JUNG
E O MUNDO PÓS-HUMANO
Nildo Viana*
Marco Heleno Barreto oferece ao público uma obra de suma
importância intitulada “Estudos (Pós)Junguianos”[1].
A importância da obra se revela nos vários temas importantes, em especial a
obra de Jung e sua interpretação e a questão da contemporaneidade em relação
com a concepção junguiana e “pós-junguiana”. Barreto, autor de vários trabalhos
sobre Jung e ancorado numa ampla pesquisa sobre este autor e no pensamento
derivado dele, tanto dos autores mais “ortodoxos” quanto dos mais inovadores,
especialmente o de Wolfgang Giegerich, faz uma reflexão importante sobre temas
básicos do pensamento deste intelectual e o relaciona com a contemporaneidade,
o que é mais do que suficiente para o despertar o interesse na leitura dessa
obra.
Os Estudos (Pós)Junguianos são compostos por 5 capítulos. Na
apresentação, o autor revela que é uma continuidade dos seus estudos sobre o
pensamento psicológico de Jung a partir de uma leitura filosófica, além de
explicar a relativa inexatidão do título (que não se pretende uma superação
total do pensador suíço) e a sua temática e capítulos. O tema central é a
psicologia junguiana como sintoma da experiência ocidental do século XX e sua
leitura a partir de uma perspectiva de relação com o “mundo pós-humano” e a
partir de uma inovação na psicologia analítica deriva das reflexões do autor e
da contribuição de Giegerich. O capítulo 01 analisa a relação entre o ético e
religioso no pensamento de Jung; o capítulo 02 tematiza a relação do niilismo
com a experiência religiosa na modernidade; o capítulo 03 é dedicado a análise
de um sonho de Jung (“o enigma de Siegfried”) a partir de distintas
perspectivas metodológicas; o capítulo 04 aborda a relação de Jung com a
questão da catástrofe a partir dos seus “sonhos catastróficos”; e o último e
quinto capítulo aborda a questão da catástrofe no contexto do mundo pós-humano.
Obviamente que o leitor, apenas vendo os temas dos
capítulos, já percebe a complexidade das reflexões. Diversas questões
importantes, tanto as mais filosóficas como a ética e o niilismo, quanto as
mais psicanalíticas e psicológicas, como os sonhos e a questão metodológica,
além do tema “transversal” da religião, são analisadas e refletidas. Uma
síntese dessa obra demandaria um espaço bem amplo, e, mais ainda, uma reflexão
sobre o conjunto de questões, análises e conclusões apresentadas pelo autor.
Esse não é nosso objetivo, mas tão-somente apresentar essa síntese para
encaminhar alguns breves comentários sobre a obra, numa análise mais geral.
A obra tem vários méritos e a amplitude da temática e temas
abordados é o primeiro, como já colocamos. Cabe acrescentar a unidade temática
que se manifesta por ser uma análise a partir do pensamento de Jung e por
desdobrar numa análise da psique objetiva e dos problemas contemporâneos. Mas,
para além disso, é possível observar alguns pontos importantes na obra de
Barreto. Já na apresentação isso fica explicitado quando o autor busca justificar
o seu trabalho simultaneamente psicológico e filosófico. A ultrapassagem das
fronteiras do pensamento é algo necessário e, por conseguinte, um mérito do
autor ter superado a limitação de uma análise meramente psicológica. Sem
dúvida, a psicologia (e a psicanálise) pode ser enriquecida com as
contribuições filosóficas e de outros setores do pensamento. E o pensamento de
Jung, em particular, se presta bem ao encontro com o pensamento filosófico, tal
como o autor demonstra ao mostrar a proximidade destas duas formas de saber no
pensamento do psiquiatra suíço.
A análise da relação entre ética e religião no pensamento
junguiano é também fundamental, pois revela a ligação, muitas vezes esquecida
ou desconhecida, entre ambas. A discussão sobre ethos, daimon, entre
outros aspectos, apontam para uma compreensão de Jung mais ampla e para a
análise produzida sobre a psique humana.
A reflexão sobre o dilema do niilismo é uma das principais contribuições da obra. O dilema assim se apresenta: “ou reagir ao niilismo, confirmando-o inevitavelmente, ou abandonar-se a ele – como se verifica, por exemplo, na chamada mística do consumo, na consciência light, no entusiasmo tecnolátrico, no gozo do entretenimento como fim último da existência etc.” (p. 48). Assim, a vida contemporânea retoma concretamente esse dilema filosófico e a psicologia junguiana não escapa dele. Esse questionamento perpassará todo o livro e a resposta é esperada até a última página. Voltaremos a isso adiante.
