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quinta-feira, 22 de junho de 2017

Marx e a Luta Cultural


MARX E A LUTA CULTURAL
Nildo Viana*

Marx não utilizou o termo “luta cultural” e poucas vezes usou o termo “cultura”. Apesar disso é possível perceber em sua obra elementos importantes que permitem pensar em luta cultural, tanto através de suas análises da práxis revolucionária quanto de sua prática teórica concreta que expressa uma luta cultural. Nesse sentido, vamos apresentar uma breve análise do que podemos extrair da obra de Marx que pode ser entendido como luta cultural ou reflexão sobre a mesma.

Marx e a reflexão sobre a luta cultural

A falsa interpretação de Marx como “economicista” é um obstáculo para entender seu pensamento e concepção política. Isso, mais especificamente, oblitera a sua posição diante da questão da consciência e do seu papel na luta de classes. Sem dúvida, para Marx, o social é o elemento determinante no plano real e, por conseguinte, no plano metodológico, no qual se enfatiza o peso das relações sociais concretas ao invés das representações sobre elas. “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência” (MARX, 1983, p. 25). Ou, segundo ele, “Assim como não se julga um indivíduo pela ideia que ele faz de si próprio, não se poderá julgar uma tal época de transformação pela mesma consciência de si [...]”(MARX, 1983, p. 25).

Esse pressuposto metodológico é apenas expressão do processo histórico real. No entanto, existe o mundo das representações, da cultura, que é um momento do real e interfere no mesmo[1]. Explicar a consciência pelo social não significa pensar que ela não existe ou que não interfira no processo real e histórico. Segundo o próprio Marx: “A arma da crítica não pode, evidentemente, substituir a crítica das armas, a força material deve ser derrotado pela força material; mas também a teoria se converte em força material tão logo se apodera das massas” (MARX, 2008, p. 103).

Aqui temos um elemento da luta cultural (a produção e divulgação da teoria para as classes desprivilegiadas) e uma proposição que mostra a necessidade da luta cultural. O papel da cultura, das ideias, representações, no processo da luta de classes é apresentado por Marx em diversas ocasiões. O que interessa colocar aqui é a divisão que ele realiza no processo de autoeducação do proletariado, por um lado, e na luta cultural realizada pelos revolucionários, por outro. Segundo ele:

Em geral, as colisões da velha sociedade favorecem de diversas maneiras o desenvolvimento do proletariado. A burguesia vive em luta contínua: no início contra a aristocracia; depois, contra as partes da própria burguesia cujos interesses entram em conflito com os progressos da indústria; e sempre contra a burguesia dos países estrangeiros. Em todas essas lutas, vê-se obrigada a apelar para o proletariado, a solicitar seu auxílio e a arrastá-lo assim para o movimento político. A burguesia mesma, portanto, fornece ao proletariado os elementos de sua própria educação, isto é, armas contra si mesma (MARX e ENGELS, 1988, p. 75).

Essa autoeducação, como colocam algumas traduções, do proletariado é beneficiada pela luta de classes e pelo reforço que indivíduos de outras classes oferecem ao se associar à luta proletária[2]. Isso ocorre através da crítica, da teoria e de “elementos de cultura” que esses indivíduos, geralmente intelectuais, podem oferecer ao proletariado. A crítica não é algo autossuficiente, ela tem uma finalidade externa a ela mesma. Marx explicitou o papel da crítica da seguinte forma: “a crítica arrancou as flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a flor viva” (MARX, 1978, p. 106). A crítica tem o papel de contribuir para superar as ilusões e permitir a ação transformadora, a luta revolucionária.

