Karl Korsch e a Comuna Revolucionária
Nildo
Viana
Os
dois textos de Korsch em que faz breves comentários ao processo histórico da
luta proletária expresso na Comuna de Paris parecem, à primeira vista,
enigmáticos (Korsch, 1982a; Korsch, 1982b). Por um lado, parece defender Marx e
reconhecer valor na obra política de Lênin, além de simpatia pelo anarquismo,
por outro lado, mostra discordâncias em relação ao pensamento de Marx, Engels,
Lênin e faz observações contrárias ao anarquismo. Além disso, ao mesmo tempo
que ressalta o valor histórico da Comuna de Paris e da organização dos
conselhos operários durante a Revolução Russa, acaba contestando seu papel nas
futuras lutas operárias. As longas frases e falta de maior clareza formal e de
objetivo são outros aspectos que provocam dificuldade de leitura destes textos,
principalmente no caso de algumas más traduções, tal como as disponíveis na
internet.
O
texto fica ainda mais enigmático para quem não conhece o desenvolvimento do
pensamento de Korsch, as fases distintas de seu pensamento, apesar de uma certa
unidade em alguns elementos essenciais. Devido a isso, alguns intérpretes
querem interpretar o Korsch que escreve estes textos no início da década de
1930 pelo seu pensamento anterior recém saído do socialismo fabiano, o que
mostra um total desconhecimento de sua obra e evolução intelectual, bem como de
métodos de leitura mais rigorosos. Os dois textos de Korsch merecem uma leitura
rigorosa e não-dogmática.
Korsch
adere ao marxismo no final da década de 1910 e acaba se integrando no Partido
Comunista Alemão, sendo que participa da luta operária dos conselhos operários
durante a tentativa de Revolução Alemã. Torna-se um crítico da
social-democracia e no início dos anos 1920 publica alguns ensaios sobre o
materialismo histórico-dialético que depois são reunidos no livro Marxismo e
Filosofia (Korsch, 1977),
sua obra mais importante em nossa perspectiva. Nesse contexto, ele busca
resgatar o verdadeiro sentido do marxismo, analisando o processo histórico de
engendramento e desenvolvimento do marxismo em íntima relação com o
desenvolvimento do movimento operário e evolução do pensamento filosófico. A
obra apresenta uma severa crítica à deformação do verdadeiro caráter do
marxismo e da dialética materialista e logo recebeu as críticas da
social-democracia e do bolchevismo. A originalidade de sua tese está em definir
o marxismo como expressão teórica do movimento revolucionário do proletariado,
não sendo uma filosofia e nem uma ciência, no sentido burguês do termo. O
vínculo radical estabelecido entre marxismo e proletariado tem sua raiz no
pensamento de Marx e sua teoria da consciência: a consciência não é nada mais
que o ser consciente. A separação entre classe e consciência de classe torna-se
impossível e o marxismo é apenas a forma teórica de tal consciência, mas,
quando a social-democracia, num momento de refluxo do movimento operário, rompe
com esse vínculo, transforma o marxismo em ideologia, falsa consciência.
Apesar
de sua discordância com o Partido Comunista Alemão (e curiosamente não adesão
ao seu rival Partido Comunista Operário Alemão, de curta duração e que se dizia
“não um partido propriamente dito”, articulando com os conselhos operários e
combatendo a social-democracia e bolchevismo, tendo como integrantes Herman
Gorter e Otto Rühle, sendo que se aproximaria deste último mais tarde), se
manteria nele até sua expulsão em 1926. Após este período ele começa a rever
suas posições, e é afetado pela derrota do movimento dos conselhos operários do
final da década de 1910 e início da seguinte, período que começa a colaborar em
revistas de grupos comunistas conselhistas e outras publicações, sendo que no
final de 1920 se aproxima do anarco-sindicalismo e do movimento sindical, bem
como da Espanha e das lutas de classes que ocorrem nesse país. Neste contexto
histórico, Korsch passa a pensar que a adesão ao que alguns chamaram “sistema
de conselhos” como forma de organização socialista da sociedade, algo
problemático. O impacto da evolução da sociedade russa, instaurando um
capitalismo de estado, teve um papel fundamental nesse processo de evolução do
pensamento de Korsch. É nesse momento que ele produz seus dois textos sobre a
Comuna de Paris que iremos comentar a seguir e, por isso, deixaremos de lado a
evolução posterior do seu pensamento, questão da qual trataremos no livro Karl Korsch e a Revolução Proletária,
planejado para um futuro breve.
Korsch
começa seu texto A Comuna Revolucionária I (Korsch, 1982a), colocando duas questões: o que os operários com
consciência de classe deve saber sobre a Comuna de Paris num momento que ele
pensa que a revolução proletária está na ordem do dia[1]
e o que sabe sobre ela a parte “mais autoconsciente” do proletariado? Korsch
está pensando, pois, na classe operária real e seu acesso ao conhecimento deste
evento histórico de grande importância para o movimento revolucionário e o que
aqueles que são considerados teóricos do proletariado produziram sobre ela. Ele
cita “alguns fatos históricos” – a própria Comuna de Paris e a organização
revolucionária dos conselhos operários durante a Revolução Russa – e as
palavras de Marx, Engels e Lênin para discutir essa questão da consciência
proletária da Comuna. A questão é saber o significado profundo da Comuna de
Paris de 1871.
Korsch
retoma Marx para sua discussão inicial sobre a Comuna. Ele recorda que, para
Marx, o verdadeiro segredo da Comuna foi ela ter sido a “forma política
finalmente encontrada” de autoemancipação proletária, como repetirá inúmeras
vezes. Ele diz que Engels, vinte anos depois, afirma ser ela a “ditadura do
proletariado”. Lênin, “o maior político revolucionário de nossa época”[2],
levou a cabo uma análise minuciosa da
Comuna rompendo com as deformações oportunistas e, logo depois, aprofundando no
plano prático com a formação do “sistema revolucionário dos conselhos”, um
prolongamento direto da Comuna. Até aqui, segundo Korsch, não há nenhum
problema.
Korsch
destaca que por mais confuso que tenha sido a fórmula “todo o poder aos
conselhos operários” e por mais que a imagem e a realidade na Rússia se
separava por um abismo, não havia necessidade de dúvida de que a luta pelos
conselhos expressava a vontade política do proletariado, o que só seria feito
por “filisteus amargurados” e “pedantes triviais”. Era um momento
revolucionário e a ditadura revolucionária de classe abria a possibilidade de
uma república mundial de conselhos operários. Porém, na atualidade, a ideia dos
conselhos e a existência de um governo conselhista é algo bem distinto. A nova
série de derrotas do movimento operário inaugurou um novo ciclo de ditadura
burguesa sobre o proletariado derrotado. Aqui Korsch começa suas reflexões
sobre as lutas da atualidade e aborda as novas condições objetivas marcada por
tal derrota e a necessidade de superar o apego estático e acrítico a ideia dos
conselhos ou na forma política da Comuna. A contradição entre o nome e a coisa
no caso da Rússia, entre o nome “socialismo” e a realidade “capitalista”
(embora não utilize essa palavra neste texto) não pode ser explicada pela
“traição” social-democrata e pelo aparato do partido governamental na Rússia
(que, segundo Korsch, estaria “longe” do antigo partido bolchevique). Korsch
coloca a problemática: a tarefa que essa evolução contraditória (o lema de todo
o poder aos conselhos operários que levou ao regime ditatorial russo – coloca é
a autocrítica revolucionária.
Essa
autocrítica revolucionária aponta para o reconhecimento de que não só as ideias
e organizações do passado feudal, burguês e até mesmo proletário podem se
constituir, em certo momento, em obstáculo para o mesmo. Essa análise, vale,
inclusive, para a Comuna de Paris, a forma política finalmente encontrada de
autoemancipação proletária, e para o sistema revolucionário dos conselhos.
