INVEJA E COMPETIÇÃO NA ESFERA CIENTÍFICA
Nildo Viana
A sociedade capitalista gera uma sociabilidade caracterizada
pela competição, mercantilização e burocratização e esta constitui uma
mentalidade que introjeta tais características[1]. Aqui
nos interessa a questão da competição social e da mentalidade competitiva
derivada dela e de sua ressonância na esfera científica, especialmente o seu
impacto sobre os sentimentos, ou, mais exatamente, na produção da inveja.
A inveja é um dos sentimentos antipáticos mais condenados e não
é a toa que está elencada entre os sete pecados capitais. Para alguns, a inveja
é produto da comparação. Fulano tem X e Ciclano não. Ciclano compara e deseja
ter X. Logo, inveja Fulano e quer ter o que ele tem. Enquanto descrição da
realidade, isto é correto. Porém, falha como explicação. A inveja é, na
verdade, produto da competição.
O capitalismo, com sua sociabilidade competitiva, gera uma
mentalidade competitiva, que é a principal motivação da inveja[2]. A
mera comparação não gera inveja. João tem um carro importado, mas o seu amigo
José não o inveja, pois não gosta de carros. No entanto, se o José for uma
pessoa de mentalidade competitiva, ela irá invejar João. O desejo de José não é
possuir o carro por ele mesmo e sim por que João o possui. José está competindo
com o João. A inveja nasce dessa competição. A inveja é um sentimento
antipático caracterizado pela necessidade de possuir ou ser o que os outros
possuem ou são. É por isso que é um sentimento antipático, pois, ao contrário
dos sentimentos simpáticos (como o amor, por exemplo), ele é destrutivo.
A competição se torna generalizada e ocupa todas as relações
sociais. os indivíduos estão competindo por lucro, dinheiro, riqueza, emprego,
cargos, beleza, força, bens materiais, etc. E aqueles que perdem uma competição
(por riqueza, por exemplo) compensam ganhando outra (não é rico, “mas é o mais
inteligente”, ou não é tão inteligente, “mas é o torcedor do time campeão”). Assim,
a competição é generalizada, sendo, no entanto, distinta em diferentes classes
sociais, grupos, instâncias, etc. que possuem uma escala específica de valores
convivendo com os valores dominantes na sociedade.
É por isso que a esfera científica gera uma escala de
valores que lhe é própria. O mesmo ocorre com outras esferas sociais, mas nosso
foco aqui é a esfera científica. Os valores dominantes nesta esfera e o que
caráter extremamente competitivo, o que já foi destacado por autores como
Mannheim[3] e
Bourdieu[4],
aponta para uma forma específica de competição. O dinheiro e o poder,
fundamentais para a classe capitalista e a para a burocracia, respectivamente, são
secundários para a classe intelectual[5] e
esfera científica. A exceção mais comum é o caso dos intelectuais venais, que
colocam o dinheiro como valor fundamental e por isso são mal vistos – e em
alguns casos até invejados – por outros intelectuais. O espólio em disputa na
esfera científica é, fundamentalmente, o reconhecimento, especialmente sob a
forma de consagração[6]. No
entanto, alguns no seu interior, especialmente os intelectuais venais,
engajados e amadores podem eleger outros espólios ou contestá-los.
No entanto, nem todos os cientistas (bem como seus
semelhantes, os filósofos) conseguem a consagração, fama ou sucesso, ou mesmo
uma forma de reconhecimento menos valorada. Isso, no capitalismo, é reservado
para poucos. Para os que não conseguem, mas possuem os mesmos valores, resta a
inveja. Sem dúvida, se produz uma hierarquia – que vai do internacional e
nacional até chegar ao regional ou local – e por isso o derrotado em âmbito internacional
pode ser vitorioso em âmbito nacional, etc. Aliás, isso explica, em certos
casos, a animosidade local ou regional em relação a um intelectual reconhecido
nesse âmbito, ou como existem intelectuais sem reconhecimento em sua instituição,
cidade, etc., mas reconhecimento em outros lugares.
Assim, quando a inveja é compartilhada por um número
significativo de pessoas[7], a
sua ressonância é maior, pois cria uma corrente de opinião desfavorável àquele
que é invejado. A inveja (e competição) se manifesta sob as mais variadas
formas. A forma mais comum de pseudocrítica[8] é
realizada quando o suposto crítico nem sequer leu o que está criticando ou, em
outros casos, nem entendeu. Qualquer coisa pode se transformar em pretexto para
a pseudocrítica: se escreveu um livro, por mais excepcional que seja, é “criticado”
por ter escrito pouco, ou, se escreveu dez livros, é “criticado” por ter
escrito muito. A pseudocrítica pode focalizar não a produção intelectual do
indivíduo, mas a figura do autor, desde sua aparência física, passando por suas
posições políticas, amizades, gosto musical, personalidade, até chegar em
questões de sua vida pessoal. Nesses casos, a pseudocrítica não possui nenhuma fundamentação
real, pois não se baseia no conteúdo escrito ou em sua totalidade e
fidedignidade a ele (como ocorre com a pseudocrítica que realização a simplificação
e deformação para parecer convincente).
