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domingo, 16 de junho de 2019

MEMÓRIA E SOCIEDADE: Uma Breve Discussão Teórica sobre Memória Social



MEMÓRIA E SOCIEDADE
Uma Breve Discussão Teórica sobre Memória Social


Nildo Viana*


O presente artigo visa repensar o problema da memória em sua relação com a sociedade. Esta questão, no campo sociológico, foi abordada a partir do estudo clássico de Maurice Halbwachs (1990) e foi desenvolvida por alguns outros autores. A psicologia, por sua vez, desenvolveu vários estudos sobre memória, mas em poucos casos enfatizando suas relações com a sociedade. Alguns filósofos, onde se destaca Bergson (apud. Bosi, 1995), também abordaram o problema da memória. Não pretendemos, aqui, fazer uma apresentação das várias concepções de memória mas tão-somente apresentar nossa visão deste fenômeno, o que nos levará, inevitavelmente, a discutir aspectos, utilizar elementos ou criticar outras abordagens.
A motivação deste trabalho reside na necessidade de rever a questão da memória a partir de uma perspectiva dialética, pois grande parte da produção teórica se fundamenta em postulados teórico-metodológicos positivistas. A necessidade de repensar a relação entre memória social e classes sociais também se faz presente, principalmente quando se busca produzir pesquisas que trabalham com a memória social e não se encontra uma referencial teórico que desenvolva, num sentido dialético, esta questão. A pesquisa sobre a realidade concreta necessita da teoria e esta, por sua vez, se enriquece com aquela. No presente artigo estaremos enfatizando um esclarecimento conceitual e uma discussão teórica sobre a memória social, o que contribui com o desenvolvimento de futuras pesquisas sobre casos concretos.
O Que é a Memória?
O primeiro problema na discussão da temática da memória é sua definição. O conceito de memória ainda não adquiriu uma sistematicidade, nem mesmo na esfera da psicologia, a ciência que mais se dedica a esta temática. Em primeiro lugar, caberia delimitar o campo fenomenal que consiste o que chamamos memória. A contribuição já clássica de Henri Bergson, ao descartar a memória-hábito do conceito é o primeiro elemento que devemos utilizar para realizar tal delimitação (Bosi, 1995; Halbwachs, 1990;  Filloux; 1966). A memória-hábito é uma não memória, pois quando alguém aprende a andar de bicicleta, dirigir carro, digitar no computador, ele está realizando uma repetição mecânica que não o faz apelar para as lembranças e para a mente, nem para a reflexão. Filloux coloca que o hábito é todo comportamento adquirido por aprendizado, sendo movimentos que não requerem a participação da atenção (Filloux, 1966). No entanto, consideramos uma imprecisão de Bergson a expressão memória-hábito, pois trata-se, no caso, de tão-somente hábito. Também o psicólogo Vigotski distingue esta forma de memória, que ele chama de “natural”, da memória que ele denomina “mediada” ou “indireta” (Vigotski, 1994), caindo na mesma imprecisão que Bergson, com a desvantagem de não questionar a atribuição de caráter de memória ao hábito. Filloux reconhece uma certa “colaboração” entre hábito e memória, que é a que ocorre quando se decora texto, a linguagem, etc., o que ele denomina “memória mecânica” (Filloux, 1966).
A idéia de que a memória é um “sistema vivo”, um sistema funcional geral que comanda o conjunto de atividades perceptivas, motoras e intelectuais do indivíduo”, tal como coloca Piaget, segundo Ehrlich (1979, p. 233), também é questionável. Esta concepção apresenta uma visão fetichista da memória, com um “sistema vivo” e “regulador”, o que significa transformar as lembranças e o seu processo de evocação em algo auto-suficiente, dando vida ao que pode ser considerado uma categoria, um instrumento mental, muito mais do que uma realidade concreta. No entanto, até aqui colocamos o que não é memória. Mas qual é o campo fenomenal do que chamamos memória? Segundo Filloux,
“Nosso primeiro trabalho consistirá, pois, em indicar os limites do domínio próprio da memória, que definiremos caracteristicamente por sua propriedade de unir em si o atual e o inatual e, por conseguinte, de realizar um modo ‘intemporal’ de consciência (ellenberger), uma experiência ‘em contratempo’ (Gusdorf). Poder que possui a consciência de se abstrair do presente para voltar-se para o passado, de fazer-se consciência do passado num movimento que transcende o tempo. Procuraremos tipos de lembrança que nos parecem verdadeiramente relacionados com a memória” (Filloux, 1966, p. 14).