A teoria, por sua vez, é fundamental, pois ela é precondição para a crítica. “a exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões” (MARX, 1978, p. 106) e isso significa a necessidade de explicar essa “condição que necessita de ilusões”. O papel da teoria é “averiguar a verdade daquilo que nos circunda” e desmascarar as ilusões e “tornar a opressão real ainda mais opressiva, acrescentando àquela a consciência da opressão”, ela deve ser radical, isto é, ir à “raiz dos problemas”. E ela só pode ser realizar se for expressão de necessidades radicais. A teoria deve ser expressão de tais necessidades radicais, que se materializa no proletariado, pois ele é uma classe social na qual se manifesta a possibilidade de emancipação humana. Ao discutir a possibilidade de tal emancipação, Marx diz que ela reside

Na formação de uma classe com cadeias radicais, de uma classe da sociedade burguesa que não é uma classe da sociedade burguesa; de um estado que é a dissolução de todos os estados; de uma esfera que possui um caráter universal por seus sofrimentos universais e que não reclama nenhum direito especial para si, porque não se comete contra ela nenhuma violência especial, senão a violência pura e simples; que já não pode apelar a um título histórico, mas simplesmente ao título humano; que não se encontra em nenhuma espécie de contraposição particular com as consequências, senão numa contraposição universal com as premissas do Estado alemão; de uma esfera, finalmente, que não pode emancipar-se sem se emancipar de todas as demais esferas da sociedade e, simultaneamente, de emancipar todas elas; que é, numa palavra, a perda total do homem e que, por conseguinte, só pode atingir seu objetivo mediante a recuperação total do homem. Essa dissolução da sociedade como uma classe especial é o proletariado (MARX, 1978, p. 125).

Nesse sentido, a teoria deve ser expressão do proletariado e o objetivo dela é realizar a transformação radical do conjunto das relações sociais, da totalidade. A teoria encontra no proletariado suas armas materiais e o proletariado encontra na teoria suas armas intelectuais. Assim, “como a mesma rapidez que o raio do pensamento penetra a fundo neste puro solo popular” ocorrerá a emancipação humana. A teoria é o cérebro dessa emancipação e o proletariado o seu coração. A teoria só pode ser abolida com a extinção do proletariado e este só poderá ser extinto realizando a teoria[3]. Nesse sentido, há uma inseparabilidade entre teoria e proletariado. O proletariado é condição de possibilidade da teoria e é graças a ele que emerge os indivíduos reais e concretos que a produzem, os representantes teóricos do proletariado[4].

O objetivo da teoria é a transformação radical da realidade e o limite da filosofia é não ter essa finalidade, pois o que importa não é apenas interpretar a realidade e sim transformá-la. Mas como a teoria faz isso? Superando as ilusões, ou seja, expressando a realidade tal como ela é e mostrando que ela é produtora de fantasias e diversas formas de ilusões. Assim, a crítica supera as ilusões e a teoria mostra sua base real, o fundamento material tanto das ilusões quanto da emancipação humana, cuja potencialidade se encontra no proletariado. Os teóricos do proletariado tem a missão, portanto, de criticar as ilusões, expressar a realidade social e levar isso até a classe operária. Esse é um processo concreto que ocorre na luta de classes, pois “um fenómeno inevitável, fundado no curso do desenvolvimento, que pessoas das classes até aqui dominantes se juntem ao proletariado que luta e lhe tragam elementos de cultura” (MARX, 2014). Obviamente que devem ser elementos de cultura reais, e não criações fantasiosas, preconceitos burgueses, ecletismo utilizando ideias trazidas das universidades, etc.