Assim, a autocrítica revolucionária deve contribuir para superar a ideia de
“traição” (já que é necessário é explicar ela mesma) e realizar uma síntese
para elaborar uma visão histórica de conjunto. Korsch assim lança uma nova
questão: qual o significado real do dessas experiências para a luta do
proletariado?
Korsch
afirma que a partir de uma crítica histórica mais superficial se observa o
caráter infundado da concepção (apesar de sua crítica ao parlamentarismo) sobre
estas experiências e isso gera a necessidade de buscar uma nova imagem, mais
profunda e orientadora, do caráter histórico e classista da Comuna e do sistema
revolucionário dos conselhos. Segundo Korsch, a Comuna representa uma forma
antiga de governo burguês, anterior ao parlamentarismo, a forma mais pura da
luta revolucionária da burguesia na sua luta contra o poder feudal. Para Marx,
no entanto, a Comuna de Paris era a forma finalmente encontrada de
autolibertação proletária, mas só assumia esse caráter novo ao preço de uma
transformação radical de sua essência anterior. Porém, Marx não esperava
milagres dessa forma política que é a Comuna e por isso não a considerava independente
do conteúdo classista que o proletariado insuflou nela para seus próprios fins
revolucionários, oposto a finalidade original da mesma. Isso foi possível
graças ao caráter pouco evoluído e sua grande flexibilidade. A comuna não era
como o posterior poder estatal centralizado que a burguesia iria criar, de
claro caráter classista e repressivo. A comuna, nesta fase primitiva, possui
uma finalidade que é de ser órgão da luta revolucionária da burguesia e por
isso não deixa de oferecer também um “ponto de partida puramente formal” para a
luta pela autoemancipação proletária.
Korsch
apresenta, nesse momento, a ideia de analogia histórica que Marx teria
estabelecido entre a revolução burguesa e a revolução proletária, destacando a
importância da comuna revolucionária burguesa medieval para a evolução política
da burguesia como classe oprimida em luta por sua libertação e para a luta
proletária por sua libertação, e antes dos comunardos assaltarem o céu. Assim,
Marx teria destacado a analogia histórica entre a evolução política da
burguesia e do proletariado como classes oprimidas. Derivado disso, teria visto
também a importância dos sindicatos e das lutas sindicais através de uma teoria
ainda mal compreendida até a época em que Korsch escreve. Marx comparou as
comunas medievais com as coalizões operárias, duas formas de coalizões de
classes. Marx teria feito tal comparação em sua obra A Miséria da Filosofia e retomado no Manifesto Comunista e outras obras e concluiria que a importância
das municipalidades e comunas medievais para a burguesia era similar ao papel
dos sindicatos para o proletariado, as bases da organização do conjunto da
classe operária.
Eis
uma breve síntese do texto de Korsch. Porém, antes de passar para o segundo
texto deste autor, é necessário apresentar uma análise crítica dele. Vários
pontos levantados por Korsch são problemáticos, mas é necessário entender suas
reflexões no interior do conjunto de sua produção intelectual para entender
mais adequadamente o que ele quis dizer. Um mérito de Korsch, desde seus
escritos revolucionários do início dos anos 1920, está em sua defesa de um marxismo
não dogmático de caráter crítico revolucionário. Este é um
pressuposto que ele segue em seu texto, não cedendo à idolatria de Marx, Engels
e Lênin e por isso apresenta sua ideia da necessidade de autocrítica
revolucionária. Isso é fundamental e inclusive serviria de alerta para
muitos, hoje em dia, que querem resgatar acriticamente e dogmaticamente o
comunismo de conselhos, simplesmente pegando as ideias produzidas por Pannekoek
e outros e buscando reproduzir e aplicar aos dias de hoje, sem levar em
consideração as mudanças históricas, os problemas existentes em determinadas
formulações, necessidade de atualização e aprofundamento, as novas questões
levantadas pelo desenvolvimento da luta de classes, etc.
Porém,
se o princípio é bom, a forma como buscou executá-lo acabou sendo problemática.
Desta forma, vamos levantar os seguintes pontos que julgamos problemáticos na
abordagem de Korsch: a) vínculo entre o lema “todo o poder aos conselhos
operários” e regime ditatorial russo; b) a mudança nas condições objetivas que
tornariam o apego acrítico e estático à ideia de conselhos ou de comuna como
algo inviável; c) a tese de que ideias e organizações do passado feudal,
burguês e proletário podem ser tornar obstáculos, o que valeria para a comuna
revolucionária e sistema revolucionário dos conselhos; d) A ideia de que a
abordagem de Marx, Engels e Lênin é infundada e perceptível a partir de uma
crítica histórica superficial; e) a relação entre comuna medieval burguesa e
Comuna de Paris; g) a interpretação da abordagem que Marx fornece sobre a
Comuna de Paris; h) a tese da analogia histórica que Marx teria realizada entre
revolução burguesa e revolução proletária; i) a derivação, de tal analogia, da
importância da luta sindical.
Como
se vê, são muitos pontos que merecem atenção, principalmente devido ao fato de
que se trata de um texto relativamente curto. O primeiro ponto é o mais breve,
pois o vínculo que Korsch realiza entre o “lema revolucionário” lançado na
Rússia como “todo o poder aos sovietes” e a instauração do regime capitalista
estatal é oriundo de uma falta de compreensão mais profunda da Revolução Russa.
Korsch não realiza nenhuma análise aprofundada sobre os acontecimentos
históricos na Rússia, apenas se contenta em estabelecer tal vínculo e nem
percebe que, a partir do materialismo histórico, essa tese é demasiadamente
fraca e sem fundamento. Um lema pode gerar um regime ditatorial? Ou serão
forças sociais, projetos, concepções, grupos e principalmente a luta de classes
que produz como resultado regimes ditatoriais ou não? Korsch, um grande
estudioso do método dialético e do materialismo histórico, acaba realizando uma
formulação completamente estranha a estes pressupostos do marxismo.
Porém,
é interessante saber como Korsch chegou a esta formulação. Isto está ligado, em
primeiro lugar, a falta de compreensão mais aprofundada da Revolução Russa,
como já dissemos, e também a uma determinada interpretação do papel de Lênin
nesse momento. Lênin lançou a palavra de ordem, ou lema, de “todo o poder aos
sovietes” e foi através disso que ele se tornou famoso na Europa Ocidental a
partir dessa época, sendo considerado um legítimo “teórico dos conselhos
operários”. Foi por isso que Korsch colocou Lênin como um dos representantes do
marxismo revolucionário da retomada do movimento operário desse período ao lado
dos autênticos revolucionários europeus, Rosa Luxemburgo e Anton Pannekoek.
Korsch manteria essa interpretação equivocada de Lênin durante toda a década de
1920 – e por isso muitos intérpretes, ingenuamente, o qualificaram de
“leninista” nesse período (Buckmiller, 1973; Kellner, 1981) – e isso é visível
na separação que estabelece, no texto que estamos comentando, entre o partido
bolchevique antigo e o “partido governamental” na Rússia. Ora, se Lênin era um
legítimo representante teórico e prático do “sistema revolucionário dos
conselhos”, então ele participou, com o lema de “todo o poder aos sovietes”, de
sua formação e resultado final. Korsch só se livraria desse equívoco a respeito
de Lênin nos início dos anos 1930, quando foi objeto da crítica dos leninistas
e tomou conhecimento de outras obras de Lênin. Mesmo com essa motivação e
explicação, a tese não se sustenta, a emergência dos conselhos operários foi
produto espontâneo do proletariado russo e não de um lema de Lênin, instaurado
o que ele mesmo denominou “dualidade de poderes”, ou seja, a emergência do
poder dos conselhos operários em contraposição ao poder estatal. Lênin usou
esta palavra de ordem para incentivar os proletários não a destruir o Estado e
sim a apoiar o partido bolchevique a tomar o poder estatal. Logo, a prática
bolchevique e o lema que ele empunhou eram oportunistas e promoveu um golpe de
estado e não uma revolução proletária, que, com isso, foi derrotada, já que a
dualidade política se resolveu pelo lado do Estado e assim a contra-revolução
se fortaleceu e teve como principal protagonista o bolchevismo.
