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quinta-feira, 16 de abril de 2020

JUNG E O MUNDO PÓS-HUMANO


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JUNG E O MUNDO PÓS-HUMANO

Nildo Viana*


Marco Heleno Barreto oferece ao público uma obra de suma importância intitulada “Estudos (Pós)Junguianos”[1]. A importância da obra se revela nos vários temas importantes, em especial a obra de Jung e sua interpretação e a questão da contemporaneidade em relação com a concepção junguiana e “pós-junguiana”. Barreto, autor de vários trabalhos sobre Jung e ancorado numa ampla pesquisa sobre este autor e no pensamento derivado dele, tanto dos autores mais “ortodoxos” quanto dos mais inovadores, especialmente o de Wolfgang Giegerich, faz uma reflexão importante sobre temas básicos do pensamento deste intelectual e o relaciona com a contemporaneidade, o que é mais do que suficiente para o despertar o interesse na leitura dessa obra.

Os Estudos (Pós)Junguianos são compostos por 5 capítulos. Na apresentação, o autor revela que é uma continuidade dos seus estudos sobre o pensamento psicológico de Jung a partir de uma leitura filosófica, além de explicar a relativa inexatidão do título (que não se pretende uma superação total do pensador suíço) e a sua temática e capítulos. O tema central é a psicologia junguiana como sintoma da experiência ocidental do século XX e sua leitura a partir de uma perspectiva de relação com o “mundo pós-humano” e a partir de uma inovação na psicologia analítica deriva das reflexões do autor e da contribuição de Giegerich. O capítulo 01 analisa a relação entre o ético e religioso no pensamento de Jung; o capítulo 02 tematiza a relação do niilismo com a experiência religiosa na modernidade; o capítulo 03 é dedicado a análise de um sonho de Jung (“o enigma de Siegfried”) a partir de distintas perspectivas metodológicas; o capítulo 04 aborda a relação de Jung com a questão da catástrofe a partir dos seus “sonhos catastróficos”; e o último e quinto capítulo aborda a questão da catástrofe no contexto do mundo pós-humano.

Obviamente que o leitor, apenas vendo os temas dos capítulos, já percebe a complexidade das reflexões. Diversas questões importantes, tanto as mais filosóficas como a ética e o niilismo, quanto as mais psicanalíticas e psicológicas, como os sonhos e a questão metodológica, além do tema “transversal” da religião, são analisadas e refletidas. Uma síntese dessa obra demandaria um espaço bem amplo, e, mais ainda, uma reflexão sobre o conjunto de questões, análises e conclusões apresentadas pelo autor. Esse não é nosso objetivo, mas tão-somente apresentar essa síntese para encaminhar alguns breves comentários sobre a obra, numa análise mais geral.

A obra tem vários méritos e a amplitude da temática e temas abordados é o primeiro, como já colocamos. Cabe acrescentar a unidade temática que se manifesta por ser uma análise a partir do pensamento de Jung e por desdobrar numa análise da psique objetiva e dos problemas contemporâneos. Mas, para além disso, é possível observar alguns pontos importantes na obra de Barreto. Já na apresentação isso fica explicitado quando o autor busca justificar o seu trabalho simultaneamente psicológico e filosófico. A ultrapassagem das fronteiras do pensamento é algo necessário e, por conseguinte, um mérito do autor ter superado a limitação de uma análise meramente psicológica. Sem dúvida, a psicologia (e a psicanálise) pode ser enriquecida com as contribuições filosóficas e de outros setores do pensamento. E o pensamento de Jung, em particular, se presta bem ao encontro com o pensamento filosófico, tal como o autor demonstra ao mostrar a proximidade destas duas formas de saber no pensamento do psiquiatra suíço.

A análise da relação entre ética e religião no pensamento junguiano é também fundamental, pois revela a ligação, muitas vezes esquecida ou desconhecida, entre ambas. A discussão sobre ethos, daimon, entre outros aspectos, apontam para uma compreensão de Jung mais ampla e para a análise produzida sobre a psique humana.

A reflexão sobre o dilema do niilismo é uma das principais contribuições da obra. O dilema assim se apresenta: “ou reagir ao niilismo, confirmando-o inevitavelmente, ou abandonar-se a ele – como se verifica, por exemplo, na chamada mística do consumo, na consciência light, no entusiasmo tecnolátrico, no gozo do entretenimento como fim último da existência etc.” (p. 48). Assim, a vida contemporânea retoma concretamente esse dilema filosófico e a psicologia junguiana não escapa dele. Esse questionamento perpassará todo o livro e a resposta é esperada até a última página. Voltaremos a isso adiante.

A reflexão sobre o enigma de Siegfried aponta para um elemento interessante – e um dos mais populares da psicanálise – que é a interpretação dos sonhos. Sem dúvida, uma tradição psicanalítica, a começar pela obra pioneira de Freud e passando por diversos outros, como Fromm e o próprio Jung, apontou para várias formas interpretativas. Um ponto interessante da obra é a explicitação de três formas interpretativas, duas oriundas do próprio Jung – a interpretação no nível objetivo e a interpretação no nível subjetivo – e a terceira que se coloca como um refinamento metodológico da abordagem junguiana, que é a “interioridade da imagem em si mesma”. Aqui as temáticas junguianas são discutidas e repensadas. As ideias de arquétipo e sincronicidade são descartadas e outras recebem atenção especial, tal como a ideia de alma (entendida como psique objetiva). As três interpretações do sonho de Jung, no qual ele mata o herói, apontam para conclusões distintas e isso enriquece a obra, pois mostra as possibilidades interpretativas. A interpretação definida como mais adequada pelo autor, inspirada na obra de Giegerich, apresenta uma característica distintiva, pois não foca na realidade externa e nem na interna e sim na dinâmica própria da psique coletiva. Como trata-se de uma inovação, apresenta como mérito trazer mais uma possibilidade interpretativa, concorde-se ou não com ela.

Uma outra discussão importante é sobre a psicologia anticatastrófica de Jung e seus desdobramentos na contemporaneidade, sua relação com a época, com a crise civilizacional, com o mundo “pós-humano”. As visões e sonhos de Jung, desde os da década de 1910 até os dos anos 1960, são analisados com a preocupação de responder aos problemas atuais da humanidade. E a reflexão sobre a questão da subjetividade tornada lixo na contemporaneidade é atualíssima e importante, retornando à questão do niilismo. A interpretação dos sonhos e visões de Jung reafirmam a questão metodológica interpretativa e relaciona com a situação da época dele e com a nossa. A relação com a nossa época é fundamental, pois coloca um problema contemporâneo que vem sendo percebido e discutido sobre várias formas e chegando a diversas conclusões. A conclusão de Barreto, aponta para “uma situação radicalmente nova, da qual a psicologia analítica já não é mais uma expressão adequada” (p. 115), pode ser questionada, mas tem um momento de verdade. Porém, indo além da conclusão sobre a psicologia analítica de Jung, o autor avança para uma conclusão que julgamos acertada sobre a realidade contemporânea: “é preciso afirmar e participar ativamente do mundo, e não simplesmente se opor a ela numa atitude trágica de recusa heroica e romântica” (p. 163).

Por conseguinte, os estudos pós-junguianos devem ser lidos e, mais do que isso, refletidos, pois eles são ricos em apontar dilemas existenciais e contemporâneos, entrelaçados, que promovem um conjunto de novos questionamentos, novas reflexões e novas questões. Sem dúvida, é possível se discordar amplamente de suas conclusões ou de questões pontuais, bem como, para quem recusa Jung, a sua base intelectual. Porém, Jung, em que pese ser conservador (como Barreto reconhece no seu texto), não é “qualquer conservador”. A personalidade de Jung e seus conflitos psíquicos, certamente ampliados por sua relação com a psicanálise e seu projeto de desenvolver uma psicologia analítica, geraram uma rica reflexão sobre a mente humana, sobre a individuação, sobre a racionalização, entre outros temas. Os elementos metafísicos do seu pensamento não anulam sua real contribuição. Barreto recupera vários elementos dessa contribuição e isso é indiscutível.

Seria necessário, no entanto, analisar criticamente a contribuição junguiana e perceber seus limites e problemas, o que não era objetivo de Barreto. Porém, fica implícito – e em alguns momentos explícito – a concordância com Jung e o questionamento apenas a alguns aspectos e que se desdobra na crítica da psicologia analítica ao destacar sua inadequação ao mundo “pós-humano”. Não poderemos entrar na questão da crítica do pensamento junguiano, mas um elemento precisamos destacar, pois isso se reflete com mais força na análise da obra de Barreto. Esse elemento é a desconsideração do histórico-concreto e do social. O pensamento junguiano seria enriquecido com uma compreensão mais ampla da sociedade capitalista e sua dinâmica, o que permitiria entender diversos aspectos da determinação social e histórica da mente humana, bem como dos dilemas contemporâneos.

Isso, obviamente, não se encaixa com o pensamento junguiano e com a proposta de Barreto e só tem sentido numa concepção não-juguiana (mesmo que reconheça os seus méritos). O autor não se propôs a isso e realizou uma discussão interessante sobre Jung e o mundo pós-humano, uma contribuição que merece reflexões de desdobramentos. Assim, a obra cumpre com seu objetivo e aguardamos novas contribuições de Barreto para a análise do pensamento junguiano e (pós)-junguiano.



* Sociólogo e filósofo; Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB).
[1] BARRETO, Marco Heleno. Estudos (Pós)Junguianos. São Paulo: Edições Loyola, 2018.

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Resenha publicada originalmente em:
Síntese - Revista de Filosofia. v. 47 n. 147 (2020).
Disponível em:

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JUNG E A INDIVIDUAÇÃO:


SOBRE PSICANÁLISE:



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