Essas são as reflexões de Marx sobre o que denominamos luta cultural, no caso proletariado. Ele também aborda a luta cultural da burguesia, cujo processo é o oposto. A luta cultural burguesa é realizada através da produção de ideologias (MARX e ENGELS, 1991), ou seja, sistemas de pensamento ilusórios, realizada pelos ideólogos, sendo que alguns são produtores ativos de ideologias e outros, a maioria, são apenas reprodutores passivos das mesmas. Esse sistema de pensamento ilusório serve para legitimar, justificar e naturalizar as relações sociais da sociedade capitalista. Esse é o caso de filósofos, cientistas e outros. Marx focaliza em diversas obras o papel desses ideólogos e suas ideologias. Assim, se a teoria visa à transformação radical das relações sociais, a ideologia visa sua conservação. As ideologias, ao serem reproduzidas pelos ideólogos passivos, atingem a população e assim, ao serem aceitas, amortecem as lutas de classes, provocando adesão à sociedade capitalista. Quando estes ideólogos se dizem aliados do proletariado, ao invés de elementos de cultura, o que levam são preconceitos e concepções ecléticas que nada contribuem com a luta operária. Se a teoria supera as ilusões, mostra suas bases reais e expressa como a sociedade cria tal necessidade de criações ilusórias, criticando tanto as representações e ideologias quanto a realidade que as geram, a ideologia, por sua vez, produz e reforça as ilusões. A teoria está vinculada e expressa os interesses de classe do proletariado, enquanto que as ideologias são expressões dos interesses de classe da burguesia ou de outras classes conservadoras.

A Luta Cultural de Marx

Além do que ele disse sobre o que denominamos luta cultural, Marx a efetivou concretamente. Nesse sentido, é um complemento para entender sua posição diante dessa questão sua prática concreta. A luta cultural de Marx pode ser vista através de sua crítica das ilusões, especialmente das ideologias; sua produção teórica, extremamente ampla; o processo de levar “elementos de cultura” para o proletariado. Realizaremos uma breve exposição sobre estes três aspectos para demonstrar a efetivação de luta cultural por parte de Marx.

A obra de Marx é essencialmente crítica. Em seus primeiros escritos, aborda a questão da crítica da religião e posteriormente a crítica da filosofia alemã e, posteriormente, a crítica das ideologias científicas e pseudossocialistas. A sua análise da religião aponta para mostrar que ela é um produto terreno e que sua autoilusão de ser expressão do além apenas esconde suas origens no aquém. Ele mostra as origens sociais da religião, bem como explica que é da miséria real que surge a necessidade da ilusão religiosa. Mas logo ele passa da crítica da religião para a crítica das ideologias. Em obras como A Ideologia Alemã, A Sagrada Família, entre outras, ele se dedica à crítica da filosofia alemã com seu caráter ideológico. No entanto, ele acaba passando para a crítica de outras ideologias, tal como a dos economistas ingleses e socialistas franceses. As suas críticas a Malthus e os “economistas vulgares”, bem como aos ecléticos e mesmo aos clássicos (Adam Smith e David Ricardo) se manifesta em O Capital, Grundrisse, Teorias da Mais-Valia, etc. Da mesma forma, ele realiza a crítica do socialismo francês e do pseudossocialismo em geral, tal como se vê no Manifesto Comunista, A Miséria da Filosofia, entre outras obras. Em vários momentos ele avança na crítica de outras concepções, e em cartas e outros lugares, até de aspectos das ciências naturais, como no caso de Darwin (VIANA, 2009).

A teoria produzida por Marx é extremamente ampla e é inseparável de sua crítica. O primeiro elemento de sua produção teórica é sua teoria da alienação e da história. A teoria da alienação apresentada nos Manuscritos de Paris (também chamados “econômico-filosóficos” ou “de 1844") é o momento de constituição das bases concretas do seu humanismo e do comunismo. O trabalho alienado é o fundamento da revolução proletária, a desumanização é apresentada como a chave para emancipação humana, pois esta é negação daquela. A teoria da história é apresentada em A Ideologia Alemã, embora em diversas obras ele volte a essa questão, tal como na Contribuição à Crítica da Economia Política, entre outras. Através da elaboração dos conceitos de modo de produção, classes sociais, lutas de classes, entre outros, ele busca expressar o movimento histórico, fundado, a partir de certo momento histórico devido ao desenvolvimento das forças produtivas, na luta de classes. Ele desenvolve também uma teoria do capitalismo, que pode ser vista em diversas obras, embora de forma mais estruturada em O Capital. Nessa obra ele explica o segredo da exploração capitalista e sua essência, a produção de mais-valor, bem como suas consequências e desdobramentos, como a acumulação de capital e processo tendencial de sua superação. Da mesma forma e indissoluvelmente ligado a isso, apresenta uma teoria da revolução proletária, não só analisando o proletariado como classe social como também avançando no sentido de analisar suas lutas, sua potencialidade revolucionária, suas experiências, suas tendências. Ainda esboça elementos, baseando-se nas experiências históricas e no vislumbre racional proporcionado pela teoria (VIANA, 2014), da sociedade comunista, tal como em A Guerra Civil na França e Crítica ao Programa de Gotha, principalmente.