A
ideia de que a mudanças das condições objetivas tornaram o apego estático e
acrítico seja aos conselhos, seja à Comuna, é outro equívoco. Sem dúvida, o
princípio de romper com apego estático e acrítico é mais que correto, mas a
ideia de que essas concepções seriam inviáveis devido às novas condições
objetivas é insustentável. Isso é derivado, em primeiro lugar, que Korsch se
limita a dizer que existem “novas condições objetivas”, mas não faz nenhuma
análise aprofundada delas e nem mostra o que, em tais condições, entram em
contradição com a proposta comunal ou conselhista.
O
outro aspecto é um complemento deste, que reside na afirmação de que as ideias
e organizações do passado feudal, burguês e proletário podem se tornar
obstáculos para as lutas presentes e isso valeria para a comuna revolucionária
e sistema revolucionário dos conselhos. Afirmar que isto faz parte de uma
“dialética revolucionária” nada muda, pois isso seria cair na metafísica que
ele tanto criticou em seus textos metodológicos da década de 1920. Esse
princípio abstrato é que se torna, enquanto ideia, em obstáculo para as lutas
presentes. Para saber se determinada organização de determinado período e
classe tem validade na atualidade, é somente através da análise da situação
concreta que se pode chegar a tal conclusão num plano provisório, pois o
processo histórico marcado pela luta de classes é que dá a palavra final neste
assunto. Caso contrário pode virar discurso oportunista ou conveniente para
defender determinada tese e o caso do Korsch é o último. Ao mesmo tempo que
afirma que as formas antigas podem ser obstáculos e que se na comuna
revolucionária e sistema revolucionário dos conselhos ocorre isso, é algo
bastante problemático. Sem dúvida, está claro que Korsch combate, aqui, a
apropriação leninista da Comuna e da organização revolucionária dos conselhos
operários[3],
ideológica e prática, no segundo caso. O equívoco está em generalizar e tomar a
continuidade do processo na Rússia como sendo manifestação ou continuação da
organização revolucionária dos conselhos operários.
Korsch
nega, portanto, a “forma-comuna”, a “forma-conselhos” e, na época, apesar de
não estar explicito neste texto específico, a “forma-partido”, e defende a
“forma-sindicato”. Ora, uma análise do desenvolvimento histórico destas formas
organizacionais deixa claro que os sindicatos, ao lado dos partidos, são
organizações da sociedade capitalista e por isso são cada vez mais
burocráticas, conservadoras e aliadas do capital. Logo, apesar de ter surgido
da luta dos trabalhadores e ter tido um papel político libertário em
determinadas épocas e lugares, com o desenvolvimento capitalista (as “condições
objetivas” de Korsch), eles se tornaram órgãos do capital, muito mais do que do
proletariado, tal como foi reconhecido, paulatinamente, Anton Pannekoek[4].
Já a “forma-comuna”, teve poucas experiências similares posteriores e sua forma
mais desenvolvida, a “forma-conselho”, teve, por sua vez, diversas
reemergencias históricas em diversas tentativas de revolução proletária, e os
exemplos são os mais diversos[5].
Claro também que as expressões “forma-partido”, “forma-sindicato”, etc., de
origem bordiguista, não dão conta da realidade e traz mais confusão do que
esclarecimento, pois o que está em questão no caso da Comuna e da organização
revolucionária dos conselhos é a totalidade das relações sociais, mas
voltaremos a isto mais adiante.
O
outro aspecto, levantado por Korsch, é que a interpretação da Comuna de Paris
por parte de Marx, Engels e Lênin é infundada e isto seria percebido a partir
de qualquer crítica histórica superficial. Aqui se revela outro problema da
análise korschiana, que é não realizar uma análise profunda da Comuna de Paris
e se limitar a uma “crítica histórica superficial”. No texto não cita nenhuma
obra sobre a Comuna de Paris a não ser as de Marx, Engels e Lênin. Não
apresenta suas outras fontes, caso existam, nem os historiadores mais
conhecidos da Comuna, tal como Lissagaray, Louise Michel, ou qualquer outro.
Outro problema é a interpretação que faz dos textos dos autores que ele cita, o
que discutiremos mais adiante.
A
comparação entre a comuna medieval burguesa e a Comuna de Paris é também
problemática. Ele cai no erro que Marx já apontava quando escreveu sobre a
Comuna: “Em geral, as criações históricas completamente novas estão destinadas
a ser tomadas como uma reprodução de formas velhas, e mesmo mortas, da vida
social, com as quais podem ter certa semelhança” (Marx, 1986, p. 74). Entre a
comuna medieval “burguesa”, na verdade, semi-burguesa, e a Comuna de Paris há
uma distância tão grande quanto o tempo que separa uma da outra. A composição
de classes era diferente, os interesses eram distintos, a cultura era outra, o
modo de produção capitalista ainda não existia de forma desenvolvida, entre
inúmeras outras diferenças, inclusive organizacionais. Algumas semelhanças
formais podem permitir que os especuladores, bem com os “lacaios da pena”
possam derramar suas vulgaridades “e suas fantasias sectárias com um tom
sibilino de infalibilidade científica” (Marx, 1986, p. 77). Claro que este não
é o caso de Korsch. Porém, as diferenças entre comuna medieval e Comuna de
Paris são muitas e nem poderia ser diferente, e não só Marx, como também
Kropotkin e outros destacaram isso. Korsch não realiza um estudo comparativo e
mostra as características e semelhanças existentes entre as duas formas e assim
cai no erro que, no seu caso, é apenas descuido teórico de alguém bem
intencionado, mas com formação filosófica e com dificuldades de analisar a
realidade concreta e por isso suas assertivas sobre a realidade estão distantes
desta, embora, no caso de outros, as razões são bem menos “nobres” e
“desculpáveis”.
A
tese da analogia histórica efetivada por Marx e que significaria uma
revalorização dos sindicatos e da luta sindical é outro equívoco de Korsch. Em primeiro
lugar, a tese da analogia histórica não é de Marx e sim de Korsch. Ela está
expressa em suas obras, inicialmente, como análise do desenvolvimento das
ideias revolucionárias, de forma bem elaborada e fundamentada, em Marxismo e Filosofia, e prossegue em
obras posteriores. Em Marxismo e
Filosofia, Korsch mostra os vínculos entre a dialética hegeliana e a
dialética marxista, entre a expressão ideológica da revolução burguesa e a
expressão teórica da revolução proletária. Nesse aspecto, embora com alguns
pontos questionáveis, a análise de Korsch e seus resultados eram aceitáveis e
bem fundamentados, assumindo um caráter crítico-revolucionário, o que, no
fundo, e segundo a própria tese korschiana, estava ligado ao processo de
radicalização das lutas operárias no período em que a obra foi escrita. Porém,
a partir do final dos anos 1920 e início da década seguinte, Korsch passa a
aplicar tal analogia histórica não somente ao problema da história da filosofia
ou da relação entre marxismo e filosofia, mas também ao processo histórico da
luta proletária, em comparação com a luta burguesa, o que lhe faz perder
concreticidade.
Em
seu pequeno texto de 1931, “Hegel e a
Revolução”, de duas páginas (Korsch, 1979), retoma de forma diferente a sua
análise da relação entre Hegel, Marx e a Revolução. Ele afirma que é impossível
entender a filosofia hegeliana sem captar sua conexão com a revolução. Hegel
teria buscado captar o movimento revolucionário de sua época e o pensamento
dialético (hegeliano) era formalmente um pensamento revolucionário (expresso em
suas leis, tal como “negação da negação”, “salto qualitativo”). Mas seria
preciso captar o nexo com a revolução burguesa de sua época, que era uma
manifestação de sua conclusão final, a restauração. Por isso a dialética hegeliana
padece de dois problemas fundamentais: a cristalização da dialética
(absolutização do método) e a circularidade que revela a restauração da
realidade dada imediatamente, promovendo a conciliação com essa realidade.
