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terça-feira, 20 de junho de 2017

AS DESVENTURAS DO FEMINISMO


AS DESVENTURAS DO FEMINISMO
Nildo Viana

A sociedade brasileira acompanha o desenrolar dos fatos políticos e cotidianos. A burocracia e seu show pirotécnico em suas mais variadas formas de manifestação (impeachment, discurso do golpe, prisão de burocratas e empresários, descoberta de corrupção, troca de ministros, lutas interburocráticas, “escola sem partido”, etc.) e a ascensão do feminismo em diversas vertentes (liberal, radical, etc.) são uma parte dessa paisagem rocambolesca. A irrealidade da vida contemporânea é acompanhada pela realidade virtual, na qual o virtual substitui o real. A diferença entre real e virtual se torna irreal no imaginário dominante. Dos anos 1960 e da reivindicação da “imaginação no poder” até a atualidade e o “poder do imaginário”, temos uma sensível perda de senso de realidade. A realidade desapareceu no imaginário e em breve o imaginário deve desaparecer na realidade. Numa época na qual as pessoas pensam que sua vontade é que determina a realidade e decide o futuro, a realidade ameaça contrariar a vontade das pessoas e decidir o seu futuro.

O burocratismo é um desses elementos. O neoliberalismo neopopulista do PT – Partido dos “Trabalhadores” – ao se apossar do aparato estatal, quis se tornar vitalício e acender vela para dois deuses: o que manda, a classe capitalista, e o que foi eleito pela maioria dos que votam, os trabalhadores. Os burocratas e intelectuais progressistas, que aumentaram quantitativamente com o apoio dos burocratas conservadores oportunistas e ávidos por cargos e dinheiro, tanto os antigos (das velhas organizações sindicais e partidárias decrépitas) quanto os novos (os que aderiram às ONGs e formas semelhantes, bem como aos financiamentos de governo e fundações internacionais) se distanciaram ainda mais da verdade e da realidade.

O novo feminismo aparece nesse contexto, mostrando sua convergência cultural com a nova hegemonia burguesa. O novo paradigma subjetivista, que engloba o pós-estruturalismo, pós-vanguardismo, ideologia neoliberal e todos seus derivados e vertentes, é a base do novo feminismo. Na sociedade brasileira, a sua presença se relaciona com o neoliberalismo neopopulista que se apossou do aparato estatal a partir do governo Lula e durou até o governo Dilma, mas possuem versões distintas e distantes do mesmo, tanto à direita quanto à esquerda.

Rainha deposta, rei posto. A rainha Dilma foi deposta e novo rei vem como uma nova rainha que é “bela, recatada e do lar”, em plena era do feminismo. A repercussão desse acontecimento serve para inserirmos a discussão do “novo feminismo”. A primeira dama é mulher, mas hoje não basta ser mulher para receber a solidariedade feminina (ou melhor, feminista). Tem que ser feminista! A primeira dama não só não é feminista como foi descrita, para escândalo de feministas e “feministos”, como bela (que absurdo!), recatada (que ultrajante!) e “do lar” (que humilhante!). O moralismo progressista une moral e progresso, e a moral é sempre uma ordem, mesmo que seja coisa de positivista. A moral do progresso não é um progresso da moral. O progresso capitalista é sempre algo imoral fantasiado de moral, tanto faz o “gênero” da moral. A moral progressista é superficial, pois não pode ser essencial. Se fosse, mostraria a sua verdadeira face, que é apenas a outra face da mesma moeda. O progressismo é a forma mais esclarecida do conservadorismo. Misoginia e misandria são coisas raras, mas quando um avança, o outro acompanha. Um completa o outro, como o côncavo e o convexo, o masculino e o feminino. E a maioria fica na plateia assistindo o show patético que se desenrola no palco, não sabendo se ri ou se chora, pois não sabe se é comédia ou tragédia.

O reino das mulheres, segundo algumas poucas delas, desabou. A rainha amazona com seu coração valente foi substituída por um rei cavalheiro que não é um “príncipe valente” e nem um “valente príncipe”. Nada mudou para as mulheres durante o reinado feminino, pois não era o sexo que reinava, já que não é atributo seu. A sucessão da realeza não é sexual e sim familiar, da mesma forma que a sucessão presidencial não é sexual e sim burocrática. O problema é que a burocracia escolhida pelo voto foi deposta pela burocracia escolhida por outros votos e pela que é escolhida pelo mérito. Apesar do mérito duvidoso de uma e da escolha duvidosa da outra, é assim que ocorre a sucessão real, com muitas dúvidas e poucas escolhas e méritos. O reinado feminino é o reinado de algumas e por isso não tem o apoio de todas, pois uma coisa é o sexo e outra coisa é a classe social. O sexo feminino foi contemplado com alguns cargos, discursos, para uma minoria tão minoritária que não conseguiu apoio da maioria tão majoritária e agora a minoria busca freneticamente o apoio da maioria, pois assim os cargos e discursos poderão reaparecer. Em nome da mulher imaginária, que é só mulher, desaparece a mulher real, que é um ser humano. Em lugar da luta real, aparece a luta imaginária. Em lugar da luta pela emancipação humana, aparece a luta pela emancipação da mulher burocrática que quer cargos e das que querem deixar de ser silenciadas silenciando os silenciadores e tornando-se silenciadoras. Esse círculo silencioso e vicioso, pouco virtuoso, reaparecerá na conclusão desse texto.