Isso se reproduz nos detalhes do trabalho intelectual. Este é
o caso, por exemplo, das citações. Não é difícil ver orientadores proibindo
seus orientandos de citar seus colegas ou haver perseguição de professores
sobre alunos por causa disso. Também é relativamente comum a autocensura
provocada pela pressão/censura externa, sendo que esta muitas vezes é
determinada pela inveja. Ao lado da inveja, na maioria das vezes, as outras motivações
(políticas, intelectuais e pessoais) também tendem a gerar esse processo de
censura e silêncio sobre a produção intelectual alheia. Marx mesmo colocou, no
seu prefácio de O Capital[9],
que sua obra foi marcada pelo silêncio e depois pela “crítica” (pseudocrítica).
O procedimento dos pareceres em revistas acadêmicas/científicas
e outras instâncias do trabalho intelectual (livros, projetos de pesquisa, concursos,
processos seletivos, etc.) também é marcado pela inveja, ao lado das divergências
políticas e teórico-metodológicas, bem como, em certos casos, pela ignorância. Muitos
pareceristas são movidos por inveja em seus pareceres (e isso revela a falha
desse procedimento quando o parecerista não tem domínio, competência ou mesmo
capacidade de compreensão equivalente ao do autor submetido a ele. Argumentos
de autoridade, afirmações não-fundamentadas, adjetivos pejorativos, são meios comumente
utilizados para justificar pareceres injustificáveis, contrários ao artigo ou
obra que mereciam publicação.
Até em círculo de intelectuais engajados esse processo pode
se reproduzir, embora com mais força no caso dos intelectuais mais inseguros ou
por pressão social, ou, ainda, ambas as coisas. No caso dos intelectuais ambíguos,
esse processo é tão comum quando no caso dos demais intelectuais. Também ocorre
no caso de intelectuais que obtém uma forma de sucesso que questiona, por
inveja, outra forma do mesmo. Por exemplo, intelectuais ambíguos podem
questionar intelectuais venais e estes os hegemônicos[10],
pois invejam o relativo sucesso do outro por também desejá-lo e não consegui-lo[11].
Assim, podemos, após essa breve descrição do significado da
inveja na esfera científica, destacar os seus efeitos deletérios na produção intelectual.
A existência da inveja e de um exército de invejosos constitui um enorme
reforço da hegemonia burguesa nas esferas sociais, bem como, mais
especificamente, na esfera científica. Nessa, a inveja reforça o boicote aos
intelectuais mais corajosos e produtivos, aos que possuem maior coerência e
compromisso com a verdade. Esse boicote impede a circulação de ideias
contestadoras e revolucionárias, bem como enfraquece o compromisso com a
verdade, que deveria ser um valor fundamental na produção intelectual, pois ela
é desvantajosa para os interesses pessoais.
Desta forma, a inveja é um sentimento incentivado e
amplificado pelo capitalismo e sua existência e reprodução reforçam, ao lado de
diversos outros sentimentos, valores, desejos, interesses, a manutenção da
sociedade capitalista. Um dito popular afirma que “a inveja mata”, mas o mais
correto seria dizer: “a inveja é mais um obstáculo para a emancipação humana e
por isso precisa ser abolida junto com a sociedade que a incentiva e amplifica”
ou, ainda, “a inveja, na esfera científica, mata a verdade”.
[1]
Isso foi desenvolvido em: VIANA, Nildo. Universo
Psíquico e Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-Marxistas. Rio de Janeiro:
Escuta, 2008.
[2] A
inveja é um sentimento anterior ao capitalismo, mas é com essa forma de
sociedade que se torna predominante.
[4] BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: ORTIZ, Renato
(org.). Bourdieu. São Paulo: Ática,
1984.
[5]
Evidentemente, existem exceções, especialmente no caso de intelectuais ambíguos
e que assumem temporariamente cargos burocráticos.
[6]
Sobre isso: VIANA, Nildo. As Esferas
Sociais. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.
[7] E isso
pode ser reforçado por outras motivações de outras pessoas, como divergências
intelectuais ou políticas, ou mesmo antipatia pessoal.
[8] A
pseudocrítica pode ser motivada também por divergência política ou
teórico-metodológica ou interesses grupais ou pessoais. O nosso foco aqui, no
entanto, é quando motivação é a inveja.
[9]
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3ª edição,
São Paulo: Nova Cultural, 1988.
[10] Sobre
a variedade de posturas intelectuais, veja o livro já citado sobre as esferas
sociais.
[11] Não
se deve confundir isso com indignação com o desmerecimento alheio, tal como
podemos ver em Weber: “Em sã consciência, você acredita que pode aguentar o
fato de medíocres atrás de medíocres, anos após anos, ascendam mais que você,
sem se tornar amargurado e sem sofrer um colapso?” (apud. JACOBY, Russell. Os Últimos Intelectuais: A Cultura Americana
na Era da Academia. São Paulo: Trajetória Cultural: Edusp, 1990).
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