo “bom” ou “ótimo”, em março e caiu para 30% em junho após essas primeiras manifestações)[4] e seu partido tinha controle sobre centrais sindicais, setores ativistas dos movimentos sociais, ONGs, etc. Este é apenas um entre milhares de exemplos de uso da violência física por parte do aparato estatal contra manifestações de rua, sem falar no uso cotidiano contra os setores mais pobres da população.

A violência física efetivada pelo Estado é parte de uma de suas funções específicas, a repressão, e isto está na própria gênese da sociedade capitalista. Basta recordar a abordagem de Marx do que ele denominou “sistema colonial” para ver que o Estado absolutista exercia violência física não apenas internamente e nas guerras, mas através do colonialismo.

Os diferentes momentos da acumulação primitiva repartem-se então, mais ou menos em ordem cronológica, a saber pela Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na Inglaterra, em fins do século XVII, são resumidos sistematicamente no sistema colonial, no sistema da dívida pública, no moderno sistema tributário e no sistema protecionista. Esses métodos baseiam-se, em parte, sobre a mais brutal violência, por exemplo, o sistema colonial. Todos, porém, utilizaram o poder do Estado, a violência concentrada e organizada da sociedade, para ativar artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção em capitalista e para abreviar a transição. A violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe de uma nova. Ela mesma é uma potência econômica (MARX, 1988, p. 370).

Nesse sentido, o uso da violência física, legítima ou ilegítima, é uma característica do aparato estatal e inseparável de sua função repressora. O Estado é violento por natureza. A violência física é apenas a parte visível desse processo. O Estado capitalista usa várias formas de violência e a física é uma das mais utilizadas e a história do capitalismo mostra isso abundantemente, desde a época do surgimento dessa forma de sociedade. E isso pode se intensificar em determinados momentos, tais como em alguns regimes de acumulação e formas estatais[5]. Porém, a violência física efetivada pelo aparato estatal pode se tornar mortal. Esse é o aspecto que trataremos a seguir.

 

O Estado Mortal

O aparato estatal não apenas usa ampla violência física contra os indivíduos, grupos, organizações, recalcitrantes, seja qual for suas motivações (criminosas, políticas, revoltas, etc.), mas pode usá-la de forma mortal. Aqui temos o caso do aparato estatal chegar ao extremo de promover a violência física mortal, provocando a morte de várias pessoas. E isso pode ser realizado tanto em regimes democráticos quanto em regimes ditatoriais. O Estado é, muitas vezes, mortal, independentemente de sua forma ou quem está no governo.

Devemos recordar que isso ocorre normalmente no Estado democrático. Basta recordar a violência truculenta contra manifestações de rua, movimentos grevistas, entre outros, para observar que, em muitos destes casos, vítimas fatais ocorrem. Alguns casos históricos famosos são suficientes para demonstrar isso, tal como a morte de Carlo Giuliani, vítima de tiros de policiais italianos, mas são apenas aqueles casos que tiveram ressonância social. Embora o assassinato seja considerado crime, a morte de manifestantes e outros em embates com as forças policiais não gera criminalização dos agentes do Estado. Isso é explicado pelo caráter “legítimo” da violência estatal, tal como apontado por Max Weber, mas muitas vezes se torna ilegítimo, o que ocorre quando a população se revolta e/ou a corrente predominante de opinião é contrária a tal acontecimento.

Porém, existem casos que o Estado democrático pode ser mortal legitimamente sem nenhuma grande preocupação. É nesse sentido que podemos falar de violência física mortal legítima por parte do aparato estatal. Esse é o caso, por exemplo, dos estados nos EUA que adotaram a pena de morte. A pena de morte é regularizada por leis, instituídas democraticamente, seja pelos supostos “representantes” da população, seja por plebiscito ou qualquer outra forma, e por isso é “legítima”. Sem dúvida, existem os opositores e os argumentos contrários, bem como os acontecimentos que demonstram os riscos de erro jurídico na condenação (pessoas que são condenadas e assassinadas pelo Estado e depois se descobre que eram inocentes). A pena de morte, no fundo, significa não só a legitimação do Estado mortal, mas também a possibilidade de um dos crimes mais graves e condenados possa ser executado pelo aparato estatal.