E se alguns achavam que havia limites para a burocratização, agora podem se espantar com a burocratização da mulher! Não a burocratização real, mas a mental, pois agora a luta de algumas mulheres não ultrapassa o nível de uma luta burocrática. Cargos, leis, moral, controle, repressão! Isso ao invés de cooperação, revolução, ética, autonomia, liberdade! A politização do cotidiano é o cotidiano da despolitização. O político agora é entendido como a competição capitalista pelo dinheiro e poder e suas vantagens competitivas no lar e não apenas no mundo mercantil e burocrático. Ao invés do mundo mercantil e burocrático ser destruído pelo mundo humano e das relações desinteressadas, agora o interesse invadiu tudo e assim o mundo cotidiano foi invadido pelo mundo mercantil e burocrático. O cálculo mercantil já havia invadido as casas, mas agora ele se fez consciente e absoluto. O valor de troca e a troca de valores é o que comanda a vida cotidiana, reproduzindo de forma mais intensa as relações de produção e relações de distribuição capitalistas.

Isso é comum desde que existe capitalismo, mas o fato novo é que agora, o último reduto da “fraternidade” se tornou espaço do utilitarismo, hedonismo, da competição. As famílias vivem para o “prazer sem sentimento” dos hedonistas ou então a “utilidade sem sentimento” dos utilitaristas. A outra possibilidade é a família voltada para a competição não-consciente promovida pela mentalidade competitiva[1]. De qualquer forma, os sentimentos foram expulsos, a não ser aqueles que são úteis para disfarçar interesses ocultos. Interesses ocultos e sentimentos expulsos, o par perfeito.

Os sentimentos, outrora, representavam o feminino. Tinha até um “hemisfério cerebral” para comprovar isso, ou Jung e dezenas de autores para afirmar que o reino das mulheres é o do sentimento e o dos homens é o da razão. Isso é falso se afirmado como sendo “universal” e quando se oculta que é o capitalismo que realiza a ampliação da separação entre razão e sentimentos de forma tão drástica. Agora, ao invés de homens limitados pela razão e mulheres limitadas pelos sentimentos, temos a intelectualização das mulheres e a limitação racionalista dos seres humanos em geral. Os sentimentos continuam existindo e atuando. Uns são autênticos e outros são farsas. Uns são fundamentais para a humanização, outros são apenas úteis para a permanência da sociedade desumanizada. Os sentimentos destrutivos reaparecem com mais vigor disfarçados pela razoabilização[2]. Os sentimentos explícitos aparecem, por sua vez, sob a forma de sentimentalismo seletivo e oportunista. O sentimentalismo sem sentimentos é o complemento do racionalismo sem razão. A razão e os sentimentos são separados ainda mais intensamente no capitalismo contemporâneo com a ascensão do irracionalismo (que não deixa de ser “racionalista”) e do sentimentalismo (que não deixa de ser insensível). O irracionalismo é a razão dos oportunistas e o sentimentalismo é a seletividade sentimental dos manipuladores insensíveis (ou o sentimento seletivo dos destituídos de sentimentos simpáticos, devido ao seu processo de desumanização, muitas vezes iniciado na infância).

Assim, a suposta politização do cotidiano significou a interiorização do mundo burocrático, mercantil e competitivo nas relações familiares, na sexualidade, na cotidianidade, mentalidade, na personalidade. Comicamente, uma mulher se dizendo feminista afirma que proibiu o filho de doze anos de sentir prazer com o próprio corpo por estar usando a “imagem de uma mulher sem a permissão dela”[3]. Do “poder do imaginário” à “prisão da imaginação”! A destruição da psicanálise, que começou com o estruturalismo (a psicanálise coisificada e coisificante de Lacan) e terminou com a renovação hegemônica contemporânea através do pós-estruturalismo (a psicanálise esquizofrênica e esquizofrenizante de Deleuze e Guattari) e a sua recusa pelo pseudomarxismo é um elemento que contribui para a incompreensão do risco explosivo que ronda a sociedade contemporânea. Antes era o fantasma do comunismo, agora é o ódio fantasmático. A repressão cada vez maior, o controle cada vez mais intenso, ao lado da mera e falsa liberação individual e sexual, apenas choca o ovo da serpente. Voltaremos a isto em outro texto, para não sair muito do assunto principal.