Outra definição de memória é fornecida por Halbwachs: a memória é um conhecimento atual do passado (Halbwachs, 1990; Stoetzel, 1976). Isto significa que é, ao mesmo tempo, um saber e uma lembrança. No entanto, tanto esta quanto as demais definições são problemáticas. A memória não pode ser vista como uma cópia cronológica da história. Assim, a afirmação de Halbwachs, derivada de sua concepção de memória, se revela equivocada: “o passado não se conserva; é, sim, reconstruído a partir do presente” (apud. Filloux, 1966, p. 129). Sem dúvida, o passado não se conserva, pois já passou. É preciso distinguir entre a realidade passada e a consciência presente da realidade passada. Assim, não é o passado que é reconstruído a partir do presente e sim a consciência do passado. A memória deve ser redefinida e compreendida como consciência virtual, isto é, é uma possibilidade suscetível de se realizar, uma potencialidade existente. A memória, consciência virtual, é recuperada, restituída e interpretada pela consciência ativa, real, concreta. Desta forma, podemos dizer que na mente humana só existe o presente, só que em estado virtual ou manifesto, inativo ou ativo. A realidade passada é uma coisa, a consciência presente da realidade passada é outra coisa.
Logo, a concepção de Filloux também é problemática. Na memória não se une o atual e o inatual, mas tão-somente o atual. A consciência do passado é uma consciência atual, que recupera e trabalha a consciência virtual. O inatual existe concretamente no processo histórico mas não na mente humana, pois a consciência virtual é tão atual quanto a consciência concreta ativa. Assim, a concepção de H. Bergson também é equivocada:
“O mal da psicologia clássica, racionalista, segundo Bergson, é o de não reconhecer a existência de tudo o que está fora da consciência presente, imediata e ativa. No entanto, o papel da consciência, quando solicitada, é sobretudo o de colher e escolher, dentro do processo psíquico, justamente o que não é a consciência atual, trazendo-o à sua luz. Logo, a própria ação da consciência supõe o ‘outro’, ou seja, a existência de fenômenos e estados infraconscientes que costumam ficar à sombra. É precisamente nesse reino das sombras que se deposita o tesouro da memória” (Bosi, 1995, p. 52)
Bergson confunde os fenômenos psíquicos com os fenômenos reais. O que a consciência faz não é escolher em um depósito que seria o passado o que quer e sim uma recuperação de algo presente na mente humana. A categoria “inatual” se aplica ao passado da realidade concreta mas não à mente humana. Até mesmo a categoria “atual” é problemática e seria mais adequado utilizar a expressão “ativa” em seu lugar.
A memória sendo uma consciência virtual possui como conteúdo as lembranças e a ativação dela significa evocação de lembranças. Na mente humana existe um conjunto de lembranças guardadas na consciência virtual e somente através de sua ativação é que se tornam recordações, o que significa que muitas delas não emergem e que o processo de recordação é seletivo. Neste sentido, se torna inteligível a idéia de que a memória é seletiva (Halbwachs, 1990; Stoetzel, 1976) desde que se perceba que é o processo de recordação ou evocação de lembranças é que é seletivo e não a memória em si. No entanto, quais são os mecanismos de ativação da memória? Quais são as determinações desta seleção?
A Evocação Social das Lembranças
Os mecanismos de seleção se encontram nos valores e sentimentos dos indivíduos, bem como na pressão social e na associação de idéias. Os valores dos indivíduos são constituídos socialmente, e são o que eles consideram importante, relevante, significativo (Viana, 2002). A importância do caráter significativo foi ressaltada por Halbwachs (1990) e por Stoetzel (1976). Os valores não são atributos das coisas e sim atribuições que fornecemos a elas. Assim, nada é, intrinsecamente, feio ou belo, importante ou inútil, pois são os valores dos indivíduos ou grupos que fornecem estas atribuições. Os valores não são, por conseguinte, produtos naturais, já que não são propriedades das coisas e sim atribuições que os indivíduos e grupos fornecem às coisas. Este processo é constituído socialmente. No caso do indivíduo, é através de seu processo histórico de vida, desde de sua socialização, que ele vai produzindo os seus valores e colocando alguns como fundamentais em sua escala, que pode, inclusive, ser contraditória.