Korsch conclui que o resgate da dialética hegeliana por Marx, Engels e Lênin na
concepção materialista da natureza e da história, tem o caráter de uma
transferência, e por isso não se tratava de uma teoria da revolução proletária
com base em seus próprios fundamentos e sim fundamentada na revolução burguesa,
o que revela suas origens jacobinas.
Esta
concepção, que é a de Korsch desse período (o primeiro artigo sobre a Comuna é
de 1929 e o segundo de 1931, não custa lembrar), realiza um vínculo entre
revolução burguesa e revolução proletária de forma bem mais abstrata e deixando
de lado a luta de classes concreta como fez em Marxismo e Filosofia, e, por conseguinte, elabora uma abordagem
mais pobre e passa daí para explicar os fenômenos sociais reais, como se a
história fosse a história do desenvolvimento da ideia. A distinção entre Marx e
Lênin, no entanto, acaba sendo reconhecida (na Anticrítica) e ofuscada, posteriormente (a não ser que o texto que
foi publicado em 1931 tenha sido escrito antes desse ano). A identidade entre
Marx e Lênin era derivada da apreciação de Marx como teórico da revolução
proletária e Lênin como teórico dos conselhos operários, e primeiro ele rompeu
com este e percebeu a distinção, para, depois, voltar a identificá-los, mas
partindo de Lênin como base e não mais Marx. Assim, Lênin era visto
positivamente por causa de Marx e depois Marx passou a ser visto negativamente,
em alguns aspectos, por causa de Lênin.
Assim,
a tese da analogia histórica que Korsch atribui a Marx, é, no fundo, dele. E
isso fica claro quando ele recorda a comparação que Marx faz em algumas
passagens entre as lutas burguesas em comunas e municipalidades e a luta
proletária em sindicatos, citando alguns trechos e deixando de lado diversas
obras e outras elaborações de Marx. Inclusive, a reconstituição que Korsch faz
de Marx é bem limitada e pouco fundamentada. Ele afirma, baseando-se em alguns
textos nas quais sua interpretação é problemática e extraída do contexto, que
Marx com sua teoria dialética e revolucionária, tinha como valioso ponto de partida
o reconhecimento da importância dos sindicatos e das lutas sindicais. Esta
analogia e teoria teriam sido pouco compreendidas pelos marxistas.
Porém,
ele cita para fundar sua tese a Resolução
do Congresso de Genebra da Associação Internacional dos Trabalhadores
concernente aos sindicatos. A interpretação desse texto é passível de
questionamento, mas o pior é que, após atribuir tamanha importância para a
questão sindical em Marx, não trabalha com os diversos outros textos deste
sobre essa questão, quando, nos anos seguintes, a sua análise vai ficar cada
vez mais crítica. Os sindicatos são produtos históricos da luta operária, mas
seu papel é negociar o preço da força de trabalho, e, embora seja um momento da
luta, não ultrapassa os marcos da sociedade existente. O desenvolvimento da
luta operária e da consciência revolucionária contra o sistema do trabalho
assalariado irá produzir novas organizações:
“Se
esta tomada de consciência se estender no seio da classe operária, mudará
consideravelmente a posição dos sindicatos: estes
não gozarão muito tempo do privilégio de ser as únicas organizações da classe
operária. Ao lado ou acima dos sindicatos de cada ramos da indústria
surgirá uma união geral, uma
organização política da classe operária em conjunto” (Marx, 1980, p. 43).
Portanto,
o suposto papel atribuído ao sindicato por Marx é produto da interpretação
equivocada de Korsch. Isso se deve ao processo de sua aproximação com o
sindicalismo e anarco-sindicalismo, o que retomaremos adiante. Korsch também
não percebe que o uso da expressão “coalizões” por Marx (1989) em A Miséria da Filosofia e confunde seu
significado como sendo o mesmo que sindicatos. Neste texto, ele fala usa o
termo coalizões de forma ampla, tal como se vê na divisão que ele estabelece
entre coalizões parciais e “permanentes” (trade-unions, sindicatos). Sobre
afirmar que a burguesia também fez coalizões, isso é uma obviedade, pois toda
classe que luta por sua emancipação (tanto faz se é burguesia ou proletariado
ou qualquer outra) precisa de uma união, uma “coalizão”, para poder efetivar
tal luta. A luta de classes é coletiva, pressupõe a classe em ação. Korsch cita
este texto e não só passa por cima disso, como também da afirmação muito mais
importante de Marx, que é a de que, derivado da luta operária, o proletariado
irá formar a associação, forma
superior e posterior às coalizões. O problema da leitura de Korsch desse
período em relação às obras de Marx é que ele a realiza com uma predisposição
mental de encontrar nele aquilo que ele vislumbra – um papel proeminente para
os sindicatos – e uma relação entre Marx e Lênin, interpretando o primeiro a
partir do segundo devido uma suposta continuidade imaginada por Korsch.
Korsch,
dois anos depois, retoma sua discussão sobre o mesmo tema no artigo A Comuna Revolucionária II (Korsch, 1982)[6].
Ele inicia esse texto apresentando a tese de que para compreender a posição
tardia de Marx sobre a comuna revolucionária é necessário entender a analogia
histórica que ele supostamente faria entre revolução burguesa e revolução
proletária. Tese problemática, como já vimos e voltaremos a ela novamente. Ele
cita, tal como em várias outras passagens, a afirmação de Marx segundo a qual a
Comuna de Paris foi “a forma finalmente encontrada de libertação do trabalho”.
Ele alerta que Marx, ao contrário dos seus seguidores, não via nela a única
forma válida. Ele cita outra frase posterior de Marx na qual este diz que a
diversidade das interpretações da Comuna era devido sua flexibilidade[7].
Seria justamente essa flexibilidade que permitiria aos proletários revolucionários
usarem esta forma e colocá-la para seus fins, inclusive destruir os fundamentos
econômicos do capital. O regime comunal, segundo a interpretação de Korsch
sobre a análise de Marx a respeito da Comuna de Paris, aparece como forma
política do processo de evolução cujo objetivo não é manter um estado e sim a
criação dos pressupostos materiais para a dissolução de todo tipo de estado.
Daí
Korsch apresenta sua tese de contradição não resolvida entre “forma política
finalmente encontrada” e “flexibilidade”. Como, pergunta Korsch, tal forma, de
caráter proletário e revolucionário, seria, ao mesmo tempo, marcada por sua
flexibilidade? Claro está que a questão não está em Marx e sim em Korsch, que
não entendeu o raciocínio de Marx. Porém, Korsch afirma que algo está claro em
Marx, que é a sua mudança de posição no sentido de defender a necessidade de
abolição do estado e Lênin teria consolidado isso como parte fundamental da
teoria marxista do estado.
Korsch
avança ao colocar que todos eles perceberam na Comuna de Paris o aspecto
negativo e nada de positivo. A comuna revolucionária destrói a máquina estatal
burguesa e nada do caráter formal positivo dessa experiência é apresentado. E
Korsch coloca um novo problema: como Marx e Engels, “ardentes admiradores do
sistema centralista da ditadura revolucionária burguesa”, elege como forma de
“ditadura revolucionária do proletariado” justamente a Comuna de Paris, o seu
oposto?
Korsch
apresenta a tese de que em “uma análise medianamente rigorosa dos programas
políticos” e dos “objetivos” dos dois fundadores do “socialismo científico”,
tanto antes como depois da Comuna de Paris, mostra a insustentabilidade da
conciliação entre as duas concepções. Nesse momento, ele retoma uma afirmação
de Bakunin, que, nesse caso, segundo Korsch, estaria certo: o profundo impacto
da Comuna fez com que Marx e Engels adotassem a Comuna e seu programa.