A politização do cotidiano prometeu transformar o purgatório em paraíso, mas o transformou em inferno. O paraíso foi esquecido como utopia e por isso o que resta é a burocracia (estatal ou civil), a mercadoria e a competição invadindo os lares e as mentes. A mente das mulheres das classes privilegiadas é cada vez mais burocrática, o que tem como causa social a maior presença feminina em cargos burocráticos e a expansão de ideologias derivadas disso[4]. A questão agora é o poder, é quem manda, quem controla. A solução para tudo é o controle, a vigilância. Todo controle e vigilância mostra a existência de conflitos, bem como da moral e do poder de quem controla e vigia. E, nesse mundo de competição pelo poder, se deixa de lado quem realmente controla, que é quem explora. A exploração não existe sem dominação e a dominação só existe por causa da exploração. Esqueçam a exploração e só verão dominação. Os exploradores agradecem e a luta pelo poder dilacera o resto.

As mulheres têm duas opções: ou se libertam totalmente ou apenas trocam de prisão. A prisão feminina é uma prisão que só tem mulheres e não deixa de ser prisão por causa disso[5]. As grades limitam o ser humano quando ele mesmo se limita inventando grades inexistentes. Quando um ser humano diz “eu sou apenas isso”, se limitou, se prendeu, criou uma prisão mental que limita sua ação e desenvolvimento real. Quando um ser humano se liberta de sua prisão mental, pode dizer: “eu sou um ser onilateral e exijo desenvolvimento integral”! Infelizmente, não é essa posição que predomina. Ao invés de pensar “meu corpo, minhas regras”, poderia pensar “minha mente, minha prisão”[6]. Quando esse ser humano descobrir que as regras são produzidas pela mente, então as prisões interiores poderão ser abolidas. Para isso é preciso sair de si mesmo e desenvolver a consciência, o saber. O saber só se desenvolve se tiver livre de interesses, valores, sentimentos mesquinhos e se for acompanhado da percepção da totalidade que é a sociedade.

É preciso abolir suas regras interiores (mentais) para abolir as regras exteriores, sociais. A abolição da prisão interior é condição para abolição da prisão exterior. E a prisão exterior é que gera a prisão interior, a mente individual é criada pela mentalidade coletiva que expressa relações sociais e interesses bem reais, inclusive daqueles que financiam a produção cultural, especialmente o grande capital, o aparato estatal e o capital comunicacional. Um corpo livre pressupõe uma mente livre. Uma mente livre pressupõe uma sociedade livre. Uma mente livre é algo raro e mesmo a mais livre das mentes é constituída socialmente e padece dos males sociais existentes. O desequilíbrio psíquico (neurose, psicose, etc.) não brota do corpo ou do cérebro e sim da sociedade. As mentes das feministas são produtos sociais e históricos tanto quanto a dos demais seres humanos. Ao invés de se ensimesmar em suas concepções, seria mais emancipador se as feministas estudassem as suas origens, suas fontes. Assim, elas saberiam que suas ideias não brotaram como cogumelos das lindas cabeças femininas e sim da sociedade, servindo a determinados interesses e tendo bases ideológicas bastante concretas.

De onde vêm as palavras que usamos? De onde surgiu o termo “desconstrução”? Se não se sabe disso, então é possível uma pessoa pensar que pensa por si mesma, mas pensa metade com sua cabeça e a outra metade com a cabeça dos outros. Quando se tem consciência e clareza de onde vêm as ideias que se adota, então mesmo que venha da cabeça dos outros, nós pensamos com nossa própria cabeça. Quando se desconhece isso ou não compreende essas ideias, seu significado e o interesse por detrás delas, então se pensa parcialmente com a cabeça dos outros. No teatro da consciência, a assimilação – comandada por valores e sentimentos humanistas – deve ser “protagonista”, para usar termo da moda, e a acomodação deve ser “coadjuvante” (VIANA, 2000)[7]. A assimilação de ideias num sentido positivo pressupõe um indivíduo autoconsciente de si mesmo e um mínimo de equilíbrio psíquico, bem como esforço intelectual no sentido de se aproximar da verdade e compreensão da realidade, o que pressupõe valores, sentimentos e concepções humanistas. Essas qualidades estão em falta no mercado e na sociedade capitalista, mas resistem perifericamente, na mente de alguns indivíduos ou em setores da sociedade.