O Estado democrático é mortal e isso se manifesta não apenas nessas situações. Várias outras situações promovem o processo de morte de indivíduos via ação estatal, através da violência física. Um desses casos é a violência policial cotidiana, um efeito colateral do aparato policial. Os valores, a situação social, o treinamento, a competição social, a corrupção, personalidade autoritária, as concepções e doutrinas aprendidas no aparato policial, são determinações do uso de violência física mortal (como objetivo ou como consequência indesejada para efetivar outros objetivos) (VIANA, 2011). Assim, numa sociedade marcada por valores axiológicos, competição social, luta por ascensão social, riqueza, poder, etc., indivíduos que possuem o porte legal de armas, a função de reprimir a criminalidade, o treinamento policial, a frustração das condições precárias de vida, bem como uma grande parte com personalidade autoritária, desequilíbrio psíquico e/ou grande ambição, então a violência de indivíduos policiais, a corrupção e a formação de grupos de extermínio, torna-se um efeito colateral de grande probabilidade.

O policial está envolvido nestas relações sociais e as reproduz. A sua origem social, geralmente dos setores mais pobres da população, e os seus baixos salários, juntamente com outras determinações, colocam-no em uma situação desvantajosa na competição social. Isto sem falar que sua situação de vida precária pode produzir constantes conflitos familiares. Ele passa a ter a necessidade psíquica de compensar isto. Além disso, cria-se uma situação de insatisfação que o torna agressivo e reforça suas tendências autoritárias e, em certos casos, a corrupção e busca de dinheiro sob forma ilícita. Esta é a principal fonte da violência policial e, como se pode observar, há um entrelaçamento entre todas as suas causas e que envolvem o conjunto das relações sociais (VIANA, 2011).

Os grupos de extermínio são a face mais visível deste efeito colateral do aparato policial. Assim, a violência física mortal se manifesta em diversos casos. Na sociedade brasileira, tais grupos atuam, com mais força nas grandes capitais (VIANA, 2020)[6] e muitas vezes são encobertos ou protegidos por outros setores da sociedade vinculados a eles. Esse caso difere da pena de morte outras formas de assassinato via Estado, pois aqui se trata de violência física mortal ilegítima. Os homicídios efetivados pelo aparato estatal são legítimos, agora os que são efeitos colaterais e realizados fora do âmbito legal, são ilegítimos.

A violência física mortal por parte do aparato estatal ocorre de forma direcionada, sendo que em épocas de ascensão e radicalização da luta de classes, se direciona para os militantes revolucionários, ativistas em geral, indivíduos das classes inferiores empenhados na luta, etc. Um caso que teve repercussão foi o Argentino. Além do que ocorreu durante o regime militar nesse país, com os seus inúmeros “desaparecidos”, a forte repressão que ocorreu com as lutas de classes no início dos anos 2000 mostrou a face violenta e mortal do aparato estatal argentino, tal como se viu, entre outros casos, no massacre de Avellaneda em 2002 (BRAGA, 2020)[7].

Por fim, há uma outra forma que o aparato estatal usa amplamente a violência física mortal de forma legítima, mas que ocorre tanto em Estados democráticos quanto em Estados ditatoriais. Trata-se do fenômeno da guerra. Aqui emerge uma manifestação do fenômeno da violência internacional, que é efetivada pelos Estados-Nações no âmbito das relações internacionais. O aparato estatal ao declarar guerra, declara, simultaneamente, a morte de milhares de pessoas (isso é variável dependendo de qual guerra se trata, de quem são os países beligerantes, quantos países estão envolvidos, a diferença de força entre eles, etc.). Por exemplo, na Primeira Guerra Mundial morreram, segundo alguns, 10 milhões de pessoas, e, segundo outros, 22 milhões. A Segunda Guerra Mundial conseguiu aumentar esse número de mortos. Os governos norte-americanos decretaram a morte de milhares de pessoas em suas diversas guerras (Afeganistão, Vietnam, Iraque, etc.). O estado democrático dos Estados Unidos usou a violência física mortal legítima e assim provocou a morte de milhares de pessoas de outros países em suas diversas guerras e, como consequência, de seu próprio país. Assim, de acordo com os interesses nacionais (no fundo, interesse da classe capitalista do país), se declara guerra e a morte de milhares (em alguns casos, milhões) de pessoas, soldados de ambos os lados, além da população civil, seja em conflitos interimperialistas, seja em invasões imperialistas (que, após a Segunda Guerra Mundial, se tornou rotineiro no caso dos Estados Unidos, e, secundariamente, da antiga União Soviética e seu capitalismo estatal, embora, nesse caso, não se trata de um Estado democrático e sim ditatorial).