Korsch
afirma que as ideias mais fortes na Comuna de Paris eram o programa federalista
de Bakunin e Proudhon, e principalmente o blanquismo, sendo que a presença do
marxismo era muito escassa. A afirmação posterior de Engels, segundo a qual os
blanquistas foram obrigados a realizar práticas contrárias às suas doutrinas,
servia como alusão a ele e Marx. Lênin também se equivocou ao colocar que Marx
já apresentava a tese da abolição do estado desde 1852. Contra essa tese de
Lênin, é possível lançar mão, afirma Korsch, dos próprios textos de Marx e
Engels em que afirmam que foi a experiência da Comuna que levaram a esta
posição. Lênin dá um “salto lógico” de 1852 a 1971 (passando do Dezoito Brumário para A Guerra Civil na França), quase vinte
anos, deixando de lado vários escritos de Marx, principalmente o Manifesto Inaugural da Primeira
Internacional, de 1864, na qual afirma que “a grande tarefa do proletariado
é a conquista do poder político”. Isso é reforçado pelo fato de que Marx não
postulou a Comuna nem depois de 1871 como “forma política finalmente
encontrada” de emancipação proletária. Apenas no texto de A Guerra Civil na França é que esta adesão estaria presente. A
essência revolucionária da Comuna teria sufocado as críticas que ele teria
endereçada a partir de suas bases teóricas.
Assim,
Korsch afirma que Marx teria buscado aproximar o marxismo da Comuna, mas
principalmente tentado aproximar a Comuna do marxismo. O texto de Marx sobre a
Comuna, argumenta Korsch, não é apenas um documento histórico e elogioso da
Comuna e sim um escrito polêmico contra Bakunin e ele, junto com Engels e
principalmente Lênin, queriam recusar o caráter federalista da Comuna. Assim,
Marx defende a unidade da nação, governo central e suas funções. E Lênin irá
observar que em Marx não existe nenhum traço de federalismo,
Korsch
coloca que é urgente retomar os ensinamentos básicos da teoria revolucionária
do proletariado, que seriam a meta autêntica da luta proletária que aponta para
uma sociedade comunista sem classes e sem estado e não um determinado tipo de
estado, seja ele democrático, comunal ou conselhista (aqui a crítica é
novamente endereçada ao leninismo). Assim, esse “estado” (e aqui Korsch parece
se contradizer) do período da transformação revolucionária do capitalismo em
comunismo se diferenciará do estado burguês graças à sua “essência de classe” e
“função social” e não devido sua “forma política”. Korsch coloca que Marx,
Engels e Lênin destacaram, para evitar o reconhecimento do caráter federalista
da Comuna, o aspecto negativo da mesma, que é a destruição do velho poder
estatal burguês. Estes autores concedem excessiva importância a diferenças
formais entre a Comuna de Paris e demais formas de governo burguês
(substituição do exército permanente pela milícia, unificação do poder
legislativo e executivo, etc.). É uma ilusão, afirma Korsch, que um deputado
com mandato curto, revogabilidade e funções perfeitamente delimitadas seja algo
menos burguês que um parlamentar eleito.
Korsch
observa uma diferenciação entre Marx e Lênin, ao criticar o leninismo. Segundo
Korsch, é equivocado pensar num tipo de regime comunal ou conselhista executado
“por um estado comandado pelo partido proletário revolucionário” possa resultar
na eliminação do caráter de todo estado, a opressão classista. E a teoria do
fim do estado de Marx e Engels perde todo o sentido revolucionário a partir da
concepção de Lênin de um suposto estado que não oprimiria a maioria e entraria
em “processo de extinção”.
Por
fim, Korsch coloca que o verdadeiro segredo da comuna revolucionária e do
sistema revolucionário de conselhos reside no conteúdo social da forma política
e não nesta última em si.
Este
segundo texto de Korsch sobre a comuna revolucionária inicia retomando a ideia
de analogia histórica que ele atribui a Marx e, como já colocamos, é um
equívoco. Apenas complementaremos este equívoco ao recordar que, para Marx, as
revoluções sociais possuem semelhanças e diferenças, mas a revolução proletária
não poderia ser analisada através de uma analogia histórica com a revolução
burguesa, por dois motivos fundamentais: em primeiro lugar, porque o
proletariado, como Marx destacou em várias obras e passagens, não visa se
tornar uma nova classe dominante e sim a emancipação humana e, em segundo
lugar, porque a posição do proletariado nas relações de produção é radicalmente
diferente e suas formas de luta também, em comparação com a burguesia
ascendente. Porém, além disso, temos outras discordâncias em relação ao texto
de Korsch, a saber: a) foi a flexibilidade da Comuna que permitiu que os
operários revolucionários usassem essa forma política para seus próprios fins;
b) a suposta contradição entre forma política finalmente encontrada e
flexibilidade da Comuna; c) a ênfase no caráter negativo da Comuna de Paris; d)
a concepção centralista de Marx; e) a ideia de que a defesa da Comuna de Paris
por Marx entra em contradição com sua obra anterior e posterior; f) a questão
das tendências e ideias influentes na Comuna g) a tese de que a defesa da
Comuna de Paris por Marx foi devido sua oposição à Bakunin; h) a
supervalorização entre as diferenças formais entre a Comuna e um governo
burguês; i) a ênfase na forma política ao invés do conteúdo social da mesma,
sua essência de classe e função social.
O
primeiro elemento é a explicação que Korsch fornece da apropriação da Comuna de
Paris pelo proletariado, que teria sido sua “flexibilidade”. Já no primeiro
texto sobre a comuna revolucionária ele havia colocado isso e já fizemos a
crítica desta interpretação. Por conseguinte, não é necessário repetir, mas
podemos acrescentar um problema da interpretação de Korsch a respeito de Marx.
Korsch confunde a evolução dos acontecimentos com a ordem do pensamento de
Marx. Os acontecimentos reais que caracterizaram a Comuna de Paris, que
ocorreram num contexto histórico específico (a situação do proletariado francês
e da população parisiense, ou seja, a composição de classe da cidade, a guerra
e inimigos existentes, as medidas imediatas que tiveram que ser tomadas, etc.)
foram descritos por Marx e não expressavam a sua concepção de como deveria ser.
Marx descreveu o que aconteceu e não o que deveria ocorrer a partir de sua
concepção. A utilização da “forma política finalmente encontrada”, em Marx, não
foi devido sua flexibilidade e nem seu elemento fundamental era o papel de
destruir os fundamentos econômicos do capital, pois, em Marx não havia a
separação entre “forma política” e os demais aspectos da realidade, o que é
incompatível com o materialismo histórico e o próprio Korsch (1977) já havia
colocado isso, e, antes dele, Labriola (s/d). A ideia de que a Comuna deveria
destruir os fundamentos materiais da sociedade capitalista foi apresentada por
Marx, mas isso devido as condições particulares deste acontecimento histórico e
não uma posição “programática”, já que a revolução avançou mais em alguns
aspectos, então seria necessário avançar no sentido da transformação das
relações de produção.
Assim,
a suposta contradição entre “forma política” e flexibilidade é inexistente,
pois Marx, como colocamos anteriormente, colocava a flexibilidade dessa forma
política no sentido do caráter repressivo que é comum nos estados, órgãos de
dominação de classe. Para ele, a dominação política dos produtores é antagônica
à perpetuação de sua escravidão social. Neste sentido, a Comuna deveria servir
de alavanca para destruir as relações de produção capitalistas. A questão é que
ela não teve tempo de concretizar esse processo que havia se iniciado em alguns
setores e por isso Marx colocava adiante a Comuna pretendia abolir a propriedade de classe, ela aspirava à expropriação dos expropriadores (Marx, 1986, p. 76). A
grande confusão de Korsch e outros têm origem no uso da expressão “forma
política”. No sentido marxista mais amplo da palavra, política significa luta
de classes. A expressão forma política, nesse caso, significava forma como o
proletariado efetivaria sua luta para derrotar a burguesia, destruir o estado,
etc. Isso está de acordo com a ideia de Marx de superação do estado e seu
caráter parasitário e acima da sociedade (Marx, 1986), sendo que a Comuna
justamente aboliria essa excrescência parasitária e a sociedade civil não teria
mais este órgão separado e autonomizado chamado estado.