O senso crítico sobre o pensamento próprio e alheio e a reflexão sobre as próprias ideias e sua comparação com a realidade é algo necessário e um antídoto para as fantasias imaginárias, muitas vezes próximas da psicose, mesmo que essa seja coletiva. O pensamento crítico se opõe ao pensamento imaginário, apesar de muitas vezes o pensamento imaginário aparecer como “crítico”. Nesse caso torna-se pensamento pseudocrítico, pois marcado pelo maniqueísmo e processos semelhantes. A percepção dos sentimentos e valores que incentiva a pseudocrítica mostra que é produto da infelicidade geradora de sentimentos antipáticos (destrutivos) e/ou de valores dominantes geradores de competição, inveja, ambição. É por isso que o humanismo é um antídoto e ele só existe em consonância com valores e sentimentos distintos. Para determinados indivíduos, com certas experiências traumáticas ou “vida malograda”, o humanismo pode surgir e existir ao entender o processo social que gerou ambos os processos que lhes atingiram. A linguagem não é neutra e seu uso tem efeitos concretos. Não poderemos desenvolver isso aqui, mas a compreensão da linguagem é parte fundamental de um pensamento crítico. A linguagem não deve dominar o ser humano, é o ser humano que deve dominar a linguagem[8].

A ideologia pós-estruturalista gera o termo “desconstrução” e depois disso não é raro ver militantes, jornalistas da Rede Globo e até “marxistas” repetindo a mesma palavra. As palavras são armas e seu significado revelam sentidos que se inserem numa ideologia que tem efeitos sociais e políticos. Os signos e os significados são constituídos socialmente e tem formas de constituição que são também gerados pela sociedade. Claro que os signos e significados dos discursos ideológicos não são constituídos pela sociedade em sua totalidade e sim pelos ideólogos. O léxico dominante é o léxico da classe dominante. O dominado que pensa com o léxico dominante querendo romper com a dominação está limitado pela dominação mental. Se um indivíduo usa o construto “fato”, se submete ao seu fetichismo, a não ser que transforme o seu sentido inserindo-o numa outra forma de pensar e tornando-o um conceito. Se um indivíduo usa um conjunto de palavras, cuja origem desconhece, cujo significado não é claro, mas que tem uma fonte ideológica, ele reproduz, mesmo que parcialmente, esta ideologia.

O novo feminismo, forjado pela nova hegemonia burguesa (gerador da ideologia do gênero, ideologia neoliberal, pós-estruturalismo, etc.), correspondente ao regime de acumulação integral, é um empobrecimento da luta das mulheres. Isso é perceptível tanto na “problematização”, palavra que algumas não cansam de repetir, quanto na “solução”. E podemos deixar de lado o feminismo radical e as propostas de “extermínio do sexo masculino” e olhar apenas para o feminismo mais generoso. Este gênero de feminismo afirma que o problema reside nas relações entre os sexos e a solução é a igualdade entre os sexos (não usamos o construto “gênero”, uma criação ideológica que apenas gera mais confusão do que esclarecimento)[9]. Aqui temos a politização despolitizada do cotidiano. A totalidade que é a sociedade desaparece e em seu lugar aparece o grande problema: as relações entre os sexos[10]. Isso, muitas vezes, vem acompanhada por uma unidade/homogeneidade ilusória entre os homens e também entre as mulheres. É uma reprodução das representações cotidianas ilusórias (“senso comum” ou imaginário) que afirmam que “todos os homens são iguais” ou “todas as mulheres são iguais”.

Os homens são diferentes, bem como as mulheres. Os homens possuem uma diferença fundamental: a de classe social, que gera antagonismo entre eles. Além disso, possuem diferenças de raça, cultura, processo histórico de vida, entre milhares de outras. As mulheres não escapam disso. Os homens possuem um corpo igual, embora não tão igual assim (no interior da semelhança há a diferença), e as mulheres da mesma forma. A diferença de personalidade é muito mais importante e marcante. As mulheres são constituídas socialmente, assim como os homens, inclusive em seu ethos sexual[11]. O modo de ser feminino e o modo de ser masculino são constituídos socialmente. No entanto, não é uma questão de “gênero” e nem é uma mera “construção cultural”, que vaga no espaço como as nuvens. Esse processo é social e está ligado ao modo de produção, à divisão social do trabalho, aos interesses e divisões de classes, às necessidades sociais e corporais, às diferenças corporais, às mutações culturais e psíquicas, aos processos históricos concretos até chegar aos casos individuais concretos. É por isso que existem indivíduos do sexo masculino que são incapazes da matar uma mosca, bem como indivíduos do sexo feminino que são capazes de matar um homem ou uma mulher por vingança. No nível mais concreto da individualidade, as coisas são muito mais complexas e as diferenças muito maiores.

