CORAGEM E COVARDIA NA ESFERA CIENTÍFICA
Nildo Viana
A dinâmica interna da esfera científica, assim como a de
todas as esferas sociais[1], é
marcada pela competição, censura, pressão, mas, além disso, forças externas
atuam sobre seus integrantes (burocracias: governamental, universitária, etc.; capital:
comunicacional, editorial, etc.; aparato estatal e seus diversos aparatos institucionais:
educacional, comunicacional, etc.). Nesse contexto, o cientista, o intelectual
que atua especificamente na esfera científica, precisa ser corajoso para poder
dizer a verdade, para recusar a hegemonia, etc. Por outro lado, os covardes,
mesmo que bem intencionados ou pretendendo ser um pensador a serviço da transformação
social, acabam realizando ou colaborando com o processo de reprodução social.
Assim, o intelectual engajado, aquele que tem compromisso
com a verdade e a com a transformação radical e total das relações sociais, necessita
ser corajoso. Um intelectual engajado covarde é um contrassenso. Ele pode até
querer ser um intelectual engajado, mas não é no verdadeiro significado do
termo. No máximo, consegue ser “revolucionário” em outro lugar ou em outra
atividade, mas não em sua produção intelectual. É, portanto, um intelectual ambíguo.
Nesse caso, é um intelectual ambíguo com uma ambiguidade mais radical, mas sem
força e coragem suficiente para romper com ela.
Isso, no entanto, não é um problema apenas do intelectual
engajado. Qualquer intelectual que queira sair das regras do jogo, mesmo sendo
um dissidente, sabe que as portas tendem a se fechar para ele, o que significa
que somente com muita coragem é que poderia manter sua posição.
Marx e Freud são dois exemplos dos dois casos concretos (intelectual
engajado e intelectual dissidente). Marx foi um dos mais corajosos intelectuais
de todos os tempos e foi por isso que foi marginalizado na esfera científica
desde o início, graças ao seu compromisso com a verdade e com o proletariado (transformação
social). Ele foi um crítico radical e desapiedado das representações ilusórias
e das ideologias, inclusive as que eram hegemônicas. Marx criticou não apenas
os ideólogos burgueses, neohegelianos, etc., mas também os supostos opositores
do capitalismo (socialismo utópico, socialismo verdadeiro, Proudhon, etc.). Ele
não fez a crítica pela crítica e sim para superar as ilusões e ideologias e assim
chegar à verdade, elemento fundamental para o processo de transformação social.
É por isso, também, que não se limitou a criticar. Ao lado de sua crítica da
economia política, produziu uma teoria do modo de produção capitalista; ao lado
da crítica de Hegel, esboçou uma concepção materialista da dialética e da
história.
Isso não passou incólume. Originário das classes
privilegiadas, acabou não podendo trabalhar em universidade, passou momentos de
miséria e precisou de escrever artigos para jornais e solicitar ajuda
financeira de amigos e outros para poder sobreviver. Esse efeito na vida
pessoal apenas acompanhou o destino da sua produção intelectual, sendo
inicialmente vítima de “silêncio” e, posteriormente, de pseudocríticas. Depois,
um exército de detratores, deformadores, pseudocríticos, que nem sequer
entenderam sua teoria, tentou desacreditá-lo.
O caso de Freud é bem diferente. Freud foi um intelectual de
grande coragem, embora suas teses, não sendo de caráter diretamente político e
nem contestando o capitalismo e seus defensores, não teve resistência generalizada
das classes privilegiadas. No entanto, ao desenvolver suas teses e acreditar
que elas eram verdadeiras, as defendeu e não recuou. Algumas de suas teses
foram combatidas pelos setores mais conservadores da sociedade, tal como sua
problemática concepção da sexualidade infantil. Outros intelectuais o
criticaram e atacaram, alguns até o acusando de “charlatão”. No entanto, ele
resistiu, manteve e desenvolveu suas teses. Acabou conseguindo um relativo
sucesso que foi ampliado com o tempo.
Se Marx tivesse se acovardado, teria se tornado apenas mais
um reprodutor das ideias hegemônicas de sua época (um neohegeliano) e Freud
seria apenas mais um psiquiatra sem grande brilho. A ousadia intelectual é
fundamental para os intelectuais comprometidos com a verdade e a transformação social.
Contudo, não basta coragem. Muitos intelectuais são extremamente corajosos e,
no entanto, caem no ridículo pela fragilidade de suas ideias. Freud é um caso sui generis, pois uniu coragem e,
simultaneamente, ideias verdadeiras e falsas, brilhantes e estapafúrdias. No
entanto, por mais que se discorde, mesmo de suas ideias mais extravagantes, é
necessário reconhecer que eram fundamentadas e aliadas a outras ideias e
descobertas fundamentais a respeito do psiquismo humano. Para que a coragem não
seja apenas meio de manifestação de delírios intelectuais, é preciso pesquisa, fundamentação,
reflexão crítica[2].