Os sentimentos também são fundamentais para a ativação da memória. O amor, o ódio, o ciúme, a inveja, a solidão, entre outros sentimentos, são elementos que constrangem os indivíduos a realizarem recordações. Os sentimentos são potencialidades que também possuem uma formação social. Eles não podem ser confundidos com emoções, pois os sentimentos não são reações momentâneas, mas sim formações mentais duradouras que caracterizam a relação afetiva do indivíduo com outros indivíduos ou coisas. Sendo uma relação, a sua fonte só pode ser social, pois só se pode amar ou odiar, para citar dois exemplos, através da relação. Com aqueles que não relacionamos, ou simplesmente desconhecemos e ignoramos ou então desprezamos. A psicanálise, embora muitas vezes de forma inintencional, apresenta a importância dos sentimentos no processo de constituição da ação humana (Viana, 2004a) e, podemos acrescentar, da ativação da memória.
Mas a memória também pode ser ativada por pressão social (necessidades profissionais, entrevistas, etc.) quando a motivação é externa ao indivíduo. Existem alguns exemplos de pressão social que são bastante comuns. Blondel coloca, por exemplo, a importância que as datas de acontecimentos históricos e políticos para as datas de ordem pessoal.
“Essas datas, que dependem da história, nos servem todas de pontos-de-referência mais ou menos seguros para situar os pormenores de nosso passado, mas algumas dentre elas, pela profundidade da repercussão que tiveram sobre nossas vidas, fazem um corte tão claro entre o que fomos antes e o que passamos a ser, que, ao primeiro lance de vista, verificamos se um acontecimento de nosso passado lhe foi ou não anterior: por exemplo, o 2 de outubro de 1914 e o 11 de novembro de 1918. No que diz respeito aos incidentes e acontecimentos de nossa própria vida, como sempre sabemos em que dia estamos, datam-se eles maquinalmente à medida que são vividos, mas a maior parte perde sua data logo em seguida ou, ao menos, muito rapidamente: guardamos raramente por mais de uma semana a lembrança da data precisa de nosso último jantar na cidade. Somente, ou quase, escapa a esse esquecimento a data dos acontecimentos que significação e valor sociais (Blondel, 1960, p. 177).
Blondel também ressalta que as datas pessoais são recordadas pela sua importância social, tal como ocorre com o aniversário, o casamento, etc. É justamente a pressão social, manifestada seja pelas exigências profissionais, civis, políticas, ou qualquer outra, ou pela importância socialmente atribuída aos fatos políticos, históricos ou acontecimentos na história de vida do indivíduo, que produz a lembrança de datas, que se tornam referências para outras lembranças. Isto revela o mecanismo da pressão social, tal como no caso do nascimento, lembrado por todos, mas apenas no que se refere a data e não ao acontecimento em si. As pessoas não lembram do seu nascimento, mas lembram da data de nascimento. A razão disso é social:
“Sabemos estas datas, nem tanto porque vivemos esses acontecimentos ou fomos deles contemporâneos, mas porque a importância a eles consagrada por nosso meio exigiu que as fixássemos definitivamente. Nada mais característico a esse propósito que a data de nosso nascimento, que é talvez, dentre todas de nossa biografia, a que conhecemos melhor, embora seja de toda evidência que não temos de nosso nascimento, absolutamente nenhuma lembrança, e, a encarar exatamente as coisas, bem seria essa data, antes que a de um acontecimento pessoal, a de um acontecimento histórico. Afinal de contas, e aqui é essencial, a maneira pela qual sabemos a data de nosso casamento, a do armistício, a de nosso nascimento e a de Waterloo, faz com que se identifiquem praticamente, para nós, e o que determina a escolha destas datas dentre todas, a quaisquer acontecimentos que se refiram, é, sempre, a importância que a coletividade lhes empresta e nos sugere ou obriga a lhes emprestar com ela” (Blondel, 1960, p. 177-178).