A solução também é problemática. Um problema equivocado gera uma solução equivocada. Um problema que não identifica o real problema gera uma solução que nada soluciona ou soluciona imaginariamente um problema irreal. As feministas mais generosas clamam: “igualdade entre os sexos”! Isso parece justo e pareceria até “crueldade” recusar o apoio a tal proposta. No entanto, o falso problema gerou a falsa solução. A questão não é “igualdade entre os sexos”. O que se pretende com isso? Somar o fardo da miséria masculina ao fardo da pobreza feminina? As mulheres já não sofrem o bastante sendo mulheres e ainda querem que sofram como os homens? Pobres mulheres, querem que sofram como os homens! Juntar o sofrimento feminino com o sofrimento masculino nos indivíduos do sexo feminino é a sua fórmula de libertação?

Muitas mulheres (e alguns homens de discurso fácil e prática difícil) devem estar sem entender o que se quer dizer aqui. Algumas (e alguns) gritarão: machista! Se querer a libertação da mulher é ser machista, então esse texto é totalmente e assumidamente “machista”. O que propomos é a libertação total da mulher, enquanto mulher e ser humano, e não pseudolibertação parcial, migalhas acompanhadas de novos problemas. A libertação da mulher só pode ser a libertação humana, ou seja, como ser humano integral e não apenas como mulher. A “libertação” de um ser humano que é adesão a uma unilateralidade é autoflagelação.

A mulher é oprimida pela sociedade capitalista que transforma tudo em mercadoria e assim declara que o indivíduo, de ambos os sexos, para sobreviver necessita possuir dinheiro[12]. A dependência do pai e do marido não ocorre da mesma forma como nas sociedades classistas pré-capitalistas e sim através do dinheiro[13]. O vil metal torna vil a relação familiar e a vida mental. A solução feminista é: trabalho alienado para as mulheres! Sejam exploradas e dominadas no trabalho assalariado, mas sejam “independentes”! Essa é a “liberdade” da igualdade entre os sexos!

Para as mulheres das classes privilegiadas, não é o trabalho fabril ou os demais trabalhos subalternos ou mesmo a prostituição e sim um trabalho mais digno, com mais status e melhores salários. As mulheres não podem se tornar todas burguesas, nem burocratas, nem intelectuais. As mulheres das classes privilegiadas terão trabalhos privilegiados e as mulheres das classes desprivilegiadas trabalhos desprivilegiados. O mesmo vale para os homens, mas isso não importa para as feministas. A solução é a seguinte: as mulheres, seres limitados, devem acrescentar a limitação masculina em sua lista de limitações[14]. Dessa forma, ganham independência financeira e passam a sofrer por realizar um trabalho que mesmo sendo o menos incômodo é unilateral e não permite o desenvolvimento integral do indivíduo, independente do sexo.

A mulher pode se libertar sem haver a libertação humana? A resposta é não, pois tal libertação seria tão parcial que não libertaria efetivamente, apenas trocaria uma miséria por outra, ou acrescentaria mais pobreza na pobreza. A mulher, assim como o homem, só pode se libertar quando puder desenvolver o conjunto das suas potencialidades, que inclui não apenas as necessidades corporais (compartilhadas com os animais e que é a única reivindicação de certos setores da sociedade...), como a alimentação, a sexualidade, a habitação, etc., e sim as necessidades psíquicas e especificamente humanas, como a socialidade, que significaria a realização sentimental (afetiva) e integral com os demais seres humanos através de relações sociais não mediadas pelo mundo mercantil, burocrático e competitivo, e a práxis, o desenvolvimento autoconsciente e teleológico das energias físicas e psíquicas, possibilitando o desenvolvimento intelectual (criatividade, consciência, etc.), compondo uma personalidade que signifique a autorrealização humana.

Para conseguir isso é preciso abandonar as lutas especificamente femininas e ficar esperando o “admirável mundo novo”, a utopia, se realizar? Claro que não! É necessário manter as lutas femininas (e também as masculinas) contra a violência sexual, contra a violência doméstica, contra o tratamento desigual no plano salarial e profissional, etc. O que se questiona aqui é como se faz isso (e também algumas propostas e reivindicações, meros produtos culturais passageiros e sem sentido, que é um derivado das mesmas fontes ideológicas de certas tendências feministas ou então torná-la “a luta”).

O problema – e o que se recusa aqui – é isolar e absolutizar as lutas femininas. Isso leva a identificar a causa dos males femininos nos indivíduos do sexo masculino em geral, bem como ver apenas os “defeitos” masculinos e não os femininos (a reprodução da sociedade também é realizada pelas mulheres em todas as instâncias, inclusive na própria relação entre os sexos e os ethos sexuais criam limitações e problemas, bem como méritos, em ambos os sexos). O que se questiona aqui é, fundamentalmente, o isolamento das lutas femininas (gerado por diversos motivos, sendo a hegemonia burguesa a principal responsável por isso), o que gera não somente conflitos e maniqueísmos desnecessários (ANDERSON, 2016)[15] em alguns casos mais drásticos, como também adesões a governos, ideologias, propostas, que ao invés de contribuírem com a emancipação da mulher, acabam servindo para reprodução da sua opressão.

