O
REFORMISMO UTÓPICO
UMA BREVE REFLEXÃO SOBRE O AUTONOMISMO CONTEMPORÂNEO
Nildo Viana
O reformismo já tem uma longa história. Ele deu seus
primeiros passos no século 19 e se transformou em ideologia oficial dos
partidos social-democratas no século 20, ganhando uma versão mais extremista quando
surge a ideologia bolchevista. Outras formas de reformismo existiram e
continuam existindo. No capitalismo contemporâneo surgiu uma nova forma de
reformismo, o utópico[1].
O reformismo utópico realiza uma síntese entre duas
tendências opostas: o reformismo e o utopismo. O reformismo faz a apologia do
movimento: “o movimento é tudo, o objetivo é nada” (Bernstein). O movimento
revolucionário afirmou, em contraposição, o contrário: “o objetivo é tudo, o
movimento é nada” (Rosa Luxemburgo). O reformismo é antiutopista. Kautsky, um
ideólogo reformista pseudomarxista, queria separar o “Marx científico” do “Marx
utópico”, ou seja, o teórico do capitalismo e o teórico do comunismo, querendo
promover o esquecimento desse último.
O utopismo gera planos e projetos de uma nova sociedade,
como Fourier e seus falanstérios, uma imagem grandiosa e generosa do futuro. Um
dos principais problemas do utopismo é não considerar os meios ou tomá-los sob
forma irrealista, motivo pelo qual foi criticado tanto por reformistas quanto
por revolucionários.
Se o reformismo se caracteriza pelo abandono do objetivo
final, pelo pragmatismo, o utopismo se caracteriza pelo abandono do movimento a
favor do planejamento do futuro. Essa não é a única oposição entre reformismo e
utopismo. A base social do reformismo são os partidos social-democratas, ou
seja, a burocracia partidária, bem como a burocracia sindical, setores da
intelectualidade, etc. A base social do utopismo é muito mais restrita:
filantropos em geral, especialmente vindos da intelectualidade e juventude. O
reformismo é inseparável do oportunismo, eleitoralismo, burocratismo. O
utopismo é inseparável da literatura, da ficção, da filosofia.
Como, então, é possível unir reformismo e utopismo? Quem
realiza essa proeza? O utopismo surge com o processo de consolidação do
capitalismo e do proletariado, época de ouro do chamado “socialismo utópico”. O
reformismo emergente, em seu período clássico, com a ascensão do movimento
operário e formação dos partidos políticos que diziam representá-lo.
Isso explica a possibilidade de união entre as concepções reformistas
e as utópicas. O utopismo quer a redenção do proletariado e o reformismo se
justifica e legitima através do pragmatismo. O reformismo utópico une o desejo
de redenção do proletariado com o pragmatismo e, simultaneamente, recusa o
planejamento do futuro e a institucionalização[2].
O reformismo utópico, exoticamente, utiliza o pragmatismo
como forma de colaborar com a redenção do proletariado. Desta forma, ao
abandonar o projeto de uma nova sociedade mantém a ideia de redenção do proletariado
e assim gera um novo tipo de reformismo.
E quem realiza essa proeza? Isso é obra daquela corrente que
contemporaneamente vem sendo denominada “autonomismo”, bem como certas formas
de anarquismo[3].
O pragmatismo aparece sob a forma de praticismo, ativismo, tarefismo e ao lado
da apologia da prática, como se ela, em si (tal como participar de uma manifestação),
fosse “revolucionária”. A ideia de redenção do proletariado aparece através de
uma interpretação semirreligiosa de Marx ou de certos trechos deste autor, tal
como a referência à “missão do proletariado”, ou então de autores reducionistas
ou imanentistas, como João Bernardo, John Holoway e outros semelhantes.
Assim, a redenção do proletariado ocorre através da ação dessa
classe e por isso basta unicamente apoiá-la e reproduzi-la, gerando o oposto do
vanguardismo: o reboquismo. Essa concepção mística do proletariado, que
abandona a categoria de totalidade e luta de classes (reduzida apenas à luta
operária, como se não houvesse adversários do outro lado) gera a substituição do
proletariado real pelo proletariado ideal. O reformismo utópico, como seu reboquismo,
anda lado a lado com os progressistas (social-democratas e semelhantes), com a diferença
existente no fato de que não almeja vitória eleitoral ou conquista do poder
estatal e sim uma distante e vaga “redenção do proletariado”.
O autonomismo contemporâneo abandonou a revolução e a constituição da nova
sociedade como objetivo concreto e os remeteu para as calendas gregas. O autonomismo
italiano saiu do leninismo, mas não se tornou antileninista[4].
Assim, Mário Tronti, Raniero Panzieri, Toni Negri, entre outros, abandonaram o
bolchevismo, mas não abandonaram o projeto revolucionário. Essa foi,
simultaneamente, sua vantagem e desvantagem. A vantagem foi o não abandono do
projeto revolucionário e a desvantagem foi permanecer ainda muito preso ao
bolchevismo. E foi isso, ao lado de outras determinações, que impediu o
autonomismo italiano de resgatar Marx, embora tivesse essa pretensão, e o
marxismo autêntico (expresso no “comunismo de conselhos”).
O autonomismo contemporâneo é uma reprodução inferior e
caricatural do italiano, no qual se acrescenta um antibolchevismo frágil (que
se confunde, em certos casos, com recusa da organização e da importância da
luta cultural) e uma influencia das ideologias hegemônicas na
contemporaneidade.