Isso significa que a coragem é uma qualidade humana que é fundamental para a transformação
social e a produção intelectual que a reforça, mas que pode ser despropositada,
tendo conteúdo/objetivo falso/conservador ou então direcionada a um alvo equivocado,
e, assim, pode ser antagônica ao compromisso com a verdade e com o
proletariado. A coragem, portanto, não é um objetivo em si mesma e sim um meio
para se atingir determinados objetivos. Quando a coragem se torna um fim em si
mesma, ou quando seus objetivos são condenáveis, ela se torna prejudicial e tão
nociva quando a covardia.
A história da intelectualidade e, mais especificamente, dos
cientistas (os agentes da esfera científica) não é uma história de coragem e
sim de covardia. Um minoria corajosa convive com uma maioria covarde. Basta observar
que existe tão pouca verdade na quase totalidade dos livros, artigos, teses,
aulas, palestras, para ver que aqueles que poderiam usar a coragem para
expressá-la preferem se acovardar diante das ideologias hegemônicas e correntes
predominantes de opinião. Alguns são corajosos na vida privada e pequenos
círculos (alguns especificamente no círculo interno), mas jamais publicam ou se
manifestam publicamente de forma corajosa para o grande público.
Os intelectuais e cientistas covardes podem até ser hegemônicos
e consagrados numa determinada época, mas no decorrer do processo histórico
mais longo são esquecidos, da mesma forma como os filmes de besteirol
norte-americanos.
A covardia, assim como a inveja, tem um efeito deletério na produção
intelectual e na esfera científica. O medo da corrente predominante de opinião (na
sociedade ou em setores da mesma, especialmente, nesse caso, nos meios
intelectuais ou intelectualizados), a falta de coragem de desafiar as correntes
hegemônicas, as concepções da moda, as “autoridades intelectuais” (tanto a
daqueles atrelados ao grande capital comunicacional, os intelectuais venais,
quanto aqueles que são hegemônicos na esfera científica), as regras do jogo da própria
esfera científica, etc. forma intelectuais covardes[3]. Alguns
destes, para disfarçar sua covardia crônica, oferece alguma demonstração de
coragem ao contestar não os defensores da ordem e sim os críticos radicais da
mesma, geralmente por razões mesquinhas, o que apenas deixa a mesquinhez do crítico
mais explícita. Alguns buscam demonstrar sua “coragem” chutando “cachorro morto”,
o que não deixa de ser cômico.
A história da esfera científica é marcada por um processo de
reprodução da inverdade e isso é reforçado pelo fenômeno da covardia
intelectual. E isso também ocorre, em graus variados, em outras esferas sociais.
Contudo, quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais aumenta o número de
covardes e diminui o número de corajosos. Afinal, hoje em dia é difícil
encontrar um Giordano Bruno, um Rembrandt, um Thomas Morus, um Karl Marx, um
Sigmund Freud, exemplos do passado que raramente encontram similares no
presente.
Isso é explicado, em grande parte, pelo desenvolvimento capitalista
e pela intensificação do processo de competição, mercantilização e burocratização.
Cada vez mais os intelectuais, como todos os indivíduos, estão submetidos ao
dinheiro, amarrados em organizações burocráticas e constrangidos à competição social,
bem como sob a força da hegemonia burguesa. O capitalismo contemporâneo, sob o regime
de acumulação integral, aprofunda e intensifica isso e reforça a “política do
descompromisso”, oriunda do paradigma subjetivista e expresso por ideologias
como a pós-estruturalista. A formação social dos indivíduos no capitalismo contemporâneo
aponta para a criação de seres humanos cada vez mais problemáticos, com uma
grande parte justificando isso ao transformar o defeito em virtude.
Nesse contexto, a coragem se torna ainda mais urgente e necessária,
pois a covardia de hoje pode gerar a catástrofe do amanhã. A boa coragem, nunca
é demais recordar. Ou seja, a coragem que não está a serviço dos interesses
pessoais imediatos (mesmo quando estes aparecem disfarçados de outra coisa) e
da reprodução do capitalismo, pois são elementos complementares. O dito popular
já indagava: “você é um homem ou um rato?”, mas hoje é preciso indagar de forma
mais explícita nos meios intelectuais: “você é um intelectual corajoso ou um
covarde?”.
[1]
Uma análise geral pode ser vista em: VIANA, Nildo. As Esferas Sociais. A Constituição Capitalista da Divisão do
Trabalho Intelectual. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.
[2]
Assim, a coragem é necessária, mas é preciso entender que ela, em si, não é
nada. Ela só tem sentido articulada com objetivos nobres e não objetivos
pobres. Da mesma forma, cabe ao analista de determinada produção intelectual
definir, na análise de tal produção em si, se as ideias são delírios
intelectuais ou expressão da realidade, o que se consegue através da comparação
entre as concepções e os fenômenos que elas buscam expressar e na fundamentação
de cada concepção e sua articulação geral no conjunto de concepções que formam
o pensamento do intelectual em questão.
[3]
Claro que isso não quer dizer que se deva contestar apenas por contestar e sim
quando há razões para isso ou então, ingenuamente, recusar certas coisas por
que elas são hegemônicas, etc., sem o trabalho de reflexão crítica, fundamentação,
pesquisa.
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