O isolamento das lutas femininas significa o apoio à sociedade capitalista e tudo que ela significa, para mulheres e homens. Um bilhão de seres humanos (mulheres, homens, crianças) estão passando fome, ou seja, sem a satisfação da mais básica necessidade corporal, a alimentação. Isso diz muito sobre essa sociedade do desperdício e do consumismo e revela sua racionalidade: o cálculo mercantil. O “silenciamento”, para usar termo agradável aos ouvidos “feministas” sobre essa situação que atingem milhões de mulheres, revela o isolamento da luta e o reducionismo ideológico. Esse isolamento que promove, simultaneamente, um abandono da utopia e da meta de libertação humana total e o afastamento da luta de classes, ou seja, da luta proletária, essencial para a constituição de uma nova sociedade, são apenas consequências desse processo. A luta especificamente feminina é importante, bem como as lutas das classes desprivilegiadas, mas o seu isolamento faz perder o senso de realidade e até sua importância, pois acaba se tornando elemento de reprodução da situação que gera o que ela combate. A mulher que morre de fome não é isolacionista e a feminista isolacionista não morre de fome.

A burocratização cada vez mais intensa da sociedade caminha lado a lado com a mercantilização. Além do controle, do poder, dos cargos, temos o problema do dinheiro, da mercadoria, do lucro. E para conquistar isso, temos a velha tradição capitalista: competição. Esses são os três pilares da sociabilidade capitalista e que são introjetados na mente dos indivíduos, homens e mulheres. Seres competitivos, burocráticos e mercantis. Nesse contexto, o sexo (em duplo sentido) é usado na competição e explica, em diversos casos, as razões da opressão. Da mesma forma, a mercantilização de tudo, inclusive do corpo e da mente, é outra fonte de opressão. A mercantilização do corpo é visível na prostituição e venda de órgãos. A mercantilização da mente é invisível, mas pode ser vista nos comportamentos oportunistas, nas produções culturais ideológicas, nas vantagens competitivas de determinadas ideias, na conveniência de determinadas concepções e discursos.

A mercantilização do corpo feminino é deplorável. Para ocorrer, é preciso de oferta e procura. A oferta pode ser provocada por necessidade ou ambição, a procura pode ser provocada por insatisfação, miséria sexual ou cultural, desequilíbrio psíquico. A mercantilização da mente feminina, quando uma mulher vende suas ideias para ter espaço, status, acesso a cargos, sucesso, fama, é algo igualmente deplorável, mesmo porque aqui há menos necessidade e mais ambição. Na prostituição corporal, temos a miséria financeira da mulher e a miséria sexual do homem. Essa relação também pode ser inversa, em alguns casos. Na prostituição mental, temos a miséria ética de mulheres e homens e a riqueza financeira de outras mulheres e homens. A miséria ética é bem pior que a miséria financeira.

Em síntese, pensar o novo feminismo é pensar a guerra de sexos no lugar da luta de classes (REED, 1980), o culturalismo, o moralismo (via mudanças comportamentais e/ou legais). A proliferação de construtos e noções equivocadas (vivência, lugar de fala, protagonismo, empoderamento, desconstrução) que compõem o discurso oportunista é o triste complemento desse quadro que é emoldurado pelas ideologias hegemônicas. O reducionismo culturalista é o coroamento disso tudo. A cultura se transforma numa entidade metafísica, não é mais constituída social e historicamente no fantástico mundo ideológico. Por isso, o feminismo se perdeu no meio do caminho e agora anda em círculos. E pelo visto vai continuar andando em círculo e nunca sairá da floresta do capitalismo e nem conseguirá se libertar dos “espíritos” que a povoam e que geram seu pensamento circular. Pensamento circular gera ação circular e ação circular gera pensamento circular. É preciso sair do círculo para lutar efetivamente e realmente pela libertação. Dentro do círculo só existe reprodução. É preciso destruir o círculo para efetivar a libertação. O círculo mental que isola as relações entre os sexos deve ser rompido para que as pessoas descubram que existe vida fora do círculo, pois isto é condição para que o círculo real seja abolido.

