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quarta-feira, 26 de agosto de 2015

A CRÍTICA DO CAPITALISMO E DA BUROCRACIA EM DILBERT

A CRÍTICA DO CAPITALISMO E DA BUROCRACIA EM DILBERT

Nildo Viana*

O personagem de Scott Adams, Dilbert, satiriza o mundo das empresas capitalistas e burocráticas. Um mundo caracterizado por reuniões inúteis, incompetência generalizada, competição desenfreada, exploração, estratégia de reprodução do poder, corrupção, entre outros aspectos manifestam as relações sociais numa empresa que pode ser considerado, simultaneamente, um microcosmo e uma metáfora da sociedade capitalista. As histórias do personagem são curtas, já que são tiras diárias. Contudo, constitui um universo ficcional cuja gênese é social. Adams teve como fonte inspiradora as suas relações de trabalho em grandes empresas pelas quais passou e as reproduz em seu universo ficcional. O nosso objetivo é analisar este universo ficcional buscando explicitar o tipo de crítica realizada e sua relação com os processos sociais que o engendra.

Os quadrinhos de Dilbert mostram a realidade cotidiana nas empresas capitalistas. Diversas relações sociais são apresentadas nesse processo, especialmente o trabalho. Trata-se das relações de trabalho da atual fase do capitalismo contemporâneo, marcado pela emergência do regime de acumulação integral (Viana, 2009). Assim, este universo ficcional mostra relações sociais da sociedade contemporânea e outras que são permanentes na sociedade moderna, ou seja, as relações de trabalho em sua configuração atual e em aspectos que são permanentes no capitalismo. Esses aspectos atuais tornam este universo ficcional impossível em épocas anteriores. Contudo, isso não é privilégio seu, pois é o caso de milhares de outros universos ficcionais produzidos contemporaneamente. O que diferencia esse universo ficcional dos demais é não só o foco em determinadas relações sociais, mas a perspectiva que ele manifesta. Assim, é uma expressão figurativa dessa realidade social sob determinada perspectiva. A sátira busca realizar a crítica da sociedade ou de aspectos dela e por isso há uma intencionalidade nos quadrinhos de Dilbert que mostram, a princípio, uma determinada perspectiva. A grande questão é descobrir qual é essa perspectiva. Sendo assim, faremos breves considerações sobre a sociedade contemporânea e sobre as perspectivas de classe que emergem no seu interior, para, posteriormente, discutir a análise dos quadrinhos como fenômenos sociais e manifestação do social, para, por fim, analisar as histórias em quadrinhos de Dilbert.

Sociedade Contemporânea: O real, o ilusório e o teórico

A sociedade contemporânea é analisada (pela teoria ou ideologia) ou percebida (pelas representações cotidianas verdadeiras ou ilusórias). Sob o prisma das representações cotidianas, ela pode parecer como algo caótico, imprevisível ou então como algo fixo e imutável. Contudo, as representações cotidianas sobre a sociedade contemporânea são, muitas vezes, influenciadas pelas ideologias vigentes e por outras manifestações da cultura vigente, que não estão tão separadas, como é o caso da religião[1]. O nosso objetivo é discutir, brevemente, esse processo de interpretação do real e de posição tomada diante dele. Mas para isso precisamos, anteriormente, discutir o que é este real, quais são suas características, para depois explicar suas manifestações culturais e ideológicas.

A sociedade contemporânea parecer ser uma coisa, mas é outra. Entre o ser e o parecer há uma diferença bem grande. Essa diferença pode ser vista através do exemplo da ilusão de ótica. Vejamos a abaixo a imagem:



