Nildo Viana
O Governo Temer tomou posse há alguns meses e não conseguiu
resolver o problema das dificuldades do processo de acumulação de capital.
Essas dificuldades se esboçaram a partir de 2012 e se intensificaram nos anos
seguintes, sendo que se aprofundaram nos anos seguintes. O seu agravamento se
iniciou em 2014 e foi reforçado com a inoperância, incompetência e neopopulismo
do Governo Dilma. Havia uma expectativa, por certos setores da sociedade, que
estes problemas, oriundos da burocracia governamental, seriam removidos e uma
nova equipe e política estatal promoveria o chamado retorno do “crescimento
econômico”. No entanto, não foi isso que ocorreu efetivamente.
A desestabilização do regime de acumulação integral no
Brasil, durante o governo Dilma, se prolonga até hoje. Alguns denominam essa
situação como “crise”, mas é apenas uma desestabilização. Um regime de
acumulação somente entra em crise quando isso ocorre em escala mundial. Os
regimes de acumulação são adotados mundialmente, mesmo tendo um centro
irradiador para o resto do mundo. Nos casos nacionais, o que pode ocorrer é uma
crise no regime de acumulação, o que pode provocar, em âmbito nacional, sua
reconfiguração parcial. Sem dúvida, a desestabilização pode ocorrer em escala
mundial, mas, nesse caso, é um prenúncio da crise do regime de acumulação. A
desestabilização do regime de acumulação integral, no caso brasileiro,
acompanha um ciclo que pode desembocar numa crise e esta é a tendência mais
forte no momento. A crise nacional, por sua vez, reforça a desestabilização
mundial e, dependendo da importância do país derivada de sua posição na divisão
internacional do trabalho e da situação de outros países, pode provocar uma
crise no regime de acumulação integral. O caso de Portugal, Espanha e Grécia,
por exemplo, não foi suficiente para desencadear tal crise.
A desestabilização, por sua vez, pode ser revertida, ou,
mais exatamente, minimizada. A desestabilização pode constituir altos e baixos,
subciclos que se sucedem, até ser superada, o que em certas situações é algo
raro, ou aprofundada até gerar uma crise. Assim, tanto os otimistas, que são aqueles
que pensam que a desestabilização caminha inelutavelmente para a crise, quanto os
pessimistas, que são aqueles que pensam que um certo momento de ampliação da
acumulação significa sua superação, se enganam. O equívoco dos pessimistas se
revela na ideia de que a estabilização não pode ser superada, sendo que, apesar
de ser difícil, isso pode ocorrer (é mais difícil no caso de crise e quase
impossível no caso de crise mundial) e não perceber que ela tem altos e baixos.
O equívoco dos otimistas está em tomar um subciclo ascensional e temporário
como se fosse a superação da desestabilização. Enquanto que no caso dos regimes
de acumulação a tendência geral é de ascensão e queda, embora a duração desse
processo seja de difícil previsão e depende de diversas determinações que podem
complexificar a situação (sem falar das peculiaridades nacionais), o processo
de desestabilização e crise é mais complexo e em curto prazo, bem como um
conjunto de determinações pode promover mudanças que, sendo menos impactantes,
atuam mais sobre sua dinâmica.
A desestabilização pode conter vários subciclos e estes
podem ser de desaceleração e aceleração de acumulação de capital. Essa é, inclusive,
uma tendência, pois toda desaceleração cria alguns elementos que possibilitam
uma aceleração posterior, obviamente que não no mesmo grau que num momento de
ascensão e consolidação de um regime de acumulação. O que ocorre, no entanto, é
que estes subciclos são passageiros e dentro de uma dinâmica geral de
desestabilização. Os dois gráficos abaixo apontam para a compreensão desse
fenômeno, um apontando apenas a tendência geral de um regime de acumulação e
outro apontando uma das tendências dos subciclos da desestabilização (sendo que
este último ocorre de forma imperceptível observando apenas o primeiro):
O quadro mostra a dinâmica geral de um regime de acumulação
e o caso específico do processo de desestabilização enquanto parte do ciclo de
dissolução de um regime de acumulação e sua dinâmica temporal e tendencial, que
é a de subciclos (que podem ser vários e com duração maior ou menor). Assim, ao
olhar para a história de um regime de acumulação em âmbito mundial, veremos a
dinâmica acima, mas se olharmos apenas o seu ciclo de dissolução, poderemos ver
a dinâmica mais específica da desestabilização, com altos e baixos, o que
permite o surgimento de uma corrente de opinião otimista. Uns observam apenas a
tendência geral e caem no pessimismo, outros, ansiosos pela superação da
situação, tendem ao otimismo ao enxergar qualquer breve recuperação. No plano
da análise política e conjuntural, ambas são problemáticas e dificultam a
compreensão e ação diante dessa situação.