Os elementos de cultura que é parte da práxis dos teóricos do proletariado e Marx realizou isso também. O que muitos não sabem é que os livretos Salário, Preço e Lucro e Trabalho Assalariado e Capital, são a expressão escrita de palestras que Marx ministrou para operários. Ele sempre buscou levar a teoria para o movimento operário, tanto através da produção em si e sua publicação como livros, mas também através de documentos, cartas, conversas, palestras, incluindo as circulares na AIT – Associação Internacional dos Trabalhadores. Dois momentos especiais se destacam nesse processo, que é a redação do Manifesto Comunista e de sua análise da Comuna de Paris, contida em A Guerra Civil na França. No Manifesto Comunista, ele sintetiza elementos de sua teoria da história, de suas análises do capitalismo e da luta de classes nessa sociedade, bem como critica os pseudossocialismos e apresenta o papel dos comunistas e elementos programáticos para a luta revolucionária.  Em A Guerra Civil na França, apresenta uma análise da Comuna de Paris, de seus obstáculos e problemas e de sua importância histórica para o movimento operário revolucionário, obra divulgada para o proletariado e que poderia servir de inspiração para novas lutas. Aliás, O Capital, era para ter sido produzido em fascículos, pois a intenção de Marx é que ele fosse lido por proletários.

Nesse sentido, as ações concretas de Marx mostram uma intensa luta cultural, aliada com um trabalho organizativo e outras ações, no sentido de fortalecer a luta proletária e a formação da associação da classe na luta contra a burguesia e constituição da “livre associação dos produtores”, o comunismo.

De Marx a Nós: A Luta Cultural Hoje

Estamos em outra época, sendo que a essência do capitalismo - produção do mais-valor e acumulação de capital – continua a mesma, mas sua forma mudou. Houve um amplo desenvolvimento tecnológico, a geopolítica mundial foi alterada, a mercantilização e burocratização das relações sociais se intensificaram, o Estado assume nova forma, entre diversas outras questões. Marx produziu sua obra durante o regime de acumulação extensivo e passagem para o intensivo. Nesse sentido, os regimes de acumulação posteriores (conjugado e integral) não foram vividos e analisados por ele, a não ser em seus elementos tendenciais. A luta operária de sua época ocorria num contexto determinado e hoje as condições são bem diferentes. Os partidos e sindicatos supostamente “operários” são aparelhos burocráticos que nada tem a ver com o movimento revolucionário do proletariado, sendo mais um obstáculo. Da mesma forma, os meios oligopolistas de comunicação ganharam um espaço muito maior e, no regime de acumulação integral, a internet e redes sociais ganham espaço.

O capitalismo encontra cada vez mais dificuldades em se reproduzir. Isso faz parte de sua história, mas quanto mais se desenvolve e demonstra capacidade de superar as crises e sobreviver, mais encontra dificuldades mais amplas e profundas. As experiências revolucionárias depois da Comuna de Paris trouxeram questões inexistentes no tempo de Marx, tal como a ameaça da contrarrevolução burocrática. Após o regime de acumulação intensivo, uma imensa classe burocrática emerge e sua parte mais radicalizada, presente em partidos e sindicatos menores, se torna ávida pelo poder e para isso se diz “representante do proletariado”. Isso gera mais um obstáculo para a luta proletária: além de combater o capital e seu aparelho, o estado capitalista, tem também que se livrar de suas falsas “vanguardas” e daqueles que dizem estar do seu lado.