Também a associação de idéias acaba levando o indivíduo de uma lembrança a outra, já que a busca de reconstituição de algo acontecimento acaba gerando a recordação de outros, assim como necessidades práticas também cumprem este papel de evocação de lembranças. Neste sentido, podemos concordar com Bosi: “lembrança puxa lembrança” (Bosi, 1995, p. 39).
No entanto, abordar a memória leva, naturalmente, a discutir o problema do esquecimento. Quando a consciência ativa busca na consciência virtual algo que não consegue encontrar (um nome, uma idéia, um acontecimento) nós temos o esquecimento. A questão do esquecimento foi desenvolvida por Freud (1978), que a relacionou com a repressão. O esquecimento, em sua abordagem, seria produto da repressão. Podemos, a partir daí, pensar que o recalcamento, enquanto processo mental, produza esquecimento, isto é, dificulte a evocação de lembranças. O recalcamento é produto da repressão social, introjetada pelo indivíduo. Em casos psíquicos mais extremos, tal como em um trauma, o esquecimento pode ser um mecanismo de defesa, uma forma de evitar a lembrança do trauma. Embora Freud tenha utilizado e depois abandonado a idéia de mecanismo de defesa, substituindo-o por repressão, voltou a utilizá-lo e passou a considerar a repressão (recalcamento) como um entre vários mecanismos de defesa. A definição freudiana dos mecanismos de defesa é a luta do ego contra afetos e idéias consideradas “dolorosas” (Freud, 1982).
Sendo assim, temos aqui uma determinada relação entre memória e sociedade. A memória individual é constituída socialmente, pois os mecanismos de evocação de lembranças são de origem social. A memória individual possui sua singularidade a partir do processo histórico de vida do indivíduo que, a partir de sua inserção nas relações sociais e sua posição social, realiza a evocação de lembranças que estão em sua consciência virtual. Tanto as lembranças quanto os mecanismos de evocação são de caráter social, e isto significa que a memória individual é social. Além disso, o material que dá vida à memória também é de caráter social, tal como os signos – o que foi ressaltado por Vigotski (Vigotski, 1994; Braga, 2000) e com a mentalidade ou “formas sociais de padronização da cognição”, segundo expressão de Bartlett (apud. Santos, 2003).
A Memória Social
No entanto, este é apenas um aspecto da relação entre memória e sociedade. O outro aspecto se encontra na discussão apresentada pioneiramente por Maurice Halbwachs a respeito da memória coletiva. O caráter social da memória deixa entrever que a memória é coletiva. No entanto, a memória individual é uma manifestação singular do coletivo. É preciso perceber a singularidade da memória individual, mesmo que sua constituição tenha origem social. A memória coletiva pode se referir tanto à memória de todos os membros de uma determinada sociedade quanto à grupos sociais no seu interior. No primeiro caso, temos uma abordagem que ultrapassa a visão de Halbwachs (1990), pois ele focaliza os grupos sociais. No entanto, as lembranças coletivas, quando são evocadas, possuem os mecanismos de seleção que são de caráter social: valores, sentimentos, pressão social, etc. e, por conseguinte, sua constituição é social, tal como ocorre com o indivíduo, e possuem elementos que são constitutivos de toda uma sociedade. Assim, podemos falar de uma memória social, compreendendo por este termo a consciência social virtual em uma determinada sociedade. Assim, a evocação da origem do mundo nos mitos das sociedades simples revela esta memória social.
Porém, nas sociedades divididas em classes sociais, a memória social acaba se manifestando de forma muito mais reduzida. As classes sociais, entre outros grupos sociais, acabam criando o seu processo seletivo derivado de sua constituição própria de valores, sentimentos, etc. Assim, quando grupos oprimidos recordam Spartacus, o gladiador que liberou a rebelião escrava na Idade Antiga, isto se deve aos valores destes grupos sociais. Outros grupos sociais também acabam manifestando lembranças coletivas, expressão de sua memória social. Os grupos religiosos zelam pelo seu passado através de um conjunto de lembranças, e o mesmo ocorre com os artistas e inúmeros outros grupos sociais. Segundo Halbwachs:
“No mais, se a memória coletiva tira sua força e sua duração do fato de ter por suporte um conjunto de homens, não obstante eles são indivíduos que se lembram, enquanto membros do grupo. Dessa massa de lembranças comuns e que se apóiam uma sobre a outra, não são as mesmas que aparecerão com mais intensidade para cada um deles. Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios. Não é de admirar que, do instrumento comum, explicar essa diversidade, voltamos sempre a uma combinação de influências que são, todas, de natureza social” (Halbwachs, 1990, p. 51).