Esses, no entanto, são casos comuns no Estado democrático. Porém, quando assume a forma ditatorial, isso se amplia consideravelmente. O Estado ditatorial efetiva o extermínio de opositores em geral, tal como se pode ver no caso brasileiro e argentino e já citamos isso anteriormente. O regime militar no Brasil executou um grande número de pessoas, desde guerrilheiros à ativistas e até mesmo setores que simplesmente defendia a “democracia” ou resistia ao autocratismo. Somente na Guerrilha do Araguaia os números oficiais apontam para 59 “desaparecidos” (CORRÊA, 2013). Os “desaparecidos” na Argentina foram em torno de 9 mil pessoas de acordo com dados oficiais e em torno de 30 mil segundo dados de setores da sociedade civil.

Em alguns casos, a violência física mortal pode ser massiva. O caso do Estado nazista mostra justamente um processo de violência física mortal massiva que foi direcionada para alguns setores da sociedade, especialmente os judeus. Estima-se que foram mais de 6 milhões de judeus assassinados pelo governo nazista, bem como milhares (alguns colocam milhões) de outros setores, como comunistas, dissidentes, homossexuais, ciganos, etc. O Holocausto dizimou milhões de pessoas na Alemanha, mas também durante a guerra, tanto por parte de alemães que sucumbiram no conflito bélico, quanto seus adversários (há estimativa de que só soldados da URSS tenham sido mais de um milhão). O caso dos países de capitalismo estatal, o falso “socialismo real”, não é diferente. O caso do stalinismo é apenas o mais conhecido, mas a violência física mortal pelo Khmer Vermelho que efetivou o “genocídio cambojano”, que significou a morte de quase dois milhões de pessoas (cerca de 25% da população) é pouco conhecido. A violência física mortal (entre outras formas de violência) era efetiva contra todos os opositores (internos e externos) de forma ampla e constante.

Aqui entra um elemento que é a falta de legitimidade dessa violência sistemática do aparato estatal em regimes ditatoriais. É por isso que se busca – não só nos regimes ditatoriais, mas que ganham maior força e importância nesse caso – criar uma legitimação ideológica e/ou doutrinária e uma das formas para se efetivar isso é criar um inimigo imaginário. Para entender isso, precisamos compreender o conceito de inimigo imaginário e os seus usos. O inimigo imaginário é um setor da sociedade ou uma coletividade que é identificado, por outro setor da sociedade (embora isso seja efetivado predominantemente pela classe dominante, geralmente pelo aparato estatal), como “inimigo”. Um conjunto de mecanismos são constituídos para gerar o inimigo imaginário.

Desta forma, a invenção de um inimigo imaginário é uma forma de deslocar o conflito de classe para um outro tipo de conflito (nacional, racial, religioso, etc.). Neste contexto, ocorre um processo de criação de ausência e presença: o inimigo real cria sua ausência e, simultaneamente, a presença de um inimigo imaginário. Este foi o caso que ocorreu com os judeus, na Alemanha nazista; as “bruxas”, na inquisição; os comunistas no golpe de estado de 64 no Brasil; os “inimigos do povo” no capitalismo estatal russo, etc. Esta é a mesma lógica que ocorre quando a classe dominante inventa um inimigo imaginário estrangeiro, já que assim fortalece a identidade nacional quando esta se encontra dilacerada internamente pelos seus conflitos de classes. A estratégia neste caso, tal como ocorreu no caso da Guerra das Malvinas, decretada pelo governo argentino contra a Inglaterra, é transformar a contradição interna em externa e desta forma apagá-la das consciências e substituí-la por uma ilusão mobilizadora. A identidade coletiva perdida é restaurada com a concentração do mal em um inimigo imaginário [...] (VIANA, 2007).

