Páginas Especiais

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

CORAGEM E COVARDIA NA ESFERA CIENTÍFICA


CORAGEM E COVARDIA NA ESFERA CIENTÍFICA

Nildo Viana

A dinâmica interna da esfera científica, assim como a de todas as esferas sociais[1], é marcada pela competição, censura, pressão, mas, além disso, forças externas atuam sobre seus integrantes (burocracias: governamental, universitária, etc.; capital: comunicacional, editorial, etc.; aparato estatal e seus diversos aparatos institucionais: educacional, comunicacional, etc.). Nesse contexto, o cientista, o intelectual que atua especificamente na esfera científica, precisa ser corajoso para poder dizer a verdade, para recusar a hegemonia, etc. Por outro lado, os covardes, mesmo que bem intencionados ou pretendendo ser um pensador a serviço da transformação social, acabam realizando ou colaborando com o processo de reprodução social.

Assim, o intelectual engajado, aquele que tem compromisso com a verdade e a com a transformação radical e total das relações sociais, necessita ser corajoso. Um intelectual engajado covarde é um contrassenso. Ele pode até querer ser um intelectual engajado, mas não é no verdadeiro significado do termo. No máximo, consegue ser “revolucionário” em outro lugar ou em outra atividade, mas não em sua produção intelectual. É, portanto, um intelectual ambíguo. Nesse caso, é um intelectual ambíguo com uma ambiguidade mais radical, mas sem força e coragem suficiente para romper com ela.

Isso, no entanto, não é um problema apenas do intelectual engajado. Qualquer intelectual que queira sair das regras do jogo, mesmo sendo um dissidente, sabe que as portas tendem a se fechar para ele, o que significa que somente com muita coragem é que poderia manter sua posição.

Marx e Freud são dois exemplos dos dois casos concretos (intelectual engajado e intelectual dissidente). Marx foi um dos mais corajosos intelectuais de todos os tempos e foi por isso que foi marginalizado na esfera científica desde o início, graças ao seu compromisso com a verdade e com o proletariado (transformação social). Ele foi um crítico radical e desapiedado das representações ilusórias e das ideologias, inclusive as que eram hegemônicas. Marx criticou não apenas os ideólogos burgueses, neohegelianos, etc., mas também os supostos opositores do capitalismo (socialismo utópico, socialismo verdadeiro, Proudhon, etc.). Ele não fez a crítica pela crítica e sim para superar as ilusões e ideologias e assim chegar à verdade, elemento fundamental para o processo de transformação social. É por isso, também, que não se limitou a criticar. Ao lado de sua crítica da economia política, produziu uma teoria do modo de produção capitalista; ao lado da crítica de Hegel, esboçou uma concepção materialista da dialética e da história.

Isso não passou incólume. Originário das classes privilegiadas, acabou não podendo trabalhar em universidade, passou momentos de miséria e precisou de escrever artigos para jornais e solicitar ajuda financeira de amigos e outros para poder sobreviver. Esse efeito na vida pessoal apenas acompanhou o destino da sua produção intelectual, sendo inicialmente vítima de “silêncio” e, posteriormente, de pseudocríticas. Depois, um exército de detratores, deformadores, pseudocríticos, que nem sequer entenderam sua teoria, tentou desacreditá-lo.

O caso de Freud é bem diferente. Freud foi um intelectual de grande coragem, embora suas teses, não sendo de caráter diretamente político e nem contestando o capitalismo e seus defensores, não teve resistência generalizada das classes privilegiadas. No entanto, ao desenvolver suas teses e acreditar que elas eram verdadeiras, as defendeu e não recuou. Algumas de suas teses foram combatidas pelos setores mais conservadores da sociedade, tal como sua problemática concepção da sexualidade infantil. Outros intelectuais o criticaram e atacaram, alguns até o acusando de “charlatão”. No entanto, ele resistiu, manteve e desenvolveu suas teses. Acabou conseguindo um relativo sucesso que foi ampliado com o tempo.

Se Marx tivesse se acovardado, teria se tornado apenas mais um reprodutor das ideias hegemônicas de sua época (um neohegeliano) e Freud seria apenas mais um psiquiatra sem grande brilho. A ousadia intelectual é fundamental para os intelectuais comprometidos com a verdade e a transformação social. Contudo, não basta coragem. Muitos intelectuais são extremamente corajosos e, no entanto, caem no ridículo pela fragilidade de suas ideias. Freud é um caso sui generis, pois uniu coragem e, simultaneamente, ideias verdadeiras e falsas, brilhantes e estapafúrdias. No entanto, por mais que se discorde, mesmo de suas ideias mais extravagantes, é necessário reconhecer que eram fundamentadas e aliadas a outras ideias e descobertas fundamentais a respeito do psiquismo humano. Para que a coragem não seja apenas meio de manifestação de delírios intelectuais, é preciso pesquisa, fundamentação, reflexão crítica[2]. Isso significa que a coragem é uma qualidade humana que é fundamental para a transformação social e a produção intelectual que a reforça, mas que pode ser despropositada, tendo conteúdo/objetivo falso/conservador ou então direcionada a um alvo equivocado, e, assim, pode ser antagônica ao compromisso com a verdade e com o proletariado. A coragem, portanto, não é um objetivo em si mesma e sim um meio para se atingir determinados objetivos. Quando a coragem se torna um fim em si mesma, ou quando seus objetivos são condenáveis, ela se torna prejudicial e tão nociva quando a covardia.