A
afirmação de que Marx, Engels e Lênin teriam destacado apenas o aspecto
negativo da Comuna é outro equívoco, principalmente no caso de Marx (em Lênin,
existem aspectos “positivos”, tal como o centralismo e a burocracia...). A
destruição do poder estatal burguês é uma necessidade e deve ser enfatizada.
Porém, Marx analisou pormenorizadamente os aspectos positivos da Comuna,
destacando aqueles que colocavam a impossibilidade de autonomização de um
governo ou estado acima da sociedade civil e mostrando como isso era possível
(substitubilidade, revogabilidade, elegibilidade, responsabilidade), ou seja, o
estado foi abolido e em seu lugar a Comuna assumiu todas as atividades
necessárias para a reprodução da sociedade que antes era executada pelo Estado
(Marx, 1986, Viana, 2011b) e ainda mantinham validade (alguns aspectos de
validade temporária, tal como a milícia popular). Assim, a decisão coletiva e a
impossibilidade de autonomização dos delegados eram o elemento positivo central
da Comuna de Paris, mostrando seu caráter autogestionário, que ficou incompleto
por faltar destruir as relações de produção capitalistas e aprofundar outros
aspectos, por ser uma revolução proletária inacabada. A impressão do caráter
meramente negativo também é produto da ideia de “vazio” sem o Estado ou então
da tese de que deveria surgir outra forma estatal, isso porque a Comuna foi uma
obra revolucionária, e, portanto, essencialmente negativa e, no entanto, também afirmativa,
só que a afirmação aqui não é outra forma de Estado e sim uma forma de
autogoverno, o que Marx chamou “autogoverno dos produtores”. O caráter
afirmativo da Comuna está na autogestão que significa a eliminação do Estado,
de uma organização burocrática acima da sociedade, e, sendo assim, as poucas
funções ainda necessárias serem executadas pelo mesmo, passa para a sociedade
civil.
Outro
ponto problemático da concepção korschiana é o suposto centralismo de Marx.
Isto está ligado ao tipo de interpretação que Korsch faz do pensamento de Marx,
marcado pela confusão entre marxismo e leninismo. Korsch lança a pergunta de
como Marx e Engels, ardorosos defensores do sistema centralista da ditadura
revolucionária burguesa, puderam considerar a Comuna de Paris como forma de
autoemancipação proletária? Para defender tal tese, Korsch realiza algumas
afirmações, tais como a de que Marx só adotou a Comuna no escrito de 1871,
sendo que antes e após ele tinha outra posição, usa uma citação de Bakunin e
afirma que uma “análise medianamente minuciosa” dos programas políticos e
objetivos de Marx e Engels é suficiente para ver o caráter inconciliável da
defesa da Comuna com o pensamento centralista de ambos.
Porém,
em lugar algum Korsch demonstra que os autores citados sejam “ardorosos
defensores” do sistema centralista. A sua afirmação de que antes da Comuna Marx
era centralista padece de comprovação e não corresponde aos textos do autor.
Marx não defendeu centralismo em nenhum dos seus textos e no caso do Manifesto Comunista, ele afirmou a
necessidade da “estatização dos meios de produção”, porém, quem faria isso
seria a totalidade do proletariado (Marx e Engels, 1987). No Dezoito Brumário, em 1852, Marx fala da
destruição do poder estatal. A frase do Manifesto
Inaugural coloca, da mesma forma, que “conquistar o poder político é a
grande tarefa da classe operária”, ou seja, aqui novamente temos a totalidade
da classe e não setores que poderiam, de forma centralizadora, gerir o Estado.
Com a instauração da Comuna, diz acertadamente Korsch, há uma mudança no
pensamento de Marx. A fórmula abstrata de “proletariado como classe dominante”
ganha concreticidade e a ideia de estatização é abandonada.
A
posição de Marx é pensar na Comuna de Paris como primeira experiência que
revelou o caminho da revolução proletária: abolição do Estado e sua
substituição pelo autogoverno dos produtores. Isso está expresso em A Guerra Civil na França. Mas, segundo
Korsch, ele teria abandonado tal ideia. Isso, porém, é outro equívoco de
Korsch. Marx reproduz a mesma posição, por exemplo, no Prefácio ao Manifesto Comunista, de 1872 (Marx e Engels, 1987, p.
70), ou em O Capital, ao trabalhar a
ideia da “livre associação dos produtores”, ou, ainda, em Crítica ao Programa de Gotha, onde ele questiona a ideia de “estado
livre” da social-democracia alemã e aborda a necessidade de que a sociedade
civil deve “absorver” o estado. O próprio Engels admite, numa carta de 1875,
propõe, ao invés de usar a palavra “estado”, usar a palavra alemã “comunidade”,
que em francês seria “Comuna” (Engels, 1976). Portanto, Marx, antes da Comuna,
já apontava para a necessidade de superação do estado e durante e depois
descobriu, através das experiências revolucionárias dos comunardos, “a forma
finalmente encontrada”. Sendo assim, não se sustenta a afirmação de que Marx
seria “centralista”, a não ser numa abordagem “verbalista”, para usar expressão
de Labriola (s/d), por certa imprecisão conceitual que ocorre algumas vezes com
Marx, principalmente o uso da palavra “estado”. Além disso, Korsch não comprova
através dos escritos de Marx o abandono da concepção precisada e identificada
após a Comuna. Korsch, e isso é mais grave, não realiza “uma análise
medianamente rigorosa dos programas políticos” e dos “objetivos” de Marx e
Engels, apenas anuncia isso e fica pressuposto tal rigor que não se vê no texto
escrito por ele, pois falta documentos e análises mais profundas para chegar a
isso. Sua análise é superficial e sem nenhum aprofundamento e assim ele entra
em contradição com seu próprio princípio.
Curiosamente,
Korsch faz citações de Marx, mas reproduz a interpretação de Lênin (1987). As
citações são aquelas nas quais Marx afirma que a unidade da nação não deveria
ser destruída e sim reorganizada, deixando de lado que isso é apenas, para
Marx, como está em O Capital, uma
fase da luta, pois os trabalhadores devem efetuar a luta primeiramente contra a
burguesia de seu país e abolir a unidade nacional sem revoluções em outros
países significa se enfraquecer diante do inimigo. Porém, “unidade da nação”
não significa estado e embora este tenha criado aquela e Marx explicita que tal
reorganização teria por base o “regime comunal”, transformando-se numa
realidade “ao destruir o poder estatal” (Marx, 1986, p. 74), aspectos que estão
numa mesma frase e Korsch cita apenas a ideia de não destruição da unidade da
nação. Além disso, interpreta equivocadamente a afirmação de Marx sobre as
funções de um governo central, pois afirma “correspondendo-lhe um ‘governo
central’”, enquanto que Marx afirma que o que se mantém são as funções e não o
governo central. É o caso, por exemplo, do serviço de energia elétrica, que é
uma função de um governo central que persiste após a destruição do poder
estatal. Porém, segundo Marx, são os “servidores responsáveis” os que
executarão tais funções, não havendo nada de centralismo nisso e Korsch cita
isso sem se dar conta do que significa a palavra “responsável”. A interpretação
que Korsch faz de Marx é mediada pela interpretação leninista, que realiza a
sua deformação, transformando-o num centralista para justificar e legitimar a
prática do partido bolchevique.