A reflexão sobre o enigma de Siegfried aponta para um
elemento interessante – e um dos mais populares da psicanálise – que é a
interpretação dos sonhos. Sem dúvida, uma tradição psicanalítica, a começar
pela obra pioneira de Freud e passando por diversos outros, como Fromm e o
próprio Jung, apontou para várias formas interpretativas. Um ponto interessante
da obra é a explicitação de três formas interpretativas, duas oriundas do
próprio Jung – a interpretação no nível objetivo e a interpretação no nível
subjetivo – e a terceira que se coloca como um refinamento metodológico da
abordagem junguiana, que é a “interioridade da imagem em si mesma”. Aqui as
temáticas junguianas são discutidas e repensadas. As ideias de arquétipo e
sincronicidade são descartadas e outras recebem atenção especial, tal como a ideia
de alma (entendida como psique objetiva). As três interpretações do sonho de
Jung, no qual ele mata o herói, apontam para conclusões distintas e isso
enriquece a obra, pois mostra as possibilidades interpretativas. A
interpretação definida como mais adequada pelo autor, inspirada na obra de
Giegerich, apresenta uma característica distintiva, pois não foca na realidade
externa e nem na interna e sim na dinâmica própria da psique coletiva. Como
trata-se de uma inovação, apresenta como mérito trazer mais uma possibilidade
interpretativa, concorde-se ou não com ela.
Uma outra discussão importante é sobre a psicologia
anticatastrófica de Jung e seus desdobramentos na contemporaneidade, sua
relação com a época, com a crise civilizacional, com o mundo “pós-humano”. As
visões e sonhos de Jung, desde os da década de 1910 até os dos anos 1960, são
analisados com a preocupação de responder aos problemas atuais da humanidade. E
a reflexão sobre a questão da subjetividade tornada lixo na contemporaneidade é
atualíssima e importante, retornando à questão do niilismo. A interpretação dos
sonhos e visões de Jung reafirmam a questão metodológica interpretativa e
relaciona com a situação da época dele e com a nossa. A relação com a nossa
época é fundamental, pois coloca um problema contemporâneo que vem sendo
percebido e discutido sobre várias formas e chegando a diversas conclusões. A
conclusão de Barreto, aponta para “uma situação radicalmente nova, da qual a
psicologia analítica já não é mais uma expressão adequada” (p. 115), pode ser
questionada, mas tem um momento de verdade. Porém, indo além da conclusão sobre
a psicologia analítica de Jung, o autor avança para uma conclusão que julgamos
acertada sobre a realidade contemporânea: “é preciso afirmar e participar
ativamente do mundo, e não simplesmente se opor a ela numa atitude trágica de
recusa heroica e romântica” (p. 163).
Por conseguinte, os estudos pós-junguianos devem ser lidos
e, mais do que isso, refletidos, pois eles são ricos em apontar dilemas
existenciais e contemporâneos, entrelaçados, que promovem um conjunto de novos
questionamentos, novas reflexões e novas questões. Sem dúvida, é possível se
discordar amplamente de suas conclusões ou de questões pontuais, bem como, para
quem recusa Jung, a sua base intelectual. Porém, Jung, em que pese ser
conservador (como Barreto reconhece no seu texto), não é “qualquer
conservador”. A personalidade de Jung e seus conflitos psíquicos, certamente
ampliados por sua relação com a psicanálise e seu projeto de desenvolver uma psicologia
analítica, geraram uma rica reflexão sobre a mente humana, sobre a
individuação, sobre a racionalização, entre outros temas. Os elementos
metafísicos do seu pensamento não anulam sua real contribuição. Barreto
recupera vários elementos dessa contribuição e isso é indiscutível.
Seria necessário, no entanto, analisar criticamente a
contribuição junguiana e perceber seus limites e problemas, o que não era
objetivo de Barreto. Porém, fica implícito – e em alguns momentos explícito – a
concordância com Jung e o questionamento apenas a alguns aspectos e que se desdobra
na crítica da psicologia analítica ao destacar sua inadequação ao mundo
“pós-humano”. Não poderemos entrar na questão da crítica do pensamento
junguiano, mas um elemento precisamos destacar, pois isso se reflete com mais
força na análise da obra de Barreto. Esse elemento é a desconsideração do
histórico-concreto e do social. O pensamento junguiano seria enriquecido com
uma compreensão mais ampla da sociedade capitalista e sua dinâmica, o que
permitiria entender diversos aspectos da determinação social e histórica da
mente humana, bem como dos dilemas contemporâneos.
Isso, obviamente, não se encaixa com o pensamento junguiano
e com a proposta de Barreto e só tem sentido numa concepção não-juguiana (mesmo
que reconheça os seus méritos). O autor não se propôs a isso e realizou uma
discussão interessante sobre Jung e o mundo pós-humano, uma contribuição que
merece reflexões de desdobramentos. Assim, a obra cumpre com seu objetivo e
aguardamos novas contribuições de Barreto para a análise do pensamento junguiano
e (pós)-junguiano.
* Sociólogo e filósofo; Professor da
Faculdade de Ciências Sociais e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela Universidade de
Brasília (UnB).
[1]
BARRETO, Marco Heleno. Estudos (Pós)Junguianos. São Paulo: Edições
Loyola, 2018.
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Resenha publicada originalmente em:
Síntese - Revista de Filosofia. v. 47 n. 147 (2020).
Disponível em:
Leia mais:
JUNG E A INDIVIDUAÇÃO:
SOBRE PSICANÁLISE:
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