Assim, o Estado não apenas possui o monopólio do uso legítimo da violência, como é o principal praticamente da violência física mortal. Ele exerce a violência física mortal legítima esporadicamente nos regimes democráticos e de forma mais regular quando ela é ilegítima, bem como exerce a violência física mortal legítima e ilegítima regularmente nos regimes ditatoriais. Em ambos os casos, o aparato estatal exerce violência física não-mortal, legítima e ilegítima, constantemente para garantir a reprodução das relações de produção capitalistas e relações sociais derivadas regularizadas juridicamente. Essa é apenas mais uma de suas ações no interior do conjunto da repressão estatal, que, por sua vez, é apenas uma função específica que se junta à diversas outras e todas apontam para sua função geral de reprodução do capitalismo.

Considerações Finais

Apresentamos, sinteticamente, a questão da violência estatal sob sua forma de violência física e desenvolvemos um pouco mais uma reflexão sobre o seu caráter mortal, responsável pela morte de milhões de pessoas. Não trouxemos nenhuma novidade. Basta recordar a abordagem de Marx do que ele denominou “sistema colonial” para ver que o Estado absolutista exercia violência física mortal não apenas internamente e nas guerras, mas através do colonialismo (MARX, 1988).

Outros elementos precisariam ser abordados, tais como as determinações desse processo, as suas mutações com o desenvolvimento tecnológico e dos regimes de acumulação, entre outros elementos. Sem dúvida, a violência física estatal no século 19 usava recursos tecnológicos “primitivos” diante do que ocorre atualmente, assim como as tarefas políticas e econômicas da burguesia em cada regime de acumulação aponta para formas diferenciadas de seu exercício. Por outro lado, para entender a violência estatal física é preciso entender as outras formas de violência exercida por essa instituição, bem como a violência existente na sociedade civil, a começar pela mais elementar e fundamental de todas, a violência laboral (VIANA, 2001). Esses aspectos, no entanto, podem ser abordados em outra oportunidade.

O fundamental é ter consciência de que o Estado possui o monopólio do uso legítimo da violência e exerce uma ampla violência física contra opositores, obstáculos, setores da população marginalizados e dissidentes e de outros países, e muitas vezes chega ao ponto máximo que é o homicídio, o assassinato. Sem dúvida, muitos recusariam estes termos, colocando como “pesados”, mas é apenas a verdade nua e crua, que serviria para deslegitimar o aparato estatal e por isso a legitimação jurídica ao lado da doutrinária e ideológica, apontam para evitar tal terminologia. A violência física mortal é apenas a forma mais extrema de violência estatal, que possui inúmeras outras formas de manifestação.

Assim, ao invés de uma máquina burocrática e militar de violência, é necessário constituir uma sociedade que não necessite de tal instituição e muitos menos de violência física. E isso só pode ocorrer através de uma ampla luta que deve gerar indivíduos e formas de consciência que atinjam um nível de racionalidade que permita a autogestão da sociedade e assim encerrar esse período da história da humanidade marcada pela violência. E quem ousar lutar por isso deve saber que poderá ser mais uma vítima da violência estatal, assim como tantos outros. Porém, esse é o único caminho possível para quem quer a libertação humana, pois o resto é ser conivente ou omisso com o exercício generalizado da violência e todas as suas consequências.

 

Referências

 

CORRÊA, Carlos Hugo Studart. Em Algum Lugar das Selvas Amazônicas. A Memória dos Guerrilheiros do Araguaia (1966-1974). Tese de Doutorado. Brasília: UnB, 2013.

 

MARX, Karl. O Capital. Vol. 2, 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.

 

BRAGA, Lisandro. Repressão Estatal e Capital Comunicacional. A Criminalização do Movimento de Desempregados na Argentina (1996-2002). Jundiaí: Paco, 2020.