Outro
problema da abordagem de Korsch, de caráter histórico, é colocar as tendências
e forças influentes no processo da Comuna e destacar Bakunin e Proudhon, ao
lado dos blanquistas. A maioria era, sem dúvida, blanquista, e, em segundo
lugar, os proudhonistas, porém, a influência de Bakunin apenas começava na
época de desencadeamento da Comuna. A historiografia sobre a Comuna confirma
isto (Lopes e Turrado, 1966; Ollivier, 1971; Gonzalez, 1982). Nesse sentido, a
predisposição mental e hipótese de Korsch levaram-no a forçar uma interpretação
das forças presentes na Comuna para fortalecer sua ideia de que Marx teria
adotado a Comuna para se opor a Bakunin. Aqui entramos em outro ponto de
discordância. Korsch afirma que Marx teria escrito sobre a Comuna não apenas
para fazer o seu elogio fúnebre, mas sim para polemizar com Bakunin. Afirmação
extremamente curiosa, pois além dela – ou seja, da própria afirmação – não
apresenta nada de concreto para confirmá-la[8].
Apenas apresenta a especulação que foi devido à rivalidade e conflitos entre
Marx e Bakunin que o primeiro teria escrito um texto polêmico contra o segundo.
Essa dedução por imaginação não se sustenta e o fato de não ter caráter
analítico suficiente para ser colocado como, no máximo, uma hipótese. Pois bem,
o fato de que no texto não há nenhuma referência ao nome de Bakunin, suas
ideias, etc., já deveria ser suficiente para desconfiar da plausibilidade de
tal hipótese. O único trecho do texto de Marx que poderia lembrar alguma
relação com Bakunin é a sua crítica de determinadas interpretações da Comuna:
“O
regime comunal foi erroneamente considerado como uma tentativa de fracionar
numa federação de pequenos Estados, como sonhavam Montesquieu e os girondinos,
aquela unidade das grandes nações que, se em suas origens foi instaurada pela
violência, se converteu num poderoso fator de produção social” (Marx, 1986, p.
74).
Este
trecho mostra uma oposição não ao federalismo de Proudhon (e de Bakunin) e sim
uma crítica de uma determinada interpretação da Comuna, semelhante à concepção
de Montesquieu (que nada tinha de anarquista) de federação de “pequenos
estados”. Além disso, nada mais se encontra no texto de Marx que poderia fazer
alguma alusão à Bakunin. Da mesma forma, basta olhar os materiais preparatórios
de Marx para escrever o texto sobre a Comuna de Paris para perceber que ele
construiu seu pensamento sobre a Comuna a partir da análise desta, inclusive as
informações que possuía para tal (Marx, 1978). De qualquer forma, é curioso
escrever um texto polêmico contra um autor na qual acaba revelando
concordância, no geral e essencial, com o mesmo, pois é isso que faz Marx no
referido texto (Viana, 2004).
No
fundo, Korsch elabora uma hipótese explicativa – sem uma fundamentação
aceitável, visando reforçar uma ideia derivada de sua predisposição mental –
que reduz toda a argumentação elaborada por Marx, fundada em pesquisa e
dedicação à luta proletária, que o próprio Bakunin reconhece, a uma vontade polêmica
contra um adversário político. Assim, a posição de Marx diante de uma tentativa
de revolução proletária, à qual ele dedicou sua vida, é interpretada como uma
mera disputa facciosa, trocando o fundamental pelo secundário, principalmente
no caso de um revolucionário autêntico. No fundo, Korsch confunde, novamente,
Lênin e Marx, pois foi o primeiro que escrevia com o objetivo fundamental de
polemizar com os adversários já que seu objetivo era conquistar o poder
estatal, e todos que tiveram acesso ao livro O Estado e a Revolução irá perceber o objetivo de Lênin em combater
seus adversários (kautskistas, anarquistas, etc.), o que, no entanto, é
constante em toda a sua obra (Lênin, 1987).
Korsch
também afirma que Marx, Engels e Lênin supervalorizam as diferenças formais
entre a Comuna de Paris e a constituição estatal e outras formas do governo
burguês. Ele cita como exemplo a substituição do exército permanente pela
milícia popular, a unificação entre poder legislativo e executivo, a
responsabilidade e substitubilidade. Korsch aqui confunde as ideias e as
coisas. Ele interpreta a criação histórica nova da Comuna de Paris como sendo
reprodução de formas velhas, para parafrasear Marx (1986). O problema é que as
palavras podem iludir e confundir. A troca do exército permanente pela milícia
popular não é mera troca de nome e sim de essência. O exército permanente é um
corpo especializado, permanente e relativamente autônomo que é substituído pela
milícia popular, que é não especializada, temporária e sem autonomia, pois
“responsável” (Marx, 1986). Desta forma, entender o que significa “responsável”
se torna fundamental e a leitura rigorosa do texto de Marx deixa claro que nada
tem a ver com a versão burguesa da “responsabilidade”, uma palavra vazia que
expressa tão-somente um compromisso com os eleitores. A responsabilidade
existente na Comuna de Paris e analisada por Marx é aquela que não permite
autonomização, que mantém o princípio da decisão coletiva (Viana, 2011b; Marx,
1986).
O
maior equívoco de Korsch, certamente derivado da leitura de Lênin e do que
ocorreu na Rússia após o golpe de estado bolchevique, foi a afirmação sobre a
“unificação entre poder executivo e legislativo”. Marx nunca afirmou nada
disso, o que ele disse é que a Comuna deveria ser uma “corporação de trabalho”,
simultaneamente executiva e legislativa. O que isto quer dizer? Que Marx
pensava na abolição da distinção entre direção e execução e isso se daria na
Comuna, que não tem nada mais a ver com “poder legislativo” e “poder
executivo”, aparatos burocráticos do Estado capitalista, que, inclusive, Marx
nem fez referência (ele não falou de “poder” e sim “funções”). Da mesma forma,
o sufrágio universal é um elemento encontrado na democracia burguesa, mas, no
regime comunal, adquire outro caráter[9].
Enfim, não é Marx que supervaloriza as diferenças formais entre Comuna de Paris
e governo burguês e sim Korsch que supervaloriza as semelhanças formais entre
as duas formas de organização social. Este tipo de equívoco é comum em análises
verbalistas, que, ao invés de reconstituir o significado das palavras e
conceitos em seu processo genético na obra de um autor, atribui-lhe um
significado alheio e o interpreta a partir disso[10].
Por
fim, Korsch questiona Marx no sentido dele oferecer uma ênfase maior na forma
política ao invés do conteúdo social da mesma, sua essência de classe e função
social. Korsch não é claro nesse aspecto, pois ele afirma que para Marx é o
conteúdo de classe é o elemento fundamental e não a forma política e depois diz
que sufocou a crítica dessa forma graças sua essência revolucionária. Na
verdade, o problema está na confusão em torno da expressão “forma política”. A
interpretação que Korsch oferece da mesma seria algo como um “substituto” do
Estado burguês, assumindo uma forma política (institucional) e especializada,
separada da sociedade civil. O que Marx afirma, ao contrário, é justamente a
abolição do órgão autônomo e separado da sociedade civil que é o Estado,
restando apenas algumas funções deste que não é executado por setor especializado
e autônomo e sim pela própria população com seu autogoverno. Nesse sentido, a
separação entre “política” e “economia”, etc., é inexistente. A expressão de
Marx, para uma abordagem verbalista ao invés de entender o significado no
contexto que o autor coloca, remete para uma ideia de “forma política”
autonomizada.
No
texto de Marx sobre a Comuna, é visível sua percepção do caráter de revolução
social da mesma, atingindo o conjunto das relações sociais, apesar de seu
caráter incompleto, principalmente no que se refere ao problema da abolição das
relações de produção capitalistas, que se esboçou e não se concretizou. Quando
Marx escreve “forma política”, poderia ser entendido como “forma de
emancipação” e ficaria mais claro e menos sujeito a problemas de interpretação.