Desta forma, o autonomismo contemporâneo é mais um obstáculo
a ser superado pelo proletariado. Não se trata de superações dos indivíduos e
sim das ideias autonomistas. Por mais que recusem a força das ideias, os
autonomistas contemporâneos são guiados por elas. O autonomismo contemporâneo não
tem o grau e profundidade da reflexão do autonomismo dos anos 1960 e 1970, nem
tem a base real do mesmo (ascensão das lutas operárias na Itália e outros
lugares). Isso explica, parcialmente, sua ideia de impotência e seu reboquismo.
Da mesma forma, reproduz os equívocos do autonomismo antigo e acrescenta novos
equívocos, oriundos de ideologias contemporâneas e de resquícios do autonomismo
antigo deformado. Toni Negri, por exemplo, após o seu período autonomista,
acabou caindo na guerrilha urbana – tal como outros na Itália e Alemanha após a
derrota do movimento operário e estudantil nesses países – e retornou com um
pós-estruturalismo eclético, unindo suas concepções com as de Foucault e outros
ideólogos, gerando teses problemáticas como a do “trabalho imaterial”,
“multidão”, etc. João Bernardo, por sua vez, no bojo da Revolução Portuguesa
produziu sua obra mais interessante, Para
Uma Teoria do Modo de Produção Comunista, mas acabou se perdendo em uma
suposta crítica a Marx (cheia de equívocos e partindo de uma concepção
metodológica burguesa, o estruturalismo) e não conseguiu romper com o
estruturalismo, o que foi expresso de forma mais evidente em sua obra A Dialética da Prática e da Ideologia,
na qual afirma que a ideologia (leia-se “ideias”, “formas de consciência”) e o
indivíduo não são nada, em frontal oposição ao marxismo.
Esses dois casos[5] apenas
confirmam aquilo que Korsch, em Marxismo
e Filosofia, já havia apresentado: o movimento operário em ascensão gera um
aumento de quantidade e qualidade na produção intelectual ligada ao
proletariado (ele focaliza apenas o marxismo autêntico) e recua junto com o
recuo desse movimento. No entanto, ao contrário do que ocorreu no início do
século 20, na Alemanha e outros países, e a obra de Korsch é ela mesma um
exemplo disso, não houve tentativas de revoluções proletárias na Europa dos
anos 1960 (no caso francês, isso quase ocorreu) e por isso a produção
intelectual de diversos setores não chegaram a possuir um caráter
revolucionário, ficando a reboque do proletariado, tanto no plano das ideias
quanto das suas teses sobre sua relação com tal classe. Assim, o autonomismo é
uma expressão cultural contraditória e que, nas suas melhores manifestações, não
ultrapassa o nível das lutas autônomas[6]. O
autonomismo contemporâneo regride e essa regressão intelectual e prática é
expressa em sua recusa do projeto revolucionário e reboquismo.
A superação ideal do autonomismo contemporâneo já foi
efetivada. A sua superação real ainda está por ocorrer e isso acontecerá quando
a crítica teórica se generalizar e se tornar força material. Nesse momento, os indivíduos
e forças autonomistas serão substituídos/transformados por/em indivíduos e
forças revolucionárias.
[1]
Uma outra forma contemporânea (e empobrecida) é o microrreformismo, uma aliança
da social-democracia com o neoliberalismo.
[2] A experiência
histórica da social-democracia e do bolchevismo trouxe a sua recusa, que gerou,
entre outras coisas, o reformismo utópico.
[3] O autonomismo,
assim como o anarquismo, consegue ser bastante atrativo para setores da
juventude, pois ao mesmo tempo em que permite uma certa rebeldia, também
permite o descompromisso, elementos característicos da juventude, que possui
uma certa autonomia relativa convivendo com a rebeldia (VIANA, Nildo. Juventude e Sociedade. Ensaios Sobre a Condição
Juvenil. Rio de Janeiro: Giostri, 2015). Além disso, alguns grupos autonomistas
permitem o desenvolvimento de uma sociabilidade festiva e uma certa comunhão na
sua ação política, dando um caráter autossuficiente para o ativismo. Como disse
um palestrante certa vez num “encontro de grupos autônomos”, a luta é como a
poesia, um fim em si mesmo, tal como é a poesia para um poeta, que após
terminar uma, inicia outra e não se pergunta sobre sua finalidade ou objetivo..
[4]
Seria necessária uma análise crítica de conjunto do autonomismo, incluindo os
franceses (grupo Socialismo ou Barbárie),
os norte-americanos (Tendência
Johnson-Forester) e os portugueses (Jornal O Combate), pois possuem muitas semelhanças, bem como diferenças, e
seria necessário entendê-las para se ter uma percepção mais ampla do seu significado.
Na própria Itália, o autonomismo (também conhecido como “obreirismo”) não era homogêneo
e teve processos de mudanças durante o decorrer da década de 1960 até 1970.
Grupos como Potere Operaio, Lotta
Continua, entre outros, tinham distintas concepções sobre diversas questões. O
projeto revolucionário defendido discursivamente não encontrava materialização
em uma estratégia revolucionária e nem colocava a necessidade de um impulso
revolucionário no interior do proletariado. No entanto, fora do autonomismo
italiano, essa questão é mais complexa.
[5] Tais
casos não são isolados, basta ver o retorno ao Partido Comunista Italiano de
diversos autonomistas (inclusive Mario Tronti) depois do recuo do movimento
operário italiano, bem como o aventureirismo dos grupos de guerrilhas urbanas (Brigadas Vermelhas, na Itália; Baader Meinhof, na Alemanha).
[6]
Sobre isso, leia-se o texto de Karl Jensen, A
Luta Operária e os Limites do Autonomismo: http://marxismoautogestionario.blogspot.com.br/2015/07/a-luta-operaria-e-os-limites-do.html
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