Essas e outras mudanças complexifica as lutas de classes, principalmente com a emergência de novas ideologias e supostas concepções críticas que no fundo apenas cria uma divisão e isolamento de setores da sociedade ao invés de levar a uma unificação que seria o fortalecimento da luta pela transformação social. Essas lutas isoladas de grupos isolados, permeados por ideologias como a do “gênero”, “libertação animal”, entre outras, acabam sendo reforço da hegemonia burguesa nos movimentos sociais e lutas cotidianas, dificultando uma ascensão das lutas proletárias e revolucionárias.

A luta cultural assume, portanto, novas tarefas. Por um lado, é preciso combater o enfraquecimento interno do marxismo (autêntico e não suas deformações burocráticas expressas no leninismo e socialdemocracia), no sentido de buscar se aliar com ideologias burguesas para não perder espaço. Apesar da preocupação de não perder espaços e criar divergências desnecessárias ser legítima, pois é preciso unir forças e muitos estão aderindo a ideologias e concepções equivocadas por falta de aprofundamento teórico, informações, etc., isso é uma faca de dois gumes, pois reforça o que tem que ser combatido.

O enfraquecimento interno é aquele no qual os próprios defensores de uma concepção se rendem a ideias dos adversários, se submetem aos modismos, introjetam outras concepções graças à vitimização de grupos, ou seja, é um processo de origem externa que gera um enfraquecimento interno, seja por pressão social, seja por falta de formação teórica e senso crítico mais desenvolvido. Às vezes isso se revela no temor de entrar em embate e isso ser impopular. No entanto, um revolucionário é, a não ser na época da revolução, impopular por natureza.

No entanto, essa é apenas uma das novas questões contemporâneas que atingem a luta cultural hoje. As tarefas são muito mais numerosas. É preciso levar “elementos de cultura” para o proletariado e demais setores da sociedade potencialmente revolucionários, e isto através de livros, revistas, jornais, panfletos, conversas, uso de meios de comunicação, internet, etc. No entanto, para que sejam realmente “elementos de cultura” é necessário não apenas “informações” ou palavras de ordem, mas que tenha um caráter formativo, fornecendo ferramentas intelectuais para interpretar e atuar nas lutas de classes.

Da mesma forma, para poder prosseguir na luta cultural e colaborar com a autoformação intelectual da população e dos militantes, é necessário a produção teórica e crítica das ideologias e representações cotidianas ilusórias. A produção teórica deve ser incentivada e realizada, no sentido de colaborar com a compreensão das relações sociais concretas, do capitalismo, de seus mecanismos de reprodução, das contradições existentes, tendências e potencialidades. Essa é a base para a crítica das ideologias, que não só exercem o papel de influenciar indivíduos e intelectuais, inclusive com potencial contestador, como, através destes e sob outras formas, os movimentos sociais e lutas sociais. Por isso a crítica das diversas ideologias, sob variadas formas e graus de desenvolvimento, deve ser realizada. Por outro lado, a crítica do imaginário, das representações cotidianas ilusórias produzidas pela própria população, é outro elemento necessário, pois ele é outro obstáculo, inclusive para o avanço da autoeducação do proletariado. É preciso avançar no sentido de difundir representações cotidianas verdadeiras e sua passagem para formas mais amplas e desenvolvidas de pensamento.