Assim, Halbwachs desenvolve alguns pontos interessantes que nos ajudam a pensar a memória social. A memória individual é uma memória constituída socialmente e a memória social é a manifestação coletiva da memória de uma sociedade ou um grupo. Mas isto não deve nos fazer perder de vista que existem uma multiplicidade de memórias, e não apenas uma “memória oficial” e uma “memória comunitária”, pois existem mais grupos sociais e um mesmo grupo social pode manifestar lembranças diferenciadas. Portelli acaba se referindo a este processo e demonstra que a memória não-oficial, no caso o da resistência ao nazismo, pode, em outro momento, se tornar oficial (Portelli, 1998). Além disso, é preciso evitar cair no romantismo, pensando que a memória dos grupos oprimidos é uma memória “não-oficial”, pois ela é perpassada pelas idéias dominantes, pela pressão social, pela contradição (Viana, 2004b)
Um dos grandes problemas da concepção de Halbwachs se encontra no peso exagerado que ele fornece para a questão do lugar e do solo em sua análise da memória coletiva. Segundo Stoetzel, “a demarcação das lembranças no solo é, seguramente, elemento capital da memória coletiva” (1976, p. 137). Muito mais importante do que o solo, são os valores, os vínculos tradicionais e sentimentais, a pressão social.
Outro problema da abordagem de Halbwachs está em sua concepção de memória como conhecimento e lembranças. A memória pode ser considerada uma parte, virtual, da consciência que é constituída por lembranças, mas não da forma como concebe Halbwachs, enquanto “o conhecimento atual do passado, isto é, enquanto consiste ao mesmo tempo num saber e em lembrança” (Stoetzel, 1976, p. 133). A memória é uma consciência virtual do passado, mas não pode ser compreendida como “conhecimento”, isto é, como saber objetivo, pois ela é sempre a consciência de um determinado indivíduo ou grupo social concreto. Neste sentido, cabe recordar Marx, para quem a “consciência não é nada mais do que o ser consciente” (Marx e Engels, 2002). A divisão social do trabalho produz classes e grupos sociais distintos que possuem sua consciência derivada das relações sociais em que são constituídos e de tudo que deriva de tais relações (valores, sentimentos, concepções, ideais, etc.). Assim, o que é “selecionado” pela memória é, predominantemente, o que é determinado pelos interesses da classe dominante e suas classes auxiliares, já que ela possui a hegemonia cultural na sociedade civil. As recordações de atos heróicos do passado são retomadas em momentos de lutas e combates, relembrando figuras heróicas, indivíduos, símbolos, etc. e utilizando-os a partir dos interesses atuais (Marx, 1986).
Outro elemento problemático da concepção de Halbwachs se encontra na suas “leis de regulação da memória coletiva”, o que revela suas raízes deitadas no solo do positivismo clássico. Estas leis são, segundo a abordagem de Halbwachs, a “lei de concentração” (na qual se localiza em um mesmo lugar acontecimentos que não possuem relação necessária); as leis de desmembramento (processo inverso ao anterior, fragmentação de lembranças por diversos lugares) e as leis de dualidade (no qual apresenta duas localizações para o mesmo fato) (Stoetzel, 1976, p. 137). Esta concepção apresenta enquanto problema a idéia de lei, o que acaba provocando uma concepção naturalizante do processo social. Mas, além disso, as leis apresentadas por Halbwachs remetem, sempre, à questão da localização, como se a memória social fosse necessariamente vinculada a um lugar. Esta vinculação existe e ocorre em muitos casos, mas não em todos e existem manifestações da memória social que não remetem a nenhuma localização, tal como uma data de nascimento (o foco é a data e é esta que é lembrada, e não o local onde o nascimento ocorreu, a não ser em casos especiais) e muitas vezes a localização é apresentada mas não possui grande importância. Por conseguinte, as leis da memória coletiva de Halbwachs são invenções científicas e não realidades concretas.