Referências


ANDERSON, S., 2016. Machismo ou Sexismo?. Coletivo 8 de Março, pp. http://coletivooitodemarco.blogspot.com.br/2016/03/machismo-ou-sexismo.html.
JUNG, C. G., 1978. O Eu e o Inconsciente.. Petrópolis: Vozes.
PAGLIA, C., 2016. Crítica ao Feminismo Narcisista. Blog Coletivo 8 de Março, Issue http://coletivooitodemarco.blogspot.com.br/2016/06/critica-ao-feminismo-narcisista.html.
REED, E., 1980. Sexo Contra Sexo ou Classe Contra Classe?. São Paulo: Versus.
RUCK, R., 2016. A Razoabilização como Principal Mecanismo de Defesa. Sociologia em Rede, 06(06). Disponível em: http://redelp.net/revistas/index.php/rsr/article/view/464/422 
VIANA, N., 2000. Práxis, Alienação e Consciência. In:: A Filosofia e Sua Sombra. Goiânia: Edições Germinal.
VIANA, N., 2006. Gênero e Ideologia. In:: N. VIANA, ed. A Questão da Mulher. Trabalho, Violência e Opressão. Rio de Janeiro: Ciência Moderna.
VIANA, N., 2010. Emancipação Feminina e Emancipação Humana. Revista Espaço Acadêmico, 09(107), http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/9767/5466.





[1] Isso não é generalizado. Em outros lares, pode haver “sentimento sem prazer” ou sem utilidade, ou pode haver sentimento e prazer, entre inúmeras outras possibilidades. A hegemonia não significa homogeneidade. As famílias proletárias e das classes desprivilegiadas, por exemplo, estão distantes dos novos modelos das classes privilegiadas. O processo de coisificação é mais forte nas classes privilegiadas, tanto em suas tendências mais conservadoras quanto em suas tendências mais progressistas. A recente polarização entre partidários e adversários do impeachment, bem como entre PT e adversários mostra que a coisificação gera monstros, ódio, maniqueísmos, irracionalismos, cuspes, incivilidade, tapa na cara e muitas outras maravilhas que a sociedade burguesa pode nos oferecer em épocas de desestabilização. E esse espetáculo circense pode ser acompanhado pelos meios oligopolistas de comunicação, que transmite ao vivo o processo de desumanização, sob as suas mais variadas formas e como se tudo estivesse indo muito bem.

[2] Termo utilizado por (RUCK, 2016), ou “racionalização”, no sentido que o psicanalista Ernest Jones forneceu ao termo e depois foi retomado por Sigmund Freud e, principalmente, Anna Freud.

[4]O problema hoje é que as mulheres, educadas e ambiciosas, querem entrar no novo mundo burguês do trabalho em escritórios, que são parte do legado da Revolução Industrial. Então temos um novo mundo em que homens e mulheres trabalham lado a lado nos escritórios, em que a divisão do trabalho entre homens e mulheres não existe. Portanto, ambos têm de mudar suas personalidades para se encaixar nessa realidade porque ambos são uma unidade de trabalho, são a mesma coisa” (PAGLIA, 2016). Embora não seja possível concordar com a totalidade da entrevista de Camille Paglia, pelo menos nesse aspecto ela se aproxima da realidade, ao mostrar a inserção das mulheres no trabalho burocrático e a sua mutação mental (“educadas” – ou seja, intelectualizadas – e “ambiciosas”, se aproximando ainda mais da mentalidade burguesa com seu caráter competitivo, mercantil e burocrático) que, no entanto, se aplica mais às mulheres das classes privilegiadas.

[5] Imaginemos o extermínio de todos os homens e a constituição de uma “sociedade de mulheres”, cuja forma de reprodução fosse a clonagem. Se se mantiver as relações de produção capitalistas, haverá quem explora e quem é explorado, haverá aparato estatal, controle, repressão. Haverá quem manda e quem obedece. Trabalhadoras e empregadoras domésticas. Trabalhos superiores e inferiores, bem como diferenças salariais. No fundo, o mundo será o mesmo, a diferença é entre classes. Um mundo sem homens, desde que seja capitalista, é um mundo de exploração, dominação, competição, mercantilização, burocratização, conflitos, lutas, miséria, infelicidade, fome, insatisfação, desequilíbrios psíquicos. Claro que, numa sociedade capitalista real, as diferenças sexuais geram diferenças sociais e as mulheres sofrem com o processo real de opressão, especialmente as das classes desprivilegiadas. No entanto, é preciso diferenciar essas camadas de problemas e saber o que gera o quê e não responsabilizar os homens por causa do seu sexo, sendo que a fonte disso são as relações sociais concretas e o processo histórico que geram situações e formas culturais que são determinadas e não determinantes.