Da mesma forma, a luta contra os valores dominantes e mentalidade burguesa é outro elemento que deve ocorrer, apesar dos obstáculos mais fortes nesse caso. A crítica da axiologia, dos valores dominantes em suas diversas configurações, é um elemento que deve ser um dos focos da luta cultural. Por outro lado, o reconhecimento e discussão sobre axionomia, os valores autênticos, é necessário, ser cair no humanismo abstrato, entendendo que parte deles podem ser materializados hoje, mas parte não, e por isso é preciso de uma ética libertária e domínio teórico[5]. A relação entre teoria e ética libertária é fundamental para não cair no sentimentalismo, moralismo e/ou humanismo abstrato. A materialização da axionomia no conjunto das relações sociais pressupõe a superação da sociedade capitalista e isso se faz através da luta de classes e por isso apenas parcialmente ele se concretiza hoje. Os carrascos não podem ser tratados com solidariedade, apesar deste ser um valor autêntico, pois a recíproca não é verdadeira.

Assim, os elementos apontados por Marx continuam válidos e precisam ser aprofundados. Obviamente que um ou outro indivíduo pode focalizar em formas de luta cultural específica, apesar do ideal ser atuar em todos. No entanto, se uma pessoa colabora fazendo poesias, ou seja, realizando a luta cultural via produção artística, desde que na perspectiva do proletariado, então é algo a apoiar. Incentivar a ir além disso é algo possível e desejável, mas isso depende da singularidade psíquica do indivíduo, sua história de vida, condições sociais, etc., e por isso o que deve ser exigido é que o conteúdo de sua produção artística seja revolucionário, pois se não for não contribui com a luta.

Da mesma forma que Marx, em certo momento, foi para a biblioteca de Londres e disse que assim contribuiria melhor com a luta de classes, é preciso reconhecer as necessidades, limites, contextos, que cercam os indivíduos e que a liberdade na luta é fundamental pela luta pela liberdade, desde que o objetivo final esteja presente, que haja coerência entre a produção cultural e luta pela autogestão social. A ida de Marx para a biblioteca de Londres estava intimamente relacionada com a produção de sua obra O Capital, uma das mais importantes produções teóricas já feitas e de fundamental importância para a luta proletária.

Para o caso de formas mais organizadas e coletivas de luta, é necessário refletir criticamente e elaborar programas de ação voltados para a luta cultural. Assim, processos de produção e publicação teóricas, mecanismos de elaboração e divulgação de críticas, constituição de processos de divulgação e propaganda revolucionária, bem como articulação disso tudo com atuação nos movimentos sociais, nos movimentos grevistas, lutas de classes em geral.

Em síntese, a luta cultural é um dos principais elementos da práxis revolucionária. E ela não está separada de todos os processos de luta existentes na sociedade. O que os praticistas não percebem é que toda luta tem um elemento cultural envolvido. Num movimento grevista, as reivindicações e as ações são permeadas por concepções, representações, etc., no sentido de que as necessidades, informações, posições, são produtos de interpretações e reflexões. O mesmo vale para manifestações e protestos, trabalhos em bairros, etc. Nenhuma ação humana é desvinculada de consciência e esta é uma das determinações desse processo. Um operário com mentalidade burguesa pode ser favorável à greve para aumentar o seu salário, mas será contra ela quando houver perigo de demissão. A sua posição está intimamente ligada às suas concepções, valores, etc. Da mesma forma, no mesmo movimento, um operário revolucionário pode defender a greve, mas faltar-lhe argumentos, informações, etc., por não ter elementos de cultura suficientes para entrar no embate cultural estabelecido. Um terceiro operário pode ser em certo momento contra a greve, porque seu partido oferece essa diretriz e argumentos para tal, talvez por motivos eleitorais ou de alianças políticas ou mesmo vínculo com sindicato e/ou governo. Tal operário, pode, ao mesmo tempo, ser honesto e fazer isso por acreditar nos seus camaradas de partido e faltar-lhe informações e elementos de cultura para entender as reais motivações por trás da posição do seu partido.

Um militante que se limita a ir e apoiar, sem criticar, sem levar elementos de cultura, informações, ferramentas intelectuais, no fundo colabora muito pouco ou, em certos casos, acaba reforçando a hegemonia burguesa no mesmo. Ele, tal como o último exemplo de operário, pode também ser honesto e acreditar que isso é o que todos devem fazer, mas acaba contribuindo para que as forças conservadoras, mesmo as disfarçadas de reformistas ou até “revolucionárias”, acabem tendo supremacia no processo de luta.