Obviamente, aqueles que apostaram no governo Temer como
solução para a desestabilização não analisam a situação nestes termos e por
isso esperavam uma rápida e eficaz solução com a mera troca de governo. Isso é
ilusório. No entanto, um governo competente e corajoso poderia ter avançado
mais, não no sentido de retomar a situação de estabilidade, mas no sentido de
enfraquecer e interromper o processo de desestabilização. O governo Temer, até
agora, se mostrou frágil, tanto por sua incompetência e inoperância (em parte
por se manter preso ao neoliberalismo, que limita a criatividade e a adoção de
certas políticas que seriam eficazes nesse contexto), quanto pela situação
política (lava-jato, impeachment
incompleto, interesses político-partidários e eleitorais, etc.).
O problema foi se agravando e após a concretização do impeachment, o governo Temer, reforçado
pelos resultados eleitorais de 2016, resolveu tomar as medidas necessárias de
acordo com a continuidade das políticas neoliberais. Assim, várias reformas inflexíveis
típicas do neoliberalismo discricionário foram arquitetadas e enviadas para o
congresso nacional. A PEC 241/55 foi parte do primeiro ato da peça chamada
neoliberalismo discricionário[1].
O neoliberalismo discricionário conseguirá reverter o
processo de desestabilização? Se ele for adotado em conjunto e ao lado de uma
política pecuniária (financeira, industrial, etc.) tem condições de criar um
subciclo de aceleração da acumulação de capital. Isso não significa um retorno
ao período de ascensão da acumulação de capital e sim uma situação melhor do
que a que existe atualmente, ou seja, um subciclo ascensional.
Durante o governo Dilma, o que existia era, principalmente,
uma crise financeira, concomitantemente com o início da desaceleração da
acumulação de capital. Se a primeira tivesse sido combatida e revertida, a
segunda teria sido adiada por um certo tempo. A crise financeira, no entanto,
acabou agilizando e intensificando a crise pecuniária (“econômica” ou “de
acumulação”). O mundo das finanças atinge o mundo da produção. A categoria da
totalidade ou a compreensão da dinâmica da sociedade (e acumulação) capitalista
são fundamentais para entender que tudo está relacionado e que cada elemento do
todo age sobre os outros. Isso seria suficiente para entender que o mundo das
finanças e o mundo da produção não são “mundos separados”. A crise financeira
atinge o processo de produção por diminuir a capacidade de investimentos,
realocação de recursos, o poder aquisitivo da população e por gerar, em certos
setores da sociedade, desemprego, o que, por sua vez, diminui ainda mais o
mercado consumidor. Assim, a diminuição, mesmo que relativa, do consumo,
investimento, etc., atinge o capital produtivo e o próprio aparato estatal, que,
por sua vez, diminui sua capacidade de intervenção e/ou aumenta a dívida
pública.
Porém, a acumulação de capital é caracterizada por ciclos e
subciclos. O processo acima descrito, quando gera uma crise pecuniária, promove
o aumento do desemprego, redução do mercado consumidor, etc. Esse processo após
algum tempo, permite aumentar a taxa de exploração (o desemprego predispõe os
trabalhadores a venderem sua força de trabalho por um preço mais baixo,
aumentando a taxa de mais-valor, o que pode ser visto na história do
capitalismo no caso de empresas em que ocorreram acordos coletivos para redução
salarial para não perder o vínculo empregatício), realocação do consumo para o
setor produtivo e mais ainda para certos setores deste (na época das vacas
magras, o consumo de bens necessários e materiais cresce proporcionalmente em
relação aos bens supérfluos e bens culturais e coletivos). Assim, a
desestabilização passa por altos e baixos, subciclos de desaceleração e aceleração
da acumulação de capital.
Esse desenvolvimento cíclico da acumulação de capital possui
múltiplas determinações e o tempo de
duração de cada subciclo também. Uma das determinações desse processo é o
aparato estatal, que é o regularizador do processo de reprodução do capitalismo
e que atua sobre diversos aspectos que atingem diretamente o regime de
acumulação. Assim, o governo pode contribuir com a permanência ou superação de
um subciclo (de forma mais decisiva do que no caso de um ciclo), o seu tempo de
duração, etc.
É nesse contexto que o governo Temer se encontra. A
expectativa de que ele resolvesse imediatamente o problema da desestabilização
era ilusória. No entanto, ele, sem dúvida, poderia ter contribuído com o
processo de passagem de um subciclo de desaceleração para um de aceleração (relativa).