[6] O corpo como propriedade ou mercadoria é apenas uma versão liberal e canhestra do corpo da mulher. O corpo não existe separado da mente (razão, sentimentos, inconsciente, valores, etc.) e a mente não existe fora da sociedade, assim como os corpos reais de indivíduos de carne e osso só existem em contatos, diretos ou indiretos, com os corpos dos outros e em espaços físicos e relações sociais específicas, que é algo muito mais importante. A corpolatria e o fetichismo do corpo são uma forma de isolar o corpo da totalidade da realidade. Uma mulher dançar nua em seu quarto ou residência tem um significado, mas fazer isso numa boate em troca de dinheiro tem outro, bem como na praça pública ofendendo a moral, os costumes, os valores, de outros. O neoindividualismo aponta para o desrespeito aos outros e ao escândalo como forma de luta e para a inadmissibilidade do “controle dos corpos”. No fundo, é apenas uma concepção hipócrita, pois com o pretexto de não ter seu corpo controlado quer controlar o corpo dos outros, pois o corpo faz o que a mente manda e o que alguns “corpos” andam fazendo, inclusive atacando as crenças alheias, é atacar os corpos alheios. Assim, a luta “corpo a corpo” é apenas a máscara das lutas ideológicas que ficam no reino das ideologias e nada mudam na realidade concreta e não resolvem os problemas sociais realmente existentes.


[8] O uso não-consciente da linguagem é expressão do domínio da linguagem (com seus significados, vínculos com ideologias e raízes/efeitos sociais “desconhecidos” e geralmente contrários aos interesses dos próprios utilizadores da mesma) sobre o ser humano, enquanto que o uso consciente e crítico mostra o domínio do ser humano sobre a linguagem.

[9] Várias críticas já foram endereçadas ao mesmo. Apresentamos uma crítica em Viana (2006), disponível em: http://informecritica.blogspot.com.br/2014/11/genero-e-ideologia.html.

[10] Existem concepções distintas, pois para algumas esse é o problema central, para outras é um dos principais problemas, etc. No entanto, mesmo para quem não considera o único ou principal problema, ao se limitar a ele, mesmo falando da existência de outros, acaba seguindo a mesma lógica de pensamento.

[11] O conceito de ethos sexual (VIANA, 2010) é semelhante ao de “papel sexual”, sem os limites ideológicos deste.

[12] Isso também atinge o homem, mas devido à divisão social do trabalho e relação distinta com o mercado de trabalho, o desemprego é menor, proporcionalmente falando, apesar das mudanças existentes. Sem dúvida, isso também tem relação com o corpo feminino e seus efeitos sobre o trabalho, num contexto em que este é realizado para o lucro dos capitalistas e que isso gera criação de diferenças de tratamento que facilitar uma maior exploração das mulheres.

[13] Isso atinge a sexualidade, mas não é nosso foco, embora seja parte do problema.

[14] E não deixa de ser curioso que o que se assimila do ethos sexual masculino seja geralmente o pior que os indivíduos do sexo masculino desenvolveram após um longo processo histórico, como agressividade, insensibilidade, etc. e deixando de lado o que é mais humano e enriquecedor, como a razão humanista (que difere da razão instrumental), determinação, o desenvolvimento da reflexão crítica e da cultura em geral, etc. A oposição entre sentimentos e razão, ideologicamente concentrada no feminino e masculino, respectivamente, e que ganhou efetividade parcial com o processo histórico e social, gera um problema na resistência ao capital, o gerador desse processo, pois é necessário uma síntese desses elementos nos indivíduos concretos, independente do sexo, e por isso Jung, através de seu pensamento metafísico, queria reunir o animus e a anima (JUNG, 1978). Outro efeito disso é a luta pela libertação humana ficar restrita. Sentimento sem razão e razão sem sentimento são duas formas de cegueira. Nem a cegueira do amor, nem a cegueira da razão. Hegel já dizia: “não basta amar, é preciso saber amar”.

[15] Parte do ódio e geração de maniqueísmo tem base real, tal como homens embrutecidos pela sociedade embrutecida que embrutecem as mulheres. O embrutecimento é um fenômeno social e não é generalizado e por isso homogeneizar os homens por causa de experiências individuais é um equívoco. A violência sexual é a mais traumática e o sinal mais patente da miséria humana e de uma sociedade embrutecida e embrutecedora. As suas consequências psíquicas são graves e em muitos casos não superadas. Por isso, a luta contra a violência sexual é uma das mais importantes, mas não apenas a visível que aparece na TV e sim na que ocorre no mundo real fora das telas, da atenção tecnocomunicacional (meios oligopolistas de comunicação) e da escandalização das classes privilegiadas, bastante dispostas a fazerem micromanifestações contra uma suposta “cultura do estupro” ao invés de combater as raízes sociais do estupro. Aqueles que combatem fantasmas não saem do mundo fantasmático e só reproduzem fantasmagorias. É preciso, seja para abolir o fenômeno que se combate ou pelo menos para minimizá-lo, ir à raiz do problema, atacar as causas e não os efeitos. É menos cômodo e mais eficaz, embora seja incômodo e ineficaz para os interesses pessoais.

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