 

VIANA, Nildo. A criminalização dos movimentos sociais. Revista Espaço Acadêmico. Vol. 17, num. 202, Março de 2018.

 

VIANA, Nildo. A Dinâmica da Violência Juvenil. 2ª edição, São Paulo: Ar editora, 2014.

VIANA, Nildo. A Invenção do Inimigo Imaginário. Antítese. Revista de Marxismo e Cultura Socialista. Ano 02, num. 04, Outubro de 2007.

 

VIANA, Nildo. As Raízes da Violência Policial. In: https://informecritica.blogspot.com/2011/04/as-raizes-da-violencia-policial.html Acesso em: 20/04/2011.

 

VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. 2ª edição, Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

 

VIANA, Nildo. Inspeção do Trabalho e Violência nas Relações de Trabalho. ln: DAL ROSSO, Sadi; SILVA, José Fernando; LIMA, Ricardo. (orgs.). Violência e Trabalho no Brasil. Goiânia: Editora UFG, 2001.

 

VIANA, Nildo. Os Grupos de Extermínio em Goiânia: In: PEIXOTO, Maria Angélica (org.). Entrevistas de Nildo Viana. Reflexões Críticas sobre o Cotidiano, a Cultura e a Sociedade. Goiânia: Edições Redelp, 2020.

 

VIANA, Nildo. Violência e Escola. In: VIEIRA, Renato; VIANA, Nildo (orgs.). Educação, Cultura e Sociedade. Abordagens Críticas da Escola. Goiânia: Edições Germinal, 2002a.

 

VIANA, Nildo. Violência Urbana: A Cidade como Espaço Gerador de Violência. Goiânia, Edições Germinal, 2002b.

 

VIANA, Nildo. Violência, Conflito e Controle. In: SANTOS, Sales e outros (orgs.). 50 Anos Depois. Relações Raciais e Grupos Socialmente Segregados. Brasília: MNDH, 1999.

 

WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

 

WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo: Cultrix, 1978.

 

 



[1] CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

[5] Não poderemos efetivar uma análise desse processo no decorrer da história do capitalismo (e muito menos no caso das formas estatais pré-capitalistas). Porém, o uso da violência física pelo aparato estatal varia em intensidade e extensão dependendo da forma estatal e de sua dinâmica de desenvolvimento. O caso do Estado neoliberal apontado pelo sociólogo Löic Wacquant (2001), que seria, segundo ele, um “Estado penal” já é suficiente para ter uma noção dessas mutações.

[6] “Existem informações sobre existência de grupos de extermínio em praticamente todas as grandes cidades do país, com maior incidência nas regiões norte e nordeste. Porém, em algumas grandes cidades, como é o caso de Goiânia, isso nunca foi algo de grande preocupação ou evidência. Contudo, cada vez mais se torna perceptível sua existência em nossa capital. A existência de grupo de extermínio em Goiás significa, por um lado, uma ampliação do processo social de degradação humana, que é marcada pela mercantilização, desmoralização, desvaloração da vida humana e aumento da violência de grupos organizados, crescimento de ações semifascistas; e, por outro lado, que o Estado e a sociedade civil estão marcados pela passividade, onde o poder estatal se omite, pois teria amplas condições de desmantelar tais grupos, mas o que é impedido por seus interesses e vínculos com o mesmo, e a população por falta de auto-organização, pressão, cobrança do poder estatal, ações variadas para pôr fim a esta situação. Agora, também significa que a criminalidade avança no espaço das instituições estatais, sendo que o sistema policial fica cada vez mais submetido à lógica da sociedade capitalista, onde o dinheiro passa a ser o “Deus dos deuses” e o resto passa a ser apenas o resto” (VIANA, 2020, p. 201).

[7] O livro de Braga (2020) aponta para uma análise profunda desse processo, envolvendo não só a questão da repressão, mas analisando os discursos que tentam justificar e legitimar esse processo, especialmente o do capital comunicacional. A respeito da questão da criminalização e incriminação no que se refere aos movimentos sociais é possível consultar também Viana (2018).

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