Isso não ocorreu, pelo menos de forma mais ágil e eficaz. A iniciativa em torno
do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) foi a única mais eficaz em
curto prazo. As políticas de austeridade, como a PEC 241/55, são limitadas e
longas (visando o longo prazo), bem como tem efeitos indesejáveis. Em longo
prazo elas tendem a surtir o efeito de acelerar a acumulação de capital, mas
também tende a aumentar os conflitos sociais e reemergência de lutas operárias
radicalizadas. Se elas conseguiram uma nova estabilização relativa, a tendência
é que o fim desta seja muito mais brutal (e num contexto muito pior para a
maioria da população e acompanhada com um processo tendencial de
desestabilização mundial). Logo, “se correr o bicho pega, se ficar o bicho
come”, como diz o ditado popular e que revela o dilema do capitalismo
brasileiro contemporâneo.
O governo Temer tende a se encerrar com um fracasso em curto
prazo e talvez com um relativo “sucesso” a médio e longo prazo e, nesse caso,
se houver frutos para se colher, a coleta será feita por outro governo (tal
como o governo Lula foi beneficiado pelos governos anteriores, apesar de que os
frutos do futuro sejam escassos). Evidentemente, qualquer previsão do futuro é
mera hipótese que, numa análise dialética, é fundada em tendências mais gerais,
que podem ser contrariadas por acontecimentos destoantes da tendência geral.
Por exemplo, se nas eleições presidenciais de 2018 for eleito um governo
demasiado incompetente e/ou irresponsável, as políticas de austeridade do
governo Temer podem ter seus resultados desmanchados como castelos de areia
atingidos por um redemoinho. A crise pode substituir a desestabilização e assim
se constituir uma situação revolucionária.
Os progressistas, com seu habitual otimismo (com ações
governistas) e incompreensão da dinâmica capitalista, podem dizer que isto é
“determinismo” e que um bom governo (o deles) pode trazer de volta a “bonança”
(que nunca foi para o conjunto da população). Se isso fosse verdade, o governo
Dilma e inúmeros outros governos em diversos países (de partidos denominados
“trabalhistas”, “social-democratas” ou “socialistas”) teriam evitado crises,
desestabilização, etc., e nunca o fizeram. Teriam também ganhado eleições após
eleições, o que nunca ocorreu. Eles sempre abrem as portas para os
conservadores após decepcionarem a população.
Outros poderão colocar a necessidade dos trabalhadores se
organizarem para defender os seus direitos, etc. Assim, segundo estes, os
trabalhadores não sofrerão as consequências da desaceleração da acumulação de
capital (o que eles chamam de “crise”). Essa é uma posição tragicômica. É
trágica pelo simples motivo de que a resistência dos trabalhadores contribui
com a desaceleração da acumulação de capital, ou seja, desestabilização e crise,
que vai atingir, posteriormente e com mais força, os próprios trabalhadores.
Por isso, além de trágica, essa solução é cômica, pois não soluciona nada.
Isso significa não entender que os interesses fundamentais
da burguesia, bem como das classes privilegiadas em geral, e os interesses
imediatos do proletariado, e das classes desprivilegiadas em geral, no que se
refere à acumulação de capital, são os mesmos. O antagonismo reside nos
interesses fundamentais das duas classes fundamentais, pois no plano dos
interesses imediatos, eles coincidem. A desaceleração da acumulação de capital
prejudica a todos, tanto a classe capitalista quanto as classes trabalhadoras, incluindo
a classe proletária. Ela gera desemprego, inflação, redução dos recursos
estatais, etc. Logo, se o pensamento se move dentro da dinâmica da acumulação
capitalista (não busca a superação do capitalismo), não há saída para os
trabalhadores. Nesse caso, eles devem pagar a conta, se submetendo aos ditames
do capital e aceitar a alienação, o empobrecimento relativo, o desemprego, o
aumento da exploração, etc. Se o proletariado fica ao nível dos seus interesses
imediatos, deve apoiar a classe capitalista e o aumento de sua própria exploração.
Nesse contexto, pode no máximo pressionar o governo para o impacto ser menor, o
que seria possível com um subciclo ascensional, que, por sua vez, tende a ter
curta duração.
Portanto, é necessário que as classes trabalhadoras em geral
e o principalmente o proletariado, em particular, compreendam que, no
capitalismo, sempre perderão e jamais ganharão e que uma real solução está
muito além de governos e reformas, está além o capitalismo. A libertação dos
trabalhadores só é possível com a abolição do capitalismo.
[1]
O neoliberalismo discricionário é aquele que surge no momento de desestabilização
do regime de acumulação integral, tentando manter o mesmo através de mais
políticas neoliberais, agora de caráter ainda mais inflexível (políticas de
austeridade, autocracia governamental, etc.) e que pode, dependendo do contexto,
buscar uma reconfiguração parcial do regime de acumulação integral.
Muito bom o texto. Porém, ele nos chama a atenção para algo dramático, o fato de que as lutas sociais só valem à pena do ponto de vista do trabalhador, se o horizonte destas lutas não se limitar aos ganhos salariais, por isso, devem incluir o fim do capitalismo? Certo. Mas, a questão é o que podemos fazer?
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