A memória social das classes e grupos sociais é seletiva, da mesma forma que a memória individual e os mecanismos de ativação, tal como já colocamos, também são os mesmos. Porém, como as classes e grupos são diferentes, os seus valores, sentimentos, etc., também são diferentes. Por conseguinte, as lembranças são diferentes. O grau de diferenciação depende de vários aspectos, mas ela existe, seja maior ou menor. A diferenciação mais ampla ocorre na esfera da divisão social de classes. As classes sociais só existem em relação uma com a outra e o antagonismo se encontra nesta relação. Por conseguinte, esta diferença assume uma diferenciação que é perpassada por interesses e por lutas. No entanto, nesta luta, a classe dominante, devido sua posição social e hegemonia cultural, vence normalmente e consegue impor as lembranças coletivas que são do seu interesse. Mas existe a resistência, que pode se manifestar de forma individual ou esporádica e que assume grandes proporções em épocas de acirramento de conflitos sociais. Este aspecto está ausente da análise de Halbwachs, simplesmente por causa de sua concepção de classes sociais. Para Halbwachs:
“As classes sociais são agrupamentos hierarquizados por excelência, que possuem uma consciência coletiva específica, apresentam graus distintos de participação no ideal comum da sociedade em que estão integradas e nas atividades que lhes correspondem, são diferenciadas pelo nível das suas necessidades, e portanto pelo gênero de vida que lhes é próprio, assim como pela matéria em que incide o seu trabalho, a sua atividade econômica, e bem assim pela intensidade da sua memória histórica tradicional” (Gurvitch, 1982, p. 149).
Assim, a concepção de classes sociais de Halbwachs é, ao contrário da marxista, não-relacional e ao abolir a relação entre as classes sociais, se apaga também a exploração, a dominação, os conflitos, os interesses antagônicos, etc., criando em lugar do antagonismo a diferença. Sem dúvida, outras críticas podem ser endereçadas à concepção de classes sociais em Halbwachs, tais como as apresentadas por Gurvitch (1982), mas devido a questão de espaço iremos nos limitar a este elemento fundamental e que esclarece a visão de memória coletiva de Halbwachs e suas limitações.
Desta forma, para concluir nosso trabalho, devemos ressaltar que existe uma luta pela memória e os principais agentes desta luta são as classes sociais e os seus representantes intelectuais. Tanto na esfera das representações cotidianas (“senso comum”) quanto na do pensamento complexo, esta luta se faz presente. Tal como colocou certa vez Adorno, o esquecimento facilita a reprodução (Adorno, 1982), ou seja, ele defende a recordação do holocausto enquanto forma de evitar sua repetição. As diversas abordagens do passado (tanto das representações cotidianas quanto do pensamento complexo, principalmente a historiografia) estão envolvidas neste processo. Mas esta luta não termina aí e ocorre também em torno da definição de memória e suas determinações. A luta pela memória é, portanto, simultaneamente, teórica e prática.


Referências Bibliográficas

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Blondel, Charles. Introdução à Psicologia Coletiva. Rio de Janeiro, Fundo de Cultura, 1960.
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Filloux, Jean-Claude. A Memória. 2ª edição, São Paulo, Difel, 1966.
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Gurvitch, Georges. As Classes Sociais. São Paulo, Global, 1982.
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Portelli, Alessandro. O Massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana: 29 de junho de 1944): Mito, Política, Luto e Senso Comum. In: Amado, J. e Ferreira, M. M. (orgs.). Usos e Abusos da História Oral. 2ª edição, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
Santos, Myrian Sepúlveda. S. Memória Coletiva e Teoria Social. São Paulo, Annablume, 2003.
Stoetzel, Jean. Psicologia Social. 3ª edição, São Paulo, Nacional, 1976.
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Viana, Nildo. Freud e a Abjuração dos Sentimentos. Fragmentos de Cultura. Goiânia/UCG. Vol. 14, no 05, maio de 2004a.
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Vigotski, Lev S. A Formação Social da Mente. 5ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 1994.


* Professor da UEG – Universidade Estadual de Goiás e Doutor em Sociologia/UnB – Universidade de Brasília. 
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Publicado originalmente em:
Espaço Plural — Ano VI - Nº 14 - 1º Semestre de 2006 — Versão eletrônica disponível na internet: www.unioeste.br/saber

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