Porém, como forma política, Marx quis dizer não política institucional e sim
política no sentido de luta de classes, e a forma política de autoemancipação
proletária é a forma como o proletariado destrói o estado e reorganiza as relações
sociais. Assim, a organização revolucionária dos conselhos operários é outra
forma, semelhante, mas com diferenças, de tal auto-emancipação. Não existe uma
fórmula fixa e imutável, mesmo porque as condições históricas e sociais são
diferentes, as lutas se desenvolvem em contextos específicos.
A
Comuna de Paris, como primeira experiência revolucionária do proletariado, deu
maior concreticidade ao processo de análise da revolução social, sendo sua
forma finalmente encontrada, e cujo significado é abolição do estado, da
propriedade privada, da burocracia, etc., ou seja, uma revolução total e isso
expressou a necessidade da sociedade civil abolir a “excrescência parasitária”
que é o Estado e reabsorver suas “funções” necessárias lhe retirando o caráter
de autonomia e poder. É por isso que Korsch remete a necessidade de abolição do
estado e das classes a textos do próprio Marx. A Comuna, sendo a forma
finalmente encontrada, não pode se contrapor ao seu conteúdo, tal como Korsch
parece interpretar. A forma, por sua vez, mantém uma unidade com o conteúdo e,
como diz Marx, citado pelo próprio Korsch, “a forma não tem valor se não é a
forma do seu conteúdo” (Korsch, 1977, p. 49).
Enfim,
os dois textos de Korsch sobre a comuna revolucionária possuem o mérito de apresentar
uma concepção não-dogmática de marxismo e da própria Comuna de Paris, de
levantar questões e problemas, de ressaltar a abolição do Estado e a
necessidade da superação das classes, entre outros aspectos interessantes.
Porém, sua interpretação da Comuna de Paris e dos textos do Marx acaba sendo
equivocada em muitos pontos, graças a uma análise não muito rigorosa – apesar
de afirmar o contrário – dos textos do Marx e da própria Comuna, além da
influência da interpretação leninista, o que prejudica sua reflexão.
Claro
que a motivação de Korsch também teve um peso forte na elaboração dos dois
textos. Após a derrota proletária das tentativas de revoluções fundadas nos
conselhos operários, Korsch passou a procurar nos sindicatos, principalmente os
espanhóis, de maior radicalidade e que estariam em breve relacionados com a
revolução espanhola, uma outra forma organizacional para a revolução proletária
e por isso precisava questionar a Comuna e os conselhos operários e ressaltar o
papel dos sindicatos. Korsch não percebe que tanto a Comuna quanto os conselhos
operários são produtos do proletariado em períodos revolucionários, de
radicalização das lutas de classes, e não são, portanto, organizações estáveis
dentro do capitalismo, tal como partidos e sindicatos e, por isso,
burocratizados e reprodutores das relações de produção capitalistas, tendo
caráter, no máximo, reivindicativo-reformista. Obviamente que, na época de
Marx, a burocratização dos sindicatos não era tão grande como foi ocorrendo
posteriormente e por isso sua crítica era, de certa forma, moderada. Porém,
quando Korsch escreve o processo de burocratização já estava em estágio
avançado e apenas em alguns contextos e lugares o sindicalismo ainda mantinha
certa radicalidade, tal como na Espanha, pois sua burocratização ainda não
havia assumido as proporções posteriores. O problema é tomar o exemplo espanhol
e desconsiderar o papel dos sindicatos na maioria dos demais países.
Porém,
os equívocos de Korsch são equívocos de um revolucionário autêntico e, assim,
os acertos se misturam com os erros e estes não foram produtos de má fé e isso
mostra a validade de recuperar os escritos revolucionários, mesmo os mais
problemáticos, pois uma vez analisados rigorosamente, pode ficar claro que a
produção intelectual revolucionária não é infalível e isso pode nos ensinar
muita coisa, desde a necessidade de leituras rigorosas (que Korsch não fez e
isso foi determinação de alguns de seus equívocos) e evitar simplificar e
rotular em sua substituição, bem como que este exercício pode ajudar a
esclarecer as divergências entre as tendências revolucionárias e mesmo entre
indivíduos no seu interior.
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[1] A
posição de Korsch sobre este período deriva da crise financeira de 1929 e da
agitação operária esboçada, além da situação de radicalização das lutas de
classes na Espanha, para onde sua atenção estava direcionada e ele já havia
escrito anunciando as possibilidades revolucionárias
[2] Esse texto foi publicado em 1929, ou seja,
antes de Korsch reavaliar o leninismo em sua Anticrítica, publicada na edição de 1930 de Marxismo e Filosofia, na qual faz uma crítica radical do
bolchevismo e expõe os vínculos entre social-democracia e bolchevismo.
[3]
Korsch, nessa época, inda pensava que a obra e prática de Lênin eram positivas
e libertárias (e por isso sua generalização), sendo que somente após Lênin é
que haveria a deformação, mas teria sido ele e sua obra/prática que abriram
caminho para tal.
[4]
Para uma análise da evolução da análise do sindicalismo por Pannekoek, cf.
Viana, 2011a.
[5]
Além das revoluções proletárias inacabadas do início do século 20, os conselhos
reemergiram em diversas outras tentativas de revoluções, tal como na Hungria,
em 1956; na Polônia, em 1980, bem como em outras oportunidades.
[6]
Essa é a data da publicação, mas não sabemos a data da elaboração dos textos,
que pode ter sido antes ou no mesmo ano.
[7]
Korsch troca a ordem das frases, na verdade, a afirmação sobre flexibilidade
vem antes da conclusão de que foi a forma política finalmente encontrada. Da
mesma forma, a afirmação de Marx que a Comuna, sem essa condição, seria uma
impossibilidade e um erro, vem depois da afirmação sobre a “forma política
encontrada”, enquanto que a questão da criação de pressupostos materiais é a
sua seqüência, ou seja, a interpretação de Korsch inverte a ordem das frases e
cria algo diferente do que o autor realmente disse. A ideia de flexibilidade,
por sua vez, é política, permite dissidências e divergências, ao contrário das
outras formas, “puramente repressivas” (Marx, 1986, p. 76). Ou seja, o
argumento de Korsch sobre flexibilidade se fundamenta num erro interpretativo,
ligado a uma predisposição mental do intérprete.
[8]
Cita um trecho de Bakunin com interpretação semelhante, mas sua predisposição
mental acaba fazendo não perceber que este autor não fala de Marx e sim dos
“marxistas”, e, logo, até essa frágil sustentação, a interpretação de Bakunin,
se torna mais débil ainda.
[9] “O
caráter das eleições não depende do nome, mas da base econômica, das relações
econômicas, dos eleitores entre si, e tão cedo como as funções deixam de ser
políticas: 1. Deixam de existir como funções de governo; 2. A distribuição das
funções gerais converte-se em um problema administrativo, não encerram nenhum
poder; 3. As eleições não conservam nada de seu caráter político atual” (Marx,
1987, p. 75-76).
[10]
Quanto ao fato de Marx querer aproximar o marxismo da Comuna e vice-versa, é
algo discutível, no plano formal, pois naquele momento não existia algo
estabelecido como sendo “marxismo” e o texto foi escrito para a Associação
Internacional dos Trabalhadores, que era composta por várias tendências. No
plano do conteúdo, obviamente que Marx, entendendo suas ideias como
manifestação dos interesses de classe do proletariado, tal como a Comuna, então
deveria unir as duas coisas, que se reforçam reciprocamente, a teoria e prática
do proletariado. O problema é que Korsch parece interpretar isso apenas como um
desejo faccioso em contraposição à Bakunin, o que é um equívoco.
Publicado originalmente em:
VIANA, Nildo (org.). Escritos Revolucionários sobre a Comuna de Paris. Rio de Janeiro: Rizoma, 2011.
Para ver os textos de Korsch aqui citados, cf:
https://revolucio2080.blogspot.com/2019/05/a-comuna-revolucionaria-i-karl-korsch.html
https://revolucio2080.blogspot.com/2019/05/a-comuna-revolucionaria-ii.html
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