Essa imagem mostra diversas coisas, mas a interpretação dela é predominantemente a primeira que se forma na mente humana. Certa vez essa imagem foi postada no Facebook e uma pessoa deixou o seguinte comentário: “esse é um tipo de família que já foi superado”. Sem dúvida, as concepções e valores de quem fez o comentário ficam manifestos, bem como subentendido o que ele quis dizer e sua interpretação da imagem. O que ele viu – e é o que a maioria vê num primeiro momento, pois é a imagem maior e, portanto mais visível – é um casal de idosos, uma mulher idosa e um homem idoso. Logo, remete à família, para o comentarista e ele, certamente, por suas posições diante da sexualidade e da família, pensou que a postagem apontava para uma defesa da família e assim quis contestar. Isso é a aparência do quadro e não sua essência. Uma outra possibilidade de ver a imagem é observar não o quadro de forma mais geral e sim observando seus detalhes e assim se pode ver que os olhos da idosa e da idosa são, no fundo, sobreiros e assim é possível identificar dois mexicanos. Se o foco da pessoa é imediatamente este, ela julgará que se trata de um quadro no qual dois mexicanos cantam e bebem (há uma garrafa do lado do primeiro mexicano, que, na primeira imagem, é o brinco da mulher idosa) e uma moça saindo por uma porta (que é a orelha do homem idoso). Contudo, se a pessoa focalizar no espaço entre os dois idosos, verá uma espécie de jarra. Assim, dependendo do foco visual, uma interpretação será oferecida pela mente (e esse foco e essa interpretação não são gratuitos, tem a ver com a imagem em si – o que ela torna mais disponível – e com quem olha e como olha, bem como com seus valores, concepções, etc.). O quadro, no entanto, não mostra apenas um casal de idosos, nem mexicanos cantando, nem jarra, mas tudo isto junto.

Para entender o quadro, ou seja, superar a ilusão, é necessário entender o todo e as partes. É este o procedimento do método dialético (Marx, 1983; Viana, 2007a; Viana, 2007b). A percepção da totalidade e de suas partes constituintes. Ou seja, é preciso estar atento não apenas às partes e não apenas ao todo, mas a ambos, pois somente assim é possível superar a ilusão, ou seja, perceber que trata-se de um quadro que tem muito mais elementos do que parece à primeira vista (aparentemente) e que consiste em superposição de imagens que remetem a coisas distintas. Contudo, o que se reproduz contemporaneamente é a oposição entre macro e micro, holismo e individualismo, manifestações ideológicas que reproduzem distintas formas de ilusão. Sendo assim, é necessário superar a ilusão e compreender o real.

Para compreender, a sociedade contemporânea, portanto, é preciso compreender suas partes e suas relações, para chegar à sua totalidade. Se olharmos a sociedade de forma panorâmica veremos apenas a superfície e não sua essência. A essência é algo difícil de ver ou perceber numa visão panorâmica. Se questionarmos por qual motivo ocorreram determinadas mudanças culturais na sociedade atual, a resposta mais imediata pode ser a “globalização” ou a “pós-modernidade”, o que, no fundo, não diz nada. Basta ver a dificuldade de definição destes dois termos (quando são definidos) para ver suas limitações intrínsecas e seu caráter de mera aparência. Inclusive, é necessário explicar a própria origem dos termos globalização e pós-modernidade, que são parte do todo da sociedade contemporânea[2]. No fundo, todas as ideologias que afirmam ter ocorrido uma mudança radical na sociedade a partir dos anos 1970 ou 1980, não ultrapassam o nível de uma visão panorâmica, uma falsa totalidade que não compreender a essência. A suposta sociedade pós-moderna ou pós-industrial é uma ideologia – sistema de pensamento ilusório – que vê apenas descontinuidade onde também há continuidade. A suposta alegação que o setor de serviços aumentou e o setor industrial decaiu como justificativa para a ideologia da sociedade pós-industrial é apenas uma demonstração de que não entendeu que não é mudança da presença quantitativa de determinadas relações sociais (ou “setores”, para usar linguagem ideológica cunhada pelo economista Colin Clark) que significa uma mudança nesse sentido. Inclusive, a partir dos anos 1990 o “setor de serviços” começa a ter uma queda também (Reich, ).

O que ocorre, no fundo, é apenas mais uma mutação do capitalismo. O modo de produção capitalista se institui a partir da produção de mais-valor, exploração do trabalhador que produz um excedente apropriado pelo capitalista. Contudo, essa produção de mais-valor é relação entre classes sociais, marcada pela exploração e dominação, por um lado, e pela alienação, sofrimento e resistência, por outro lado. Historicamente, essa é uma relação permanente do capitalismo e não deixou de existir. Continua existindo capitalistas e proletários e continua existindo a extração de mais-valor. Mas não só continua existindo como é o elemento fundamental e essencial da sociedade contemporânea, pois é através da extração de mais-valor que se constitui toda a dinâmica da sociedade capitalista. É como ocorre a produção de mercadorias, ou seja, os meios de sobrevivência da humanidade e os produtos supérfluos que garante o dinheiro para capitalistas desta área, trabalhadores desta área e toda uma relação estabelecida com fornecedores, mercado consumidor, etc. A produção de armas é inútil para a humanidade, mas é útil para os capitalistas bélicos, para seus fornecedores, trabalhadores, etc. E só é útil por proporcionar lucro. Isso vale também para a produção cultural, cada vez mais mercantilizada e ligada ao processo de produção de lucro. Se o capital bélico norte-americano desabar, o país entra em colapso, pois o desemprego, os outros setores do capital atingidos (fornecedores de matérias-primas, etc.) que também geram desemprego, etc., provocaria uma crise sem limites. E o Estado norte-americano, obviamente, como principal comprador de armas, deve continuar comprando, quer queira ou não. Eis o dilema do capitalismo: é necessário garantir a reprodução do capital.

Nesse sentido, é preciso entender que as ideologias contemporâneas não explicam nada disso, já que não só colocam seu foco no lugar errado (geralmente na cultura ou no “poder”, visto abstratamente ou em qualquer outro aspecto da realidade, ou “irrealidade”, inventado por algum ideólogo) como se recusam a perceber a realidade, pois não só o processo de mercantilização da cultura, domínio do capital comunicacional, interesses acadêmicos de financiamento de pesquisa, etc., como os valores, concepções, etc., dos produtores de ideologias reforçam a recusa da análise mais profunda da realidade.

O capitalismo, no entanto, não é um modo de produção estático. O processo de extração de mais-valor se altera formalmente, assim como suas consequências,. Para compreender esse processo, o conceito de regime de acumulação contribui no sentido de permitir a percepção da historicidade do capitalismo e suas mutações. Não poderemos desenvolver aqui uma análise dos sucessivos regimes de acumulação, já abordados em outras obras (Viana, 2009; Viana, 2003) e por isso nos limitaremos a fazer uma breve exposição sobre a sociedade contemporânea, o atual regime de acumulação.

O regime de acumulação atual é o integral, marcado por mudanças nos elementos constitutivos de um regime de acumulação: a forma de extração de mais-valor, a forma do Estado, a forma das relações internacionais. A passagem do regime de acumulação conjugado (ou intensivo-extensivo) para o regime de acumulação integral se faz com a mutação do processo de extração de mais-valor, cuja preponderância passa do fordismo para o toyotismo, na forma estatal, na qual o Estado integracionista (do “bem estar social” ou “keynesiano”) para o neoliberal, e nas relações internacionais, na qual o neoimperialismo assume o lugar das formas de exploração internacionalmente anteriormente dominante. Isso proporciona muitas mudanças sociais. A chamada “reestruturação produtiva” promove um processo de precarização, busca de aumento de extração de mais-valor relativo e absoluto, e isso só é possível pela ação do Estado neoliberal que corrói os direitos trabalhistas, diminui os gastos estatais e aumenta a repressão (entre outras ações complementares), o que, junto com o aumento da exploração internacional, promove situações de extrema pobreza a nível mundial. A exploração e precarização aumentam em todos os países, inclusive nos países imperialistas. O objetivo é aumentar a exploração em geral para conseguir garantir a sobrevivência do capitalismo (Viana, 2009).

Nesse contexto, há mutações ideológicas e culturais importantes. Claro que não poderemos analisar o processo de emergência e necessidade do novo regime de acumulação, devido às lutas do final dos anos 1960 e tendência declinante da taxa de lucro (Viana, 2009), mas é claro que as mudanças sociais geram mudanças culturais e ideológicas, tal como a emergência da ideologia pós-estruturalista, a apropriação do neoliberalismo (criado nos anos 1940) e sua renovação no sentido de se tornar não só uma ideologia renovada, mas também o elemento definidor da nova forma estatal, etc. Sem dúvida, o neoliberalismo busca reduzir os gastos estatais e por isso usa a estratégia de responsabilizar a sociedade civil e incentivar iniciativas no seu interior para garantir sua legitimação. O surgimento das ONGs, e Terceiro Setor, bem como outras formas, tal como a economia solidária no Brasil ou as cooperativas em outros países, faz parte desse processo. A sociabilidade capitalista – caracterizada pela mercantilização, burocratização e competição (Viana, 2008) – assume uma intensificação de seus processos básicos que acabam promovendo uma poderosa força destrutiva da vida psíquica dos indivíduos. A mercantilização das relações sociais, uma característica do capitalismo, se transforma em hipermercantilização, intensificando de forma drástica esse processo. O processo de burocratização avança cada vez mais e nesse contexto o processo de trabalho ganha um caráter cada vez mais “patológico” e a política de resultados acaba ganhando primazia sobre qualquer outro critério. A competição social, outra característica essencial do capitalismo, acaba sendo acirrada e sua intensificação promove uma corrida enlouquecida pela vitória e reforça o processo de desumanização e coisificação já existentes.

Essa é, de forma muito resumida e incompleta, uma digressão geral sobre alguns dos principais aspectos do capitalismo contemporâneo sob a égide do regime de acumulação integral[3]. O problema é que essa é a realidade contemporânea, que está em total desacordo com as ideologias e representações cotidianas ilusórias da contemporaneidade. A maioria das explicações ou referências ao capitalismo contemporâneo remete a termos metafísicos e construtos (falsos conceitos) que sob o pretexto de explicar tudo, não explica nada, tais como “globalização”, “pós-modernidade”, etc. E assim, termos inúteis para explicar a realidade acabam emergindo e se tornando vigentes e ganhando a hegemonia e assim o simulacro, a flexibilidade, o pós-moderno, a diferença, representações sociais, líquido, etc. Obviamente, que o uso de tais termos e ideologias, além das determinações acima aludidas e da força da pressão social, é reforçado pelo descompromisso com a verdade e interesses pessoais (desde o financiamento de pesquisa, facilidade de publicação, etc.) até a maior facilidade, devido à superficialidade das abordagens que usam tais ideologias ou terminologia. Sem dúvida, existem aqueles que mesclam concepções distintas, tal como as várias tentativas de unir “marxismo” (ou pseudomarxismo, o que é mais comum) e ideologias vigentes.

A questão é que estas concepções ilusórias da realidade exprimem o real, mesmo deformando-o. Ou seja, a ideologia (ou as representações cotidianas ilusórias) não pode evitar a realidade. É por isso que as ideologias possuem momentos de verdade e é isso que permite que não sejam meras ficções – embora algumas se aproximem muito disso – e que possam ser relativamente convincentes, umas mais, outras menos, dependendo de qual ideologia se trata. A percepção da realidade é algo difícil e geralmente se busca fazê-lo através da mediação de uma concepção que forneça uma explicação ou uma receita (modelo) que permita entender minimamente a realidade (mesmo que sejam as concepções irracionalistas e relativistas que, no fundo, nada explicam, mas apaziguam a mente do indivíduo ao abordar o real mesmo que seja para afirmar sua ininteligibilidade).

Assim, existem as concepções que fazem apologia da sociedade atual. Um grande número de ideologias e representações cotidianas ilusórias executam esse papel legitimador e conservador. São concepções burguesas que mesclam apologia do mundo atual com “crítica” das teorias e representações cotidianas que apontam para a necessidade da transformação social. Por outro lado, emerge um conjunto de críticas da sociedade capitalista. Essas concepções críticas vão ter ressonância ou forma específica no caso da esfera artística, assumindo, pois, a forma de crítica social (Viana, 2012). Neste sentido, é possível entender as várias formas de crítica social existentes, expressando distintas perspectivas de classe, concepções políticas, valores, etc., e que assume uma grande complexidade em casos concretos.

De forma sintética, podemos distinguir entre crítica social radical e crítica social moderada. A crítica social radical é aquela que aborda a sociedade como uma totalidade e possui um projeto de transformação social ou pelo menos um esboço ou desejo do mesmo. Ela pode ser subdividida em revolucionária ou utópica concreta ou humanista abstrata ou utópica abstrata. A primeira expressa uma perspectiva de classe proletária (às vezes se inspirando no marxismo ou no anarquismo) e busca a superação do capitalismo e sua substituição por uma sociedade radicalmente diferente (cujo nome pode variar: “comunismo”, anarquia, autogestão social, etc.). A segundo expressa uma perspectiva de classe proletária incipiente marcada pela união de concepções relativamente ingênuas de transformação social e crítica da realidade atual, geralmente a partir de um humanismo abstrato. Nessa abordagem, a imprecisão se une com o desejo de transformação social. Artistas de diversas classes, com preocupações humanistas e sociais, tendem a abraçar esse tipo de crítica e manifestá-la em suas produções artísticas.

A crítica social moderada também assume diversas formas. Ela se caracteriza por ser uma crítica que não apresenta um projeto alternativo de sociedade, nem como esboço ou desejo intenso. Ela não visa à transformação social e sim a reforma, a adequação de setores da sociedade, os indivíduos, etc., sem uma mudança radical do conjunto das relações sociais. As principais formas de crítica social moderada são a fragmentária, a moralista e a pessimista. A crítica fragmentária é aquela que focaliza determinado aspecto da sociedade e não sua totalidade e o aspecto eleito depende de quem faz a crítica. Por exemplo, é possível a criação de uma obra literária, quadrinística, musical, fílmica, etc., cujo elemento seja uma crítica à escola. Essa crítica poderá ser superficial e exigir, para quem concorda com ela, reformas ou mudanças nela, sem transformar a sociedade como um todo. A crítica moralista é aquela que parte de um cânone abstrato de uma moral (geralmente a moral dominante, burguesa) e que o usa para questionar e refutar determinados aspectos das relações sociais ou mesmo ela em sua totalidade, tal como o comportamento coletivo de indivíduos. É o caso, por exemplo, da crítica da corrupção sem ir à sua raiz social, ou seja, seu processo de constituição social e assim os indivíduos são responsabilizados. A crítica pessimista pode abordar as parte ou o todo, mas se caracteriza por unir recusa e conformismo, questionamento sem ter esperança ou proposta de mudança, mesmo que seja parcial ou moral.

A crítica social moderada é realizada, portanto, a partir de uma perspectiva burguesa ou de uma de suas classes auxiliares (que, por serem auxiliares, não ultrapassam o horizonte burguês). Elas assumem formas predominantes dependendo de um conjunto de determinações, tal como a situação da época (períodos de crise tendem a fortalecer a crítica social pessimista, por exemplo), as ideologias e concepções vigentes, a singularidade psíquica do produtor, etc.

De qualquer forma, é interessante ressaltar que a competição interna na esfera científica também interfere no processo de produção artística. As produções mais críticas podem também ser resultado de tentativas de angariar simpatia em outros setores da sociedade para conseguir relativo sucesso nesta esfera, ou manifestar insatisfação por sua posição na mesma. Essa é uma determinação que deve ser levada em consideração e que ajuda a explicar, por exemplo, como alguns passam de um tipo de crítica à outra, ou de uma posição acrítica para uma crítica, pois sua situação pessoal acaba promovendo oscilações e a busca de um público é uma das motivações de se realizar crítica social.

Essa discussão sobre capitalismo contemporâneo e formas de crítica social abre espaço para uma análise da crítica da burocracia e do capitalismo nas histórias em quadrinhos de Dilbert. O nosso objetivo será uma análise de sua crítica visando descobrir qual forma é a que ele efetiva e assim compreender melhor seu universo ficcional.

Dilbert: A crítica pessimista da burocracia e do capitalismo

A análise dialética dos quadrinhos de Dilbert coloca o seu caráter crítico diante das grandes organizações burocráticas (e da sociedade capitalista como um todo) sob uma forma pessimista, pois não expressa nenhum projeto alternativo de sociedade em seu universo ficcional. O pessimismo revela uma união entre crítica e conformismo, o que significa que revela a realidade sem colocar a possibilidade da transformação social. Essa concepção expressa a perspectiva de classe da intelectualidade que sofre os impactos do regime de acumulação integral sem compreender a sua existência, historicidade e tendências.

Para entender esse processo, é necessário recordar a época em que Scott Adams começou a produzir seu personagem Dilbert. Ele nasceu em 1957, sendo que começou a desenhar aos seis anos de idade e pretendia ser desenhista, mas em 1968 foi rejeitado na Escola de Artes e passou a estudar direito. Posteriormente trabalhou em empresas de telecomunicações e banco (de 1979 a 1986), assumindo as funções de estagiário, analista de orçamento, programador, supervisor, gerente de produção, entre outras. A partir de 1986 passou a trabalhar para a Pacific Bell Telephone Company (que passou a se chamar AT&T e, por último, AT&T Teleholdings). A sua vida profissional de trabalhador de escritório (ou “colarinho branco”), que mais tarde será alvo de suas críticas nos quadrinhos, se inicia em 1979 e vai até 1995, quando sai da Pacific Bell, companhia telefônica, o que significa que ele trabalhou durante o período em que se iniciou e consolidou a chamada “reestruturação produtiva”, a implantação do toyotismo. As suas primeiras tiras foram publicadas em 1989 e com o processo de popularização de suas tiras, passou a ser publicado por 100 jornais, em 1991 e 400, em 1994. Ele abandona seu emprego na Pacific Bell em 1995 e em 1996 se torna “cartunista em tempo integral”, já sendo publicado em 800 jornais. A popularidade de Dilbert continuou crescendo: ganhou um desenho animado na TV (1998-2000), atingiu 2 000 jornais no ano 200, atingindo 57 países e 19 idiomas. Scott Adams publicaria ainda os livros O Princípio Dilbert e O Futuro Dilbert.

Os quadrinhos de Dilbert são marcados pela crítica social e sátira. O alvo principal da crítica é a irracionalidade burocrática. Vamos apresentar alguns quadros e após isto realizar alguns comentários:





Os quadros acima focalizam a questão do chefe. Não somente nestes como em diversos outros, a incompetência do chefe, aquele que está no cume da hierarquia da burocracia, embora existam outros acima dele. No primeiro quadro, Dilbert, atendendo o pedido do chefe de apresentar o relatório anual da gestão, coloca que o mesmo tem “comparações irrelevantes” e “reflexões mais que obvias” (tal como os computadores estarem mais velozes). No segundo quadro, Dilbert pergunta ao lixeiro por qual motivo a maioria das decisões são tomadas por “lêmures bêbados” e obtém a resposta que as pessoas que tomam decisões são as que possuem tempo e não talento, e estas últimas não possuem tempo por estar resolver os problemas causados pelos outros que tem tempo. Por último, o estagiário diz que terá que escolher entre fazer como gostaria seu chefe e fracassar ou não fazer e ser insubordinado.

O chefe é considerado um grande incompetente. Isto é verdade em grande parte dos casos. Contudo, a “incompetência do chefe” tem outras raízes. O que é percebido como “incompetência” pelos que estão abaixo na hierarquia burocrática é, em muitos casos, desconhecimento de detalhes técnicos e atividades especializadas específicas. Outro elemento é o maquiavelismo que os que comandam uma empresa precisam praticar para poder não somente manter seu cargo como garantir o lucro da empresa, elementos inseparáveis. Também há outro elemento que pode aparentar incompetência e não é exatamente isso, é a irracionalidade da burocracia, que precisa unificar os interesses da empresa (lucro), dos chefes (cargos), do controle (dos funcionários e dos que estão abaixo na hierarquia, mesmo também possuindo cargos considerados de chefia), condição para realização dos dois objetivos anteriores e que cria o processo de aparente irracionalidade. O processo de incompetência é satirizado abaixo, porém, não apenas no caso de chefe, mas também no caso daqueles que querem ascensão dentro da empresa, ou seja, os que querem vencer a competição interna:


Assim, a incompetência é um mal atribuído ao chefe, mas aos carreiristas também. E é possível perceber que a imagem do chefe é repassada de forma que seu cabelo parecem dois chifres, que simboliza o diabo (um ser maligno, expressão do mal). Isso não é apenas “coincidência”, pois podemos ver abaixo uma tira que mostra o chefe no inferno, mas não só ele como vários outros, todos de “cabelos pontudos”, como Dilbert se refere a ele em algumas oportunidades. E também podemos notar, no quadro acima, que o carreirista também tem duas pontas no cabelo, menores e de outra cor, mas que mostra uma certa semelhança.

A irracionalidade burocrática é retratada através das reuniões excessivas e que muitas vezes não contribuem com as atividades da empresa, bem como por seu caráter enfadonho. Os recursos utilizados nas reuniões e sua mistificação, tais como gráficos e dados, também são questionados. Vejamos algumas tiras sobre isso:









Os elementos questionados aqui são as reuniões – um dos temas mais frequentes e que recebe um grande número de tiras dedicado a elas – tanto por sua inutilidade, quanto por sua “chatice”. No fundo, as reuniões podem tanto expressar um objetivo burocrático de controle quanto um objetivo democrático de deliberação coletiva. No entanto, em grandes organizações, marcadas pela hierarquia e cargos de chefia, entre outros elementos burocráticos, o seu objetivo é controle. A fiscalização e avaliação da direção burocrática, as prestações de contas, os procedimentos burocráticos, etc., são os elementos mais comuns.

A primeira tira mostra o diretor afirmando que é preciso fazer mais com menos e os dirigidos questionam sem é menos “reuniões” ou “micro-gerenciamento” e ele responde que é menos dinheiro, o que significa que haverá mais reuniões e micro-gerenciamento (em outras palavras, mais controle) para garantir o menor gasto de dinheiro. Além da própria tira colocar as reuniões como algo indesejável, todo o seu desencadeamento ocorre numa reunião e nela se observa o diretor dando ordens, controlando e reforçando a necessidade de controle.

A segunda tira mostra uma pessoa fazendo uma exposição utilizando o PowerPoint e revelando que poderia ter passado por email, mas preferiu torturar os participantes da reunião lendo vagarosamente os slides. Aqui a sátira é com aqueles que usam PowerPoint e fazem a leitura do mesmo, o que é sem sentido, pois todos sabem ler e bastava ter enviado antes. A sátira dá a entender que esse é um processo intencional do usuário do PowerPoint, mas a real razão desse procedimento está na obrigatoriedade de exposição (ou pelo menos pressão para tal) e insegurança de quem o faz (ou pelo menos vontade de ganhar tempo) – com as devidas exceções – e na pouca utilidade disso para os que estão presentes na reunião. Nesse sentido, apesar de alguns considerarem o uso do PowerPoint “dinâmico” (inclusive em sala de aula), ele pode ser enfadonho se for apenas para leitura. Isso ocorre em reuniões e nesse sentido é uma sátira com a mistificação do uso do PowerPoint e, novamente, das reuniões, nas quais isso ocorre.

A terceira tira é a mais interessante de todas. Apresenta uma sátira com a mistificação do gráfico, que parece um elemento mágico que encanta os incautos e ingênuos, ou as pessoas de consciência fetichista. Dilbert revela que não tinha nada a dizer e que por isso desenho um gráfico. Alguns dizem que se é um gráfico, é verdade, e outros apostam sua vida na “verdade do gráfico”. A mistificação do gráfico e sua relação com “a verdade” é satirizada. Nos quadros seguintes, o diretor afirma que a empresa gostou tanto da palestra que irá se basear nela para criar seus novos produtos. Dilbert diz que foi lixo embrulhado como presente, ou seja, a forma do gráfico era para não dizer nada (forma sem conteúdo) ao que o diretor responde que é isso que vão fazer, ou seja, usar a mistificação e a forma para passar conteúdo que no fundo é um lixo. A sátira sobre o gráfico mostra a irracionalidade que está por detrás de sua mistificação e, ao mesmo tempo, como isso ocorre em uma reunião, como isso tem uma eficácia simbólica diante de pessoas com consciência fetichista.

Uma nova tira mostra outra mistificação comum nas organizações burocráticas:


Aqui temos uma sátira com o uso de números. A mistificação dos números e dados estatísticos é grande e a sátira serve para apresentar outra mistificação, que são os “estudos” e “pesquisas” realizados. Dilbert afirma que os números exatos não são melhores que os inventados e a nova mistificação vêm com a pergunta “quantos estudos mostram isso”, que mistifica novamente os estudos e a quantificação deles, e a resposta é “oitenta e sete”, obviamente um número inventado, o que torna convincente não só a afirmação pela resposta em relação ao número existente, mas também por ser um número de estudos inventado e convence da mesma forma.

Outros aspectos da burocracia, como o sigilo burocrático, o domínio dos especialistas de alguma área, etc., estão presentes, mas por questão de espaço não poderemos apresentar. Mas antes de encerrar, um exemplo é necessário: o da competição.






A competição por aumento salarial, cargos, etc. é constante e se realiza não apenas no espaço da empresa como em todos os demais espaços sociais, como demonstra outras tiras, tal como a do personagem Ratoberto ganhando debates na internet usando apenas retórica e se gabando disso.

Enfim, as histórias em quadrinhos de Dilbert apresentam uma crítica das empresas capitalistas, sua ânsia de lucro, a competição, a burocratização e mercantilização das relações sociais. Contudo, a empresa é apenas um microcosmo da sociedade capitalista e a contém no seu interior. Assim, ao mostrar a dinâmica das empresas capitalistas, as tiras de Dilbert mostram a sociedade capitalista como um todo e suas incursões em outras relações sociais mostram isso.

A sátira demonstra uma crítica social. Mas tal crítica social não é realizada a partir de uma perspectiva radical, pois em nenhum momento há a esperança, a utopia, o novo. No fundo, não há nenhum projeto alternativo de sociedade. Trata-se, portanto, de uma crítica social moderada e que, apesar do seu sarcasmo e intensidade, não apresenta nenhuma saída possível. Sendo uma crítica moderada, resta a opção de ser fragmentária, moralista ou pessimista. Não é fragmentária, pois apesar de tomar as grandes empresas capitalistas como foco, é visível sua extrapolação para outras relações sociais e isso é mais perceptível ainda quando revela as mesmas relações sociais em outros contextos sociais. Não é moralista, pois não apresenta nenhuma moral ou condenação ao que é criticado. Assim, a conclusão mais adequada é a de que se trata de uma crítica pessimista. A tira abaixo mostra a posição diante da moral e seu caráter não-moralista:



Enfim, os quadrinhos de Dilbert apresentam uma concepção pessimista de natureza humana e de relações sociais, onde tudo parece ser uma selva comandada pela lei do mais forte. No fundo, Scott Adams, segundo se pode perceber a partir de sua própria biografia, fica entre dois mundos, o dos quadrinhos e o da empresa. Os seus livros sobre Dilbert demonstram isso e seu envolvimento com o universo empresarial, que, inclusive, utilizou para criar as tiras de Dilbert (não somente suas experiências no trabalho, mas também técnicas administrativas das empresas, inclusive ele mesmo atribui ao ter coloca email e site entre os quadros para obter um feedback dos leitores uma das razões do sucesso de seu personagem). Scott Adams, que anunciou sua candidatura à presidência dos EUA em 2011 não é um humanista, sendo mais um representante de um setor da intelectualidade oriundo dos quadros administrativos mais baixos das grandes empresas e envolvido na competição social que denuncia e reproduz, tem compromisso apenas com o próprio sucesso. Uma de suas tiras ajuda a compreender isso:




Nesse sentido, os quadrinhos de Dilbert mostra uma crítica social pessimista da sociedade atual e das grandes empresas capitalistas e não expressa nenhuma alternativa, deixando subentendido que é nesse mundo burocrático, mercantil, competitivo e vazio que temos que viver e nada há para fazer. Apesar disso, tem o aspecto positivo de contribuir para uma crítica social do capitalismo e da burocracia e pode ser utilizado para fins e sob formas indesejadas pelo seu autor.


Referências

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WACQUANT, Löic. As Prisões da Miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.




* Professor da Faculdade de Ciências Sociais da UFG – Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia pela UnB – Universidade de Brasília e autor de diversos livros, entre os quais “Introdução à Sociologia”; “Karl Korsch e a Concepção Materialista da História”; “Cérebro e Ideologia”.

[1] Aqui podemos fazer uma breve referência à curiosa situação na qual a religião acaba sendo influenciada, também, pelas ideologias vigentes. Basta ver o processo no qual a mercantilização das relações sociais e a competição social estão presentes no mundo religioso e o torna tão sensível ao processo social e às ideologias que legitimam e o reforçam. Desde os carismáticos católicos e os evangélicos até os sucessores da “teologia da libertação”, temos um processo de reprodução de lugares comuns e determinadas relações sociais e como as mutações são adaptações às novas relações sociais interpretadas por “novas” ideologias.  Assim, temos o neoconservadorismo dos carismáticos e evangélicos fundados numa forte competição pela alma (ou melhor, pelo dinheiro) dos fiéis num processo de uso de formas arcaicas de religiosidade unidas com objetivos e valores contemporâneos ligados à competição social e temos o “progressismo” da Teologia da Libertação que troca os “pobres” por grupos sociais diversos, seguindo a ideologia pós-estruturalista e a tendência microrreformista dominante.

[2] Para uma crítica aos dois termos, cf. Viana (2009).

[3] Obviamente que além das obras já citadas sobre isso, há uma extensa bibliografia sobre a sociedade contemporânea, mas poucas rompem com as ideologias vigentes, e mesmo assim fazendo-o muitas vezes de forma ambígua.  Assim, se David Harvey (1992) consegue identificar um novo regime de acumulação, acaba caindo sobre o encantamento das ideologias vigentes ao denominá-lo “flexível”, apesar da dura realidade de sua inflexibilidade, entre outros equívocos e problemas. Se Bourdieu (2004) consegue entender que há uma busca de “exploração sem limites”, lhe falta a percepção mais profunda da gênese e essência desse processo. Se Wacquant (2001) colabora ao perceber que o Estado neoliberal é “penal” e analisar suas práticas repressivas, está bem longe de ter maior clareza sobre sua essência e ligação com a totalidade do capitalismo. Se Tom Thomas (2007) acertadamente questiona a supremacia do capital financeiro, não avança no sentido de compreender o capitalismo contemporâneo em sua profundidade.

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