Assim, a luta cultural é um elemento fundamental da luta de classes, tanto na articulação imediata com as lutas operárias e sociais em geral quanto indireta, no mundo da cultura. E o esclarecimento de sua importância e de seu papel estratégico na luta pela transformação radical do conjunto das relações sociais, abolindo o capitalismo e instaurando a autogestão social, é parte dessa mesma luta cultural, bem como sua divulgação significa levar elementos de cultura para a população em geral e para o proletariado em particular. Em síntese, a luta cultural perpassa toda a sociedade e a consciência de sua necessidade é um de seus momentos. Isso significa, no fundo, dar prosseguimento ao que Marx e outros realizaram, mas de forma mais refletida e consciente, no sentido de estar devidamente pensada e inserida numa estratégia revolucionária.

Referências

KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto, Afrontamento, 1977.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo, Hucitec, 1991.

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Petrópolis: Vozes, 1988.

MARX, Karl. A Miséria da Filosofia. 2ª Edição, São Paulo, Global, 1989.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ª Edição, São Paulo, Martins Fontes, 1983.

MARX, Karl. Escritos de Juventud sobre el Derecho. Barcelona: Anthropos, 2008.

MARX, Karl. Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. In: A Questão Judaica. São Paulo: Moraes, 1978.

MARX, Karl. O Manifesto dos Três de Zurique. Revista Marxismo e Autogestão. Vol. 01, num. 02, jul./dez. 2014.

VIANA, Nildo. Darwin Nu. Revista Espaço Acadêmico. Ano 8, nº 95, abril de 2009.

VIANA, Nildo. Karl Marx – A Crítica Desapiedada do Existente. Florianópolis: Bookess, 2014.



* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás.

[1] Korsch (1977) já havia colocando, em sua luta cultural contra o pseudomarxismo, que as ideias fazem parte da realidade e por isso interferem e é também uma de suas determinações.

[2] Segundo Marx, “frações inteiras da classe dominante são lançadas no proletariado”, “também elas fornecem ao proletariado uma massa de elementos de educação”. Nos períodos mais decisivos da luta de classes, “uma pequena parte da classe dominante se desliga dela e se junta à classe revolucionária”, “especialmente uma parte dos ideólogos burgueses que conseguiram alcançar uma compreensão teórica do movimento histórico em seu conjunto” (MARX e ENGELS, 1988, p. 75). Hoje diríamos, uma parte da classe intelectual. De qualquer forma, o que Marx chama aqui de “elementos de educação”, é o que posteriormente ele chamará de “elementos de cultura”, tal como veremos adiante.

[3] Marx realiza essa discussão no contexto das lutas culturais na Alemanha e por isso aborda a emancipação dos alemães, que é parcial, devendo ser emancipação humana, e, nesse contexto, sua linguagem ainda não é a do materialismo histórico-dialético, tal como desenvolverá posteriormente, por isso ele usa, por exemplo, as palavras “filosofia” e “teoria” indistintamente. Em obras posteriores, na qual irá efetivar a crítica da filosofia, então abandonará o uso desse termo como sendo expressão de sua posição.

[4] Segundo Marx, cada classe social produz seus representantes intelectuais e literários, que são aqueles que expressam intelectualmente seus interesses de classe. “assim como os economistas são os representantes científicos da classe burguesa, os socialistas e os comunistas são os teóricos da classe proletária” (MARX, 1989, p. 118).

[5] Os valores autênticos podem, inclusive, ser integrados em discursos axiológicos e ideológicos. Basta ver o uso de Durkheim do termo “solidariedade”, um valor autêntico, num contexto discursivo ideológico e axiológico, no qual integra e desfigura seu real significado.

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