A história da intelectualidade e, mais especificamente, dos cientistas (os agentes da esfera científica) não é uma história de coragem e sim de covardia. Um minoria corajosa convive com uma maioria covarde. Basta observar que existe tão pouca verdade na quase totalidade dos livros, artigos, teses, aulas, palestras, para ver que aqueles que poderiam usar a coragem para expressá-la preferem se acovardar diante das ideologias hegemônicas e correntes predominantes de opinião. Alguns são corajosos na vida privada e pequenos círculos (alguns especificamente no círculo interno), mas jamais publicam ou se manifestam publicamente de forma corajosa para o grande público.

Os intelectuais e cientistas covardes podem até ser hegemônicos e consagrados numa determinada época, mas no decorrer do processo histórico mais longo são esquecidos, da mesma forma como os filmes de besteirol norte-americanos.

A covardia, assim como a inveja, tem um efeito deletério na produção intelectual e na esfera científica. O medo da corrente predominante de opinião (na sociedade ou em setores da mesma, especialmente, nesse caso, nos meios intelectuais ou intelectualizados), a falta de coragem de desafiar as correntes hegemônicas, as concepções da moda, as “autoridades intelectuais” (tanto a daqueles atrelados ao grande capital comunicacional, os intelectuais venais, quanto aqueles que são hegemônicos na esfera científica), as regras do jogo da própria esfera científica, etc. forma intelectuais covardes[3]. Alguns destes, para disfarçar sua covardia crônica, oferece alguma demonstração de coragem ao contestar não os defensores da ordem e sim os críticos radicais da mesma, geralmente por razões mesquinhas, o que apenas deixa a mesquinhez do crítico mais explícita. Alguns buscam demonstrar sua “coragem” chutando “cachorro morto”, o que não deixa de ser cômico.

A história da esfera científica é marcada por um processo de reprodução da inverdade e isso é reforçado pelo fenômeno da covardia intelectual. E isso também ocorre, em graus variados, em outras esferas sociais. Contudo, quanto mais o capitalismo se desenvolve, mais aumenta o número de covardes e diminui o número de corajosos. Afinal, hoje em dia é difícil encontrar um Giordano Bruno, um Rembrandt, um Thomas Morus, um Karl Marx, um Sigmund Freud, exemplos do passado que raramente encontram similares no presente.

Isso é explicado, em grande parte, pelo desenvolvimento capitalista e pela intensificação do processo de competição, mercantilização e burocratização. Cada vez mais os intelectuais, como todos os indivíduos, estão submetidos ao dinheiro, amarrados em organizações burocráticas e constrangidos à competição social, bem como sob a força da hegemonia burguesa. O capitalismo contemporâneo, sob o regime de acumulação integral, aprofunda e intensifica isso e reforça a “política do descompromisso”, oriunda do paradigma subjetivista e expresso por ideologias como a pós-estruturalista. A formação social dos indivíduos no capitalismo contemporâneo aponta para a criação de seres humanos cada vez mais problemáticos, com uma grande parte justificando isso ao transformar o defeito em virtude.

Nesse contexto, a coragem se torna ainda mais urgente e necessária, pois a covardia de hoje pode gerar a catástrofe do amanhã. A boa coragem, nunca é demais recordar. Ou seja, a coragem que não está a serviço dos interesses pessoais imediatos (mesmo quando estes aparecem disfarçados de outra coisa) e da reprodução do capitalismo, pois são elementos complementares. O dito popular já indagava: “você é um homem ou um rato?”, mas hoje é preciso indagar de forma mais explícita nos meios intelectuais: “você é um intelectual corajoso ou um covarde?”.












[1] Uma análise geral pode ser vista em: VIANA, Nildo. As Esferas Sociais. A Constituição Capitalista da Divisão do Trabalho Intelectual. Rio de Janeiro: Rizoma, 2015.

[2] Assim, a coragem é necessária, mas é preciso entender que ela, em si, não é nada. Ela só tem sentido articulada com objetivos nobres e não objetivos pobres. Da mesma forma, cabe ao analista de determinada produção intelectual definir, na análise de tal produção em si, se as ideias são delírios intelectuais ou expressão da realidade, o que se consegue através da comparação entre as concepções e os fenômenos que elas buscam expressar e na fundamentação de cada concepção e sua articulação geral no conjunto de concepções que formam o pensamento do intelectual em questão.

[3] Claro que isso não quer dizer que se deva contestar apenas por contestar e sim quando há razões para isso ou então, ingenuamente, recusar certas coisas por que elas são hegemônicas, etc., sem o trabalho de reflexão crítica, fundamentação, pesquisa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário