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quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

O REFORMISMO UTÓPICO - UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE O AUTONOMISMO CONTEMPORÂNEO


O REFORMISMO UTÓPICO
UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE O AUTONOMISMO CONTEMPORÂNEO

Nildo Viana

O reformismo já tem uma longa história. Ele deu seus primeiros passos no século 19 e se transformou em ideologia oficial dos partidos social-democratas no século 20, ganhando uma versão mais extremista quando surge a ideologia bolchevista. Outras formas de reformismo existiram e continuam existindo. No capitalismo contemporâneo surgiu uma nova forma de reformismo, o utópico[1].

O reformismo utópico realiza uma síntese entre duas tendências opostas: o reformismo e o utopismo. O reformismo faz a apologia do movimento: “o movimento é tudo, o objetivo é nada” (Bernstein). O movimento revolucionário afirmou, em contraposição, o contrário: “o objetivo é tudo, o movimento é nada” (Rosa Luxemburgo). O reformismo é antiutopista. Kautsky, um ideólogo reformista pseudomarxista, queria separar o “Marx científico” do “Marx utópico”, ou seja, o teórico do capitalismo e o teórico do comunismo, querendo promover o esquecimento desse último.

O utopismo gera planos e projetos de uma nova sociedade, como Fourier e seus falanstérios, uma imagem grandiosa e generosa do futuro. Um dos principais problemas do utopismo é não considerar os meios ou tomá-los sob forma irrealista, motivo pelo qual foi criticado tanto por reformistas quanto por revolucionários.

Se o reformismo se caracteriza pelo abandono do objetivo final, pelo pragmatismo, o utopismo se caracteriza pelo abandono do movimento a favor do planejamento do futuro. Essa não é a única oposição entre reformismo e utopismo. A base social do reformismo são os partidos social-democratas, ou seja, a burocracia partidária, bem como a burocracia sindical, setores da intelectualidade, etc. A base social do utopismo é muito mais restrita: filantropos em geral, especialmente vindos da intelectualidade e juventude. O reformismo é inseparável do oportunismo, eleitoralismo, burocratismo. O utopismo é inseparável da literatura, da ficção, da filosofia.

Como, então, é possível unir reformismo e utopismo? Quem realiza essa proeza? O utopismo surge com o processo de consolidação do capitalismo e do proletariado, época de ouro do chamado “socialismo utópico”. O reformismo emergente, em seu período clássico, com a ascensão do movimento operário e formação dos partidos políticos que diziam representá-lo.

Isso explica a possibilidade de união entre as concepções reformistas e as utópicas. O utopismo quer a redenção do proletariado e o reformismo se justifica e legitima através do pragmatismo. O reformismo utópico une o desejo de redenção do proletariado com o pragmatismo e, simultaneamente, recusa o planejamento do futuro e a institucionalização[2].

O reformismo utópico, exoticamente, utiliza o pragmatismo como forma de colaborar com a redenção do proletariado. Desta forma, ao abandonar o projeto de uma nova sociedade mantém a ideia de redenção do proletariado e assim gera um novo tipo de reformismo.

E quem realiza essa proeza? Isso é obra daquela corrente que contemporaneamente vem sendo denominada “autonomismo”, bem como certas formas de anarquismo[3]. O pragmatismo aparece sob a forma de praticismo, ativismo, tarefismo e ao lado da apologia da prática, como se ela, em si (tal como participar de uma manifestação), fosse “revolucionária”. A ideia de redenção do proletariado aparece através de uma interpretação semirreligiosa de Marx ou de certos trechos deste autor, tal como a referência à “missão do proletariado”, ou então de autores reducionistas ou imanentistas, como João Bernardo, John Holoway e outros semelhantes.

Assim, a redenção do proletariado ocorre através da ação dessa classe e por isso basta unicamente apoiá-la e reproduzi-la, gerando o oposto do vanguardismo: o reboquismo. Essa concepção mística do proletariado, que abandona a categoria de totalidade e luta de classes (reduzida apenas à luta operária, como se não houvesse adversários do outro lado) gera a substituição do proletariado real pelo proletariado ideal. O reformismo utópico, como seu reboquismo, anda lado a lado com os progressistas (social-democratas e semelhantes), com a diferença existente no fato de que não almeja vitória eleitoral ou conquista do poder estatal e sim uma distante e vaga “redenção do proletariado”.

O autonomismo contemporâneo abandonou a revolução e a constituição da nova sociedade como objetivo concreto e os remeteu para as calendas gregas. O autonomismo italiano saiu do leninismo, mas não se tornou antileninista[4]. Assim, Mário Tronti, Raniero Panzieri, Toni Negri, entre outros, abandonaram o bolchevismo, mas não abandonaram o projeto revolucionário. Essa foi, simultaneamente, sua vantagem e desvantagem. A vantagem foi o não abandono do projeto revolucionário e a desvantagem foi permanecer ainda muito preso ao bolchevismo. E foi isso, ao lado de outras determinações, que impediu o autonomismo italiano de resgatar Marx, embora tivesse essa pretensão, e o marxismo autêntico (expresso no “comunismo de conselhos”).

O autonomismo contemporâneo é uma reprodução inferior e caricatural do italiano, no qual se acrescenta um antibolchevismo frágil (que se confunde, em certos casos, com recusa da organização e da importância da luta cultural) e uma influencia das ideologias hegemônicas na contemporaneidade.

Desta forma, o autonomismo contemporâneo é mais um obstáculo a ser superado pelo proletariado. Não se trata de superações dos indivíduos e sim das ideias autonomistas. Por mais que recusem a força das ideias, os autonomistas contemporâneos são guiados por elas. O autonomismo contemporâneo não tem o grau e profundidade da reflexão do autonomismo dos anos 1960 e 1970, nem tem a base real do mesmo (ascensão das lutas operárias na Itália e outros lugares). Isso explica, parcialmente, sua ideia de impotência e seu reboquismo. Da mesma forma, reproduz os equívocos do autonomismo antigo e acrescenta novos equívocos, oriundos de ideologias contemporâneas e de resquícios do autonomismo antigo deformado. Toni Negri, por exemplo, após o seu período autonomista, acabou caindo na guerrilha urbana – tal como outros na Itália e Alemanha após a derrota do movimento operário e estudantil nesses países – e retornou com um pós-estruturalismo eclético, unindo suas concepções com as de Foucault e outros ideólogos, gerando teses problemáticas como a do “trabalho imaterial”, “multidão”, etc. João Bernardo, por sua vez, no bojo da Revolução Portuguesa produziu sua obra mais interessante, Para Uma Teoria do Modo de Produção Comunista, mas acabou se perdendo em uma suposta crítica a Marx (cheia de equívocos e partindo de uma concepção metodológica burguesa, o estruturalismo) e não conseguiu romper com o estruturalismo, o que foi expresso de forma mais evidente em sua obra A Dialética da Prática e da Ideologia, na qual afirma que a ideologia (leia-se “ideias”, “formas de consciência”) e o indivíduo não são nada, em frontal oposição ao marxismo.

Esses dois casos[5] apenas confirmam aquilo que Korsch, em Marxismo e Filosofia, já havia apresentado: o movimento operário em ascensão gera um aumento de quantidade e qualidade na produção intelectual ligada ao proletariado (ele focaliza apenas o marxismo autêntico) e recua junto com o recuo desse movimento. No entanto, ao contrário do que ocorreu no início do século 20, na Alemanha e outros países, e a obra de Korsch é ela mesma um exemplo disso, não houve tentativas de revoluções proletárias na Europa dos anos 1960 (no caso francês, isso quase ocorreu) e por isso a produção intelectual de diversos setores não chegaram a possuir um caráter revolucionário, ficando a reboque do proletariado, tanto no plano das ideias quanto das suas teses sobre sua relação com tal classe. Assim, o autonomismo é uma expressão cultural contraditória e que, nas suas melhores manifestações, não ultrapassa o nível das lutas autônomas[6]. O autonomismo contemporâneo regride e essa regressão intelectual e prática é expressa em sua recusa do projeto revolucionário e reboquismo.

A superação ideal do autonomismo contemporâneo já foi efetivada. A sua superação real ainda está por ocorrer e isso acontecerá quando a crítica teórica se generalizar e se tornar força material. Nesse momento, os indivíduos e forças autonomistas serão substituídos/transformados por/em indivíduos e forças revolucionárias.





[1] Uma outra forma contemporânea (e empobrecida) é o microrreformismo, uma aliança da social-democracia com o neoliberalismo.
[2] A experiência histórica da social-democracia e do bolchevismo trouxe a sua recusa, que gerou, entre outras coisas, o reformismo utópico.
[3] O autonomismo, assim como o anarquismo, consegue ser bastante atrativo para setores da juventude, pois ao mesmo tempo em que permite uma certa rebeldia, também permite o descompromisso, elementos característicos da juventude, que possui uma certa autonomia relativa convivendo com a rebeldia (VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios Sobre a Condição Juvenil. Rio de Janeiro: Giostri, 2015). Além disso, alguns grupos autonomistas permitem o desenvolvimento de uma sociabilidade festiva e uma certa comunhão na sua ação política, dando um caráter autossuficiente para o ativismo. Como disse um palestrante certa vez num “encontro de grupos autônomos”, a luta é como a poesia, um fim em si mesmo, tal como é a poesia para um poeta, que após terminar uma, inicia outra e não se pergunta sobre sua finalidade ou objetivo..
[4] Seria necessária uma análise crítica de conjunto do autonomismo, incluindo os franceses (grupo Socialismo ou Barbárie), os norte-americanos (Tendência Johnson-Forester) e os portugueses (Jornal O Combate), pois possuem muitas semelhanças, bem como diferenças, e seria necessário entendê-las para se ter uma percepção mais ampla do seu significado. Na própria Itália, o autonomismo (também conhecido como “obreirismo”) não era homogêneo e teve processos de mudanças durante o decorrer da década de 1960 até 1970. Grupos como Potere Operaio, Lotta Continua, entre outros, tinham distintas concepções sobre diversas questões.O projeto revolucionário defendido discursivamente não encontrava materialização em uma estratégia revolucionária e nem colocava a necessidade de um impulso revolucionário no interior do proletariado. No entanto, fora do autonomismo italiano, essa questão é mais complexa.
[5] Tais casos não são isolados, basta ver o retorno ao Partido Comunista Italiano de diversos autonomistas (inclusive Mario Tronti) depois do recuo do movimento operário italiano, bem como o aventureirismo dos grupos de guerrilhas urbanas (Brigadas Vermelhas, na Itália; Baader Meinhof, na Alemanha).
[6] Sobre isso, leia-se o texto de Karl Jensen, A Luta Operária e os Limites do Autonomismo: http://marxismoautogestionario.blogspot.com.br/2015/07/a-luta-operaria-e-os-limites-do.html  

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