CRÍTICA
À RAZÃO TECNICISTA
Nildo Viana
A sociedade contemporânea vive num dilema: razão tecnicista
ou razão neopopulista? Porém, como já dizia o compositor Herbert Vianna, esse é
“um dilema que nem o cinema pode resolver”. É uma escolha entre o inferno e o
purgatório. Ou, para ser mais exato, entre o inferno com um diabo mau encarado
e um inferno com um diabo sorridente, ambos furando o corpo de suas vítimas com
tridentes e um dizendo “não tem outro remédio” enquanto que o outro diz “vou fazer
você feliz”. Vamos analisar, brevemente, a razão tecnicista e o diabo mau
encarado no presente texto e posteriormente trataremos da razão neopopulista e
do diabo sorridente.
O tecnicismo tem uma longa história como termo nas ciências
humanas, bem como vários significados. Aqui nos referimos ao tecnicismo
contemporâneo. A sua base ideológica é o neoliberalismo inflexível dos anos
1980, cuja ideia era aumentar a exploração e a precarização com base no cálculo
mercantil. O cálculo mercantil (chamado por alguns ideólogos como “cálculo
racional” ou “cálculo econômico”) quantifica e determina tudo em termos
calculistas, quantitativistas e individualistas. O indivíduo age racionalmente
no mercado, fazendo “escolhas racionais”, que beneficiam a ele e ao conjunto da
sociedade (leia-se: “economia de mercado”, ou, em termos marxistas, modo de
produção capitalista). É o neoliberalismo que afirma não existir “almoço
grátis” (Milton Friedman). O mercado é o Deus supremo e todos devem se curvar
diante dele. O estado, nesse contexto, deve ser “mínimo” e realizar o cálculo
mercantil, equilibrando suas contas e evitando o déficit orçamentário.
Ele deve, portanto, “fazer o que tem que ser feito”. Isso, obviamente, está de
acordo com os interesses do capital oligopolista transnacional. A conclusão óbvia
disso, que pode ser cantada com um soneto de fundo e que se encerra com uma
chave de ouro malthusiana, é a de que o aparato estatal deve diminuir seus
gastos, especialmente com “políticas sociais”. A lei da selva mercantil deve
dominar para que os leões do capital reinem absolutos.
Assim, essa razão tecnicista, pois os argumentos são
técnicos e fundados no cálculo mercantil, e inspirados nos patéticos
economistas neoliberais do passado e do presente, aponta não só para a diminuição
dos gastos estatais com “políticas públicas”, mas também com a previdência
social (o envelhecimento populacional, por exemplo, “prova” que os gastos com
aposentadoria se tornam cada vez mais amplos e desproporcional em relação à
força de trabalho ativa) e diversos outros elementos cuja responsabilidade é do
Estado. Um aparente realismo justifica e legitima decisões políticas
extremamente prejudiciais para vastos setores da sociedade. O realismo
mercantil mostra a soberania do mercado sobre os seres humanos.
Nesse contexto, o descontentamento tende a ser grande,
especialmente nos setores mais atingidos e nos mais empobrecidos. Assim, a
classe operária, os semiburgueses (pequenos proprietários, pequenos
comerciantes, rentistas), o lumpemproletariado (aqui englobando todos os
desempregados e semiempregados), o campesinato, etc., são atingidos
negativamente pelas políticas neoliberais inflexíveis. Alguns setores da
burocracia estatal (especialmente das instituições estatais, tal como se vê no
caso de universidades, hospitais públicos, etc.), a redução do emprego
“público”, etc., atinge também alguns setores da burocracia e da intelectualidade.
A precarização do trabalho, o desemprego, o empobrecimento,
entre outros problemas sociais, tiveram uma expansão com a emergência do
neoliberalismo, bem como violência e a criminalidade tendem a aumentar nesse
contexto e foi o que ocorreu. Nesse contexto, o aparato estatal deve se tornar
mais repressivo e emerge a chamada “política de tolerância zero” e por isso o
Estado neoliberal foi denominado “Estado penal” pelo sociólogo Löic Wacquant (2001).
Porém, isso ocorreu no período de implantação dos governos neoliberais, mais inflexíveis,
ou seja, no momento de formação do regime de acumulação integral (VIANA, 2009).
A crise do regime de acumulação anterior e sua substituição foi um período
difícil e o novo regime de acumulação, graças ao aumento da exploração com a
chamada “reestruturação produtiva”, ao neoliberalismo e ao hiperimperialismo,
conseguiu retomar o ritmo da acumulação de capital[1],
gerando uma relativa estabilidade do capitalismo mundial nos anos 1990 até
meados dos anos 2000 (e, dependendo do país, um pouco antes ou um pouco depois).
O problema é que a acumulação de capital tem uma tendência
cíclica e o ciclo dos regimes de acumulação apontam para isso. A crise
financeira de 2008 abriu caminho para o desencadeamento de um processo tendencial
já existente no sentido da desestabilização do regime de acumulação integral. Nesse
contexto, reaparecem, novamente, os adeptos do neoliberalismo inflexível, mas
sob forma ainda mais exagerada e metamorfoseada como neoliberalismo
discricionário, diante da desestabilização e ameaça de crise geral do
capitalismo (VIANA, 2020). Esse neoliberalismo discricionário começa a ser
praticado em alguns países, com as chamadas “políticas de austeridade”. Essas
políticas de austeridade visam resolver o problema da acumulação de capital a
partir da própria lógica deste regime, ou seja, com mais neoliberalismo (VIANA,
2020). Assim, a razão tecnicista se torna ainda mais forte e truculenta.
Os representantes desta razão tecnicista são economistas
neoliberais empedernidos, capitalistas, representantes de instituições
internacionais e nacionais, entre outros. No Brasil, o atual Ministro da
Economia, Paulo Guedes, é um deles, embora esteja limitado por um governo de
orientação conservantista[2].
Se Paulo Guedes fosse soberano em suas decisões, o caos já havia tomado conta
do país, pois a razão tecnicista é reducionista e não leva em consideração os
aspectos políticos, as lutas de classes, o significado do Estado, entre outros
processos. A realidade é vista a partir da ótica do cálculo mercantil como se
fosse a única coisa existente e importante, e, ao desconsiderar todo o resto, acaba
promovendo mais problemas do que soluções, embora possa dar resultados
positivos para o capital em curto prazo, mas insustentáveis a longo prazo.
A razão tecnicista neoliberal não somente desconsidera as
questões humanas, como também as políticas, entre outras. Trata-se um mundo
intelectual pobre e nessa pobreza, onde reina a matemática financeira, a
riqueza da realidade é ofuscada, e as decisões políticas são orquestradas por
um maestro bitolado. E nesse contexto, o aparato estatal, a salvaguarda do
capitalismo, é enfraquecido, tornando ainda mais potencialmente explosiva uma
nova crise no capitalismo.
A única ação voltada para o “social” promovida pela razão
tecnicista é a responsabilização da sociedade civil e do indivíduo. Assim,
coisas como “meritocracia”, “empreendedorismo”, por um lado, visando o sucesso
individual, e ações como incentivo de ONGs, voluntariado e outras, como
colaboração da sociedade civil para substituir o Estado e sua omissão no que se
refere às políticas de assistência social e falta de ação das instituições
estatais (fechadas, privatizadas, precarizadas). Os gastos estatais com a
educação especial são suspensos e em seu lugar emerge a chamada “política de
inclusão”. O discurso da inclusão se torna hegemônico. O que não se esclarece é
que se trata de uma inclusão marginal e que são os professores que são os
responsabilizados por resolver os novos problemas criados. Isso vale para todos
os tipos de “inclusão”, embora ela tenha, no seu interior, uma certa “inclusão
seletiva” (para cargos, por exemplo), que é uma forma de cooptação de setores
de determinados grupos sociais[3]
e que significa tão somente a substituição de quem ocupará determinado cargo ao
invés de mudanças reais.
Assim, a razão tecnicista de orientação neoliberal promove
um processo de justificação e legitimação das políticas neoliberais em sua
forma mais endurecida, que é no seu período de formação e no momento de
desestabilização do regime de acumulação integral, gerando um processo de
aprofundamento através do neoliberalismo discricionário. Ela é expressão, nua e
crua, dos interesses capitalistas e, por conseguinte, da desumanização mais
intensa da sociedade burguesa. Porém, essa não é a única possibilidade e expressão
do neoliberalismo. Uma outra forma é a razão neopopulista, que, no entanto,
será o tema de outro artigo.
Referências
MARX, Karl. O Capital. 5
vols. 1, 3ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988.
VIANA,
Nildo. A Mercantilização das Relações Sociais. Modo de Produção
Capitalista e Formas Sociais Burguesas. Curitiba: Appris, 2018.
VIANA,
Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação
Integral. São Paulo: Idéias e Letras, 2009.
VIANA,
Nildo. Regime de Acumulação Integral e Dinâmica Histórica do Neoliberalismo. In:
ALMEIDA, Felipe Mateus (org.). O Regime de Acumulação Integral. Retratos
do Capitalismo Contemporâneo. Goiânia: Edições Redelp, 2020.
WACQUANT, Löic. As
Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
[1]
Um indivíduo numa rede social e outro numa palestra virtual provaram, com seus
questionamentos, que, a despeito de serem dos meios intelectualizados e com
formação universitária na área de ciências humanas, não entendem o significado
de “acumulação de capital” e a confundem com “concentração de renda” ou
acumulação de setores do capital (determinadas empresas, por exemplo). Diante
da miséria intelectual contemporânea, isso não é tão fantástico assim. Quando
usamos o termo “acumulação de capital” não estamos tratando de “concentração de
renda” e nem de setores do capital e sim do processo social mais geral que é do
conjunto do capital e referente à taxa de lucro. Isso nada tem a ver com concentração
de renda, que pode ocorrer mesmo com o decréscimo geral da acumulação de
capital e que não tem o mesmo significado, pois uma coisa é “renda” e outra
coisa é “capital”. Se um indivíduo ganha na loteria, ele fica rico e concentra
renda, mas não capital, e isso pode ocorrer, tal como efetivamente ocorre. Isso
pode ocorrer em momento de recuo da taxa de lucro ou mesmo crise de um regime
de acumulação. O que ocorre, nesse caso, é apropriação de mais-dinheiro via
transferência de dinheiro e não acumulação de capital (VIANA, 2018). Infelizmente,
esse esclarecimento tem que ser efetivado devido a um conjunto de indivíduos
presunçosos que leram poucas coisas, ou garimparam algo na internet, e já se
julgam entendidos de “economia”. Sem dúvida, para entender mais profundamente o
que foi aqui esclarecido (e que algumas pessoas já tem noção e não realizam tal
confusão), seria necessário um processo de pesquisa mais profundo e
entendimento de conceitos como renda, capital, lucro, taxa de lucro, massa de
lucro, reprodução ampliada do capital, etc., que, obviamente, não poderemos
apresentar aqui (cf. MARX, 1988). Podemos sintetizar o que colocamos da
seguinte forma: quando a taxa de lucro aumenta, o ritmo de acumulação de
capital se acelera e isso tem efeitos globais na sociedade, enquanto que quando
ela entra em declínio, ocorre o processo contrário. A taxa de lucro, por sua
vez, não se confunde com massa de lucro, pois expressa a porcentagem da taxa de
exploração, enquanto que a massa de lucro é em termos globais, a totalidade
quantitativa do lucro.
[2]
O conservantismo é estatista, ao contrário do neoliberalismo. A aliança de
Bolsonaro – conservantista – e Paulo Guedes – neoliberal – foi produto do
oportunismo eleitoral do primeiro, que queria apoio de setores do capital e
diminuir a resistência ao seu nome por parte de outros, visando ganhar a
eleição. Isso gerou um regime híbrido, uma espécie de liberal-conservantismo.
[3]
Não se resolve o problema dos grupos sociais, pois a inclusão é de alguns
poucos indivíduos e que, uma vez incluídos, passam a ter novos interesses, que
geralmente não são mais (se um dia foram, dependendo do caso) o do grupo social
de origem.
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